é andar por onde Buda andou, sentar embaixo de uma árvore ou à beira de um rio, ou cruzar um campo onde ele já esdvera. Mas uma caverna é um espaço confinado com pouca (leia-se nenhuma) ventilação. É quase como se estivéssemos respirando o mesmo ar que ele respirou. O interior está praticamente intocado desde o tempo que ele esteve lá. Não é difícil imaginá-lo sentado bem ao seu lado... agora! Meus olhos levaram alguns minutos para se adaptarem à escuridão, as minhas narinas para ignorar o cheiro de mofo, para esquecer a presença de meus colegas de passeio. Então, em vez de paz, senti ansiedade. Fiquei lá sentado, claustrofóbico, louco para sair dali... para sair da minha própria pele. Por quê? Não sei ao certo. Estava tudo muito próximo... literalmente. Não me senti à vontade. Andar sobre as pegadas dele, tudo bem. Mas passar pelo que ele passou para se tornar o Buda? Muito obrigado, mas não quero não. E pensar que ele fez isso horas, dias, semanas, meses a fio. Hoje o teríamos internado num hospício. O cara devia ser bom mesmo. Retirar-se da sociedade por um tempo é uma coisa. Mas por vontade própria submeter-se àquele tipo de privação e isolamento fazia com que eu chegasse a pensar se ele sofria de algum tipo de patologia. Só de sentar ali já senti o que diagnosticaria como "insanidade situacional", um estado que não é encontrado no Manual de diagnóstico e estatística dos distúrbios mentais da Associação Psiquiátrica americana nem em qualquer dos sutras do Buda.
Suspeito que aquela intensidade de emoção foi compartilhada pelos outros que sentaram comigo naquela caverna, e quero acreditar que foi isso que precipitou a interação que ocorreu depois. Ao sair da caverna, voltando pelo mesmo caminho, colina abaixo, um dos homens virou para mim e disse:
- Sabe de uma coisa? Você não precisa gravar essas conversas. Pode obter a mesma informação de um dos livros de Thich Nhat Hahn.
- Acho que a National Geographic não me mandou para cá para eu copiar algumas páginas de um livro - respondi, talvez com irritação demais e agressividade exagerada na voz.
Quem era aquele cara para vir me dizer como fazer o meu trabalho? Será que era a minha insegurança dizendo que eu não sabia fazer o meu trabalho?
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- Bem, mil desculpas — ele recuou e se afastou. — Desculpe por tentar ajudar.
- Está desculpado.
Eu não ia deixar que ele ficasse com a última palavra.
E era isso aí, um confronto típico de macho com macho levado pelo nível de testosterona. Dois homens que pensavam que sabiam mais do que o outro e que não hesitavam nem um segundo em afirmar isso. Aquilo era feio, e mais ainda porque tínhamos acabado de sair de uma caverna onde o futuro Buda se esforçara ao máximo para livrar-se desse tipo de comportamento humano equivocado. No mesmo instante me senti péssimo e indignado com aquela interação. Aquele era exatamente o tipo de motivo pelo qual eu odiava juntar-me a esses grupos. Como já disse, tenho problema com relacionamentos. E por me conhecer (ou fingir que conheço), eu tinha certeza que ia evitar aquele cara como a praga pelo resto daquela viagem, e que ao mesmo tempo ia ficar obcecado com ele, por algum tempo. E isso me fez lembrar de uma antiga história budista. O Buda e um monge se aproximaram de um rio e viram uma mulher lavando roupa na margem. Quando chegaram perto dela, ela perguntou se podiam ajudá-la a atravessar o rio.
- Ah, sentimos muito, bondosa senhora - disse o monge. - A senhora sabe que um monge não pode tocar em uma mulher.
Mas o Buda, sentindo compaixão por ela, ofereceu-se para carregá-la nas costas, fez isso e começou a atravessar o rio. Ele a pôs no chão no outro lado. Ela agradeceu muito, e os dois homens seguiram seu caminho. Andando em silêncio, o Buda percebeu que o monge estava aborrecido.
- O que houve, irmão? - ele perguntou.
- O meu senhor sabe que fizemos o juramento de não tocar nas mulheres - disse o monge. - Como pôde fazer aquilo?
- Meu amigo - respondeu o Buda -, é verdade, eu a levantei e carreguei até a outra margem do rio. Mas deixei-a lá. Você, no entanto, continua carregando aquela mulher.
Por quanto tempo eu ia carregar aquela conversa desagradável nos meus ombros?
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Voltei e acabei caminhando ao lado da adorável mas ingênua mulher que parecia não estar entendendo nada, no sentido cultural. Mas mesmo assim ela possuía uma elegância e pureza que me atraíam. Dava para ver que vinha de uma família rica, e eu teria achado sua inocência charmosa se não fosse tão triste saber que alguém ainda conseguia viver uma vida de claustro nos Estados Unidos (quem estava sendo ingênuo agora?). Passamos por uma aldeia que podia ter sido a verdadeira Uruvela do tempo de Buda. Se não era, com certeza era exatamente a que Siddhartha teria atravessado quando saiu das cavernas para ir até o rio. Telhados de palha, búfalos, mulheres batendo o trigo a mão, pilhas de estéreo para ser usado para aquecer e nas construções, crianças correndo com o nariz escorrendo, o mesmo cenário, as mesmas figuras, o mesmo elenco desde quinhentos anos antes do nascimento de Jesus, com os roteiros de suas vidas inalterados e imutáveis há milênios e dali a milênios também.
- Isso não é pitoresco? - disse minha companheira de caminhada. - Olha só como são primitivos!
Para ela era como se estivesse visitando aqueles museus de história viva dos Estados Unidos: a plantação Plimoth do século XVII em Massachusetts, ou a aldeia do século XVIII recuperada de Williamsburg, na Virgínia.
Metade de mim queria sacudi-la para que saísse do seu confortável coma norte-americano. A outra metade queria ser ela, ser assim completamente alienado das duras realidades do Terceiro Mundo. Ali parados na periferia da aldeia, nos demos conta de que tínhamos perdido os outros de vista. Estávamos muito à frente ou tínhamos ficado para trás do resto do grupo. A distância, avistei o meu antagonista se aproximando, provavelmente também perdido. Mas nem esperei para descobrir. Fui andando e passei por ele, com toda a indiferença que minha linguagem corporal era capaz de transmitir.
Aquela noite, depois do jantar no templo onde nos hospedamos, Shantum convocou o que ele chamou de "choques", nos quais os participantes contavam uma experiência que tiveram durante o dia que tenha sido marcante de alguma forma. Naquela
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noite a maior parte das pessoas falou sobre a reação delas aos pedintes - a sensação de culpa, o patos, o blablablá. Francamente, fiquei entediado com a preocupação delas, e ainda mais convencido de que estava com o grupo errado. Por que não falavam sobre o budismo, sobre o Buda, o templo Mahabodhi, a iluminação} Por que estavam se deixando distrair por uma situação que não podiam modificar, que não mudava desde a época de Buda e que não mudaria até a vinda do próximo Buda? Enquanto os outros falavam, eu olhava de soslaio para o meu nêmesis para ver se ele estava olhando de lado para mim. Ele devia ser calmo demais, ou então todo aquele nosso diálogo devia ter escorregado das costas dele sem que ele tivesse notado. Se a segunda opção fosse a verdadeira, era motivo para mais irritação da minha parte.
Quando chegou a vez da minha experiência marcante, senti minha pulsação acelerada e o sangue subindo para o meu rosto.
-Tenho uma coisa que quero contar... — comecei a dizer, com cuidado de não olhar no olho do cavalheiro — da qual não me orgulho.
Parei para organizar meus pensamentos e para dar um ímpeto dramático à minha revelação.
Para meu próprio espanto, contei tudo, o incidente nocivo daquele dia, e confessei que aquilo tinha me deixado num estado de conflito pessoal o resto do tempo. Agora olhando direto para ele, assumi a responsabilidade pelo que tinha acontecido e pedi perdão para ele na frente de todos. Senti imediatamente que tinham tirado um peso enorme dos meus ombros e uma nuvem de cima da minha cabeça. Eu tinha me libertado da prisão que impusera a mim mesmo com o simples ato de revelar a minha preocupação medíocre.
Dali para frente o grupo me aceitou. Eu tinha conquistado a confiança deles admitindo meu erro, minha humanidade. Apesar de não ter necessariamente aproximado aquele homem de mim (essa não era a minha intenção), aquilo me aproximou de mim mesmo. E aliviou a minha culpa de ter sido tão rude.
Outra coisa aconteceu aquele dia que me fez bem, tanto profissionalmente como pessoalmente. Já quase no fim da noite,
Shantum verificou as mensagens no seu telefone celular e disse bem alto, para todos ouvirem, que eu tinha um recado da minha agente literária de San Francisco. Imagino que tivesse dado a ela alguma informação de contato caso houvesse alguma notícia sobre a minha proposta que circulava entre os editores de um livro baseado na minha missão para a National Geograpbic. Parecia muito imponente: "Perry, sua agente ligou e quer que você ligue para ela". Além de ter uma agente, ela ainda me ras-treou até o meio da índia. Fui a um posto telefônico internacional nas ruas escuras de Bodh Gaya e telefonei para ela. Ela disse que tinha uma boa oferta, suficientemente boa para me alçar ao paraíso. Só mais tarde caiu a ficha de que aquela reviravolta imensa na minha vida aconteceu quando eu estava na cidade da iluminação do Buda. Não poderia escolher lugar mais auspicioso para receber a notícia da minha redenção do abismo literário.
Depois que Buda atingiu a iluminação ele encarou um dilema que poucos de nós terão de enfrentar na vida. Ele podia gozar de sua unicidade, saborear a bem-aventurança do desapego, sem nenhuma preocupação no mundo... no mais verdadeiro sentido. Ou então podia sair e ensinar para os outros como chegar lá também. Na sua vida a comparação seria que uma vez conquistado um objetivo - uma promoção, a aliança de casamento, a casa no campo, a aposentadoria - você teria "chegado lá". Não haveria mais lugar para ir, não poderia ser mais nada. Então por que fazer mais alguma coisa? Era só aproveitar sua conquista e o seu gim-tônica.
De fato, o Buda pensou em "se aposentar". Ele poderia ter correspondido a um dos seus nomes, Tathagata, que quer dizer "ido". Além disso, ele lamentava que suas Verdades eram complicadas demais para ensinar e difíceis demais para seguir. Mas em seu primeiro ato de altruísmo - e aquele que as pessoas do movimento do budismo engajado apontam como o primeiro exemplo e modelo que seguem - ele resolveu aceitar o desafio e a responsabilidade de passar adiante a sua descoberta. E escolheu retribuir à sociedade.
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Buda decidiu que os primeiros cinco alunos seriam os renun-ciantes que o tinham abandonado nas cavernas Mahakala. Encontrou-os em Sarnath, onde muitos que buscavam a iluminação se reuniam perto de Benares (hoje Varanasi), a cidade sagrada hindu à beira do Ganges. A primeira reação deles foi contestá-lo, mas depois de ouvir o que o Buda falava souberam imediatamente que ele havia atingido o objetivo que todos procuravam. E lá, num parque onde os cervos pastavam livres num campo verde, ele deu seu primeiro sermão, elaborando sobre as Quatro Verdades Nobres, o Caminho Octuplo e o Caminho do Meio. Seu discurso inicial, no parque dos Cervos, é chamado de "Pôr em movimento a roda do dharma", ou Dharmacakrapravartana Sutra. Os monges, mais tarde chamados de "Os Cinco Afortunados", ouviram atentamente a explicação dele e dizem que obtiveram iluminação instantânea, tão poderosa e penetrante que foi a mensagem do Buda. Foram seus primeiros discípulos. Ouvimos histórias dos meses seguintes de encontros semelhantes e realizações semelhantes dos que escutaram os sermões de Buda. E logo ele tinha milhares de seguidores. Foi assim que começou sua carreira de educador e que continuou até o momento da sua morte.
Quando relatam a sua vida ocorre uma coisa curiosa que confunde os biógrafos do Buda. "Embora os últimos 45 anos da sua vida tivessem se passado à vista do público, os textos tratam bem superficialmente dessa longa e importante fase, e deixam pouca coisa para o escritor trabalhar", escreveu Karen Armstrong em Buddha. "As escrituras budistas registram os sermões do Buda e descrevem os primeiros cinco anos de sua carreira de mestre com certo detalhe, mas depois disso o Buda escapa da vista e os últimos vinte anos de sua vida praticamente não têm registro." Mesmo nos primeiros anos de ensinamentos, ela continua, "os textos não dizem nada sobre os pensamentos e sentimentos do Buda, mas usam suas atividades para mostrar como os primeiros budistas se relacionavam com o mundo urbano, comercial, político e religioso do norte da índia".
Isso tem sentido. O Buda tinha se transformado em um arquétipo, uma tabula rasa sobre a qual as gerações futuras
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podiam pintar o retrato da perfeição de acordo com suas necessidades. Ele mesmo nunca foi o objeto, e sim seus ensinamentos. E o resultado foi que restou para nós muito pouco da personalidade dele. Ele não tinha um "ego", de qualquer modo.
Shantum nos levou para Sarnath, onde conhecemos um museu local. Fomos para o parque. Até vimos uns cervos. Rodeamos a gigantesca stupa onde dizem que ele fez seu primeiro sermão dharma. Dali, nos dias seguintes, também viajamos para o lugar onde ele morreu, em Kushinagar, e onde nasceu, em Lumbini, depois da fronteira com o Nepal. Mas, como ocorreu com a vida de Buda depois da iluminação e nos primeiros anos de ensinamentos, também devo admitir que minhas lembranças daqueles dias de viagem com o grupo da excursão foram esquecidas. Mesmo ouvindo mais tarde as fitas gravadas naquele período, tive dificuldade para me inserir naquela experiência. E isso foi bastante estranho para mim, porque sou como um camelo que nesses anos todos como jornalista dominou a arte de armazenar
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