Por que uma idéia de dois mil e quinhentos anos atrás pareceria hoje mais relevante do que nunca? Como os ensinamentos do Buda podem nos ajudar a resolver muitos problemas do mundo



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No dia seguinte tive a oportunidade de assistir a uma sessão no Centro de Saúde Comportamental. A psicóloga Peta McAuley, da Austrália, que vivia em Hong Kong há 25 anos, conduziu a sessão que eu vi. Ela também tinha feito o curso de MBSR em Worcester.

- Tenho de agradecer àqueles ianques — disse ela. - Quando os norte-americanos fazem alguma coisa, fazem muito bem.

Ela disse isso quase com hostilidade. Já suportava bastante patriotismo norte-americano que dava de sobra para nós dois.

A dra. McAuley e eu conversamos antes da sessão. Ela quis que eu soubesse que vipassana não era sua primeira experiência budista. Tinha se envolvido durante sete anos com a Nichiren Shoshu, uma seita japonesa budista. O fundador da seita, um padre do século XIII chamado Nichiren Daishonin, acreditava que qualquer pessoa pode atingir a iluminação entoando como cântico certa frase da Lótus Sutra, uma das sagradas escrituras budistas mais influentes. Eu conhecia essa seita. Acontece que foi o primeiro encontro que minha ex-mulher íris e eu tivemos com o budismo quando morávamos em Boston. Foi em 1973, ainda não tínhamos ido para a índia, e foi uma decepção completa. As pessoas se reuniam numa casa em Beacon Hill que tinha se convertido em templo. Todas sentavam no chão de uma sala comprida, de cara para a parede e para uma comprida folha de papel branco pendurada na vertical, com caracteres japoneses. E entoavam essa frase sem parar - Nam-myoho-renge-kyo ("louvado seja a maravilhosa Lótus Sutra"). As palavras se misturavam numa ladainha baixa e quase triste. As pessoas pareciam robôs. Aquela cena nos pareceu de um culto.

- O budismo não é a nossa praia - acho que foi assim que nos expressamos.

Afinal de contas, estávamos em 1973.

Procurei deixar a minha "agressividade" de lado quando a dra. McAuley explicou uma teoria muito interessante sobre a diferença que há entre o budismo do Oriente e o do Ocidente. Segundo os próprios estudos que fez, com cruzamento cultural, ela disse:

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- Está claro que os norte-americanos são mais extrovertidos e ambiciosos do que os chineses, e os chineses são mais introvertidos e procuram evitar conflitos.



"Harmonia é o nome do jogo aqui — disse ela. — Jung acreditava que a psique busca o próprio equilíbrio."

É por isso que os norte-americanos são mais atraídos pela prática interior da meditação, enquanto que os asiáticos tendem a se empenhar mais nos cânticos, na queima de incenso e nas saudações com o corpo curvado. Eu não tinha ouvido essa análise antes e me pareceu bastante precisa. Exceto que a sua teoria não combinava nada com ela. Os australianos em geral são pessoas muito abertas, extrovertidas. Então por que ela havia gravitado para uma prática de cânticos? A dra. McAuley não tinha explicação para isso e perguntou se eu, com base nas minhas viagens, tinha alguma. Isso me assustou. As pessoas me viam como uma autoridade em budismo? Bem, qualquer coisa é possível, como diria o mestre Eminem.

- Vou meditar sobre isso - brinquei, mas acho que ela não entendeu.

Fomos então para o que devia ser uma sala que servia para tudo na nova ala de qualquer igreja norte-americana: tecido industrial cinza cobrindo as paredes, divisórias combinando, nenhuma circulação de ar digna de nota, cadeiras de metal empilhadas nos cantos. Tinha tanta personalidade quanto a sala de espera de um consultório de dentista... não... menos. Almofadas formavam um círculo no meio da sala. Era o final de um dia de trabalho e as pessoas chegavam cansadas: a dona de casa chinesa, a universitária, o marido indiano que trabalhava na filial de Hong Kong de alguma multinacional com sede em Nova York. Umas oito pessoas ao todo, primeiro sentamos e meditamos 15 minutos mais ou menos. Era provavelmente a primeira vez que eu sentava tanto tempo seguido desde a índia. Foi como se estivesse de novo na sela. Abhh, a dor e o prazer daquilo tudo. Tive uma sensação que crescia lentamente, que sentar daquele jeito com qualquer grupo, em qualquer lugar, de qualquer origem, era isso a minha Sangha. A respiração, o momento, o saber compartilhado de que aquelas pessoas também estavam batalhando para encontrar algum modo

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de domar a fera selvagem que convenientemente chamamos de mente, buscando um pouco de paz de espírito - é isso que a Sangha oferece. Essa foi uma compreensão tão simples, obtida num cenário tão improvável, que me marcou e nunca mais me abandonou.



As mulheres enfrentavam os papéis dos gêneros. Diversas

vezes ouvi a frase "a boa________chinesa" (preencha a lacuna

assim: esposa, filha, mãe). Os homens tinham problema com os seus papéis, principalmente com o de provedor. A história do cavalheiro indiano me tocou. Não costumo me identificar com qualquer um cujo título no cartão de visita inclua "multinacional", mas esse homem de repente virou um companheiro de trincheira. Nós dois sofríamos do mesmo mal, e achei que não estávamos sozinhos nisso. O que parecia uma desvantagem prosaica, uma distração insignificante das Coisas Muito Mais Importantes na Vida, estava se transformando numa epidemia na comunidade global que só fazia encolher. Vamos chamar de e-mail-ite. Não que eu sofresse de severos ataques de pânico, como tinha sido diagnosticado o meu amigo indiano, mas nós tínhamos as mesmas causas de sofrimento, ou seja, a ignorância. De quê? No meu caso era a ignorância em relação ao fato de que realmente não importa o quanto eu me preocupo, ou planejo, ou arquiteto, ou qual é a minha estratégia para as mensagens por e-mail que recebo e envio. Ignorância em relação ao fato de que não importa quantas vezes eu leio e releio o e-mail, a mensagem oculta continuará indecifrável, o tom de voz e a inflexão inaudíveis. Ignorância com relação ao, ou simplesmente o esquecimento do fato de que, para a maioria das pessoas, teclar palavras numa tela parece sinistramente Escrever, com E maiúsculo, ato que gera um medo profundamente arraigado. Acima de tudo eu era ignorante do fato de que apesar de todos os meus esforços e boas intenções, os resultados das interações por e-mail dependem de algum fator x, onde o x representa tudo que está fora do meu controle e que, no final das contas, é tudo.

Nesse caso, como ele explicou, a coisa era mais simples ainda. Era a ignorância quanto à disposição mental dos executivos

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sentados em cubículos apertados no centro de Manhattan, que enviavam e-mails para ele.



- Eu simplesmente não consigo descobrir o que eles querem ou o que devem estar pensando - confessou ele, praticamente aos prantos.

No entanto ele conseguia ficar a noite inteira acordado tentando decifrar o significado dos e-mails.

Aquilo pareceu bastante inócuo a princípio, mas quando ele descreveu um dia e uma noite na vida dele, eu me arrepiei porque me reconheci. Graças à diferença do fuso horário, a manhã dele era a noite do chefe. Por isso ele sabia que um e-mail enviado para Nova York de manhã não seria aberto o resto do seu horário de trabalho, enquanto que as transações financeiras estavam sendo feitas nos países asiáticos, transações que podiam pegar mal para ele. Então ele tinha de ficar o dia inteiro sofrendo e tentando prever. A noite, na hora de ir embora para casa e descansar, ele sabia que seu chefe estaria abrindo os e-mails dele e disparando missivas em resposta. E agora a ansiedade crescia e o indiano vivia um turbilhão de angústia que dava tontura, náusea, dores de cabeça, indigestão, insônia e provocava uma subida perigosa na sua pressão sangüínea. Sem poder dormir, ele ficava deitado acordado, só preocupação. Primeiro tentava se acalmar, como fazia sua mulher.

- Isso pode esperar até amanhã de manhã - ela procurava consolá-lo.

Mas era inevitável, era obsessivo, porque ele se levantava às duas da madrugada e verificava seus e-mails. Era uma situação de perder ou perder. Se recebesse más notícias, ficaria acordado o resto da noite bolando um plano de ação para reagir. Se recebesse boas notícias, ficaria eufórico e não conseguiria dormir. Mas o pior era não ter reação, ele disse. Era naquele vazio de conhecimento que criávamos nossos pesadelos, concluiu. Será que seu chefe estava tão furioso que tinha imprimido o e-mail e distribuído por todo o escritório de Nova York como exemplo risível de como não fazer negócios? Será que o chefe dele tinha sido despedido? Será que ele tinha sido despedido? Será que a firma tinha ido para o brejo da noite para o dia, como podia realmente

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acontecer no mundo volátil das multinacionais, ou ter sido engolida numa frenética operação de fusão e aquisição? Será que o e-mail nem tinha chegado, será que ainda estava voando pelo espaço virtual? Então, de manhã, começava tudo de novo, aquele pega-pega. A ironia era que estando um dia adiantado na Ásia, ele estava sempre um dia atrasado em relação aos Estados Unidos.

Eu podia me identificar com ele. Tinha descoberto o mesmo problema, mas eu jogava dos dois lados. Eu enviava e-mails para o leste e o oeste, para zonas de fusos adiantados e atrasados nas horas. Era enviar e-mails hoje para alguém que os receberia ontem. E isso era possível mesmo!'Mas a tristeza disso é que milhões de pessoas devem passar por tortura semelhante em seus empregos por todo o mundo. E-mail é a glória e a desgraça da civilização moderna. Passei muito tempo maravilhado pensando como os jornalistas se viravam pelo mundo sem e-mails. Tinha dias em que me sentia prisioneiro da Internet. Além de nós todos sofrer-mos de sobrecarga de informação, essa expedição de informação também cria sobrecarga de urgência e aumenta a expectativa de uma resposta ainda mais urgente. Nossos batimentos cardíacos aceleram para acompanhar o ritmo. Se o Buda fosse realmente onisciente, ele teria ditado uma sutra inteira sobre o sofrimento que a Internet poderia provocar se não fosse tratada com a DoseCertadePaciencia.com.

O indiano disse que o programa MBSR estava ajudando. Ele era hinduísta e tinha antes encontrado consolo em seus cânticos diários. Mas essa doença emocional tinha eliminado o benefício até dessa prática. Só que agora, "a consciência plena está me ajudando a rezar menos distraído", disse ele.

Depois da sessão eu me surpreendi e surpreendi o indiano também, indo até ele e lhe dando um bom e velho abraço de urso americano de comiseração. Meus ouvidos ouviram minha boca dizer realmente isto:

- Eu sinto a sua dor, amigo.

Quando saímos trocamos cartões de visita.

- Mande um e-mail para mim um dia desses - disse eu, e nós dois sorrimos.

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Obrigada pela sua mensagem. Estou procurando levar uma vida mais simples e mais equilibrada e agora só vejo meus e-mails de vez em quando, espero que você compreenda. Se a sua mensagem for urgente, por favor, tenha a bondade de me telefonar.

Se deseja ser lembrado de dar um tempo nessas horas que passa na frente do computador, talvez seja bom baixar o "mind-ful clock" do site http://www. mindfulnessdc. org/mindfulclock. html.

Eu paro e presto atenção na minha respiração três vezes quando toca a campainha é uma boa maneira de descansar. Espero que você goste.

Que todos os dias lhe dêem mais amor, sabedoria e paz!

Amor, Helen

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Recentemente, quando estava dando os retoques finais a esta seção do livro, enviei para a dra. Ma um e-mail para confirmar algumas informações. A resposta dela me pareceu uma forma adequada de finalizar este capítulo.

Esta é uma resposta automática: Querido/a amigo/a,

8 DESPERTAR O GIGANTE ADORMECIDO



O budismo retorna lentamente para a China

As coisas mais suaves do mundo superam as coisas mais duras do

mundo.

Por isso eu conheço a vantagem de não agir.

- Lao-Tzu



Os que recorrem à violência para atingir seus objetivos não seguem o dharma. Mas os que levam os outros por meios não violentos, conhecendo o certo e o errado, podem ser chamados de guardiões do dharma.

- O BUDA


Eu sabia dos abusos contra os direitos humanos. Eu sabia dos 1,3 bilhão de pessoas, mesmo sem poder imaginar como quatro vezes e meia a população dos Estados Unidos poderia caber numa área aproximadamente do tamanho dos Estados Unidos. (Os Estados Unidos têm uma média de trinta pessoas por quilômetros quadrado, a China 134.) Eu sabia do desenvolvimento econômico e sabia da resultante poluição industrial. Na verdade, quando estava na China, a National Geographic saiu com uma história intitulada "O preço do crescimento na China", uma visão devastadora e implacável do aumento das doenças pulmonares no país, dos rios poluídos e de outros danos ambientais gerados pelo desenvolvimento sem controle. "As implicações dessa disparada para uma sociedade

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consumista no estilo ocidental são graves", escreveu o jornalista Jasper Becker. Eu esperava que a minha impressionante carta de apresentação provocasse um abraço caloroso, mas agora a minha pequena carta meritória seria o beijo da morte.

E eu certamente sabia da horrenda opressão e repressão sistemática contra o budismo, e não só desde a época da Revolução Cultural, mas, logo fiquei sabendo, de muito antes.

Podemos dizer que na verdade eu não sabia nada da China por trás das manchetes. E quem poderia me recriminar por isso? Eu era intimidado por uma história tão longa que fazia a dita história americana parecer um espirro antropológico. As crianças chinesas sabem recitar a Tabela das Dinastias Chinesas, todas as 84, que datam do século XXI a.C, com a mesma facilidade que os caras do meu antigo bairro costumavam enumerar os campeões da World Series de beisebol desde a primeira, em 1903.

Antes de chegar aqui, a minha China era um amálgama de antigos clichês. Eu esperava ver pessoas abatidas usando uniformes cinza, militares armados por toda parte e um desalento difuso combinando com uma névoa pesada e preta no ar. Achava que não ia ter empatia nenhuma pelo povo chinês. Fora o ar, que me fez lembrar de Gary, Indiana, mas em escala bem maior, minhas experiências provaram que eu tinha me enganado em tudo.

Para começar, aquela roupa de abelha operária tinha sido substituída por vestes mais ocidentais. E difícil encontrar um homem que não esteja usando uma jaqueta esportiva preta ou um paletó, mesmo que seja para ir só até a casa de chá mais próxima. E o povo chinês é divertido e engraçado. Que melhor indicador da alegria de viver de um povo do que dizer que ele adora comer? Em todas as cidades, grandes e pequenas, não importa o tamanho, vi placas de néon elaboradas nas entradas do que eu supunha ser salas de cinema ou boates. Eram restaurantes. Comer é entretenimento para os chineses e eles se dedicam a isso com um prazer que não tem paralelo nem mesmo em San Francisco, uma cidade de comilões que só pensam em comida desde a década de 1980.

Em Chengdu, capital de Sichuan, a primeira providência quando cheguei, no que dizia respeito ao meu mediador Fu

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Ching, foi jantar em um dos melhores restaurantes da província. (Sim, por algum milagre na undécima hora, fiz contato com Jia Liming, de Beijing, antigo mediador da National Geographic que, por sua vez, encontrou Fu Ching para mim.) Ele era o meu tipo de mediador. O espetáculo começou assim que sentamos. Uma garçonete apareceu imediatamente, saída de lugar nenhum. Isso já não era o estilo ocidental. Ela e Fu Ching conversaram bastante. Parecia que ele estava interrogando a garçonete sobre cada item, que ela explicava perfeitamente, com um sorriso bem ensaiado. Ela desapareceu e em poucos minutos, como uma acro-bata que troca de máscara tão depressa que não dá para ver para onde a primeira foi e de onde a segunda saiu, reapareceu, aparentemente trazendo tudo que havia no cardápio. Macarrão, agrião com amendoim, frango com um molho apimentado, pato suculento fatiado com pele e cerveja doce Tsingtao. A apresentação e o sabor dos pratos eram dignos de aplausos, mas o mais espantoso mesmo veio na conta. Meu queixo caiu e não foi por excesso de glutamato monossódico. Jantar para dois: cerca de 8 dólares.

A revelação que mais me surpreendeu - e inspirou - também me fez pensar no meu compromisso com o jornalismo cínico, e com o cinismo em geral. Lenta mas firmemente, as semanas de viagem tinham desgastado o meu verniz. É difícil continuar sendo um pecador entre os santos. Eu estava me tornando um crente, ou pelo menos um voluntário para crente. Porque em pequenos momentos eu vislumbrava o renascimento do budismo na China. Talvez nunca tivesse desaparecido nos corações e mentes do povo chinês, nem da privacidade dos lares deles. Mas agora, em um país em que a liberdade de expressão religiosa tinha sido suprimida e punida, as pessoas estavam pouco a pouco saindo do armário budista. Há uma estimativa de mais de 100 milhões de budistas que fazem da China o país onde a religião cresce mais rápido no mundo.

Como cães que apanharam demais, eles faziam gestos arre-dios, talvez encorajados pela exibição na praça Tiananmen em 1989, o povo chinês estava se reunindo com suas raízes budistas. Para mim aquilo representava uma resistência e a característica

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irreprimível da tradição. O budismo chinês no século XXI é a flor de lótus surgindo da lama, um acontecimento tão natural como a própria natureza.

Por exemplo, no meu segundo dia na China, Fu Ching levou-me para ver o maior Buda de pedra do mundo, em Leshan, a oeste de Chengdu. Meu grande amigo Cary Wolinsky, fotógrafo que documentava a China para a National Geographic desde o início dos anos 80, disse que eu devia ver esse Buda. Que eu não ficaria desapontado. E ele tinha razão.

Esculpido em um lado da montanha Lingyun na cidade de Leshan, o projeto de oitenta anos foi terminado em 803 d.C. Sentado, com as mãos gigantescas apoiadas nos joelhos igualmente gigantescos, esse Buda Maitreya, ou o Buda do Futuro, olha para a confluência dos rios Minjiang, Dadu e Qingyi. Embora o lugar fosse obviamente um posto de observação militar estratégico, a história que eu mais gostava era que ele montava guarda sobre o encontro turbulento de correntezas, onde havia muitos relatos de dragões e de acidentes misteriosos com navegadores dos rios. O olhar firme e tranqüilo desse Buda era capaz de acalmar as águas mais violentas e de arrancar as garras dos dragões mais perversos.

Do estacionamento cheio de ônibus de turismo seguimos um grupo de visitantes, a maioria chineses de classe média que pareciam mais turistas apreciando a vista do que peregrinos espirituais. Uma série de pátios cercados por antigos templos de madeira levavam a um precipício, onde multidões se postavam diante da cerca de frente para o Buda para tirar fotografia. Todos eles repetiam um ritual que havia começado há uns 24 anos no máximo, mais ou menos ao mesmo tempo que as câmeras fotográficas se tornaram apetrechos imprescindíveis para qualquer turista de respeito. Se você esticasse os braços de uma certa maneira e o fotógrafo enquadrasse a imagem corretamente, poderia jurar que estava acariciando a enorme bochecha do Buda. Ou então, com a câmera em um certo ângulo, beliscando o nariz dele. Depois de tirar as fotos, todos se reuniam em volta da câmera digital para ver se o momento havia sido capturado para a posteridade. Eu tirei

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O Buda de Leshan,

o maior Buda

Maitreya de pedra

do mundo, perto de

Chengdu.

Fu Ching,

o mediador

de Chengdu,

extremamente

parecido com

o Buda.
uma foto do perfil de Fu Ching, um cara com as maças do rosto salientes, de 30 e poucos anos, com a cabeça quase toda raspada, de modo que o rosto dele ficasse lado a lado com o do Buda. Estudando a foto mais tarde em casa, vi a extraordinária semelhança da estrutura óssea de Fu Ching com a do Buda. Vi claramente que o modelo daquele Buda era um rosto chinês clássico. Também vi claramente que essa estátua podia ter sido um perfil do Mickey Mouse, para algumas pessoas que estavam lá. Elas se empolgavam muito mais com o feito de engenharia da construção daquela estrutura monstruosamente grande.

Aquela era um pouco da cultura chinesa, uma verdadeira "atração" turística. O homem que deu-lhes um meio para amenizar o sofrimento era a última coisa em que pensavam. Pelo menos foi isso que pensei.

Da beirada as pessoas foram andando em fila única e desceram uma escada íngreme escavada na face da montanha que data de quando a estátua foi feita. Agora os degraus estão protegidos por gradis nos quais as pessoas se apoiam para não cair. As minhas mãos estavam doendo quando cheguei à base de concreto lá embaixo, onde as pessoas se juntaram e tiraram mais fotos. De lá olhei para cima e vi as narinas do Buda a 71 metros de altura. Andando pelo meio das pessoas que tiravam fotos avistei duas adolescentes que também olhavam para cima maravilhadas, e isso indicava que talvez elas estivessem vendo o que eu também via: uma homenagem a um grande homem. Primeiro pensei que estavam atônitas com o tamanho do Buda que se avolumava sobre as nossas cabeças. Mas enquanto as observava, vi que pareciam ignorar completamente o mundo à sua volta, hipnotizadas, como se envoltas por uma bolha do outro mundo. Elas ficaram olhando para cima um tempo enorme e até inadequado, com sorrisos embevecidos ocupando seus rostos maravilhosamente redondos. Percebi que os chineses vão ver lugares históricos e culturais como aquele, maravilhas da construção, mas que saem com uma curiosidade: Quem era aquele cara? Há algo de universalmente atraente na imagem simples do Buda, grande ou pequena. Depois ela nos chama para algo mais profundo. Observando aquelas mulheres

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descobri que ali, um dos países em que a religião foi mais reprimida no mundo, o budismo ia renascer.

Tive outra dessas miniepifanias na província de Shaanxi quando observei um grupo de cerca de vinte mulheres andando de uma estátua de Buda para outra no templo Fa Men, que abriga o que nos disseram ser uma relíquia autêntica do dedo de Buda. A relíquia foi encontrada só em 1987, no porão de um pagode depois que a construção ruiu. Desde então os ônibus de turismo levam mais de seis mil pessoas por dia para visitar o admirado dedo, que fica numa caixa de ouro enfeitada, protegida por uma caixa de vidro. As mulheres, por volta dos 50, 60 anos de idade, seguiam uma outra mulher em torno das paredes do templo, copiando escrupulosamente os movimentos dela, enquanto ela dava instruções sobre os rituais mais básicos do budismo, onde pôr os pés, como juntar as palmas das mãos, como se curvar e acender o incenso, que palavras recitar e a resposta para alguns porquês. Mais tarde, quando me apresentei, elas disseram que eram vizinhas que viajavam juntas com freqüência para lugares budistas importantes. Alguns meses antes tinham ido de trem para uma montanha sagrada budista. Elas poderiam ser o grupo que jogava majong com a minha mãe num passeio até o museu.

— Lembro-me dessas coisas de quando eu era pequena — uma das mulheres explicou com tradução do meu mediador. - Só que... - Ela deixou a frase incompleta e eu vi uma tristeza arrependida nos seus olhos. Sabia que ela estava se referindo ao período da Revolução Cultural quando o governo fechou os mosteiros e proibiu as práticas religiosas, e ela sabia que eu sabia. - Ficamos felizes de aprender de novo essas tradições dos nossos antepassados.

Erik Zürcher, historiador holandês, expressou melhor no título do seu livro de 1959 The Buddhist Conquest of China: The Spread and Adaptation ofBuddhism in Early Medieval China (A conquista budista da China: expansão e adaptação do budismo nos primórdios da China medieval). Será que esse título foi humor irônico de holandês? Budistas chamados de conquistadores? O que,

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brandindo seus palitos de incenso como espadas? Tropeçando em seus mantos, dizimando os inimigos com caules de lótus, quebrando seus votos de não violência? Certamente que não! Mas o budismo "conquistou" a China do mesmo modo que "conquistou" os países que eu já tinha visitado. Segundo ele: "Desde o início, o corpo da doutrina estrangeira foi reduzido aos elementos sujeitos à adaptação e incorporação, por terem real ou suposta congruência com idéias e práticas chinesas preexistentes. O resultado desse processo intenso e contínuo de seleção e hibridização é amplamente divergente do conteúdo das escrituras importadas que foram copiadas com tanta fidelidade, memorizadas e recitadas pelos devotos chineses."



Essas "idéias e práticas chinesas preexistentes" eram o confucionismo e o taoísmo, introduzidos pelos outros heróis da Era Axial, Confúcio e Lao-Tzu. As "religiões tradicionais chinesas" de hoje misturam essas duas, e somam também o animismo, tote-mismo, adoração de deuses locais e, agora, o budismo. (A religião tradicional chinesa conta com 405 milhões de seguidores e é a quarta maior religião do mundo, atrás do cristianismo com 2,1 bilhões, islamismo, com 1,3 bilhão e o hinduísmo, com 870 milhões.) Em alguns círculos chineses o budismo ainda é considerado produto estrangeiro importado, dois mil anos depois da chegada dele aqui.

Essa hibridização parece que atingiu seu apogeu na China, criando uma espécie robusta e resistente, e isso talvez explique de que modo o budismo sobreviveu a tantas tentativas de matá-lo aqui na China. Pensei nessa analogia quando espiava pela janela de um ônibus de turismo que subia uma das quatro montanhas chinesas que são sagradas para os budistas, o monte Emei, não muito distante do Buda de Leshan. No meio de um nevoeiro cada vez mais denso, eu olhava para as espessas touceiras de bambu balançando aos rodopios do vento, um dragão que ondulava em muitos tons de verde. O budismo é como o bambu, pensei. O grupo mais diverso da família das gramíneas, o bambu se curva com os ventos, em vez de resistir e se partir. É uma das plantas que mais rápido crescem no planeta, alguns tipos chegam a crescer um

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metro por dia, enquanto espalha quilômetros de raízes subterrâneas. A árvore das tradições judaico-cristas seria o carvalho, considerado sagrado pelos gregos, venerado pelos druidas, dedicado ao deus Júpiter pelos romanos. As antigas culturas eslava e nórdi-ca consideravam o carvalho o deus do trovão, já que costumava ser alvo dos raios com maior freqüência do que outras árvores. O carvalho cresce lentamente e, apesar de muito robusto, seus galhos se quebram com facilidade com uma ventania forte de nordeste. Os bordos e as castanheiras com as quais cresci definiam não só solidez, mas rigidez, invencibilidade e imobilidade, como os dogmas do cristianismo, do catolicismo e do judaísmo.



Quando cheguei ao topo, ao pico Jinding, 3.077 metros acima do nível do mar, do qual me disseram que se tinha a vista mais magnífica de toda a China, o nevoeiro era o mais denso que eu já tinha visto, e eu tinha morado em San Francisco. De uma plataforma que, não posso relatar, dava para uma paisagem de tirar o fôlego, eu não via nada além de um metro do nariz.

Algumas das maiores velas com incenso que o autor viu na China, no topo do monte Emei, uma das quatro montanhas chinesas

que são sagradas para os budistas.

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- Eles estavam certos em relação a uma coisa - eu disse para Fu Ching e para o meu fiel gravador. - Esta é a vista zen definitiva: não vejo absolutamente nada.

Exatamente quando o budismo chegou, hoje em dia já é uma história bem conhecida: não temos certeza.

- De fato, não se sabe quando o budismo entrou na China -confessa o dr. Zürcher.

Ele especula que deve ter se infiltrado pelo noroeste e para o resto do pais entre a primeira metade do século I a.C. e meados do século I d.C. Ele relata a existência de uma comunidade de monges budistas e laicos em 65 d.C. que está atualmente na província de Shandong, no litoral leste da China.

Por onde entrou sabe-se um pouco mais. Junto com o comércio e a migração, a Rota da Seda, a rodovia internacional mais antiga do mundo, era a rota que espalhava o budismo pela Ásia Central. Essa rota começava no noroeste da índia, fazia uma curva para o leste através dos modernos Afeganistão, Paquistão, Ásia Central e entrava na China. Seguindo basicamente a passagem setentrional que cruza o cimo da cordilheira do Himalaia, o budismo pegou carona com o fluxo constante de mercadores, missionários, mercenários e nômades que ligavam o Oriente e ao Ocidente desde que abriram a Rota da Seda no século II a.C.

A versão mais apócrifa da chegada do budismo é que por volta do ano 65 d.C. o imperador Ming da dinastia Han oriental sonhou com um homem de ouro com quase quatro metros de altura. A luz da cabeça do homem iluminava todo o salão. De manhã os conselheiros de Ming identificaram essa figura como o Buda, o deus do oeste. O imperador enviou emissários para a índia a fim de saber mais sobre esse Buda. Em 67 d.C. os emissários puseram as escrituras em sânscrito, um retrato do Buda e dois monges indianos sobre um cavalo branco e retornaram para Luoyang. Quando construíram os aposentos para os monges no templo no ano seguinte, rebatizaram-no com o nome de templo Baima (Cavalo Branco). O templo Baima em Luoyang, na

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província de Henan, é tradicionalmente considerado o primeiro templo budista na China, apesar de o dr. Zürcher fazer questão de destacar que as fontes contemporâneas não fazem referência ao templo Cavalo Branco até o fim do século III.



No fim do século I da Era Cristã uma comunidade religiosa se estabeleceu em Luoyang, que então era a capital. A partir daí a comunidade budista cresceu continuamente. No fim da dinastia Han uma atmosfera de inquietação política pode ter contribuído para a receptividade de uma nova religião. Por volta de 514, havia dois milhões de budistas na China. O budismo atingiu o ápice de sua popularidade na China durante as dinastias Sui e T'ang (581-907). Entretanto, em 845 d.C. o imperador Wuzong, sob a influência de conselheiros taoístas e confucionistas, começou a perseguir todas as religiões exógenas, inclusive o budismo. De acordo com registros da época, 4.600 mosteiros budistas foram arrasados, uma quantidade enorme de obras de arte de valor inestimável destruída, e 260 mil monges e monjas foram obrigados a voltar para a vida laica. O budismo nunca mais se recuperou totalmente.

No período derradeiro da China imperial - que vai desde a dinastia Sung (960-1279) até o fim da dinastia Ch'ing (1644-1912), o declínio do budismo continuou. Apesar da influência na cultura chinesa ser penetrante, como se pode ver nas artes e na literatura, o budismo estava retrocedendo como empenho intelectual. "O desvio do interesse da elite chinesa para longe do budismo e na direção do confucionismo, como foi formulado por seu grande sistematizador, Zhu Xi (1130-1200), foi a ortodoxia oficial do estado no século XIV", escreve Mario Poceski, professor assistente de estudos budistas do departamento de religião da Universidade da Flórida, em The Encyclopedia of Buddhism {A enciclopédia do budismo). "Em grande parte o budismo depois desse ponto assumiu uma postura conservadora, uma vez que não havia emergência de qualquer nova tradição importante ou mudanças paradigmáticas significativas."

Um exemplo de trivialidade sobre Buda daquela época. Sabe aquele Buda barrigudo que costumamos ver à entrada dos

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restaurantes chineses? O mesmo que vemos enfileirados nas lojas de lembranças do bairro Chinatown, ou os amuletos? O próprio que enfeita a capa deste livro? Esse não é "o" Buda. Ele é um Buda e, é claro, existem versões factuais e fictícias que se misturam em uma só. Eis a história; que cabe a qualquer pessoa determinar se é verdade ou não. Depois da onda de perseguições na segunda metade da dinastia T'ang, o budismo decaiu como religião protegida pelo estado quando demonstrava a grandiosidade do governante. Até então alguns imperadores chegavam a afirmar que eram o Buda reencarnado. O budismo passou a ser a religião do povo comum. Entre os monges que viajavam pelo país, levando todos os seus bens mundanos em sacolas de cânhamo, havia um monge Ch'an excêntrico que viveu há mais de mil anos e que era chamado de Hotai ou Pu-tai. Nas culturas budista e xintoísta ele era mais conhecido como o Buda que Ri, ou o Buda Risonho. Devido à natureza benevolente desse monge, ele passou a ser considerado o Maitreya, o Buda do Futuro. Hotai andava por aí aliviando a tristeza dos povos deste mundo.

O Buda Risonho tornou-se uma divindade de contentamento e abundância, e é considerado o santo padroeiro dos restaura-teurs, dos adivinhos e atendentes de bar, assim como dos fracos, dos pobres e das crianças. O saco de pano ou de linho (que jamais fica vazio) é cheio de itens preciosos, inclusive arroz (que indica riqueza), balas para as crianças, alimentos ou os infortúnios do mundo. A barriga exposta dele simboliza a felicidade, sorte e plenitude. O pote de mendicância, que muitas vezes é visto junto com ele, representa sua natureza budista. Em algumas cenas o Buda que Ri é visto sentado num carrinho puxado por meninos ou segurando um leque chamado de oogi, que dizem ser um leque que "concede desejos". Quem esfrega a grande barriga recebe riqueza, sorte e prosperidade.

Voltemos à nossa história. Quando a China entrou na era moderna e passou a sofrer influência crescente do Ocidente, aquelas questões da superstição que tinham se tornado parte do budismo por meio de crenças religiosas mais antigas foram consideradas ultrapassadas. No fim da era imperial o dr. Poceski obser-

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observa: "A incapacidade da China de reagir adequadamente aos desafios da modernidade - violentamente postos na soleira de suas portas pelo crescente abuso do poder colonial no território chinês no século XIX - levou à erosão e finalmente à desintegração de suas antiqüíssimas instituições sociais e políticas."

Foi em períodos assim tumultuosos e de auto-analise dura que eu vi o budismo reflorescer em outras culturas e em outras épocas, por isso não fiquei surpreso ao ler que o budismo ensaiou uma pequena reação diante daquela nova provação. Um movimento mais retro do que reformista enfatizava a meditação Ch'an e a reflexão filosófica. Um ramo progressista também criou instituições de ensino que abraçaram o pensamento moderno.

E então, em 1949, veio a República Socialista da China, sob o comando do Partido Comunista, ideologicamente contrário a crenças religiosas tradicionais. O esforço na década de 1950 foi no sentido de controlar e restringir as atividades budistas, e o estado de fato assumiu o controle das organizações budistas. Com a Revolução Cultural que teve início em meados dos anos 60, a violenta supressão do budismo era a ordem do dia. O Livro Vermelho do presidente do Partido Comunista Mao Zedong, oficialmente intitulado de Citações do presidente Mao Tsetung (Tsetung era a forma de escrever em inglês na época), tornou-se a Bíblia, o Cânone Pali e o Corão do país, tudo junto em um só, para os legalistas do partido. No capítulo sobre disciplina, em vez das Quatro Verdades Nobres, ele oferecia as próprias verdades nem tão nobres e não negociáveis.



Precisamos reafirmar a disciplina do partido, a saber:

(1) o indivíduo é subordinado à organização;

(2) a minoria é subordinada à maioria;

(3) o nível mais baixo é subordinado ao nível mais elevado; e

(4) todos os membros são subordinados ao Comitê Central.

E no lugar das Três Jóias do Buda, temos...

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Três regras principais de disciplina de Mao

(1) Obedecer às ordens em todos os seus atos.

(2) Não tirar uma única agulha ou fio de linha das massas.

(3) Entregar tudo que for capturado.

E em vez do Caminho Óctuplo, temos...

Oito pontos de Mao que exigem atenção

(1) Fale com educação.

(2) Pague o verdadeiro valor do que compra.

(3) Devolva tudo que pegar emprestado.

(4) Pague qualquer coisa que danificar.

(5) Não bata nem xingue as pessoas.

(6) Não danifique as plantações.

(7) Não tome liberdades com as mulheres.

(8) Não maltrate os prisioneiros.

"Na época parecia que os vinte séculos de história budista na China podiam estar chegando ao fim", escreve o dr. Poceski.

Em 1979 as coisas mudaram. Sob Deng Xiaopíng, presidente da Comissão Militar Central do Partido, que lhe dava controle do Exército de Libertação do Povo, uma nova política para o comércio exterior se abriu e com ela houve a troca de idéias com o Ocidente, uma perigosa influência no que dizia respeito ao partido no governo. A "abertura", como é chamada, simplesmente libertou os chineses para serem mais expressivos individualmente. Assim como o mercantilismo havia levado o budismo para a China através da Rota da Seda, foi o livre-comércio que talvez tenha impelido os líderes políticos da China a relaxar as restrições religiosas, especialmente sob os holofotes vigilantes das agências internacionais de direitos humanos brilhando sobre eles. Em 1989, a imagem simbólica de um homem em posição de sentido diante de um tanque militar hipnotizou o povo da China.

Essa mudança paradigmática foi um terremoto na República Popular da China. Com ela vieram as reformas religiosas, pelo

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menos no papel. Por exemplo, um decreto de 1997 chamado "Liberdade de Crença Religiosa na China", do Serviço de Informação da República Popular da China do Conselho de Estado, é a clássica linguagem com duplo significado da Nova Ordem Mundial. Admitindo que a Revolução Cultural "teve um efeito desastroso em todos os níveis da sociedade na China, inclusive na religião", ele procura retificar essas questões. O documento continua: "Mas no curso da correção dos erros da 'revolução cultural', os governos empenharam todos os esforços, em todos os níveis, para reviver e implementar a política da liberdade de crença, para compensar as injustiças, falsidades ou erros impostos sobre os indivíduos religiosos, e reabrir locais para as atividades religiosas." E apesar de citar as seiscentas igrejas protestantes que reabriam a cada ano desde os anos 80, as 18 milhões de cópias da Bíblia e as mais de 8 milhões de cópias de um hinário do Conselho Cristão da China que permitiram publicar, os 126 bispos católicos ordenados e os novecentos jovens padres católicos consagrados pela Igreja Católica chinesa, não menciona qualquer permissão para o budismo. O objetivo de tais gestos de liberdade religiosa se torna claro: "O governo chinês apoia e incentiva os círculos religiosos a promoverem a união dos fiéis religiosos para participar ativamente da construção do país." Em outras palavras, desde que as religiões possam servir aos objetivos da República Popular, receberão apoio. Esse e outros decretos deixaram mais que evidente que cada uma e todas as organizações religiosas devem se reportar ao Bureau de Religião do governo.



Eu também tive muita dificuldade para engolir como "verdade" naquele documento o seguinte: "Na China todas as religiões têm o mesmo status e coexistem em harmonia. As disputas religiosas não acontecem na China. Os fiéis religiosos e os que não têm crença se respeitam uns aos outros, estão unidos e mantêm relações harmoniosas."

Será que os que escreveram esse documento tinham ouvido falar do Tibete e da aniquilação sistemática do budismo... e dos budistas lá? Segundo o governo do Tibete em exílio, desde 1949 mais de seis mil mosteiros e centros culturais budistas tibetanos

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foram destruídos e 1,2 milhão de tibetanos morreram na prisão, pela tortura, fome e guerra. Falando como um budista, eu diria que isso era obviamente uma questão de duas pessoas vendo a mesma situação de pontos de vista diferentes. Só que falando como o presidente do Bureau de Verificação da Realidade, eu diria que um de nós dois está mentindo. E agora pergunto a você: um monge tibe-tano mentiria? Sua Santidade o Dalai Lama seria capaz de mentir? A Associação Budista Chinesa, fundada em 1953 como união de todas as ramificações do budismo chinês ("uma organização patriótica e educativa", como explicava o boletim da imprensa que me deram), ofereceu-me essa avaliação de 2003, segundo eles: 8.400 mosteiros do budismo Han na China continental e 50 mil monges e monjas; três mil mosteiros tibetanos e 120 mil monges e monjas; e 1.600 mosteiros do budismo sulista, com oito mil monges. Quando voltei para os Estados Unidos procurei conferir esses números com o Human Wrights Watch/Asia, mas me disseram que não havia como refutar ou corroborar esses números, já que obter informação confiável do Bureau de Religião da China, que supervisiona todas as organizações religiosas, na melhor das hipóteses é frustrante. Quando pedi ajuda para um dos pesquisadores da National Geographic, ele mandou um e-mail de um diretor de equipe da Comissão Executiva do Congresso sobre a China, em Washington, D.C., que ilustrou ainda mais a atitude evasiva das autoridades chinesas nessa área: "Obrigado pelo seu interesse... o senhor pergunta como entrar em contato com Ye Xiaowen, Diretor-geral da Administração Estadual [da China] de Relações Religiosas (SARA). Apesar de termos nos reunido com o diretor-geral Ye várias vezes, temos informações conflitantes sobre se é melhor escrever ou telefonar para ele." (Os cartões de visita dele exibiam endereço diferente de fonte com base na Internet.) "Nós não temos seu endereço de e-mail atual. O que aparece em seu cartão de visitas está riscado..."



Por falar em comunicação aberta depois da abertura... O subsídio do governo a um número de projetos arqueológicos e empreendimentos culturais budistas poderia facilmente ser considerado consistente com as afirmações deles de apoio à liber-

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dade religiosa. Recebi a motivação mais importante por trás desses esforços com grãos de sal do tamanho de pedras. Por exemplo, por que o governo se refere a projetos que descobrem locais ou achados arqueológicos budistas como "relíquias culturais", um nome espiritualmente benigno, em vez de "relíquias religiosas"? De qualquer modo, estão investindo em pesquisa, aprimorando a compreensão da história do budismo na China.

Em Beijing fui serenado por uma banda de um templo budista, uma tradição musical que tem oitocentos anos e que pode ser salva da extinção com o apoio da Associação Chinesa de Tecnologia de Proteção de Relíquias Culturais. No Templo Zhihua do século XV onde eles se apresentavam, os músicos me contaram depois que eles eram os últimos de uma espécie em extinção. Havia apenas um aluno jovem, adolescente, que atualmente estudava os instrumentos antigos para levar adiante a tradição. Eles tinham esperança de que houvesse mais interesse. Como eu fui baterista a vida inteira, pedi para entrar na banda e toquei um tambor vermelho de madeira de um metro de altura apoiado no chão entre as minhas pernas. Todos concordaram que apesar de eu dar boas baquetadas, não iam contar comigo para salvar essa tradição. Em outra ocasião, na província de Sichuan, eu me debrucei como o Homem Aranha na beirada de um rochedo em Guan-gyuan, nas estátuas dos Mil Budas do Penhasco, e fiquei olhando o lamacento rio Jialing lá embaixo. Ao meu lado, a arqueóloga Lei Yu Hua explicou de que modo suas descobertas agora esclareciam a importância daquela região na expansão do budismo ao longo da Rota da Seda para o interior da China central e mais além. Ela logo fez propaganda do seu empregador, o Instituto de Arqueologia e Relíquias Culturais da Cidade de Chengdu, braço oficial e beneficiário financeiro do governo chinês.

Já tinham me dito antes de eu ir para a China que hoje em dia os mosteiros budistas, sob o controle do governo comunista, tinham se transformado mais em museus e atração turística. E eles são isso, tanto para os visitantes do Ocidente como para os chineses, mas enquanto observava o povo do lugar acendendo incenso, curvando-se três vezes diante de cada estátua, pensei que mais

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Tocando na banda que apresenta a antiga música dos templos budistas, no Templo Zhihua do século XVem Beijing. A tradição musical de oitocentos anos pode ser salva da extinção com o apoio da Associação Chinesa de Tecnologia de Proteção de Relíquias Culturais.

cedo ou mais tarde, cumprindo todo esse ritual, mesmo que por hábito no início, os chineses estariam regando o jardim budista.

Não faz muito tempo que a frase "desenvolvimento do turismo chinês" seria lida como oxímoro. Em 1978 um total aproximado de 10 mil turistas visitou a China. No ano de 1988, esse número já havia subido para 4,3 milhões. De acordo com a Organização Mundial de Turismo, 41,8 milhões de pessoas visitaram a China em 2003, quarto lugar no mundo. Em 2004 esse número cresceu 48 por cento.

Como qualquer turista, eu estava ansioso para visitar o que foi apelidado de a Disneylândia dos mosteiros budistas. E pelos motivos lá dele, Fu Ching também estava.

O mosteiro Shaolin é um templo do século V (construído em 497 d.C.) na mata do sopé do monte sagrado Song {"shaò"

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significa montanha, "lin" significa mata). Nesse lugar um monge indiano chamado Ba Tuo começou a ensinar uma prática chamada de budismo hinayana, que defendia a busca da simplicidade e do desapego e o estudo das escrituras antigas dos ensinamentos do Buda. Mais tarde, por volta do ano 520, outro monge indiano, Bodhidharma, chegou ao templo e começou a ensinar o budismo mahayana, que os chineses batizaram de Ch'an (quando migrou para o Japão tornou-se zen), Essa prática se concentrava mais na meditação do que na leitura das escrituras. Quando Bodhidharma viu que os monges €estavam fisicamente fora de forma por ficarem o tempo todo sentados com os narizes enfiados nos textos em sânscrito, desenvolveu um regime de exercícios chamado de Dezoito Mãos de Lohan, para dar-lhes o vigor que iam precisar para enfrentar as longas horas de meditação. Ele também queria armá-los com um sistema de defesa contra os salteadores cruéis que vagavam pela região. E essa iniciativa evoluiu para o que hoje conhecemos como kung fu.



A primeira exposição de muitos norte-americanos ao kung fu foi através da série da televisão Kung Fu, que foi ao ar pela primeira vez em 1972. O astro dos filmes, David Carradine, encenava um monge do mosteiro Shaolin no século XIX que, depois de vingar a morte do seu mestre, foge da China para o oeste norte-americano, onde é perseguido por caçadores de prêmios. Isso gerou uma proliferação de filmes kung fu e evoluiu para os movimentos graciosos, apesar de alimentados pela testosterona, criados pelo coreógrafo de Hong Kong, Yuen Wo Ping e usados em O tigre e o dragão {Crouching Tiger, Hidden Dragou), Matrix e em Kill Bill. Ele, Quentin Tarantino, Uma Thurman, Jackie Chan, Jet Li e Carradine deviam se prostrar diariamente diante de uma estátua de Bodhidharma.

Para os chineses, o interesse por kung fu teve seu ápice com o filme Shaolin Monastery de 1982, cuja trilha sonora quase todo menino chinês e muitas meninas também sabem de cor (aliás, os termos mosteiro e templo são sinônimos). Fu Ching cantou a letra da música para mim no caminho do aeroporto para Dengfeng, a cidade na província de Henan a cerca de 10

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quilômetros do mosteiro. Cantou em chinês, mas meses depois enviou a tradução (tradução dele):



Shaolin, Shaolin, reverenciado por tantos heróis do mundo inteiro.

Shaolin, Shaolin, sempre lido por suas histórias sobrenaturais.

A exótica arte marcial... sem igual! O mundo se deslumbra com

Shaolin. A longa história, de longa data, o belo e resplandecente Shaolin. Mosteiro milenar, lugar enfeitiçado: monte Song Shan e vale profundo

e silencioso. Todos anseiam. Cidade natal das artes marciais, belo lugar, bem conhecido sob o sol,

deixa um bom nome para sempre. Bem conhecido sob o sol, deixa um bom nome para sempre. Bem conhecido sob o sol, deixa um bom nome para sempre... Shaolin, Shaolin, Shao... lin, Shao... lin...

- Todos os meninos da minha idade, os pais se preocupavam se o filho ia fugir para entrar para o mosteiro depois de verem aquele filme - ele me contou quando éramos levados para conhecer um verdadeiro monge Shaolin na vida real. - Muitos fizeram isso. E eu também fiz planos. Mas meus pais eram muito rígidos e disseram que iam impor um castigo terrível se eu fugisse. - Ele deu uma risada.

Mas eu não estava rindo enquanto observava o nosso motorista cantar pneu no tráfego intenso - intenso porque a venda de carros novos tinha se elevado 82 por cento em 2003, e 11 por cento em 2004 na China. "Cantar pneu" devia constar do manual do motorista chinês porque esse era o estilo de todos os motoristas nas ruas. Esse comportamento devia se basear neste princípio: "Se eu fingir que não vejo você cantando pneu na minha frente quando dobro a esquina cantando pneu sem parar nem olhar para a esquerda ou para a direita, então você terá de parar, ou o seu carro virá cantando pneu para cima do meu." Baseado no que eu via pelo pára-brisa, não fiquei surpreso de ler mais tarde que o número de pessoas mortas nas estradas chinesas tinha aumentado

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cinco vezes desde 1985. Em 2003, mais de 104 mil chineses morreram em acidentes de trânsito, mais que o dobro do total nos Estados Unidos, apesar dos Estados Unidos terem quase nove vezes o número de veículos rodando pelas estradas. Eu rapidamente apelidei isso de "direção kung fu". Esse comportamento parecia tão contraditório com os ensinamentos budistas de altruísmo e compaixão que fiquei imaginando se os professores de auto-escolas eram não budistas treinados nas piores ruas maquiavélicas dos Estados Unidos... em Boston. Sentar no banco de trás foi uma prova para o meu desejo de controlar não só o carro, mas todos os outros carros na estrada. Apesar de observar a minha respiração, ouvi a mim mesmo berrando obscenidades. Devo ter deixado um buraco no chão do carro onde instintivamente apertava o pedal do freio que não estava lá.

Por algum milagre conseguimos chegar a salvo em Dengfeng. O meu filme sobre essa cidade ia se chamar Crouching Tourism Boom, Hidden Agenda (Armar o bote para a explosão do turismo, Programa Secreto). Com mais de 1,5 milhão de pessoas visitando o templo Shaolin todo ano, Dengfeng se beneficiou com essa onda kung fü, ao toque de mais de 66 milhões de dólares. Mas além de atrair o eventual aficionado de kung fu,*a cidade também se tornou um ímã para o estudante mais sério da arte marcial. Com um espírito empreendedor característico da nova China, muitos monges que foram expulsos do templo durante a Revolução Cultural montaram escolas de kung fu que hoje são uma verdadeira indústria em crescimento. Há mais de 10 mil alunos chineses de kung fu nas trinta ou mais escolas especiais e centros de treinamento de Dengfeng, onde também aprendem os três Rs da educação primária. Dengfeng é a maior base de treinamento de kung fu do país. Às 4h30 da manhã rodei pela cidade de carro e observei até uma dúzia de grupos de quarenta a cem meninos, com idades que iam dos 8 aos 18 anos, com uniformes de aquecimento, correndo pelas ruas da cidade em formação, a versão moderna dos soldados do Exército Vermelho que poderiam ter corrido daquele jeito quarenta anos antes. Às seis horas faziam exercícios de aquecimento e praticavam os movimentos em locais

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