se a luz mediterrânea o deslumbrasse; a crônica torna-se epopéia de façanhas de cavaleiros andantes. Muntaner não é menos ingênuo do que os franceses; mas perde
o senso da realidade, é quase romancista, no sentido de romanesco. É contemporâneo do famoso Marco Polo (15), do veneziano que seguiu os caminhos dos missionários
franciscanos até na China; de volta, descreveu, em língua francesa, as coisas que nunca um cristão havia visto, a Pérsia e a China, Bureta e o Japão, Sião e Java,
Ceilão e as estepes dos mongóis; e sabia também contar coisas da Abissínia e da Sibéria. Os venezianos, comerciantes espertos e cépticos, não
HISTÓRIA DA LITERATúRA OCIDENTAL 379
acreditaram nas suas histórias de "milhões e milhões", zombaram do "Messer Milione". O aparente exagero provocou. até a paródia., Jean d:"Outremeuse, cidadão de
Liège,
poetastro e autor de uma lamentável Geste de Liège, no estilo das gentes francesas, escreveu uma Voyage d:"Oufre-Mer, atribuindo a um cavaleiro inglês, Sir John
Mandeville,
morto em 1372, o relato de uma viagem fantástica à índia e à Ãfricá, onde descobrira as gentes mais estranhas, mestiços de homem e animal, e mil outras maravilhas
inéditas, chegando até às portas do paraíso. Era uma gente geográfica, como o Roman d:"Alexandre, mas, no fundo, um romance burlesco. O estranho é que esse livro,
traduzido para o inglês como The Voiage and Travaile of Sir John Maundeville, Knight (1B), foi considerado como crônica verídica e teve sucesso imenso, nutrindo
a imaginação geográfica e ,antropológica de muitas gerações, sendo traduzi-, do para o,italiano, latim, holandês, alemão e tcheco; o realismo aparentemente exato
das restrições de coisas impussiveis dá a impressão de ser o seu autor um precursor de Defoe e Dickens, ou então de Jules Verne. Durante séculos, Mandeville ficou
nos anais da história literária como o Marco Polo inglês; só em 1886 se descobriu que "John Mandeville" nunca existiu.
A época era dos disfarces fantásticos. A aristocracia feudal, mortalmente ferida pelas modificações de ordem social, vivia num pitoresco carnaval de torneios. Pelo
14) Ramón Muntaner, c. 1265-1336. 16) The Voiage and Travaile oj Sir John Maundeville, Knight (1449).
Edição da Crónica por J. Coroleu. Barcelona, 1886. A atribuição do original francês a Jean d:"Outremeuse (1338-14OO)
A. de Bofarull: Ramón Muntaner, guerrero y cronista. Barce não está fora de dúvidas possíveis.
Edição por J. Ashton, London, 1887.
lona, 1883.
15) Marco Polo, e. 1254-1324. A. Bovenschen: Untersuchungen ueber Johann von Mandevile
Edição do Livro de Marco Polo por G. Pauthier, Paris, 1865; edi und die Quellen seiner Reisebeschreibung. Berlin, 1888.
M. Letts: Sir John Maundeville. The Man and His Book. Lon
ção inglesa anotada por H. Yule, 3:" ed., 2 vols., London, 19O3.
G. Danielli: Marco Polo. Roma, 1941. don, 1949.
88O OTTO MARIA CARPEAUX
menos assim parece nas crônicas de Jean Froissart (17),
porque êsse escritor habilíssimo só viu a superfície pito
resca das coisas. Na Biblioteca Municipal de Breslau con
serva-se um manuscrito das suas crônicas, com miniaturas maravilhosas do pintor flamengo David Aubert: é o repertório mais rico de imagens da vida medieval. No texto
de Froissart, as figuras do pintor vivem, falando, agindo, personificando a época dramática das guerras seculares entre a França e a Inglaterra. Mas Froissart não
consegue traçar os contornos firmes das personagens de Shakespeare nos dramas históricos que tratam a mesma época. É belga; tem, como todos os belgas, o gênio da
pintura. Os motivos psicológicos não lhe importam, nem os fins objetivos da guerra. Éle mesmo está indeciso entre os partidos, é uma espécie de correspondente de
guerra a serviço dos grandes, que pagam para verem glorificadas as suas façanhas. Froissart não mente; mas nem sempre é capaz de dizer a verdade.
Um novo realismo, mais digno de confiança historiográfica, principia com os cronistas ibéricos; os descendentes do Cid não perdem o senso da realidade, que começa
a vencer a imaginação quando as transições sociais se apro
ximam do fim. Pero López de Ayala (18), grande e chan17) Jean Froissart, 1337 - e. 141O.
Edições das Chroniques por J. B. M. Kervyn de Lettenhove, in: Oeuvres complètes de Froissart, 29 vols., Bruxelles, 187O/1877, e
por S. Luce, 11 vols., Paris, 1869/1899.
J. B. M. Kervyn de Lettenhove: Froissart. Étude littéraire sur le XIVe siècle. Bruxelles, 1857 ("standard work"). Ch.-A. Sainte-Beuve: Causeries du lundi. Vol. IX.
A. Debidour: Les chroniqueurs: Froissart, Commines. Paris, 1893.
M. dos Ombiaux: Froissart et le génio du Hainaut. Bruxelles,
1935.
M. Wilmotte: Froissart. Bruxelles, 1942. 18) Pero López de Ayala, 1332-14O7.
Crónicas de Pedro I, Enrique II, Juan I, Enrique III.
Edição: Biblioteca de Autores Espanoles, vols. LXVI, LXVIII. M. Díaz de Arcava: Don Pero López de Ayala, su estirpe, su casa, vida y obras. Vitoria, 19OO.
Cl. Sánchez Albornoz: "El Canciller Ayala, historiador". (In: Humanitas, Revista de Ia Facultad de Filosofia y Letras de Tucumán, I/1, 1951)
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 381
celer de Castela, é humanista; leu com proveito os historiadores romanos. Livio, a quem traduziu, é o seu modêlo. Figura e época do terrível rei Pedro, el Cruel,
acharam em López de Ayala um historiador de compreensão psicológica e que sabia tirar dos fatos um relato altamente dramático. Só não compreende o sentido das lutas
com os portuguêses, em Aljubarrota; é, como Froissart, homem medieval, incapaz de entender motivos políticos. O grande historiador de Aljubarrota é o português Fernão
Lopes
(19). Reúne à ingenuidade encantadora de um Joinville a
escrupulosidade historiográfica de um López de Ayala e o colorido pitoresco de um Froissart; a história de Inês de Castro, na Crônica XEI-Rei D. Pedro, basta para
revelar um grande escritor. Mas Fernão Lopes tem uma grande vantagem sôbre os seus precursores: a luta de Aljubarrota, o seu tema na Crônica XEI-Rei D. João, tem
sentido nacional e social. É a luta de um aa burguesia, em favor da preservação da independência nacional do Estado. Pelo tema não menos do que pela arte, é Fernão
Lopes, segundo Southey, "the greatest chronicler of any age or nation".
A posteridade preferiu Philippe de Commynes (2% sem empregar superlativos; superlativos não convêm ao
19) Fernão Lopes, c. 138O - e. 146O.
Crónicas d:"El-Rey D. Joam, d:"Ei-Rey D. Fernando, d:"EZ-Rey D. Pedro.
Edição da Crónica d:"El-Rey D. Pedro por L. Cordeiro, 4.a ed., Lisboa, 1895.
Edição da Crónica d:"El-Rey D. Joam por A. Braamcamp Freire Lisboa, 1915.
A. F. G. Bell: Fernão Lopes. Oxford, 1921.
E. Prestage: The Chronicles o/ Fernão Lopes and Gomes Eannes de Zurara. Watford, 1928.
Hernani Cidade: Lições de Cultura e Literatura Portuguèsa. Vol. I. 2.a ed. Coimbra, 1943.
2O) Philippe de Commynes, 1445-1511.
Mémoires, edit. por Calmette Durville, 3 vols., Paris, 1924/1926. Ch.-A. Sainte-Beuve: Causeries du lundi. Vol. I.
A. Debidour: Les chroniqueurs: Froissart, Commines. Paris, 1893. J. Bastiu: Les Mémoires de Philippe de Commynes. Paris, 1944. G. Charlier: Commynes. Paris, 1945.
#382 :" OTTO . MARIA CARPEAUX
mais, sêco entre os cronistas medievais; enquanto se pode dizer que Commynes é medieval. É um observador* crítico,
psicólogo cruel; não admite motivos de agir senão razoáveis, e os homens medievais da sua crônica, os cavaleiros e santos, parecem-lhe "loucos" e "doidos". Como
homem moderno, quer dizer, além da época da transição social, após a derrota do feudalismo, Commynes já não compreende os motivos sociais, que os seus predecessores
ainda não haviam compreendido. Só conhece psicologia e política: aplicação da astúcia diplomática para completar ou substituir a fôrça física. Commynes ainda é bastante
medieval para sentir a imoralidade dos meios do seu herói Luís XI. Por isso, moraliza e dá-se como pessimista. Mas êsse pessimismo fortalece-o na convicção de que
coisa alguma adianta, a não ser o sucesso, a vitória sôbre o inimigo: "Qui a le profit de Ia guerra, en a 1:"honneur." Commynes foi comparado com Maquiavel.
Os cronistas nem sempre apresentam a verdade; e quando a apresentam, não é a verdade inteira. Mas dispomos de elementos para completar-lhes as crônicas. Nos arquivos
europeus existe abundância de documentos que permitem reconstruir a vida dos séculos XIV e XV. As vêzes, são coleções coerentes, como as Pastou Letters (21) as mais
de 11OO cartas que os membros :"da família Pastou, em Norfolk, entre 1422 e 15O9, mandaram ou receberam: panorama incomparável da vida inglêsa da época e das suas
relações com o continente. Os documentos revelam aquilo que os cronistas silenciaram ou em que não repararam: as lutas de classe na Idade Média.
A unidade religiosa da Europa medieval produz as aparências de paz social entre as classes. Essa idéia romântica de uma Idade Média em que senhores, burgueses e
camponeses estavam de mãos dadas, passando a vida a cantar hinos, é tão antiquada que não vale a pena discuti-la.
21) Edição por J. Gairdner, 4 vols., London, 1872/19O1.
H. S. Bennett: The Pastons and their England. Cambridge, 1922.
HISTÓRIA :"DA LITERATURA OCIDENTAL 383
Qualquer manual basta para retificá-la. Infelizmente, os medievalistas mantinham êsse conceito errado com grande obstinação, acreditando que aquela paz social na
paz religiosa fôsse a maior glória dos tempos medievais. Na verdade, só uma Idade Média dilacerada por lutas de classe, como tôdas as outras épocas do passado, é
compreensível, porque humana. A verdadeira glória da Idade Média é outra: das lutas de classes medievais nasceram os princípios das garantias constitucionais da
liberdade pessoal, se bem que só em favor dos feudais, e o da soberania popular, embora só em favor dos príncipes contra a Igreja ou das cidades contra os príncipes.
Tôda a história medieval é uma história de lutas de classes, dos burgueses contra os feudais, dos artífices contra os burgueses, dos operários contra os artífices,
dos camponeses contra os feudais, dos burgueses contra os camponeses. Essa luta multiforme produziu novos gêneros literários: uma literatura burguesa antifeudal,
uma literatura camponesa, uma literatura bur
guesa anticamponesa (22). Tôda uma literatura de oposi
ção ou de oposições, que foi antigamente classificada como "anticlerica1% quando os motivos sociais estavam escondidos em metáforas religiosas, ou então como "literatura
satírica" ou "burlesca", quando o escárnio substitui ao fraco as armas da fôrça.
Um dos documentos mais fortes da literatura burguesa
é a segunda parte do Roman de Ia Rose (23), obra de Jehan
de Meung, por volta de 127O. Essa obra extensa, de mais ou menos 18.OOO versos, não tem nada da elegância amorosa da primeira parte; ao contrário, é sêca, didática;
muitas vêzés, grosseira e obscena. Apresenta-se como continuação da primeira parte: a conquista de Rose é levada a cabo. Mas o que importava ao autor eram os discursos
de dama Raison sôbre a arte de viver, de Ami sôbre o estado
22) F. Tupper: Types of Society in Medieval Literatura. New York, 1926.
23) Cf. nota 5.
#.384 OTTO MARIA CARPEAUX
desnatura) em que se encontra a sociedade, de dame Na
ture sôbre o sistema do mundo. As opiniões de Jehan de
Meung, expressas com grande vigor polêmico, são bastante radicais: adepto de uma teoria nominalista do direito natural, explica as origens do poder monárquico pela
eleição do mais violento entre os violentos ("Un grand vilain entre eux élurent... le firent prince et seigneur") ; as origens da propriedade pela usurpação dos
poderosos ("Mainte fois s:"entrecombattaient, / Et s:"enlevèrent ce qu:"ils purent") ; as origens da aristocracia feudal pela acumulação do capital ("Lors amasserent
les trésors, de pierres et d:"argent et d:"or... De fer dur forgèrent les armes"); e Faux-Semblant, personificação do clero corrompido, define a política eclesiástica,
nos versos: "Je suis prélat, je suis chanoine, / Tantôt chevalier, tantôt moine... / Je sais bien mes habits changer..." As idéias científicas de Jehan de Meung
sôbre o sistema do mundo não são menos radicais. Gastou Paris chamou-lhe "le Voltaire du Moyen Age"; um Voltaire em que já existe qualquer coisa de Marx, ou pelo
menos de Rousseau.
Jehan de Meung exibe erudição considerável. Vive em Paris, fôra certamente estudante da maior universidade medieval, e a sua grande admiração pelas ciências é extensiva
aos representantes delas:
"C:"est pourquoi pour noblesse avoir Les clercs, vous le pouvez savoir, Ont plus bel avantage et plus grand Que n:"ont les seigneurs de Ia terre."
Jehan de Meung é o primeiro representante da aliança entre a burguesia e os intelectuais, daquela aliança que fará, cinco séculos mais tarde, a Revolução Francesa.
A Universidade de Paris, aliás, está no tempo de Jehan de Meung entre duas revoluções: entre a dos tomistas que introduziram, contra a vontade do bispo, a filosofia
aristotélica, e a dos nominalistas que revolucionaram, com a lógica e a
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 385
ontologia, todo o sistema medieval das ciências. Nicholas Oresme (j:" 1382), bispo de Lisieux, prepara, em Dedifformitate qualitatum e no Traité du cie) et du monde,
os caminhos da física de Galileu e da astronomia de Copérnico; e no Tractatus de origine, natura, jure et mutationibus monetarum apresenta uma teoria da moeda e
da inflação. Marsilius de Pádua, reitor da Universidade de Paris, expõe em Defensor paris (1324) a teoria da soberania do povo e exige a separação entre Estado e
Igreja. Um centro do nominalismo foi o Merton College, em Oxford, onde William of Heytesbury (t 1372), o "Maximus Sophistarum", educava gerações de monges revoltados.
De Oxford saiu John Wyclif (2% lutando contra abusos políticos, sociais e eclesiásticos, pedindo a expropriação dos bens da Igreja, negando o dogma da transubstanciação,
divulgando entre o povo a sua tradução vigorosa da Bíblia. Os seus partidários, os "Lollards", revoltam a gente do campo.
Mas já não era preciso revoltar os camponeses. A recepção do Direito romano na Itália, na França, na Alemanha, introduzindo o conceito romano da propriedade, modificou
radicalmente a situação social; ou antes, sancionou a abolição sucessiva da pequena propriedade, transformando os camponeses em proletários rurais. As revoluções
agrárias na Flandres, em 1328, e na França, em 1357, estão em relação com isso. Na Inglaterra, o Direito romano não foi aceito, fora das influências do Direito canônico
no Direito anglo-saxão e de certas influências formais na legislação de Eduardo III. Mas, justamente na Inglaterra, a expropriação dos camponeses em favor do estabelecimento
de pastagens para criação de ovelhas era freqüente;
24) John Wyclif, c. 1324-1384.
De dominio divino. De civili dominio; The Wyclif Bible (c. 1382/ 1389).
Edição: J. Forshall e F. Maden: The Wycliffite Versions of the Holy Bible. 4 vols. Oxford, 185O.
H. B. Workman: John Wyclif. A Study of the English Medieval Church. 2 vols. Oxford. 1926.
#386 OTTO MARIA CARPEAUX
e quando o "Statute of Laborers" introduziu o trabalho forçado para os "vagabundos", isto é, os expropriados, rebentou em 1381 a revolução dos camponeses. Entre
a revolução social e a revolução religiosa dos "Lollards" havia certas relações. O produto da combinação era um socialismo religioso, do qual William Langland (26)
é o porta-voz. Sua Visão de Piers the Plowman é um grande poema alegórico, apresentando a visão como sonho, à maneira do Roman de Ia Rose. Mas o autor não tem nada
do francês. É homem do povo anglo-saxão, escrevendo em versos duros, quase bárbaros, investindo com grande vigor polêmico, às vêzes com a fôrça das visões dantescas,
contra os vícios dos grandes, e também contra os vícios do povo. Tem qualquer coisa de Amós ou Oséias, dos profetas populares do Velho Testamento; assim como êles,
recomenda como remédio o amor a Deus e ao próximo. É um revolucionário cristão. Encontra eco longínquo entre os tchecos, cuja universidade em Praga mantinha relações
com a de Oxford.
Petr Chelcicky (26) é um anarquista eslavo, revolucionário religioso, democrata apocalíptico, que aterroriza os ricos
e poderosos com a ameaça do último dia; a sua obra Rêde da Fé será, quatro séculos mais tarde, uma das leituras preferidas de Tolstoi.
25) William Langland, c. 1332 - c. 14OO.
The Vision of William concerning Piers the Plowman. (A obra existe em três versões, A, B, C, muito diferentes. A atribuição a Langland é incerta.)
Edição por W. W. Skeat, Oxford, 1886.
W. W. Skeat: The Vision of Piers the Plowman. Oxford, 1884. J. J. Jusserand: Vépopée mystique de William Langland. Paris, 1893.
J. M. Man1y: "Langland". (In: The Cambridge History of Engush Literatura. 3.a ed. Vol. H. Cambridge, 193O.) G. Kane: Midde English Literatura. London, 1951.
26) Petr Chelcicky, c. 139O-146O.
Réde da fé. - Edição por E. Smetanka, Praha, 1912. C. Vogl: Petr Chelcicky. Praha, 1928. F. O. Navratil: Petr Chelcicky. Praha, 1929.
HISTERIA DA LITERATURA OCIDENTAL 387
A indignação dos camponeses contra os "clérigos.", servidores dóceis dos grandes, encontra-se com a indignação dos pequenos-burgueses contra o orgulho dos eruditos
e os truques dos advogados, produzindo-se uma estranha literatura satírica contra os intelectuais. Um documento dessa literatura é a lenda, de origem judaica, de
Marcolf ou Morolf, homem simples mas manhoso, que venceu o sábio rei Salomão numa discussão meio erudita, meio ridícula. Aversão original, o diálogo latino Salomo
et Marcolfus, foi parafraseada em tôdas as línguas européias, sendo as versões mais conhecidas a alemã, Salmon und Morolf, do século XIV, e a inglêsa, intitulada
Dyalogus or Comunyng betwist the Wyse King Salomon and Marcolphus, que foi, ainda em 1492, impressa em Antuérpia. Outra amostra da oposição contra os "clérigos"
é a farsa fran
cesa do Maitre Pathelin (27), na qual o espertalhão engana
ao seu próprio advogado.
De extensão enorme e história interessantíssima é a literatura anticamponesa (28), nascida da repulsa do burguês limpo e educado contra o homem grosseiro e sujo
dos campos: a invasão das cidades por camponeses fugitivos, a resistência dos camponeses contra abusos das autoridades urbanas e, às.vêzes, o aparecimento de camponeses
"nouveaux riches", constituem os motivos dessa literatura, cujos primeiros produtos já aparecem no século XIII. Por volta de 125O o alemão Wernher der Gartenaere
descreveu, no poema Meier Helmbrecht, os costumes grosseiros dos camponeses bávaros, e como um dêles, que pretendeu tornar-se cavaleiro, encontrou fim lamentável.
Na mesma época, o grande trovador alemão Neidhart von
27) Maitre Pathelin (impresso em 147O). (O autor seria Guillaume Alecis?)
Edição crítica por R. J. Holbroock, Paris, 1924.
R. J. Holbrook: LEtude sur Pathelin. Princeton, 1917.
L. Cons: Vauteur de Ia Farce de Pathelin. Paris, 1926.
28) D. Merlini: Saggio di ricerche sulca satira contro il villano. Torino, 1894.
#388 OTTO MARIA CARPEAUX
Reuenthal zomba, em poesias parodísticas, dos amôres e
torneios entre os aldeãos. Por volta de 14OO, um poeta suíço, Heinrich Wittenweiler (2% conseguiu produzir a obra mais vigorosa dessa literatura inteira: a epopéia
herói-cômica Der Ring, na qual as personagens da epopéia nacional alemã, do Nibelungenlied, aparecem como hóspedes numa boda de aldeia, seguindo-se briga enorme
e sangrenta entre os camponeses e os gigantes; o poema, altamente humorístico e ao mesmo tempo de sabor fantástico, quase irreal, é uma das obras mais significativas
dêsse "barroco nórdico".
No século XV, o camponês grosseiro e imbecil é per
sonagem permanente nas farsas que se representavam du
rante o carnaval: nos "Fastnachtsspiele" alemães, nos
"Kluchten" holandeses, nas "sotties" francesas (3O).
O camponês desempenha o mesmo papel em vários con
tos do Decamerone. A Nencia de Lourenço de Médicas é
uma das paródias mais finas, e até delicadas, do amor cortesão em ambiente rústico. Durante a Renascença, encontram-se numerosas obras de humorismo rústico: as Rime
piacevoli, de Alessandro Allegri, as farsas de Ruzzante, Andrea Calmo e Alione, as Egloghe, da Accademia dei Rozzi, em Siena, o famoso Coltellino, de Niccoló Campana,
ditto Strascino (j- c.1533), os ViRaneschi contrasta, de Bartolommeo Cavassico. O motivo do camponês que pretende tornar-se aristocrata, volta na poesia macarrônica
de Folengo; depois, com grosseria inédita, no Orlandino (154O), de Aretino; finalmente, em numerosas comédias do barroco aristocrático, zombando das tentativas frustradas
de atravessar as fronteiras entre as classes da sociedade. Último representante dessa estirpe ilustre de proletários desgraçados é o jeppe pa bergert, de Holberg.
29) Heinrich Wittenweiler ou Wittenwiler: Der Ring (c. 14OO). Edição comentada por E. Wiessner. 2 vols. Leipzig, 1931/1936.
3O) M. J. Rudwin: The Origin of the German Carnaval Comedy. New York, 192O.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 389
Mas isso já é outra história, do século XVIII
Muito
antes, as classes cultas tinham encontrado motivo para, em vez de zombar do camponês, invejar-lhe a vida pacífica. Nas Eclogues (c. 1513) inglêsas, de Alexander
Barclay (1475-1552), existe ainda mistura estranha de mofa e idílio; mas Sannazzaro já havia criado o sonho da Arcádia, e o homem rústico tornou-se herói de uma
imensa literatura idílica, no momento em que a palavra inglêsa villain, significando "camponês", mudou de acepção, designando agora "malandro"; em breve significará
o cortesão ou ministro intrigante e traidor da tragédia elisabetana. Aristocrata
- camponês tinham trocado os papéis.
As lutas de classe, sociais e literárias, da Idade Média, escondem-se atrás da aparente unidade religiosa. Mas essa "superestrutura" teve os seus efeitos literários,
dos quais
- mais poderoso é a colaboração de tôdas as classes urbanas na representação dos mistérios, das peças religiosas. A colaboração das classes corresponde, literàriamente,
a unificação das tendências góticas no teatro: do misticismo
- do realismo. Aquêle aparece no lirismo dos mistérios franceses e italianos e na angústia dos mistérios alemães; êste, sobretudo, nas cenas humorísticas dos mistérios
inglêses. As tendências encontram-se, principalmente, nas cenas do diabo; e o diabo é o personagem de predileção da
literatura medieval inteira.
O teatro medieval é de relativa uniformidade em tôda a Europa. Mas a distribuição do gênero entre as diferentes literaturas é muito desigual. A pequena Holanda é
particularmente rica em "Mirakelspelen"; um dêles, Beatrijs (3O), a história da religiosa que fugiu do convento, e que, quando voltou, arrependida, reparou que ninguém
tinha dado pela sua ausência, porque a Virgem a substituíra em figura humilde - é uma das mais belas produções tea
3O) Beatrijs, século XIV (atribuído a Gijsbrecht).
C. C. Van der Graft: Marialegenden. Haarlem, 1918.
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