CAPÍTULO 23
Dez minutos depois do início do debate da CNN, o senador Sexton estava pensando que sequer deveria ter se preocupado. Marjorie Tench havia sido superestimada como adversária. Apesar da reputação que tinha de ser cruelmente sagaz, ela não estava se mostrando uma oponente à sua altura.
É verdade que, logo no início do debate, Tench havia jogado com as cartas mais fortes, criticando severamente a plataforma pró-vida do senador como sendo preconceituosa em relação às mulheres, mas justamente quando ela parecia estar cerrando suas garras cometeu um erro tolo. Enquanto questionava como o senador pretendia encontrar fundos para sua proposta de melhorias no sistema educacional sem ter que aumentar os impostos, Tench fez uma alusão depreciativa à forma como Sexton sempre usava a NASA como bode expiatório.
Embora ele só desejasse falar sobre a agência nos minutos finais do debate, Marjorie abrira a porta cedo demais. Idiota!
- Já que estamos falando da NASA - emendou ele casualmente -, será que a senhora teria algo a comentar sobre os rumores que tenho ouvido de que a agência acaba de sofrer outro fracasso recentemente?
- Devo dizer que não estou a par desses rumores - Marjorie respondeu sem piscar. Sua voz de fumante inveterada era áspera como uma lixa.
- Nada a comentar, então?
- Receio que não.
Sexton sorriu de orelha a orelha. No mundo dos clichês da mídia, "Sem comentários" significava, basicamente, "Eu me declaro culpada".
- Entendo - prosseguiu Sexton. - Algo a dizer, então, sobre os rumores de uma reunião secreta e de caráter emergência! entre o presidente e o administrador da NASA?
Desta vez Tench pareceu surpresa.
- Não sei bem a qual reunião o senhor está se referindo. Há muitos encontros na agenda do presidente.
- Sim, claro que há. - Sexton decidiu pressioná-la. - Senhora Tench, é verdade que apóia fortemente a agência espacial, não é?
A consultora suspirou, como se já estivesse cansada do assunto predileto do adversário.
- Acredito na importância de preservar a dianteira tecnológica dos Estados Unidos, seja no que diz respeito a assuntos militares, industriais, de inteligência ou de telecomunicações. A NASA certamente tem seu papel nesta visão. Sim.
Sexton podia ver os olhos de Gabrielle, do outro lado da cabine da produção, rogando que ele recuasse, mas Sexton estava sentindo o gosto de sangue.
- Há algo que me deixa curioso... É sua a grande influência por trás do persistente apoio do presidente a essa agência problemática?
Tench sacudiu a cabeça.
- Não. O presidente também acredita firmemente na NASA. Ele toma suas próprias decisões.
O senador não podia acreditar no que tinha ouvido. Ele havia acabado de dar a Marjorie uma chance de isentar parcialmente o presidente, aceitando pessoalmente parte da culpa pelos financiamentos à NASA. Em vez disso, ela jogara todo o peso sobre ele. O presidente toma suas próprias decisões. Parecia até que a consultora estava tentando se distanciar de uma campanha com sérios problemas. O que não seria nenhuma surpresa, pois, afinal, quando a poeira assentasse, Marjorie Tench teria que encontrar um novo trabalho.
Durante os minutos seguintes, Sexton e Tench rodaram pelo ringue, trocando golpes leves. Ela fez algumas tentativas vagas de mudar de assunto, enquanto seu oponente continuava pressionando-a quanto ao orçamento da NASA.
- Senador - perguntou Tench -, o senhor deseja reduzir o orçamento da NASA, mas tem alguma idéia do que isso implica em termos da perda de postos de trabalho no setor de alta tecnologia?
Sexton quase riu na cara dela. Esta é afigura tida como a mente mais brilhante de Washington? Tench obviamente tinha uma lição a aprender em relação à distribuição demográfica do país. Os postos de alta tecnologia eram irrelevantes em comparação com os enormes números do operariado americano.
O senador voou sobre ela.
- Estamos falando numa economia de bilhões neste caso, Marjorie. Se o resultado disso for que um punhado de cientistas da NASA terá que pegar seus BMWs e sair distribuindo seus currículos altamente cobiçados pelo mercado, que seja. O meu compromisso é ser duro no controle dos gastos.
Marjorie ficou em silêncio, como se estivesse se recuperando do último golpe. O mediador da CNN perguntou:
- Senhora Tench? Alguma reação?
Ela finalmente limpou a garganta e falou:
- Acho que fiquei um pouco surpresa ao ouvir o senhor Sexton se colocar de forma tão resoluta como um opositor da NASA.
Os olhos do senador afilaram-se. Boa tentativa, Marjorie.
- Não sou um opositor da NASA e me ressinto de tal afirmação. Estou simplesmente dizendo que o orçamento da agência é um indicador do tipo de gastos descontrolados que o presidente advoga. A NASA disse que poderia construir o ônibus espacial por cinco bilhões - ele nos custou 12 bilhões. Disseram que podiam construir a Estação Espacial Internacional por oito bilhões e a conta já está em 100 bilhões.
- Nós, americanos, somos líderes mundiais porque fixamos para nós mesmos metas grandiosas e permanecemos fiéis a elas mesmo em tempos árduos - contra-atacou Tench.
- Esse discurso sobre o orgulho nacional não vai funcionar comigo, cara Marge. A NASA já gastou mais do que três vezes seu orçamento nos últimos dois anos, depois voltou para o presidente, com o rabo entre as pernas, para pedir mais dinheiro a fim de consertar seus erros. Você chama isso de "orgulho nacional"? Se quiser falar de orgulho nacional, vamos falar de boas escolas. Vamos falar de planejamento de saúde para todos. Vamos falar de crianças inteligentes crescendo em um país cheio de oportunidades. É isso que chamo de orgulho nacional!
Os olhos de Tench faiscavam.
- Posso lhe fazer uma pergunta direta, senador? - Sexton não respondeu, apenas esperou. As palavras saíram da boca de Tench calculadamente, com uma aspereza súbita:
- Senador, se eu dissesse que não podemos explorar o espaço por menos do que a NASA gasta atualmente, o senhor estaria pronto a desativar de vez a agência?
A pergunta caiu sobre Sexton como uma rocha. Talvez Tench não fosse assim tão boba, no final das contas. Ela havia acabado de pegar seu adversário com a guarda baixa. Sua pergunta exigia uma resposta direta, do tipo "sim" ou "não". Era uma armadilha preparada com cuidado para forçá-lo a sair de cima do muro e dizer claramente de que lado estava.
Instintivamente, Sexton tentou evitar a armadilha.
- Não tenho dúvida de que, com um gerenciamento adequado, a NASA poderia explorar o espaço gastando muito menos do que atualmente...
- Senador Sexton, por favor responda à minha pergunta. Explorar o espaço é um negócio de risco. Um pouco como construir um jato comercial. Ou fazemos a coisa direito ou simplesmente a deixamos de lado. Os riscos são grandes demais. Minha pergunta continua de pé: se o senhor se tornasse presidente e tivesse que enfrentar a decisão de continuar a financiar a NASA em seu patamar atual ou sucatear completamente o programa espacial americano, qual seria a sua decisão?
Merda. Sexton olhou rapidamente para Gabrielle através do vidro. A expressão dela transmitia aquilo que ele já sabia. Você assumiu um compromisso. Seja direto. Não tente se desviar do assunto. Ele manteve o prumo.
- Sim, eu transferiria o orçamento atual da NASA diretamente para o ensino público, se tivesse que tomar esta decisão. Meu voto seria em favor de nossas crianças, em detrimento do espaço.
Marjorie deixou transparecer uma expressão de completo espanto.
- Estou chocada. Eu ouvi bem? Como presidente, o senhor agiria no sentido de abolir o programa espacial desta nação?
Sexton sentiu a raiva fervilhando dentro dele. Agora Tench estava colocando palavras em sua boca. Ele tentou se opor, mas a consultora já havia voltado a falar.
- Só para esclarecer, senador, o senhor está dizendo que acabaria com a agência que levou o homem à Lua?
- Estou dizendo que a corrida espacial acabou! Os tempos mudaram. A NASA já não desempenha um papel fundamental na vida cotidiana dos americanos e, ainda assim, continuamos financiando a agência da mesma forma.
- Então o senhor não acha que o futuro está no espaço?
- É claro que o futuro está no espaço, mas a NASA é um dinossauro! Deixemos o setor privado explorar o espaço. Os contribuintes americanos não deveriam ter que tirar dinheiro do bolso toda vez que algum engenheiro em Washington decide tirar uma fotografia de um bilhão de dólares de Júpiter. Os americanos estão cansados de leiloar o futuro de seus filhos para financiar uma agência ultrapassada que nos dá tão pouco em troca de seus custos colossais!
Tench deixou escapar um suspiro dramático.
- Tão pouco? Com exceção talvez do programa SETI, a NASA tem trazido enormes retornos.
Sexton ficou abismado que Tench sequer tivesse deixado escapar aquela menção ao programa SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence).
Enorme tolice. Obrigado por me lembrar. O programa de busca por inteligência extraterrestre era um dos maiores sorvedouros de dinheiro da NASA de todos os tempos. Apesar de terem tentado dar uma cara nova ao projeto mudando seu nome para Origins - Origens - e alterando alguns de seus objetivos, ele continuava sendo uma aposta perdedora.
- Prezada Marjorie - disse Sexton, aproveitando a abertura -, só vou falar do SETI porque a senhora tocou no assunto.
Curiosamente, Tench parecia quase ansiosa por essa resposta. Sexton limpou a garganta.
- Há muitas pessoas que nem sabem que a NASA tem procurado por ETs nos últimos 35 anos. E tem sido uma caçada ao tesouro bem cara: antenas parabólicas, enormes transceivers, milhões gastos nos salários de cientistas que ficam sentados no escuro ouvindo fitas em branco. É um desperdício de recursos inacreditável.
- O senhor quer dizer que não há mais ninguém lá fora?
- Estou dizendo que, se qualquer outra agência do governo tivesse gasto 45 milhões ao longo de 35 anos sem produzir um único resultado, teria sofrido cortes há muito tempo. - Sexton parou para deixar que todo o peso de sua declaração pudesse ser sentido. - Após 35 anos, acho que está bem claro que não vamos encontrar vida extraterrestre.
- E se o senhor estiver errado?
Sexton olhou para cima, com desdém.
- Ah, pelo amor de Deus, senhora Tench, se eu estiver errado, como meu chapéu.
Marjorie Tench cravou seus olhos no senador Sexton.
- Vou me lembrar do que o senhor disse, senador. - Ela sorriu pela primeira vez. - Acho que todos vamos nos lembrar.
A alguns quilômetros dali, no Salão Oval, o presidente Zach Herney desligou a televisão e preparou um drinque. Exatamente como Marjorie tinha prometido, o senador Sexton havia engolido a isca.
CAPÍTULO 24
Michael Toland percebeu que ele também estava sorrindo ao ver a expressão de silencioso deslumbramento no rosto de Rachel diante do meteorito com fósseis. A beleza delicada do rosto daquela mulher parecia ter se dissolvido em uma expressão de fascínio inocente, como uma garotinha que tivesse visto Papai Noel pela primeira vez.
Sei exatamente como se sente, ele pensou.
Tolland ficara impressionado daquela mesma forma 48 horas atrás. Ele também tinha ficado hipnotizado, em silêncio. Mesmo agora, as implicações científicas e filosóficas do meteorito ainda o deixavam aturdido, forçando-o a repensar tudo aquilo em que havia acreditado sobre a natureza.
Entre as diversas descobertas oceanográficas de Tolland havia muitas espécies de águas profundas antes desconhecidas. Mesmo assim, esse "inseto espacial" pertencia a outro nível de descobertas. Apesar de os filmes de Hollywood invariavelmente mostrarem os ETs como pequenos homens verdes, os astrobiólogos e outros fanáticos por pesquisas espaciais concordavam sempre que, devido ao número e à capacidade de adaptação dos insetos da Terra, era grande a probabilidade de que, se um dia descobrissem uma forma de vida extraterrestre, ela se parecesse com um artrópode.
Os animais da classe Insecta pertencem ao filo Arthropoda - seres que possuem um exoesqueleto rígido e membros articulados. Com mais de 1,25 milhão de espécies conhecidas e uma estimativa de que ainda existam outras 500 mil a serem classificadas, todas as criaturas chamadas de artrópodes ultrapassam, em número, a soma dos outros animais existentes na Terra. Juntas, constituem 95% de todas as espécies do planeta e 40% da sua biomassa.
Não é só sua abundância que impressiona, mas também sua resistência. A exemplo do besouro que vive no gelo da Antártica e do escorpião do Vale da Morte, essas criaturas suportam, tranqüilamente, limites letais de temperatura, falta de umidade e mesmo pressão. Também podem resistir à exposição à força mais mortífera conhecida no universo - a radiação. Após um teste nuclear em 1945, oficiais da força aérea vestiram roupas de proteção contra a radiação e foram examinar o local da explosão, onde encontraram baratas e formigas que sobreviveram, ilesas, à explosão. Os astrônomos compreenderam que, devido a seu exoesqueleto protetor, os artrópodes eram os candidatos ideais a habitar incontáveis planetas banhados por altos níveis de radiação, onde nada mais poderia sobreviver.
Aparentemente os astrobiólogos estavam certos, pensou Tolland. ET é um artrópode.
Rachel sentia suas pernas bambas.
- Eu não posso... não posso acreditar - disse ela, revirando o fóssil em suas mãos. - Eu nunca achei que...
- Deixe que as idéias se assentem lentamente - disse Tolland. - Levou um dia inteiro para eu colocar minha cabeça de volta no lugar.
- Vejo que temos uma recém-chegada - disse um homem alto, de feições asiáticas, que havia andado até eles.
Corky e Tolland fizeram uma cara de desânimo. Aparentemente a mágica do momento havia sido quebrada.
- Sou o Dr. Wailee Ming - disse ele, apresentando-se. - Chefe de Paleontologia da Universidade da Califórnia.
Ele caminhava com a rigidez pomposa da aristocracia renascentista, continuamente mexendo na gravata-borboleta, um tanto deslocada no contexto, que usava por baixo de seu sobretudo de lã de camelo que descia até o joelho. Aparentemente Wailee Ming não era o tipo de pessoa que deixava que um local tão remoto atrapalhasse sua aparência altiva.
- Sou Rachel Sexton - ela ainda estava trêmula quando apertou a palma lisa da mão de Ming. Ele era, obviamente, outro dos cientistas recrutados pelo presidente.
- Terei grande prazer, senhorita Sexton, em lhe dizer tudo o que quiser a respeito desses fósseis - disse o paleontologista.
- E também muitas coisas que você não quer saber - resmungou Corky.
Ming ajeitou sua gravata- borboleta.
- Minha especialidade, em paleontologia, são artrópodes e migalomorfos. Obviamente a característica mais impressionante deste organismo encontrado no meteorito é que...
- ...é que ele vem de um outro planeta! - meteu-se Corky. .
Ming fez uma cara feia para ele, limpou a garganta e prosseguiu:
- A característica mais impressionante desse organismo é que ele se enquadra perfeitamente em nosso sistema darwiniano terrestre de taxonomia e classificação.
Rachel olhou para ele.
- Podem classificar essa coisa?
- Você quer dizer reino, filo, espécie... tudo isso?
- Exato - disse Ming. - Esta espécie, se fosse encontrada na Terra, seria classificada na ordem dos isópodes, um grupo com cerca de duas mil espécies.
- Mas é um bicho enorme!
- A taxonomia não se preocupa com questões de tamanho. Gatos domésticos e tigres são aparentados. A classificação diz respeito à fisiologia. Esta espécie é claramente um isópode: possui um corpo achatado, sete pares de pernas e um marsúpio estruturalmente idêntico aos dos tatuzinhos-de-jardim, tatus bolinha e baratas-da-praia. Os outros fósseis claramente revelam estruturas mais especializadas de...
- Que outros fósseis?
Ming olhou para Corky e Tolland.
- Ela ainda não sabe?
Tolland sacudiu a cabeça.
O rosto de Ming se encheu de alegria.
- Senhorita Sexton, então você ainda não ouviu a parte mais interessante!
- Há mais fósseis - intrometeu-se Corky, claramente tentando puxar o tapete de Ming. - Muitos mais. - O astrofísico correu até um grande tubo circular de papelão e tirou de dentro dele uma enorme folha de papel dobrada. Abriu-a sobre a mesa na frente de Rachel. - Depois de perfurarmos alguns pontos, descemos uma câmera de raios X até o meteorito. Esta é uma representação gráfica da seção central.
Rachel olhou para a impressão da imagem de raios X e logo em seguida teve que sentar-se. A seção transversal tridimensional do meteorito estava cheia, com dúzias desses animais.
- Resquícios paleolíticos - Ming disse - são geralmente encontrados em grande concentração. Muitas vezes, deslizamentos de terra prendem diversos organismos, cobrindo ninhos ou comunidades inteiras.
Corky deu uma risadinha.
- Estamos achando que a coleção dentro do meteorito representa um ninho. - Apontou para um dos espécimes na impressão. - Olha a mamãe aqui...
Rachel olhou para o espécime em questão e arregalou os olhos. O bicho parecia ter cerca de 60 centímetros de comprimento.
- Tatuzinho poderoso, não? - disse Corky.
Rachel assentiu, abismada, imaginando criaturas desse tamanho passeando na superfície de um planeta distante.
- Na Terra - disse Ming - os artrópodes não crescem muito porque a gravidade lhes impõe alguns limites. Não podem crescer mais do que seus exoesqueletos são capazes de suportar. Contudo, em um planeta com uma gravidade menor, eles poderiam crescer bem mais.
- Imagine como seria matar moscas do tamanho de águias - brincou Corky, pegando a amostra da mão de Rachel e colocando-a em seu bolso.
- É melhor não roubar isso! - reclamou Ming.
- Fique tranqüilo - disse Corky. - Temos mais oito toneladas desse material.
A mente de Rachel havia disparado e estava analisando os dados que acabara de receber.
- Mas como é possível que a vida no espaço seja tão similar à vida na Terra? Quero dizer, você falou que essa criatura se enquadra em nossa classificação darwiniana?
- Perfeitamente - disse Corky. - E, por mais incrível que pareça, muitos astrônomos haviam previsto que as formas de vida extraterrestres teriam que ser muito similares às terrestres.
- Mas... por quê? - perguntou Rachel. - Essa espécie vem de um ambiente completamente diferente.
- Panspermia - respondeu Corky, com um grande sorriso.
- Como?
- Panspermia é a teoria segundo a qual a vida foi semeada aqui a partir de um outro planeta.
- Agora você está me deixando perdida - disse Rachel. Corky virou-se para Tolland.
- Mike, você é o cara que gosta de falar sobre os mares primitivos.
Tolland parecia feliz por poder entrar em cena.
- A Terra já foi um planeta sem vida, Rachel. Então, subitamente, como se tivesse ocorrido algo da noite para o dia, a vida explodiu. Muitos biólogos acreditam que essa explosão de vida foi o resultado mágico de uma mistura ideal de elementos nos mares primitivos. Mas como nunca fomos capazes de reproduzir isso em laboratório, os estudiosos que são religiosos interpretam esse fracasso como uma prova da existência de Deus, ou seja, como uma evidência de que a vida não poderia existir a menos que Deus tivesse tocado esses mares primitivos e infundido vida neles.
- Mas nós, astrônomos - declarou Corky -, chegamos a uma outra explicação para a súbita explosão de vida na Terra.
- Panspermia - completou Rachel, que havia entendido a idéia geral. Ela já tinha ouvido falar daquela teoria antes, só não se lembrava de seu nome. - É a tese de que um meteorito caiu dentro da sopa primordial, trazendo as primeiras sementes de vida microscópica para a Terra.
- Exato! - disse Corky. - Onde foram percolados e geraram vida.
- Então, se isso for mesmo verdade - disse Rachel -, os ancestrais das formas de vida terrestres seriam idênticos aos das formas de vida extraterrestres.
- Novamente certo!
Panspermia, pensou Rachel, ainda com alguma dificuldade em compreender todas as implicações da nova descoberta.
- Então, não apenas esse fóssil confirma que existe vida em outro ponto do universo, mas praticamente prova a teoria da panspermia... De que a vida na Terra foi semeada a partir de outro lugar do universo.
- Triplamente correto! - Corky abriu um sorriso entusiasmado. - Tecnicamente, podemos todos ser extraterrestres. - Colocou seus dedos sobre a cabeça, como duas antenas, girou os olhos e balançou a língua, como se fosse algum tipo de inseto.
- E esse cara aí na sua frente é o auge da evolução - disse Tolland, rindo, para Rachel.
CAPÍTULO 25
Rachel sentia-se como se estivesse imersa numa névoa de sonhos enquanto andava pela habisfera, acompanhada de Tolland. Corky e Ming vinham logo atrás.
- Tudo bem? - perguntou Tolland, olhando para ela.
- Sim, obrigada. É que... é muita novidade ao mesmo tempo - ela respondeu, com um sorriso confuso.
Sua mente retornou à vergonhosa descoberta da NASA em 1996 - ALH84001.
Um meteorito de Marte que a agência espacial dizia conter traços fossilizados de vida bacteriana. Infelizmente, poucas semanas após a triunfal coletiva de imprensa, diversos cientistas apresentaram evidências de que os "sinais de vida" existentes na rocha nada mais eram que querogênio produzido por contaminação terrestre. A credibilidade da NASA sofreu fortemente com aquele golpe.
Naquela mesma ocasião, o paleobiólogo Stephen Jay Gould resumiu os problemas referentes ao ALH84001 dizendo que os indícios divulgados eram químicos e que haviam sido estabelecidos por inferência, ao contrário de uma prova material, como uma concha ou um osso, que não deixariam ambigüidade alguma.
No meteorito da geleira Milne, porém, Rachel viu que a NASA havia encontrado provas irrefutáveis. Nenhum cientista, por mais cético que fosse, poderia pensar em questionar aqueles fósseis. A agência não estava mais tentando vender uma idéia baseada em fotografias borradas e ampliadas de supostas bactérias microscópicas. A NASA tinha agora amostras reais de um meteorito no qual bioorganismos visíveis a olho nu haviam sido aprisionados na pedra. Isópodes com mais de 30 centímetros de comprimento!
Rachel deu uma risadinha ao se lembrar de que, quando era jovem, adorava uma música de David Bowie que se referia a "aranhas de Marte".
Quem diria que o pop star inglês chegaria tão perto de prever o auge da astrobiologia.
Enquanto uma vaga lembrança da música perpassava a mente de Rachel, Corky aproximou-se dela e perguntou:
- Mike já teve a oportunidade de se vangloriar a respeito de seu documentário?
- Não, mas eu adoraria que vocês me contassem.
Corky teu um tapinha nas costas do amigo.
- Vamos lá, garotão. Diga a ela por que o presidente decidiu que o momento mais importante da história da ciência deveria ser explicado por um astro da TV que passa parte da vida nadando por aí.
Tolland resmungou:
- Corky, dá para ficar quieto um pouco?
- Tudo bem, eu mesmo explico - disse o astrofísico, metendo-se entre os dois. - Como você provavelmente já sabe, senhorita Sexton, o presidente dará uma coletiva hoje à noite para contar a todos sobre o meteorito. Como a vasta maioria do planeta é constituída por pessoas de inteligência limitada, o presidente pediu a Mike que entrasse em cena e simplificasse bastante as coisas para que todos conseguissem entender essa história de meteorito.
- Obrigado pela explicação, Corky - disse Tolland. - Muito gentil de sua parte. - Olhou para Rachel. - O que ele está tentando dizer é que, como há muitos dados científicos que precisam ser explicados, o presidente achou que um pequeno documentário sobre o meteorito, com imagens, ajudaria a tornar a informação mais acessível para o grande público. Curiosamente, Corky, a maior parte das pessoas não possui pós-graduação em astrofísica.
- Você sabia - prosseguiu Corky, zombeteiro - que eu descobri há pouco que o presidente é um admirador secreto de Maravilhas dos mares? - Depois balançou a cabeça, em profundo desgosto. - Zach Herney, soberano do mundo livre, obriga sua secretária a gravar o programa de Mike para que ele possa relaxar após um longo dia de trabalho.
Tolland deu de ombros.
- Fazer o que, se o homem tem bom gosto?
Rachel começava agora a compreender quão astucioso era o plano do presidente. A política era um jogo de mídia, e ela já podia imaginar o entusiasmo e a credibilidade científica que o rosto de Michael Tolland traria àquela coletiva. Zach Herney havia convocado o homem ideal para embasar seu pequeno golpe com a NASA. Os céticos teriam dificuldades em questionar os dados apresentados pelo presidente se fossem anunciados pela maior personalidade em matéria de difusão científica na televisão, assim como por vários cientistas de renome.
- Mike já pegou depoimentos da maioria de nós para o seu documentário, assim como dos principais especialistas da NASA. E eu aposto minha Medalha Nacional de Mérito que você é a próxima na lista - disse Corky.
Rachel virou-se e olhou para ele.
- Eu? Do que você está falando? Não tenho nenhum currículo nessa área. Sou uma agente de ligação que atua na área de inteligência.
- E por que mais o presidente mandaria você para cá?
- Ele ainda não me disse.
Corky deu um sorriso matreiro.
- Você é uma agente de ligação da Casa Branca, da área de inteligência, que lida com a depuração e autenticação de dados, certo?
- Sim, mas nada disso tem a ver com ciência.
- E também é filha do homem que construiu toda a sua campanha em torno das críticas ao dinheiro gasto pela NASA no espaço, não é?
Rachel estava se preparando para o que viria a seguir.
- Você tem que admitir, senhorita Sexton - disse Ming, entrando na conversa -, que um depoimento de sua parte aumentaria substancialmente a credibilidade desse documentário. Se o presidente a enviou até aqui, é porque ele quer que você participe de alguma forma.
Rachel mais uma vez lembrou-se das preocupações de William Pickering de que ela estivesse sendo usada. Tolland olhou para o relógio.
- Melhor irmos para lá - disse ele, apontando para o centro da habisfera. - Devem estar quase terminando.
- Terminando o quê? - ela perguntou.
- A extração. A NASA está trazendo o meteorito para a superfície. Deverá emergir a qualquer momento.
Rachel ficou perplexa.
- Vocês estão mesmo retirando uma rocha de oito toneladas de dentro de 60 metros de gelo sólido?
Corky olhou para ela, radiante.
- Você não acha que a NASA iria deixar uma descoberta de tamanhas proporções enterrada no gelo, não é?
- Bem, não, mas...
Rachel não vira nenhum sinal de equipamentos de escavação de grande porte dentro da habisfera.
- E exatamente como a NASA está pensando em retirar o meteorito?
Corky empertigou-se.
- Isso é fácil. Você está numa sala cheia de cientistas espaciais!
- Tolice - retrucou Ming, olhando para Rachel. - O doutor Marlinson gosta de contar vantagem mesmo que o mérito não seja seu. A verdade é que ninguém sabia como retirar o meteorito. Foi Mangar quem propôs uma solução viável.
- Ainda não encontrei Mangor.
- Glaciologista da Universidade de New Hampshire - disse Tolland. - Quarto e último membro civil da equipe de cientistas convocada pelo presidente. E Ming está certo, foi Mangor quem bolou a solução.
- OK - disse Rachel. - E o que, exatamente, esse cara propôs?
- Essa mulher - corrigiu Ming, soando ressentido. - A doutora Mangor é uma mulher.
- Bastante questionável - murmurou Corky. E, virando-se para Rachel, acrescentou: - E, por falar nisso, ela provavelmente vai odiar você.
Tolland disparou um olhar zangado para Corky.
- Mas é verdade! - defendeu-se. - Ela vai odiar ter uma concorrente.
Rachel estava perdida na conversa.
- Como assim, concorrente?
- Não dê muita bola para esse cara - disse Tolland. - Infelizmente, o fato de que Corky é um retardado completo por algum motivo passou despercebido pelo Comitê Nacional de Ciências. Você e a doutora Mangor vão se dar muito bem. Ela é uma excelente profissional, considerada uma das melhores glaciologistas do planeta. Na verdade, ela foi morar na Antártica durante alguns anos para estudar os movimentos das geleiras.
- Curioso - meteu-se Corky. - Eu tinha ouvido dizer que a universidade dela recebeu uma doação e decidiu enviá-la para lá de forma que pudessem ter um pouco de paz e silêncio no campus.
- Você por acaso se lembra - Ming reagiu, irritado, como se o comentário fosse algo pessoal - de que a doutora Mangor quase morreu por lá? Ela se perdeu em uma tempestade e teve que sobreviver comendo gordura de foca durante cinco semanas antes que fosse resgatada.
Corky sussurrou para Rachel:
- Ouvi dizer que ninguém estava procurando por ela.
Dostları ilə paylaş: |