CAPÍTULO 53
Rachel já não era capaz de mais nenhum raciocínio lógico. Não estava mais pensando no meteorito, na misteriosa impressão de GPR que carregava no bolso, em Ming ou no terrível ataque que tinham acabado de sofrer. Só havia um pensamento em sua mente.
Sobrevivência.
Escorregando sobre o gelo como se estivesse numa estrada lisa e sem fim, ela não sabia se seu corpo estava dormente por causa do medo ou se havia simplesmente sido protegido pelo macacão, mas de toda forma não sentia dor. Não sentia nada. Ainda.
Deslizando sobre a lateral de seu corpo, unida a Tolland pela cintura, Rachel estava frente a frente com ele num abraço inusitado. Um pouco mais adiante, o balão agitava-se, inflado pelo vento, como um pára-quedas na traseira de um carro de corrida. Corky estava sendo puxado logo atrás, ziguezagueando abruptamente, como um trailer fora de controle. O sinalizador que marcava o ponto onde tinham sido atacados estava quase sumindo ao longe.
O chiado de seus macacões Mark IX roçando contra o gelo ficava cada vez mais agudo conforme aceleravam. Ela não tinha idéia de quão rápido estavam indo agora, mas aquele vento estava soprando a pelo menos 90 km/h, e a neve sem atrito abaixo deles parecia estar passando mais rapidamente a cada segundo. O indestrutível balão de Mylar não estava dando nenhum sinal de que fosse se rasgar ou abandonar sua carga.
Precisamos nos soltar, ela pensou. Estavam fugindo a toda de uma força mortífera e indo diretamente para outra. Provavelmente estamos a menos de dois quilômetros do oceano agora! A água gelada lhe trazia lembranças terríveis.
O vento começou a soprar ainda mais forte e a velocidade aumentou. Em algum lugar atrás deles, ela ouviu Corky gritando apavorado. Se continuassem àquela velocidade, Rachel calculou que tinham apenas mais alguns minutos antes que caíssem do penhasco nas águas do oceano gélido.
Tolland parecia estar pensando na mesma coisa, porque lutava bravamente contra o fecho de carga amarrado a seus corpos.
- Não estou conseguindo nos soltar! - ele gritou. - A tensão é forte demais.
Rachel esperava que uma pequena redução na força do vento fosse dar alguma chance a Tolland, mas o catabático os arrastava com uma violência constante. Tentando ajudar, ela girou seu corpo e enfiou a trava da ponta de um de seus crampons na neve, espirrando um jato de gelo fino no ar.
- Agora! - gritou ela, levantando o pé.
Por um breve instante, a corda que os unia ao balão afrouxou-se ligeiramente. Tolland puxou-a com força para baixo, tentando tirar proveito da redução da tensão para remover a presilha de carga de seus mosquetões. Não chegou nem perto.
- De novo! - gritou ele.
Desta vez os dois giraram um contra o outro e enfiaram as pontas de metal de seus crampons no gelo, espirrando dois jatos de fragmentos no ar. O efeito foi mais forte e desaceleraram um pouco.
- Agora!
Ao comando de Tolland, os dois soltaram os pés. Quando o balão começou a acelerar de novo, ele enfiou seu polegar no fecho do mosquetão e girou o gancho, tentando liberar a presilha. Apesar de ter sido melhor desta vez, ainda precisavam que a corda ficasse mais frouxa. Os mosquetões, como Norah havia afirmado presunçosamente, eram de excelente qualidade, presilhas de alta segurança projetadas especificamente com uma volta dupla de metal de tal forma que nunca se desprendessem enquanto houvesse qualquer tensão aplicada sobre elas.
Mortos por causa de ganchos de segurança, pensou Rachel, não achando graça alguma na ironia.
- Mais uma vez! - gritou Tolland.
Reunindo suas forças e esperanças, Rachel girou o corpo o máximo que pôde e enfiou as duas pontas das botas no gelo. Arqueando as costas, tentou colocar todo o seu peso sobre a ponta dos pés. Tolland repetiu o movimento, até que os dois se curvaram ao máximo e a conexão em suas cinturas tensionou os boldriés. Tolland enfiou a ponta da bota com mais força ainda no gelo e Rachel arqueou-se ainda mais. A vibração causada pelo esforço fazia com que suas pernas tremessem. Parecia que seus tornozelos iam quebrar.
- Segure... mais um pouco... - Tolland contorceu-se para soltar o mosquetão assim que a velocidade deles diminuiu. - Estou quase conseguindo...
Os crampons de Rachel se soltaram. Os grampos de metal foram arrancados da bota e saíram quicando na escuridão, batendo em Corky. O balão projetou-se para a frente no mesmo instante, fazendo com que Rachel e Tolland girassem para o lado. Michael não conseguiu segurar o mosquetão.
- Merda!
O balão de Mylar, como se estivesse enraivecido por ter sido refreado durante aquele tempo, puxou-os com força ainda maior geleira abaixo, na direção do mar. Estavam se aproximando rapidamente do precipício, mas havia um outro perigo antes da queda de 30 metros até o oceano Ártico. Teriam que transpor as três grandes barragens de neve em seu caminho. Mesmo contando com a proteção do enchimento de gel do Mark IX, a idéia de serem projetados em alta velocidade sobre aquelas elevações era apavorante.
Rachel estava lutando desesperadamente com os boldriés, tentando encontrar uma forma de soltar o balão, quando ouviu o ruído rítmico de algo batendo contra o gelo. Uma pulsação seca de metal leve chocando-se contra a superfície da neve.
A piqueta de gelo.
Em meio ao pânico, esquecera-se da piqueta que estava amarrada por uma corda a seu cinturão. A ferramenta de alumínio leve estava quicando ao lado de sua perna. Olhou para o cabo de carga que os prendia ao balão.
Era feito de nylon grosso e trançado, de alta resistência. Estendendo a mão, agarrou a piqueta pelo cabo e puxou-a em sua direção, esticando a corda elástica que a mantinha presa ao cinto. Ainda virada de lado, Rachel esforçou-se para elevar seus braços acima da cabeça, posicionando a ponta serrilhada contra a corda grossa.
Desajeitadamente, começou a serrar o cabo tensionado.
- É isso! - gritou Tolland, mexendo-se para pegar também a sua piqueta. Deslizando de lado, Rachel estava toda esticada, seus braços acima do corpo, cortando o cabo grosso e resistente. O nylon trançado estava se esfiapando lentamente. Depois de pegar sua piqueta, Tolland também virou, levantou os braços e tentou serrar o cabo no mesmo ponto, pegando-o por baixo. As duas lâminas se chocavam enquanto eles trabalhavam juntos como lenhadores. A corda começou a esfiapar-se de ambos os lados.
Nós vamos conseguir, pensou Rachel. Vamos romper a corda!
De repente a bolha prateada de Mylar na frente deles descreveu uma curva e subiu, como se o balão tivesse sido puxado por uma corrente de ar vertical. Rachel percebeu rapidamente, horrorizada, que ele estava apenas seguindo o contorno do terreno.
Tinham chegado às barragens de neve.
A parede branca agigantou-se à sua frente e, logo em seguida, já estavam sendo puxados para cima. A pancada na lateral do corpo de Rachel, quando se chocaram contra a rampa, fez com que ela ficasse sem ar e arrancou a piqueta de sua mão. Sentiu seu corpo ser puxado pela face da barragem de gelo e depois jogado no ar. Ela e Tolland foram subitamente cuspidos para cima, em um salto vertiginoso. O vale entre as duas elevações se abria bem abaixo deles, mas o cabo esfiapado que os unia ao balão continuava firme, levantando seus corpos, puxando-os para cima, fazendo com que sobrevoassem o primeiro canal. Em meio à confusão daquele momento, ela viu que os outros dois paredões de gelo se erguiam logo a seguir. Depois havia um curto platô e, então, a queda livre até o oceano.
Aterrorizada com aquela visão, Rachel ouviu o grito agudo de Corky Marlinson cortando o ar. Em algum lugar atrás deles, Corky também voava acima da primeira elevação. Naquele momento, todos os três estavam no ar, o balão subindo ferrenhamente, como um animal selvagem tentando romper as correntes que o aprisionam.
De repente, um forte estalo, como um tiro, ecoou acima deles. A corda esfiapada finalmente se rompeu e o pedaço rasgado bateu no rosto de Rachel. No mesmo instante começaram a cair. Acima deles, o balão de Mylar, solto, ziguezagueava sem controle em direção ao mar.
Envoltos num emaranhado de mosquetões e boldriés, Rachel e Tolland caíram. Rachel viu de relance o cume da segunda barragem aproximando-se e preparou-se para o choque. Passando perto do topo, caíram do outro lado, com o impacto parcialmente reduzido por suas roupas e pelo contorno de descida do terreno. O mundo em volta de Rachel girava, numa confusão de braços e pernas e gelo, enquanto ela descia a inclinação a toda a velocidade em direção ao canal central.
Instintivamente, ela afastou os braços e as pernas, tentando diminuir sua velocidade antes de chegar à próxima elevação. Notou que estava escorregando um pouco mais devagar, mas só um pouco, e, numa questão de segundos, ela e Tolland começaram a subir a rampa da última barragem. No topo, ficaram suspensos no ar por um instante enquanto passavam para o outro lado. Em pânico, Rachel sentiu que começavam sua descida mortífera rumo ao platô final - os últimos 25 metros da geleira Mune.
Escorregaram em direção ao penhasco, sentindo o peso de Corky sendo arrastado pela corda. A velocidade estava diminuindo, mas não o suficiente para pará-los. Era tarde demais. O final da geleira estava se aproximando velozmente, e Rachel soltou um grito de desespero.
Logo depois o inevitável aconteceu.
A borda do gelo escorregou por baixo deles. A última lembrança de Rachel foi a sensação da queda.
CAPÍTULO 54
O Edifício Westbrooke Place Apartments fica num dos endereços mais badalados de Washington. Gabrielle entrou correndo pela porta giratória de metal dourado e chegou no saguão todo de mármore, onde uma cascata ensurdecedora ressoava.
O porteiro que estava de serviço pareceu surpreso ao vê-la.
- Senhorita Ashe? Não sabia que viria aqui esta noite.
- Já estou atrasada. - Gabrielle falou rapidamente, olhando para o relógio acima do porteiro, que marcava 18h22.
O homem coçou a cabeça.
- O senador deixou uma lista, mas você não está...
- Ah, eles vivem esquecendo as pessoas que mais ajudam. - Deu um sorriso tristonho e saiu andando em direção ao elevador.
O porteiro não sabia bem como agir.
- Acho melhor eu ligar para ele.
- Obrigada - disse Gabrielle entrando no elevador e apertando o botão para subir. O telefone do senador está fora do gancho.
O elevador parou no nono andar. Gabrielle saiu e andou pelo corredor elegante. Do lado de fora da porta de Sexton, ela viu um de seus enormes "acompanhantes para segurança pessoal" - um nome bonito para guarda-costas - sentado com ar entediado. Gabrielle ficou surpresa de encontrar um segurança de plantão, mas aparentemente ele estava ainda mais admirado com sua presença. O homem levantou-se imediatamente quando ela se aproximou.
- Eu sei - Gabrielle foi logo dizendo, ainda no meio do corredor. - É uma noite de A.P. Ele não quer ser interrompido.
O segurança assentiu enfaticamente.
- Ele me deu ordens bastante estritas de que nenhum visitante...
- É uma emergência.
- Ele está em uma reunião privada - respondeu o homem, bloqueando fisicamente a porta.
- É mesmo? - Gabrielle tirou o envelope vermelho debaixo do braço. Mostrou rapidamente o selo da Casa Branca ao segurança. - Acabei de chegar do Salão Oval. Preciso entregar estes papéis ao senador. Seja lá quais forem os velhos amigos com os quais ele está se divertindo esta noite, ele vai precisar deixá-los sozinhos por alguns minutos. Agora, deixe-me entrar.
O guarda-costas hesitou um pouco ao ver o selo da Casa Branca no envelope.
Não me faça abrir isto, pensou Gabrielle.
- Deixe o envelope comigo - respondeu o segurança. - Eu o levo até ele.
- De jeito nenhum! Tenho ordens diretas da Casa Branca para entregar isto pessoalmente. Se eu não conseguir falar com Sexton imediatamente, estaremos todos procurando um novo trabalho amanhã pela manhã. Entende?
O homem parecia estar em profundo conflito, e Gabrielle sentiu que o senador devia ter sido muito enfático a respeito de não receber visitas naquela noite.
Ela resolveu desferir o golpe fatal. Segurando o envelope da Casa Branca bem na frente da cara dele, a assessora disse quase num sussurro a frase que todos os seguranças de Washington mais temiam.
- Você não entende a situação.
Os seguranças que trabalhavam para políticos nunca entendiam a situação e odiavam esse fato. Eram meros peões, a quem ninguém contava nada, sempre indecisos entre obedecer firmemente suas ordens ou arriscar-se a perder o emprego pela teimosia em ignorar uma crise óbvia.
Ele engoliu em seco, olhando mais uma vez para o envelope da Casa Branca.
- Tudo bem, você vai entrar, mas eu direi ao senador que você exigiu isso.
O guarda-costas destrancou a porta e Gabrielle entrou rapidamente, antes que ele mudasse de idéia. Dentro do apartamento, ela fechou silenciosamente a porta, trancando- a logo em seguida.
Na ante-sala, ela podia ouvir vozes abafadas que vinham do escritório de Sexton, um pouco à frente no corredor. Eram vozes de homens conversando. A noite de A.P. obviamente não era o encontro pessoal que a chamada pelo celular, mais cedo, parecia indicar.
Andando pelo corredor em direção ao escritório, Gabrielle passou por um armário aberto, dentro do qual estavam pendurados uns seis casacos masculinos, todos visivelmente caros. Diversas maletas estavam no.chão. Aparentemente os papéis de trabalho também tinham sido deixados na entrada. Ela teria passado direto pelas malas, mas uma delas chamou sua atenção. A plaqueta de metal afixada à mala mostrava uma logomarca conhecida. Um foguete em tom vermelho reluzente.
Ela parou e ajoelhou-se para ler o que estava escrito.
SPACE AMERICA, INC.
Intrigada, olhou as outras maletas.
BEAL AEROSPACE. MICROCOSM, INC. ROTARY ROCKET COMPANY. KISTLER
AEROSPACE.
A voz rouca de Marjorie Tench ecoou em sua mente. Você está ciente de que Sexton tem recebido enormes subornos de companhias privadas do setor aeroespacial?
Gabrielle sentiu seu coração bater mais rápido quando olhou, através do corredor apagado, na direção da passagem em arco que levava ao escritório do senador. Ela deveria dizer algo para anunciar sua presença, mas, em vez disso, aproximou-se pé ante pé do local onde o grupo estava reunido. Chegou o mais perto possível da passagem, parou no escuro, em silêncio, e ficou ouvindo a conversa.
CAPÍTULO 55
Delta-três ficou para trás, a fim de recolher o corpo de Norah Mangor e o trenó, enquanto os outros dois soldados aceleraram geleira abaixo em direção às suas presas.
Eles estavam usando esquis motorizados, um modelo secreto criado pela ElektroTread que era essencialmente um esqui de neve com esteiras miniaturizadas acopladas, como jet-skis de neve colocados sob os pés.
A velocidade era controlada por dois contatos de pressão que ficavam dentro da luva da mão direita. Eram acionados por um pequeno movimento em conjunto do polegar e do indicador. Uma poderosa bateria de gel ficava em torno dos pés, servindo de isolamento térmico e, ao mesmo tempo, fornecendo energia para o funcionamento silencioso dos esquis.
Uma solução perspicaz fazia com que a energia cinética gerada pela gravidade quando o usuário dos esquis descia um terreno fosse reaproveitada para alimentar as baterias para vencer a próxima subida.
Com o vento nas suas costas, Delta-Um esquiava agachado, deslizando em direção ao mar enquanto examinava o terreno ao seu redor. Seu sistema de visão noturna era muito superior ao modelo Patriot usado pelos marines. O visor acoplado à sua face podia ser operado sem o uso das mãos, era composto por lentes 40 x 90 mm de seis elementos, com um zoom de três elementos e um dispositivo infravermelho de distância ultralonga. Do outro lado do visor eletrônico, o mundo tinha uma coloração translúcida de azul suave em vez do verde habitual. Aquele esquema de cores havia sido especialmente projetado para terrenos com alta reflexividade, como o solo ártico.
Quando se aproximou da primeira barragem, o visor de infravermelho lhe mostrou várias linhas na neve recentemente remexida subindo como setas brilhantes na noite. Aparentemente os três fugitivos ou não tinham pensado em desenganchar o balão improvisado ou não tinham sido capazes de fazê-lo. De qualquer forma, se não tivessem se soltado até à última elevação, teriam caído no oceano. Delta-Um calculou que as roupas protetoras que usavam iriam aumentar um pouco sua expectativa de vida no mar gelado, mas as fortes correntes iriam levá-los para mar aberto.
A morte por afogamento seria inevitável.
Apesar da lógica da situação, o soldado havia sido treinado para nunca presumir nada. Precisava ver os corpos. Agachou-se e pressionou os dedos da mão direita, acelerando e subindo o primeiro aclive.
Michael Tolland estava imóvel, tentando verificar a extensão de seus ferimentos. Sentia dor em vários pontos do corpo, mas não parecia ter nenhuma fratura. Aparentemente o enchimento de gel do Mark IX evitara ferimentos mais graves. Abriu os olhos. Sua mente estava confusa pelo choque e ele levou algum tempo para se localizar. Tudo parecia mais calmo ali, mais silencioso. O vento continuava uivando, mas de forma menos violenta.
Nós caímos do penhasco... não caímos?
Olhando em volta, Tolland percebeu que estava deitado no gelo, jogado por cima de Rachel, quase na transversal, seus mosquetões retorcidos ainda presos um ao outro. Podia sentir que ela respirava, mas não podia ver seu rosto. Rolou para sair de cima dela, sua musculatura mal respondendo.
- Rachel...? - ele disse, sem saber muito bem se estava emitindo algum som.
Michael lembrou-se dos últimos segundos daquele apavorante passeio: o balão sendo puxado para cima, o cabo se partindo com um estalo, seus corpos descendo vertiginosamente a rampa da segunda barragem, escorregando por cima do último monte e finalmente deslizando pela borda da plataforma, precipício abaixo. Tolland e Rachel haviam despencado, mas a queda tinha sido inesperadamente rápida e curta. Em vez do esperado mergulho no mar, caíram apenas uns três metros, sendo aparados por outra placa de gelo. Finalmente pararam, com o peso morto de Corky a reboque.
Tolland levantou a cabeça e olhou para o mar. Não muito longe dali, a placa de gelo terminava num despenhadeiro, e podia-se ouvir o ruído da água vindo lá de baixo. Virando-se para a geleira, Michael tentava discernir algo em meio à escuridão. Cerca de 20 metros atrás, viu uma alta parede de gelo, que parecia suspensa acima deles. Então compreendeu o que acontecera. Eles haviam deslizado da geleira e caído em um terraço de gelo situado um pouco abaixo. Aquele pedaço liso, mais ou menos do tamanho de uma quadra de basquete, tinha desabado parcialmente e estava pronto para desprender-se da plataforma principal e cair no oceano a qualquer momento.
Fragmentação da geleira, pensou ele, olhando em volta do precário bloco de gelo sobre o qual estavam agora. A enorme placa estava pendurada na geleira, como uma monumental varanda, abrindo-se em três lados para precipícios que iam dar no oceano. Só havia uma ligação com a geleira principal na parte posterior, e Tolland podia ver que essa conexão não era exatamente confiável. A borda que unia aquele terraço à plataforma de gelo Milne estava marcada por uma fissura, causada pela pressão, de quase um metro e meio de largura. A gravidade estava bem perto de vencer aquela batalha.
Quase tão apavorante quanto a visão da rachadura era o corpo inerte de Corky Marlinson espatifado sobre o gelo. Ele estava a cerca de 10 metros de distância, com a corda esticada ao máximo ainda amarrada a seu corpo.
Tolland tentou levantar-se, mas estava preso a Rachel. Mudou de posição para desconectar os dois mosquetões entrelaçados. Rachel parecia enfraquecida, mas tentou sentar.
- Nós não caímos? - perguntou, espantada.
- Caímos em outro bloco de gelo, um pouco abaixo - disse Tolland, conseguindo finalmente se desvencilhar dela. - Tenho que ver como Corky está.
Dolorosamente, ele tentou colocar-se de pé, mas suas pernas doíam demais e estavam sem força. Michael pegou a corda de segurança e começou a puxar. Corky foi deslizando pelo gelo na direção deles até ficar a poucos centímetros de distância dos dois.
O astrofísico parecia em mau estado. Havia perdido os óculos protetores, tinha um grande corte na bochecha e seu nariz estava sangrando. Porém, a preocupação de Tolland de que o amigo estivesse morto foi rapidamente dissipada quando Corky se virou para ele com uma cara feia.
- Deus - balbuciou. - Que maluquice foi aquela que você inventou?
Tolland sentiu-se aliviado. Rachel, por sua vez, já havia conseguido sentar e estava olhando em volta.
- Nós precisamos sair daqui. Este bloco de gelo parece prestes a cair.
Tolland concordava plenamente. O único problema era saber como. Não tiveram muito tempo para pensar numa solução. Um zumbido agudo característico se fez ouvir, vindo da geleira acima deles. Tolland olhou rapidamente para o alto e viu duas figuras de branco esquiarem sem esforço até a borda e pararem em perfeita sincronia. Os dois homens ficaram imóveis durante alguns instantes, olhando para suas presas como dois mestres do xadrez saboreando o xeque-mate antes da jogada final.
Delta-Um ficou impressionado ao ver que os três fugitivos ainda estavam vivos. Essa era, é claro, apenas uma situação temporária. As vítimas tinham caído em um bloco da geleira que já começara seu inevitável mergulho em direção ao mar. Elas poderiam ser neutralizadas e mortas exatamente como a outra mulher, mas havia surgido uma opção muito mais limpa. Uma solução que não deixaria qualquer vestígio – os corpos nunca seriam encontrados.
Espiando pela borda, Delta-Um centrou seu olhar na rachadura que estava se abrindo entre a plataforma e a placa de gelo ainda grudada a ela. A parte do gelo na qual os três fugitivos estavam sentados debruçava-se perigosamente sobre o oceano, pronta para rachar de vez e cair no mar a qualquer momento.
E por que não agora?
Na plataforma, a noite permanente era perturbada periodicamente por estouros ensurdecedores - o som do gelo se quebrando em diferentes partes da geleira e caindo no oceano. Quem iria notar?
Sentindo a descarga de adrenalina que sempre acompanhava a preparação de um assassinato, Delta-Um abriu sua mochila de equipamentos e pegou um objeto pesado em formato de limão. Era um item-padrão para equipes militares de ataque e chamava-se "granada explosiva de luz e som" - uma granada de concussão, geralmente não letal, que desorientava temporariamente o inimigo gerando um flash de luz ofuscante e uma onda de choque ensurdecedora. Naquela noite, contudo, Delta-Um estava pensando que sua granada seria letal.
Posicionou-se na beirada do precipício e pensou o quanto a falha descia antes de juntar-se à parede principal da geleira. Cinco metros? Quinze metros? Não importava muito. Seu plano funcionaria de qualquer forma.
Com a calma de quem já levou a cabo muitas execuções, Delta-Um programou um retardo de 10 segundos no controle giratório da granada, puxou o pino e jogou-a na rachadura. O explosivo caiu na escuridão e desapareceu.
Delta-Um e seu parceiro correram até o topo da última barragem. Seria um espetáculo imperdível.
Mesmo completamente desnorteada, Rachel tinha uma idéia bastante razoável do que seus agressores haviam acabado de jogar dentro da fissura. Ela não estava certa se Michael também sabia ou se apenas estava refletindo o medo que via nos olhos dela, mas ele ficou pálido, olhando horrorizado para o gigantesco bloco de gelo em que estavam ilhados, percebendo com clareza o inevitável.
Como uma nuvem de tempestade iluminada por um raio, o gelo abaixo de Rachel se acendeu, propagando um branco translúcido e cinematográfico em todas as direções. Num raio de 100 metros ao redor deles, a geleira irradiou aquele flash de luz. A concussão veio a seguir. Não um ruído surdo como num terremoto, mas uma onda de choque avassaladora cuja força era capaz de revirar as entranhas. Rachel sentiu o impacto rasgando o gelo e invadindo seu corpo.
Instantaneamente, como se uma cunha tivesse sido enfiada entre a geleira e o bloco onde estavam, o gelo começou a desprender-se com um grande estrondo. Os olhos de Rachel procuraram os de Tolland, paralisados de terror. Perto deles, Corky gritou. A placa se soltou e começou a cair.
Rachel flutuou no ar por um instante, pairando acima do bloco de gelo de milhões de toneladas. Então o grupo despencou junto com o iceberg rumo ao mar gélido.
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