Otto maria carpeaux



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na Alsácia, Colônia, Herford, Wesel, fundam-se as primeiras escolas humanistas. O humanismo alemão é, nas origens, um movimento pedagógico: os primeiros autores

latinos traduzidos são Plauto e Terêncio, cujas comédias já serviam de livros didáticos nos conventos medievais. E os fundadores daquelas escolas são os "irmãos

da vida comum", os adeptos da "devotio moderna" de Ruysbroeck e Geert Groote. As casas da "devotio moderna" ganhavam a vida dos seus membros pelo ensino e pelo trabalho

de copiar manuscritos. Reuchlin e Melanchthon saíram daquelas escolas. No humanismo alemão viveu sempre um elemento de devoção mística: quando o humanista Conrad

118) H. Plessner: Das Schicksal des deutschen Geistes im Ausgang seiner buergerlichen Epoche. Zuerich, 1935.

119) W. Stammler: Von der Mystik zum Barock, 14OO-16OO. Stutrgart, 1927.

Mutianus pretende falar da serenidade dos estóicos antigos, emprega a expressão "beata tranquillitas", quer dizer, a "tranqüilidade silenciosa da alma" dos místicos.

Erasmo é o último filho, filho pródigo, dessa mística teuto-holan

desa.

Nas ricas cidades burguesas do Sul da Alemanha, êsse misticismo transforma-se - a evolução é típica e encontrar-se-á várias vêzes - em nacionalismo sentimental (1`O)



procuravam-se testemunhos antigos da dignidade da nação. Wimpheling considerou a Germania, de Tácito, como a obra mais importante da literatura romana, e outro humanista,

Beatus Rhenanus, editou-a. Celtis editou as comédias latinas da religiosa Hrotswith de Gandersheim, do século X, para provar a cultura clássica dos alemães medievais,

e Peutinger sugeriu a Cuspinianus uma história dos imperadores alemães da Idade Média (Caesares, 154O). O humanismo italiano do "Cinquecento", o humanismo "romano",

era em grande parte um movimento nacional, identificando a Itália moderna com a gloriosa Roma antiga; não pôde deixar de excitar, em outros países, movimentos de:"reacão,

de nacionalismo anti-romano, e particularmente num pais germânico, não latino.

Hutten e os seus amigos deram a êsse nacionalismo sentimental um conteúdo concreto: a defesa dos "cavaleiros" e cidades, aliados contra o imperialismo da Igreja

romana e, logo depois, contra o imperador, o espanhol Carlos V. Em Hutten encontram-se o nacionalismo humanista e o misticismo religioso, dando como resultado a

fôrça política da Reforma luterana como movimento nacional. A última obra que Hutten projetara, era um Arminius, uma obra sôbre o herói germânico que expulsou os

romanos.

12O) U. Paul: Studien zur Geschichte des deutschen Nationalbewusstseins im Zeitalter des Humanismus und der Rejormation. Berlin, 1936.

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Os "romanos" não foram expulsos, pelo menos não completamente; na Contra-Reforma, a Igreja romana voltou, reconquistando vastas regiões da Alemanha. Mas a civilização

alemã já estava luteranizada; já se tinha sepa

rado da Europa.

CAPÍTULO IV


RENASCENÇA CRISTA"

NOS manuais de história, o 31 de outubro de 1517 aparece como uma data de primeira importância. Naquele dia, Martinho Lutero, professor de Teologia em Wittenberg,

afixou na igreja principal da mesma cidade um cartaz em que se propunha defender, contra qualquer adversário, 95 teses que diziam respeito à venda de indulgências

pelas autoridades eclesiásticas. O comércio escandaloso de bulas e cartas de indulgência indignara o monge contra a Cúria romana, que arrancava de maneira pouco

escrupulosa imensas importâncias ao povo alemão para alimentar o luxo renascentista dos prelados italianos. Com aquêle ato, tão comum na vida universitária da época,

Lutero conseguiu excitar a indignação geral do povo alemão, o "furor teutônico". Na disputação com o teólogo Eck, na Universidade de Leipzig, confessou, depois,

os seus intuitos, muito mais extensos do que a supressão da venda de indulgências reforma geral da administração eclesiástica, abolição de todos os sacramentos menos

o batismo e a eucaristia, abolição do culto da Virgem e dos santos, das imagens e relíquias, substituição do latim, na liturgia, pela língua nacional, abolição do

celibato do clero; enfim: abolição da Igreja medieval para voltar à pureza da Igreja primitiva. Sòzinho, com coragem quase sôbre-humana, imbuído da consciência da

sua missão divina, o monge desafiou a excomunhão pelo Papa e a proscrição pelo imperador. A

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Alemanha, e enfim a maior parte da Europa, aderiu a Lutero ou a outros reformadores, discípulos ou competidores seus. Na parte fundamental do seu sistema de sentir,

pensar e viver, na religião, a Idade Média sofreu a primeira grande derrota. Então - afirmam ou afirmavam os historiadores - estava aberto o caminho para outras

conquistas do pensamento livre: a tolerância religiosa, as ciências naturais, a filosofia crítica, a crítica histórica e bíblica, até o mundo chegar enfim à liberdade

espiritual completa dos séculos XIX e XX. Onde os povos não podiam acompanhar essa evolução, onde o protestantismo não venceu, como na Itália e na Espanha, ficou

tudo em atraso lamentável. Dêste modo, a Reforma, e em particular a Reforma luterana, seria o pendant religioso do outro grande movimento libertador, da Renascença.

A Reforma, ponto de partida do mundo moderno, seria a Renascença do cristianismo, a Renascença cristã. Eis como muitos manuais da

história expõem os fatos, comentando.a importância do dia 31 de outubro de 1517.

Na história dos erros humanos, é de uma esquisitice extraordinária o fato de os próprios católicos terem tàcitamente aderido a essa tese protestante. É grande a

tentação de construir árvores genealógicas de heresias para verificar qual o primeiro responsável. Assim, grande número de teólogos, filósofos e historiadores católicos

consideraram e continuam a considerar Lutero como o pai espiritual de Bacon, Descartes, Voltaire, Rousseau, Darwin e tutti quanti, acrescentando, em tempos mais

recentes, os nomes de Marx e Freud. A interpretação de Lutero como precursor de Kant, freqüentíssima entre os católicos, é diretamente emprestada aos historiadores

do protestantismo liberal do século XIX, que são os responsáveis imediatos pelo êrro. Pois de um êrro histórico se trata no caso, de um êrro que, se fôsse mantido,

tornaria impossível a compreensão da história moderna.

É verdade que Renascença e Reforma se encontraram, mas da maneira mais hostil: quando os mercenários luteranos do Imperador Carlos V saquearam, em 1527, a cidade

de Roma, destruindo para sempre o humanismo romano em tôrno da côrte papal. O acontecimento brutal é como uma manifestação exterior do encontro espiritual entre

Lutero, o reformador, e Erasmo, o humanista, encontro que acabou em hostilidade para sempre. Devemos a Nietzsche a interpretação da Reforma como movimento anti-renascentista

e portanto reacionário. Nos países onde a Renascença chegou ao máximo esplendor, na Itália e na França, o protestantismo foi vencido e exterminado. Na Inglaterra

semiprotestante - a Igreja anglicana considera-se como "via media" entre Roma e Wittenberg ou Genebra - a Renascença só chegou com o atraso enorme de quase um século.

A Alemanha, pátria do luteranismo, não conheceu Renascença senão como importação estrangeira, logo eliminada. Entre a Renascença "pagã" e a "Renascença" cristã parece

haver incompatibilidade absoluta. As aspas foram colocadas, aliás intencionalmente, uma vez no adjetivo e outra no substantivo. Já se revelou (1) que a Renascença

"pagã" não é totalmente pagã. Talvez a "Renascença" cristã não seja uma Renascença. Os estudos modernos sôbre Lutero confirmaram a segunda hipótese.

Lutero (2) é uma das personalidades mais poderosas da história universal; poderosíssima no bem e no mal. A ener

1) Cf. "Quattrocento", nota 25; "Cinquecento", nota 29, etc.

2) Martin Luther, 1483-1546 (ef, nota 4O).

An den christlichen Adel deutscher Nation von des christlichen Standes Besserung (152O) ; Von der babylonischen GefangenschaJt der Kirche (152O) ; Von der Freiheit

eives Christenmenschen (152O) ; Tradução do Novo Testamento (1522) ; Geistliche Lieder (1524) ; Tradução do Velho Testamento (1534) ; inúmeros sermões e tratados

teológicos, etc.; Tischreden (1556). Edição de Erlangen, 1OO vols.: 67 vols. de obras em alemão, 2.11 ed., 1862/1885, e 33 vols. de obras em latim, 1865/1873. Edição

crítica de Weimar, ainda incompleta, 54 vols., 1883/1928. Edição por G. Buchwald, 3" ed. 1O vols. Berlin, 19O5/19O6.

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gia tremenda do seu sentimento religioso tem de ser reconhecida e admirada por quantos sabem o que é o "senso de dependência" do "Deus absconditus"; se a sua angústia

o levou a acessos quase patológicos de pavor da danação eterna, a sensualidade brutal do homem é explicação parcial; mas não é motivo para condena-lo; e nos momentos

de alívio, Lute ro dispôs de vozes quase angélicas para cantar o júbilo celeste. É possível que o reformador nunca tenha tido. um pensamento teológico original,

um pensamento que não tenha sido fruto de leituras imensas na literatura patrística e escolástica; mas, pela energia com que defendeu o que "o Espírito lhe insuflou",

venceu todos os adversários, talvez mais instruídos, mas menos firmes. Como homem particular, Lutero, era fraco: as Tischreden (`Conversas de Mesa:") e o anedotário

revelam um pequenoburguês alemão, um "filisteu", com tôdas as virtudes de:" bom pai de família e excelente amigo, mas vulgar, grosseiro, brutal; é preciso conhecer

de perto os costumes quase selvagens da Alemanha do século XVI para não nos assustarmos ao contato mais íntimo com Lutero, com os seus ãcessos de cólera, os palavrões

ordinaríssimos, as enormidades de tôda a espécie que são, ao mesmo tempo, sintomas de sua energia imensa como homem público. Os compromissor vergonhosos da sua velhice

com os príncipes alemães, chegando a admitir uma bigamia monárquica, a sua atitude impiedosa, crudelíssima, contra os infelizes camponeses revoltados, tudo isso

não basta para fazer esquecer

Edição das aulas sabre a Epístola aos Romanos: J. Ficker: Luthers Vorlesung ueber den Roemerbrief. Leipzig, 19O8.

J. Koestlin: Martin Luther. Sein Leben und reine Schriften. 5a ed. 2 vols. Berlin, 19O3.

H. S. Denifle: Luther und Luthertum in der ersten Entu*klung. Vol. I. 2.a ed. Mainz, 19O6. Vol. II. Mainz, 19O5. G. Buchwald: Martin Luther. 3.a ed. Leipzig, 1917.

H. Grisar: Luthers Leben und Werke. 2.a ed., 3 vols. Freiburg, 1926.

J. Febvre: Un destin. Martin Luther. Paris, 1928.

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 611 a coragem singular do monge, rebelde contra todos os podêres da Igreja e do Império; a fôrça do proscrito e exco

mungado que, sòzinho, subleva uma nação inteira. É admirável isso, também quando se admite que não são os indivíduos que fazem a história, e sim o conjunto de fôrças

espirituais, sociais e econômicas, pelas quais o rebelde de Wittenberg foi bem servido: êle, a expressão religiosa das perturbações políticas e sociais da Alemanha

que exigiram uma solução revolucionária.

Outra restrição, parecida, tampouco é capaz de anular a importância de Lutero em campo diferente, na história da língua alemã (3). Antigamente, Lutero foi considerado

como criador ex nihilo da língua alemã moderna; tê-la-ia criado, observando e empregando a linguagem dos seus patrícios saxônicos, terminando a fase de decadência

do alemão medieval. Depois dos estudos de Burdach, já não é possível admitir isso: o alemão moderno é, em todos os elementos essenciais, criação dos humanistas da

côrte imperial de Praga no século XIV, e essa "língua da chancelaria de Praga% depois empregada também nas chancelarias das pequenas côrtes da Saxônia, é a base

da língua luterana, que é, aliás, em relação ao alemão atual, bastante arcaica. Atualmente, admite-se, aliás, independência maior de Lutero em face do uso lingüístico

saxônico. Mas, ainda que assim não fôsse, o papel de Lutero na história da língua continua a ser extraordinário: se não criou aquela língua, pelo menos a fixou.

E como estilista é incomparável. Nos seus folhetos polêmicos revela-se o maior jornalista dos tempos modernos, e na tradução da Bíblia, por mais defeituosa que seja

do ponto de vista da filologia, o domínio da língua para -a qual traduz é assombroso. Lutero é o maior:" escritor da língua, o Dante da literatura alemã.

3) P. Pietsch: Luther und die neuhochdeutsche Schriltsprache. Breslau, 1884.

O. Reichert: Luthers deutsche Bibel. Tuebingen, 191O. K. Burdach: Vorspiel. Halle, 1925.

f 11

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Tôdas aquelas restrições não modificam sensivelmente a imagem de Lutero na historiografia convencional: teria sido um grande libertador. A serviço de uma libertação

ímpar na história universal estava a sua energia - palavra que sempre tem de voltar na caracterização da sua personalidade. Resta saber de onde lhe veio essa energia.

A grande indignação de 1517, contra o comércio de indulgências, não é explicação suficiente; Lutero viu coisas assim durante anos, sem se revoltar, e sabia bem que

aquêle comércio justamente em 1517 não servia à côrte papal e sim a negócios políticos de bispos alemães. Tampouco se pode alegar o que Lutero viu, em 1511, durante

uma viagem para Roma; durante seis anos inteiros, a indignação ante a corrução moral na capital da cristandade deixou-o dormir em paz. O próprio Lutero alegou uma

conversão repentina: no máximo desespêro, quanto à eficiência dos sacramentos para salvar a alma do pecador, ter-se-lhe-ia revelado o verdadeiro sentido do versículo

I, da Epistola Pauli ad Romanos: "Justus autem ex fide vivit" - não pelas boas obras nem pelas mortificações ascéticas se salva o pecador, mas tão-sómente pela fé.

Com efeito, a energia de Lutero provém de uma conversão súbita que transformou e renovou o homem inteiro. Lutero é, segundo o têrmo da psicologia religiosa de William

James, um dos grandes twice-born, daqueles que "nasceram outra vez", como S. Agostinho, Pascal e Kierkegaard. Mas as suas afirmações sôbre aquela revelação não correspondem

exatamente à verdade. Desde que Ficker descobriu o manuscrito das suas aulas sôbre a Epistola ad Romanos, dadas em 1515/ 1516, sabemos que Lutero professava já havia

anos aquela interpretação de Rom., I, 17. Segundo o eruditíssimo doaninicano Denifle, tôda a teologia medieval interpretou o versículo da mesma maneira, e Lutero,

professor de Teolo

gia, devia saber disso; ao exagêro do fideísmo exclusivo, da redenção pela fé "só", chegou Lutero em conseqüência da sua adesão ao nominalismo, e isso foi motivado,

segundo


HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 613

Denifle, pela resistência de Lutero à disciplina conventual, pela sua concupiscência indomável que exigiu certeza da salvação apesar de tentações irresistíveis e

pecados reiterados. Denifle destruiu, com energia digna do próprio Lutero, a imagem convencional do reformador. Pela conhecida ironia da história, cabia a um jesuíta,

Grisar, a tarefa de retificar, por sua vez, os exageros de Denifle: a honra do reformador como homem moral foi, contra ataques fanáticos e mal documentados, reabilitada,

e a lenta e angustiada evolução do pensamento religioso em Lutero melhor esclarecida. Mas ficou a imagem de um monge medieval, preocupado só com a salvação da sua

alma desesperada; uma figura que explica bem as atitudes anti-renascentistas e reacionárias da Reforma, e que já não serve para os discursos de centenário dos historiadores

do protestantismo liberal.

Lutero é um homem medieval (4). A religião de Lu

tero não pretende, como a de Erasmo, uma Renascença cristã, uma volta ao cristianismo primitivo. Os seus problemas são os do augustinianismo de um monge medieval:

concupiscência, predestinação, as boas obras. A graça pela fé não é, em Lutero, expressão de uma religiosidade individualista, mas uma ajuda sacramental para chegar,

com maior segurança, a uma vida santa. Lutero nunca pretendeu abolir os efeitos da fé na vida prática; apenas, pareciam-lhe melhor assegurados êsses efeitos na mão

do Estado leigo que na da Igreja corrompida. E de modo algum pretendeu Lutero substituir a autoridade espiritual pela liberdade do pensamento ou qualquer outra;

a Bíblia era o seu "papa" infalível; infalível já mais de três séculos antes da definição da infalibilidade papal; e Lutero destruiu a tradição, o culto dos santos

e tudo o resto, não por mo

S) E. Troeitsch: Protestantisches Christentum und Kirche in der Neuzeit. (In: Die Kultur der Gegenwart, edit. por P. Mnneberg, P. L, t. IV, vol. I. Leipzig, 19O6).

- Ci. nota 54.

O1

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tivos de racionalismo ou livre-pensamento, mas para conservar melhor a autoridade única e absoluta do Verbo divino. Por tudo isso, a nova Igreja luterana pôde fazer,

na Confissão de Augsburg, concessões consideráveis ao cato

licismo; durante os séculos XVI e XVII conservaram-se imagens de santos e trechos da liturgia católica em muitas igrejas luteranas, e a própria Igreja luterana não

cessava de considerar-se a si mesma como ramo separado da Igreja católica. Na Reforma luterana não há que procurar nada de "Renascença cristã".

O que poderia ser chamado assim é o protestantismo liberal do século XIX. Ali todos os vestígios da Igreja medieval estão realmente eliminados, e dentro de um credo

vago, que admite interpretações simbólicas e alegóricas do dogma, há lugar para todos os racionalismos e o próprio

livre-pensamento. O fundador dêsse protestantismo liberal é Schleiermacher; êle era realmente o que se pensava que Lutero fôsse, o Padre da Igreja de uma Renascença

cristã. Contudo, Schleiermacher não é racionalista; a sua fé, embora livre de tôdas as limitações dogmáticas, é antes mística, revelando as suas origens e educação

na seita dos Herrnhuters, que, por sua vez, derivam de outros ramos, não luteranos, da Reforma do século XVI. Em outra parte da Reforma, fora do luteranismo, será

possível encontrar a verdadeira Renascença cristã daquela época.

Com efeito, não é admissivel limitar a pesquisa à Reforma alemã, ou antes norte-alemã, saxônica; êsse ponto de vista estreito era justamente o do protestantismo

liberal, alemão, do século XIX. Mas a saída não é fácil. A Igreja anglicana, apesar do seu "liberalismo" inato, não entra em conta; é uma Igreja criada pela vontade

do poder real, "via média" entre protestantismo político e catolicismo litúrgico, e nunca teve projeção no continente europeu.

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 615

Tampouco é possível recorrer ao calvinismo. Calvino (6) é uma personalidade menos espetacular, mas não menos poderosa do que Lutero. Não sabemos quase nada a respeito

da formação do seu pensamento religioso; mas os resultados são manifestos: uma energia como a de Lutero, apenas melhor disciplinada por uma espécie de classicismo

inato da raça. Calvino passara pela formação humanista, e a sua Institution de Ia religion chrétienne pertence, pela clareza um pouco sêca do estilo, à região dos

precursores do classicismo francês. Mas não se pode falar, a propósito de Calvino, em humanismo. O seu dogma central, o da predestinação, é um dogma augustiniano

e portanto católico; o seu conceito da autoridade espiritual, por ser concentrada nas mãos da própria Igreja, não é menos inflexível do que o conceito luterano da

autoridade eclesiástica do Estado leigo. Pela evolução da comunidade calvinista no sentido da democracia cristã e soberania popular, evolução posterior a Calvino,

o reformador não é responsável, e menos ainda pelo racionalismo que só muito mais tarde começou a atenuar o puritanismo. O que cria certo êrro de perspectiva é a

relação entre o :"espírito puritano e a evolução do capitalismo. Por isso, o calvinismo parece mais moderno do que é; mas êsse "modernismo" econômico não tem nada

que ver com Renascença cristã.

Os elementos humanistas, puramente formais, em Calvino, provêm da influência que exerceu sôbre êle, indiretamente, o reformador suíço Ulrich Zwingli (6): o menos

5) Jean Calvin, 15O9-1564.

Institutio religionis christianae (1536) ; edição francesa: Institution de la religion chrétienne (1541).

Edição da versão francesa por A. Lefranc e J. Pannier, 2 vols., Paris, 1912/1913.

A. Autin: VInstitution chrétienne de Calvin. Paris, 1929.

P. Imbart de Ia Tour: Calvin. VInstitution chrétienne. Paris, 1935.

6) Ulrich Zwingli, 1484-1531.

E. Zeller: Das theologische System Zwinglis. Tuebingen, 1853. R. Staehelin: U. Zwingli. 2 vols. Basel, 1895/1897. W. Koehler: Die Geisteswelt Ulrich Zwinglis. Gotha,

192O.


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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 617

K

considerado entre os grandes reformadores, porque foi vencido. Morreu no campo de batalha, numa pequena guerra contra os suíços católicos. A Suíça tornou-se, depois,



preponderantemente calvinista. Mas Zwingli é uma personalidade interessantíssima, e o seu papel, embora sempre indireto, na história espiritual européia, foi notável.

Zwingli, êste sim, é um humanista legítimo: Platão, a filosofia estóica de Sêneca e o sincretismo religioso de Pico da Mirandola exerceram sôbre êle influência profunda;

e - last but not least - Erasmo. A teologia de Zwingli aproximase bastante do panteísmo e do conceito de considerar o cristianismo como uma forma entre outras formas,

se bem que a mais desenvolvida, da religião universal; às vêzes, parece racionalista. Essas doutrinas não dissolveram inteiramente o cristianismo da Igreje zwingliana

de Zurique, porque Zwingli era político conservador: o seu fim era a

república cristã da burguesia de Zurique. Mas entre as massas populares da Alemanha meridional e ocidental, pequena burguesia e camponeses, angustiados pelas conseqüências

terríveis da dissolução da ordem agrária do feudalismo e da deslocação das vias de comércio pelas descobertas geográficas, as doutrinas radicais de um Zwingli e

o espiritualismo da Reforma em geral, encontraram um eco diferente. Não lhes parecia admissivel substituir a autoridade dos teólogos antigos pela autoridade dos

novos teólogos, e na tentativa da comunicação direta com Deus, sem intermediário eclesiástico, misturaram-se lembranças do misticismo medieval com veleidades de

revolução social: tôda a autoridade visível é diabólica, tanto a eclesiástica como a leiga, e contra a aliança das novas Igrejas reformadas com príncipes, feudais

e burgueses recorreu-se às ameaças sociais dos profetas do Velho Testamento. Assim nasceram as seitas dos anabatistas revolucionários. Na Alemanha foram vencidos.

Mas sobreviveram, atenuando as reivindicações sociais e as esperanças apocalípticas, nos unitários italianos e poloneses, nos menonistas e armi

raianos da Holanda, nos "Independentes" - de cujas fileiras saiu Cromwell - e nos batistas e quakers da Inglaterra e da América. E da Holanda voltaram, no século

XVIII, para a Alemanha, como irmãos da Morávia, Herrnhuter - entre os quais Schleiermacher se educou - e pietistas. Aí estão as raizes da democracia cristã e do

protestantismo liberal.

O fundamento teológico dos credos sectários era uma observação exegética que escapara aos reformadores: a diferença entre o pensamento do apóstolo Paulo, colocando


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