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Uma pré-escola no município de Anuradhapura no Sri Lanka, construída com recursos da Sarvodaya e com professores treinados pelo Sarvodaya. À direita está Vinsor Kanakaratne, coordenador municipal de Sarvodaya.
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agora se revelava tão primitiva, tão dividida? O budismo era parte da fundação cultural daquele país; se o budismo "funciona", então o Sri Lanka devia ser seu melhor cartão de visita. Em vez disso, é um país que sangra por dentro. Por quê? Era o koan que levei para casa, aquele que provavelmente nunca seria respondido.
Os lindos rostos das crianças continuaram gravados na minha mente no dia seguinte quando voltei para Colombo. Foi sorte minha chegar a Kandy na véspera da lua cheia, dia auspicioso em qualquer medida, mas mais ainda para os budistas do Sri Lanka. Diz a lenda que o nascimento, a iluminação e a morte de Buda ocorreram em luas cheias. As luas cheias, chamadas de poya, são dias de sabático, feriado oficial em que as lojas da cidade ficam fechadas, ninguém serve bebida alcoólica e a matança - inclusive de peixe - é proibida. Nessa noite, em Sri Dalada Maligawa, o templo do Dente, abre-se o véu da vitrine que esconde uma série de sete caixas de ouro com pedras incrustadas, dentro das quais, diz a lenda, está um dos incisivos de Buda. Uma vez por ano, em agosto, o conjunto de caixas todo sai em desfile pelas ruas de Kandy nas costas de um elefante elaboradamente enfeitado e paramentado. Em 1998 um esquadrão suicida terrorista do LTTE atirou-se contra o templo, matando 11 pessoas e ferindo 23. O ataque ocorreu dias antes do qüinquagésimo aniversário da independência do Sri Lanka. O prédio ficou muito destruído, mas quando estive lá parecia quase todo restaurado. Relatos informam que o dente ficou incólume.
O salão contíguo da vitrine estava repleto de casais e famílias com filhos de todas as idades, todos chorando, pelo menos foi o que me pareceu naquele calor abafado. Aquele não era apenas um dia santo, era um feriado com ritual de família. Esperei pacientemente, procurei observar a minha respiração, mas mesmo quando consegui bloquear o choro dos babus, as gotas do meu suor escorreram para os meus olhos e acabaram com a minha concentração.
Por fim, olhando fixamente para aquela pequena janela de vidro, vi algum movimento e pensando que apenas eu tinha nota-
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do, levantei-me rápido, como qualquer cidadão respeitável de Nova York, para abrir caminho até lá na frente. Mas eu não estava sozinho. Com a sincronia de uma banda em marcha, a multidão levantou-se em massa e aos poucos foi assumindo seu lugar. Um nova-iorquino prepotente poderia aprender umas coisas com aqueles budistas do Sri Lanka. Na fila, uma cabeça inteira mais alto do que a maioria dos outros (exceto pelo ocidental ocasional também na fila), eu me destacava como um feijão-branco. Lenta mas num mesmo ritmo a fila serpenteava e dava voltas, avançando para a ansiada vitrine. Eu observava cuidadosamente o ritual. Tínhamos alguns poucos minutos para ver o que havia lá para ver e depois tínhamos de seguir em frente.
E antes de estar realmente preparado, chegou a minha vez. Tinha uma luz por dentro e outra por fora que refletia no vidro e minhas pupilas levaram alguns segundos para se adaptarem. Então havia tanto para ver naquele espaço muito pequeno, em tão pouco tempo, que acho que entrei em pânico. Não sabia onde fixar o olhar. Em vez disso examinei o quadro inteiro daquela vitrine. Era como uma exibição diminuta montada sobre umas mesas cobertas com pano branco, e dava para ver uma parede atrás de tudo. Na hora que pensei ter reconhecido a caixa e que olhei fixo para ela, para ver algum pedaço de dente branco, o homem de guarda ao lado da vitrine fez sinal indicando que meu tempo tinha acabado. Hesitei, e ele me convidou a sair dali, com gentileza mas firme também. As pessoas logo atrás de mim na fila empurravam meu cotovelo, com a mesma persuasão. Passei tão depressa pela frente da vitrine, tonto com todas aquelas pedras cintilantes e pessoas que mal vi qualquer coisa... menos ainda o dente tão querido.
Talvez a realidade seja dura demais aqui. E mais fácil agarrar-se à ilusão de um dente, desfilar com ele nas costas de um elefante e esperar que prestando obediência a ele se produza alívio para todo o sofrimento.
Peço perdão - talvez eu não tivesse me empenhado tempo suficiente nos Ensinamentos -, mas estava tendo problema para juntar as pontas ali no Sri Lanka. Rezar para um pré-molar será
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que traria de volta um braço ou uma perna? Será que o budismo tinha se distanciado tanto de suas raízes naquela primeira etapa de sua migração pelo mundo? Ou o problema seria eu? Será que eu não "acreditava" o bastante? Eu achava que fé em fadinha do dente não era o que Buda tinha em mente. No entanto eu estava pondo a minha fé no movimento Sarvodaya do dr. Ariyaratne.
Pós-escrito de um antigo paraíso:
No dia 26 de dezembro daquele mesmo ano, quando eu estava sentado em segurança em Marthas Vineyard escrevendo, o Sri Lanka vivenciou um acontecimento que literalmente varreu a vida de lá como eu havia visto, e imagino que deva ter feito com que eles passassem a questionar sua fé no dente. O Sri Lanka sofreu o impacto direto do quarto maior tsunamí do mundo desde 1900. O tsunami ganhou força ao atravessar a baía de Bengala desde o seu epicentro ao norte de Sumatra, aparentemente mirando seu alvo em Batticaloa e o litoral nordeste do Sri Lanka. Esse tsunami provocou mais mortes do que qualquer outro em toda a história. Das mais de 150 mil pessoas mortas naquela parte do mundo, estimam que 35 mil eram do Sri Lanka.
Reportagens feitas direto daquela região eram poucas. A melhor cobertura veio do meu bom amigo Jeff Greenwald, jornalista de Oakland, autor de Shopping for Buddhas entre outros livros, e fundador de uma organização respeitada chamada Viajante Ético. Ele se ofereceu para trabalhar no Sri Lanka como voluntário, de assessor de mídia para Mercy Corps, um grupo beneficente de Portland, Oregon. As reportagens que ele registrou em seu site na rede, EthicalTraveler.org eram muito dolorosas de ler e tratavam de questões que perturbavam a nós todos. Um pequeno trecho aqui.
A nossa ida de carro pelo litoral rumo ao norte até Batticaloa é interrompida por diversos desvios e retrocessos. Passamos pelo meio de uma cidade e viajamos nove quilômetros difíceis pela estrada arruinada, só para nos deparar com a ponte destruída. Ilustrado
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com violenta claridade é o rastro da onda assassina. Todo o litoral do Sri Lanka está um desastre. As vezes os danos aparecem na costa, às vezes se estendem para o interior, mas é praticamente universal. Muitas casas de veneração - budistas, hinduístas, cristãs e muçulmanas - foram poupadas, mas nem todas. Um pouco ao norte de Thirrukovil encontramos um templo hindu atingido pelo tsunami. Estátuas coloridas e partes de pinturas espalhados à beira da estrada como um buquê desfeito.
Isso tudo me faz pensar mais uma vez se eu teria compreendido — quando o mar retrocedeu, expondo o fundo até muito longe — o que vinha depois. A verdade é que não sei. Nenhum de nós teve qualquer sensação do que precede um tsunami, já que nunca presenciamos um na vida. Os filmes sobre tragédias não mostram o mar recuando; é apenas uma enorme onda que chega e arranca táxis e placas de anúncio das ruas. Será que eu ia correr para ver de perto os recifes expostos, maravilhado, ou correria na outra direção? Não há como saber se teria sido salvo pela minha intuição ou morto pela minha curiosidade.
Fiquei meses me lembrando das estradas por onde passei, os lagos por onde caminhei, as praias por onde passeei — tudo destruído. Mas pensava mais nas pessoas que tinha conhecido e ficava imaginando como estavam vivendo, se é que tinham sobrevivido. Levei algum tempo para criar coragem, mas finalmente telefonei para o dr. Ariyaratne, que estava nos Estados Unidos fazendo palestras e levantando recursos para o esforço de salvamento e reconstrução. Ele me disse que milagrosamente nenhum membro da equipe de Batti-caloa com quem eu havia passado aquele tempo tinha morrido.
- Mas, sim - disse ele -, vidas foram perdidas. Uma pré-escola que construímos ficou inteiramente destruída. As crianças, os professores, tudo.
Buscando alguma compensação eu disse:
- Bem, isso deve ter promovido uma união no país e dado uma nova perspectiva à guerra civil, não?
- Nas primeiras duas semanas houve cooperação entre o LTTE e os cingaleses - respondeu ele. - Mas depois os tâmeis
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declararam que estavam sendo discriminados, acusaram o governo de cortar os suprimentos que seriam destinados a eles. Na verdade o tsunami ampliou a distância.
E era verdade mesmo. Fiquei sintonizado com os noticiários: o número de assassinatos com motivação política aumentaram, não diminuíram, no rastro do tsunami. O LTTE não foi a única facção que aproveitou a ocasião daquela enorme tragédia para incrementar a cisão. Eu li, incrédulo, numa nota de janeiro de 2005 da agência de notícias France Presse que mesmo os inexpressivos muçulmanos estavam apontando dedos acusadores.
Deus assinou Seu nome no tsunami que fustigou o Sri Lanka e outros países no dia 26 de dezembro e enviou essa calamidade como castigo para os seres humanos que ignoravam Suas leis, dizem os muçulmanos do Sri Lanka. A prova disso, segundo Mohamed Faizeen, administrador do Centro de Estudos Islâmicos de Colombo, é uma imagem de satélite fotografada segundos depois do tsunami se abater sobre a costa oeste do Sri Lanka perto da cidade de Kalutara, e o retorno da água.
— O desenho mostra claramente o nome "Alá" em árabe - disse Faizeen, apontando para o formato das ondas, um gigantesco "E", completo, com redemoinhos e ondas menores que realmente parecem se combinar para formar o nome em árabe de "Alá".
Nesse meio tempo, Sarvodaya atendeu ao chamado daquela situação. Poucas horas depois da grande onda, abriu um centro de operação nacional que nos três meses seguintes distribuiu o equivalente a meio milhão de dólares de ajuda humanitária. Por esse trabalho foi indicado para o Quadro de Honra do HABITAT 200$ da ONU, cujos nomeados "se destacam com seu compromisso pela causa de promover o bem-estar das comunidades com formas inovadoras de reduzir a pobreza urbana e de oferecer auxílio para as vítimas de desastres como o tsunami do oceano Indico".
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TATUAGENS, PEGA-VARETAS E IMITAÇÃO DE MONGES
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