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sada em ver de que forma a vipassana podia ajudá-la a se conhecer melhor e ao vasto universo que ficava logo ali, depois da cerca alta em volta da casa deles.
— Mas a vipassana não vai muito longe - disse ela. - Por quanto tempo podemos ficar apenas observando nossa respiração?
Ela confessou que estava perdendo a confiança no fato de uma simples meditação poder ser suficientemente profunda para ajudar a encontrar respostas.
Numa pausa da conversa Rohit fez um sinal discreto para que eu o seguisse para dentro da casa. Levou-me até uma prateleira embutida na parede, cheia de velas, incenso, estátuas e quadros coloridos. Os hindus chamam aquilo depuja, ou área de reverência.
- Olhe - disse ele -, esses são os deuses para quem rezamos. Ele apontou para seu Ganesh, o deus elefante, e para outras
divindades do hinduísmo, junto com as fotos ornadas com guir-landas do seu guru.
Uma vez hindu, sempre hindu, pensei. Estava começando a pensar neles do mesmo jeito que uma certa psicóloga de Beverly Hills que eu conhecia, que tinha adotado a última moda espiritual porque tinha ouvido falar dela na beira da piscina no Polo Lounge. Mas o conflito de Charu me comoveu. Ela era muito dedicada à busca das respostas, mas no fundo estava insatisfeita. Apesar da considerável fortuna material que possuía, era pobre espiritualmente.
Para Rohit, um retiro vipassana de dez dias era mais fácil de engolir do que um comprimido de Advil. Para Charu, era menos embaraçoso do que admitir consultas com um psicoterapeuta. Eu via o envolvimento dos dois como um budismo leve, na terra em que o budismo pesado tinha sido inventado. Mesmo assim, curti uma noite de conversa agradável e um jantar servido na espaçosa sala de jantar por uma equipe de cozinha. Depois retirei-me para um quarto com ar-condicionado, uma cama protegida por um bom mosquiteiro, um copo de Courvoisier e O Dhammapada: Citações de Buda ao meu lado.
Na manhã seguinte agradeci a eles educadamente e passei direto do alfa para o ômega do vipassana em termos de disparida-
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de econômica. Fui para um dos bairros mais pobres de Mumbai, os barracões que mencionei antes que tinham sido os campos de trabalho da companhia ferroviária municipal, onde o dr. Jadhav disse que o pai tinha morado. Meu acompanhante, um mestre de vipassana designado pelo contingente de Goenka, apresentou-me a um segmento da sociedade no outro extremo do espectro econômico que pratica a técnica. Mas uma classe tão baixa assim? Vi cantos escuros em que famílias de seis ou mais pessoas dividiam um cômodo e uma cozinha que minha mãe não ia querer ver, muito menos cozinhar nela. Uma família específica atingiu profundamente meu coração, que eu pensava que já estava calejado para esse tipo de encontro. A mulher contou que seu marido alcoólico, violento e desempregado - um homem que desaparecia dias seguidos - tinha ido fazer um retiro de meditação de dez dias e voltou limpo, sóbrio e amoroso, para alegria dela e dos filhos. Ele agora tinha um emprego, e ela se sentia muito grata.
O meu lado que sempre pensa que um pouco mais é um pouco melhor perguntou para ela:
- Então agora que sente que a sua vida em família está um pouco mais estável, com um pouco de dinheiro entrando, existe alguma coisa que queira para tornar sua vida um pouco mais fácil?
Ela olhou para mim confusa, como se eu tivesse acabado de sugerir que um utilitário SUV adaptado seria um tipo mais adequado de transporte para levá-la ao supermercado do bairro.
- Eu tenho tudo que quero, tenho a minha família, tenho o meu Buda. - Ela sorriu entre as lágrimas, e eu não saberia dizer onde as dela terminavam e as minhas começavam.
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5 AINDA DERRAMANDO LÁGRIMAS
Sri Lanka antes e depois do tsunami
Aqueles que sofrem de algum tipo de insanidade se agarram ao próprio ego fantástico, e aqueles que têm uma idéia exagerada do próprio ego são parcialmente insanos. O Nirvana épara o pupilo sóbrio, científico e analítico, que, ao descartar todas as formas de metafísica teológica, cerimônias sacerdotais e idéias niilistas, se esforça muito para levar uma vida ativa evitando o mal, fazendo o bem e purificando seu coração.
- Anagarika Dharmapala de "An Introduction
TO Buddhism", em Maha BodhiJournal, vol. 15,
junho de 1907
Todos tremem diante da violência; todos temem a morte. Veja os outros como iguais, não mate e não faça matar.
- O Buda, ODhammapada
O budismo se alastrou a partir da índia por duas rotas. Para o sul, os navegantes e pescadores o levaram para a Birmânia (atual Mianmar) e para a Tailândia, depois através da Ásia, entrando no sul da China. Ao norte os comerciantes o divulgaram primeiro em Gandhara no noroeste da índia do século II ao século IV a.C, depois para o leste através do sopé das montanhas do Himalaia e ao longo da Rota da Seda até o coração da China nos séculos seguintes.
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Mas antes de tudo isso, a semente do budismo foi transplantada primeiro para o país que na época era chamado de Lanka ("terra resplandecente" em sânscrito), mais tarde Ceilão (na literatura em sânscrito da índia, às vezes era chamado de Simhaladipa, "Ilha dos Leões", ou simplesmente de Simhala, nome do qual deriva a adaptação Ceylon do inglês). No ano 251 a.C. o rei Ashoka, imperador mauryan que se converteu ao budismo depois de uma carreira como um dos governantes mais sanguinários da índia, enviou seu filho Mahinda para o Ceilão como missionário, de acordo com os registros monásticos dos séculos IV e V chamados de Dipavamsa ("Crônica da Ilha") e de Mahavamsa ("Grande Crônica"). Isso torna o país insular que hoje é conhecido como Sri Lanka (apelido, "a lágrima caída"), terra da comunidade budista mais antiga.
Resolvi viajar da índia para Sri Lanka a fim de seguir a migração cronológica verdadeira do budismo. Além disso havia também um exemplo emocionante e contemporâneo do budismo engajado que eu estava ansioso para ver.
A importância de Sri Lanka na história do budismo é imensa e não pode ser subestimada. Quando o rei Devanampiya Tissa (250-c. 207 a.C.) aceitou a Verdade do Buda, ele se tornou um poderoso patrono do budismo e fundou o mosteiro de Mahaviha-ra, que se transformou no centro histórico do budismo Theravada em Sri Lanka. Acontecimentos posteriores também contribuíram para o prestígio de Sri Lanka no mundo budista. Foi no país insular, por exemplo, que os Tripitaka - ensinamentos orais do Buda - foram registrados por escrito pela primeira vez. Diziam que Devanampiya Tissa tinha recebido a clavícula direita do Buda e sua reverenciada bacia das almas do rei Ashoka e que construiu o Thuparama Dagoba, primeiro stupa budista em Sri Lanka, para homenagear essas relíquias muito veneradas. Outra relíquia sagrada, o dente de Buda, ou Dalada, chegou a Sri Lanka no século IV d.C A posse da Dalada passou a ser considerada essencial para a legitimação da realeza cingalesa e se manteve assim até ser capturada e possivelmente destruída pelos portugueses em 1560. A relíquia (considerada por tantos uma relíquia substituta) que é venerada no templo do Dente, Dalada Maligawa, em Kandy, é o elo
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da lendária Lanka com a era moderna. A procissão anual de Perahera, em homenagem ao icônico incisivo, serve como poderosa força de unificação para os cingaleses no século XX. Registram que a filha de Ashoka, Sanghamitta, levou para a ilha um ramo da sagrada Árvore Bodhi de Bodh Gaya, índia. Segundo a lenda, a árvore que cresceu desse ramo fica perto das ruínas da antiga cidade de Anuradhapura, no norte de Sri Lanka. Dizem que a árvore é o ser vivente mais antigo do mundo, objeto de grande veneração para todos os budistas.
A ligação entre religião, cultura, língua e educação, e sua influência conjunta na identidade nacional, tem sido uma força penetrante para os budistas cingaleses que remonta, como podem ver, aos tempos mais primitivos. Devanampiya Tissa empregou a estratégia de Ashoka de unir o estado político com o budismo, sustentando as instituições budistas com os cofres do estado e construindo templos próximos do palácio real para ter um maior controle. Com tal patronato o budismo foi posicionado para evoluir como a expressão maior da ética e da filosofia, da cultura e da civilização cingalesa. O budismo apelava direto às massas e levou ao crescimento de uma consciência cultural coletiva dos cingaleses.
Em contraste com a exclusividade teológica do bramanismo hindu, a abordagem missionária incluía pregação e levava os princípios do Buda direto para o povo. Esse proselitismo teve sucesso ainda maior em Lanka do que na índia e pode ser considerado a primeira experiência da ilha de educação de massa.
O budismo também causou um efeito muito grande no desenvolvimento literário da ilha. O dialeto indo-ariano falado pelos primeiros cingaleses era compreensível para os missionários da índia e facilitou os esforços iniciais de tradução das escrituras. Os literatos cingaleses estudaram pali, a língua das escrituras budistas, e assim influenciaram o desenvolvimento do cingalês como linguagem literária.
Tudo isso, infelizmente, camuflou o inevitável conflito entre as populações cingalesa e tâmil da ilha. Com 75 por cento dos habitantes de Sri Lanka de descendência cingalesa, os tâmeis são uma minoria óbvia e representam 18 por cento. Os tâmeis predo-
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minantemente hinduístas descendem dos indianos de Tâmil Nadu, o estado no litoral do extremo sudeste da índia, do qual um exame no mapa sugere um pedaço partido em algum longínquo cataclismo geológico, fazendo com que deslizasse 30 milhas para o mar. Isso é confirmado por um estudo das placas tectôni-cas que apareceu em A Country Study: Sri Lanka, publicado pela Federal Research Division da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos em 1988. Consta que quase todo o sul da índia fazia parte de uma única extensão de terra meridional chamada de Gondwanaland. Cerca de 200 milhões de anos atrás iniciou-se esse processo com as forças dentro da crosta da terra separando os territórios do hemisfério Sul e uma placa dessa crosta que sustentava a índia e o Sri Lanka moveu-se para o nordeste.
"E razoável supor que um país que ficava a apenas 30 milhas da índia e que seria avistado pelos pescadores indianos todas as manhãs quando partiam em suas embarcações para a pesca seria ocupado, assim que o continente fosse habitado por homens que sabiam navegar", comentou o historiador cingalês e acadêmico de Cambridge Paul Peíris no Journal ofRoyai Asiatic Society, Ceylon Branch.
Mesmo assim isso não dissuadiu cada um dos dois grupos de afirmar e exigir direitos como governantes dessa terra e de declarar guerra para provar isso em toda a história do país.
Os cingaleses merecem o crédito por terem desenvolvido um sistema inovador de engenharia hidráulica de reservatórios interligados (ou "tanques") e canais de irrigação nas regiões centro-norte de Sri Lanka que sofriam com as secas desde 500 a.C. Como a atividade agrícola na antigüidade - principalmente a cultura do arroz — dependesse das chuvas imprevisíveis das monções, os cingaleses construíram canais, reservatórios e tanques de água para irrigar suas plantações. Essas primeiras tentativas de engenharia revelam a compreensão brilhante que esse povo antigo tinha dos princípios hidráulicos e da trigonometria. A descoberta do princípio da torre de comporta ou poço de comporta para regular a vazão da água é creditada à genialidade dos cingaleses há mais de dois mii anos. No sécu/o I d.C. diversas obras de irrigação em grande escala já estavam prontas.
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Ocupada pelos portugueses no século XVI e pelos holandeses no século XVII, a ilha foi cedida aos ingleses em 1796, tornou-se parte da colônia da Coroa em 1802 e foi unificada sob o governo britânico em 1815. Como Ceilão, declarou sua independência em 1948; e seu nome foi mudado para Sri Lanka em 1972.
Em 1956 o pós-colonial Sri Lanka legalizou o cingalês como única língua oficial (era o inglês até essa data). Isso funcionou para excluir os tâmeis dos cargos públicos e de outros postos-chave, e bloqueou as oportunidades de educação e de outros direitos da cidadania. O fato de o homem que impôs a legislação, o primeiro-ministro S. W. R. D. Bandaranaike, herdeiro de nobre família cingalesa, ser um budista convertido, era irrelevante. Era mesmo? Essa mudança que ele promoveu na política coincidiu com o aniversário de 2.500 anos da iluminação do Buda, motivo de grandes comemorações no Sri Lanka. Protestando contra essa política, os destituídos tâmeis hinduístas promoveram tumultos nas ruas. Cingaleses da linha dura retaliaram com violência por atacado. Em 1959 — e quando li isso quase deixei o livro cair -Bandaranaike foi assassinado com um tiro disparado por um monge budista supostamente desequilibrado.
E desde então tem havido um equilíbrio delicado. Tensões entre os cingaleses majoritários e os separatistas tâmeis explodiram em guerra em 1983. Um grupo separatista em luta pela igualdade tâmil, se não a independência mesmo, coalesceu e gerou os Tigres da Liberação da Eelam Tâmil (LTTE). {Eelam significa "terra natal" em tâmil.) Dezenas de milhares morreram num conflito étnico que continua com a sua podridão. O líder do LTTE, Velupillai Prabhakaran, "é um dos senhores da guerra mais sanguinários e eficientes na extensa lista que temos hoje", escreveu Philip Gourevitch em The New Yorkerem agosto de 2005.
Depois de duas décadas de lutas, o governo e o LTTE formalizaram um cessar-fogo em fevereiro de 2002. Quando cheguei, esse cessar-fogo estava em vigor, mas precariamente.
Agora esses acontecimentos atuais dão à "lágrima caída" um significado que é mais do que geológico. Agora é a lágrima de Buda que chora pelo sofrimento na terra, onde seus ensinamentos
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eram para ser exemplares. Chamam de guerra civil ou guerra étnica, mas é difícil não vê-la como uma guerra religiosa. A grande maioria dos cingaleses é budista. Os tâmeis são, em geral, hinduís-tas. Esse conflito budista-hinduísta mandou para o inferno uma teoria minha que havia sido útil nessa missão. Na minha proposta eu havia sugerido que o budismo devia estar fazendo alguma coisa muito bem. Como justificativa, desafiei meus editores da National Geographic a citar uma guerra no mundo de hoje - um mundo, como outros já observaram, no qual toda guerra é, no fundo, uma batalha entre facções religiosas - que estivesse sendo travada por budistas. Sri Lanka contradisse a minha afirmação.
Eu sabia muito pouco sobre as lutas internas do Sri Lanka quando meu avião pousou no aeroporto de Colombo. Fui surpreendido pela mudança de cenário: a água turquesa, as praias de areia branca, as palmeiras suavemente curvadas pelo vento. No mais completo contraste com a intensidade prolífica da índia, aquilo evocou imediatamente lembranças de ilhas tropicais tranqüilas do meu passado e relaxei naturalmente. Sim! Vamos nessa/Tudo aquilo encobria a turbulência que existia logo abaixo daquela superfície ilusória.
Hoje os peregrinos e turistas viajam pelo que é chamado de Triângulo Cultural, um circuito muito procurado no centro geográfico do país definido pelas três antigas capitais, uma em cada vértice: a primeira capital do país, Anuradhapura (do século V a.C. até o século XII d.C), Polonnaruwa (século X ao século XII) e Kandy (século XVI ao século XIX). Eu queria ver as três, mas primeiro, depois de aterrissar na capital atual de Colombo, a minha peregrinação me levou para a cidade de Moratuwa, a uma hora de carro pelo litoral. Lá encontrei um homem que é comparado a Mahatma Gandhi, Martin Luther King Jr. e a Sua Santidade o Dalai Lama. Ex-professor, o dr. A. T. Ariyaratne, um homem pequeno com 73 anos de idade, voz de criança e rosto angelical que humildemente nega todas essas comparações — e depois mostra uma sala cheia de citações, placas e prêmios pela sua obra humanitária.
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O dr. Aríyaratne é o fundador do Movimento Sarvodaya Shramadana. "Sarvodaya" é uma palavra criada por Mahatma Gandhi que significa "o despertar de todos". Shramadana quer dizer "dádiva do trabalho". Juntas: "despertar de todos compartilhando a dádiva do trabalho".
A origem foi um programa que ele criou quando era professor de ciências em 1958, que levava os alunos para as áreas rurais por duas semanas a fim de aprender como era a vida no campo. Incorporado em 1972, esse programa se transformou numa "organização política de base popular que é budista", ele me contou no quartel-general do Sarvodaya Moratuwa.
É um sistema abrangente e autônomo que atinge as menores aldeias, oferecendo assistência profissional em todos os serviços
O dr. A. T. Aríyaratne, fundador do Movimento Sarvodaya Shramadana no Sri Lanka, um programa autônomo baseado nos princípios budistas que serve à maioria das aldeias rurais do país. Ele posou para a foto com o autor nos jardins do quartel-general da organização em Moratuwa que fica a uma hora de carro de Colombo.
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sociais imagináveis - desde aprendizado técnico até ajudar a construir e montar equipes de ensino pré-escolar e fundamental, do atendimento médico pré-natal aos cursos que ensinam a criar programas de poupança, da concessão de empréstimos para a construção de poços. Em uma aldeia me reuni a um grupo que oferecia uma ajuda bem concreta, manejando uma foice para capinar uma trilha tomada pelo mato que dava em um campo cultivável há muito negligenciado.
Apesar de se poder encarar esse sistema elaborado de todos cuidando de todos como uma forma de socialismo, filosofica-mente e em termos de organização era tudo estruturado nos ensinamentos do Buda. A guisa de explicação, quando me mostrou o complexo de construções, auditórios, laboratórios com computadores e pátios internos em Moratuwa, o dr. Ariyaratne chamou atenção para um quadro na parede, semelhante ao que se vê no mural da aula de educação cívica no ensino médio. Tudo que é feito e cada programa dentro do projeto correspondem às Quatro Verdades Nobres do Buda: a "aldeia decadente" representa a primeira verdade do sofrimento, o ciclo de ignorância e pobreza naquela aldeia cria o motivo daquele sofrimento, o engajamento construtivo é a terceira verdade que afirma um caminho para escapar do sofrimento e um plano muito bem concebido em todas as frentes que eqüivale à quarta, uma versão do Caminho Óctuplo na construção da comunidade. Percebi que ele havia apelado para sua experiência de professor ao montar as estruturas burocráticas e que depois então fez belos gráficos da organização.
Agora, com recursos de grupos internacionais como Oxfam, UNICEF e CAPvE, assim como financiamentos de sociedades como a Fundação Novartis da Suíça, a Fundação Nipon do Japão e a Norad da Noruega, entre muitas outras, as equipes e os programas de Sarvodaya estão ativos em cerca de 15 mil das 38 mil aldeias que existem pelos cálculos do governo. A organização estima que 11 milhões dos 19 milhões de habitantes do país são beneficiários individuais de diversos programas de Sarvodaya — sendo budistas ou não. O grupo distribui fundos de uma conta de um banco financeiro de 1,6 bilhão de rúpias (16 milhões de dólares).
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- Nós somos a maior organização no país - disse ele, afirmando um fato, não se vangloriando.
Isso faria dele um homem muito poderoso potencialmente, num país que parece estar eternamente em guerra num vácuo de poder.
- Sim - concedeu ele -, desde 1982, cada vez que tem eleição no país os jornais me consideram um candidato azarão.
*i&éf4 CúfíSíaetaao uma ameaça tão grande para o governo durante a administração do presidente Ranasinghe Premadasa, que de 1989 a 1993 foi alvo de ataques e ameaças de morte.
- Eles resolveram que era um risco grande demais me matar. No entanto insistiu que não tem nenhuma aspiração política.
- Lá no topo você pode organizar a ganância, no topo pode organizar o ódio e pode organizar a ignorância também - disse ele. - Mas você sempre pode organizar a verdade quando está no nível da comunidade, de baixo para cima.
"O que nós temos é o poder moral", acrescentou.
Nesse momento, como se seguisse a deixa, foi interrompido por uma ligação do ministro da Segurança Interna do governo, que pedia seu conselho. Era temporada de campanha, e um punhado de monges budistas estava se candidatando a mandatos no Parlamento.
- Isso seria bom, certo? - perguntei. - Monges budistas no governo poderiam assegurar que não haveria corrupção... certo?
Ele discordou.
- Achamos que eles não devem. Devem estar acima disso. Fui o primeiro a me opor à candidatura deles. Tenho certeza que seriam corrompidos pelo poder.
Nos Estados Unidos, em meio a escândalos sexuais e à política do poder dentro da Igreja Católica, supomos que os padres vão acabar acompanhando sua irmandade no legislativo. Mas de monges num país com raízes budistas tão profundas? Essa foi uma observação lamentável sobre o poder de sedução do poder.
Com um mapa diante de nós, o dr. Ariyaratne fez uma rota de excursão pelo interior do país para mim, combinando programas Sarvodaya nas aldeias em primeira mão e também pontos turísticos.
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Em Anuradhapura, um homem alto e magro chamado Vin-sor Kanakaratne, coordenador distrital da Sarvodaya, foi me encontrar no Nuwarawewa Resthouse. O nome do hotel, Nu-warawewa, é o nome do maior tanque em Anuradhapura (com seis quilômetros e meio de comprimento), criado no século II da Era Cristã. Dava para ver o reservatório da janela do hotel, mas estava reduzido a uma mera poça devido a uma seca prolongada.
Quando fomos para as aldeias rurais, Vinsor me contou que Anuradhapura é o maior município do país, com uma população de 900 mil pessoas. Das novecentas aldeias, a metade conta com a presença de Sarvodaya. Quando uma aldeia aceita o conceito Sarvodaya, elege um conselho que consiste em presidente, secretário e tesoureiro. Cada aldeão paga uma bagatela como taxa de associação — duas ou três rúpias por mês — da qual parte vai para uma conta poupança do próprio cidadão e outra parte vai para os cofres da aldeia. Depois de seis meses dessa demonstração de que eles são capazes de poupar dinheiro, os aldeóes passam a ser elegí-veis para um "empréstimo instantâneo" com taxas de juros baixíssimas. Em um ano eles podem obter empréstimo maior.
- A pobreza é o maior problema aqui - disse ele. - Mas conceder empréstimos não é a única coisa que fazemos. Nossa abordagem é holística e inclui construir uma infra-estrutura de autonomia e também psicológica. Nós os equipamos com todos os serviços sociais e treinamento comercial que eles vão precisar para melhorar suas vidas.
De acordo com o Ministério de Relações Exteriores do Sri Lanka, a renda média anual dos cingaleses é de cerca de 870 dólares, 80 por mês. A vida é dura hoje em dia, disse Vinsor. A violência e a seca têm sido um golpe duplo para a sobrevivência dessa gente. Na viagem de carro pude ver que quase todo o campo apresentava um triste tom de marrom e que os lagos estavam completamente secos.
- Não há previsão de chuva — disse ele.
- Quer dizer, para amanhã? - perguntei.
- Não, por meses.
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Vinsor, que tem 52 anos, está com Sarvodaya há 23 e já viveu algum tempo nos Estados Unidos, por isso gostou de praticar seu inglês comigo, falando bem devagar e com dicção precisa. De vez em quando fazia uma pergunta sobre o vocabulário.
- Qual é a diferença entre "percepção" e "perspectiva"? - ele perguntou no meio de uma conversa quando nos aproximávamos da primeira aldeia.
Eu sabia qual era a diferença, intuitivamente, mas diante da necessidade de explicar a distinção para um estudante de inglês como segunda língua, fiquei paralisado nesse meu trilho lingüístico. Como era autoridade, pelo menos naquele carro, arrisquei.
- Perspectiva é o ângulo do qual você olha para alguma coisa. Percepção é o modo como você vê, o seu ponto de vista individual.
Até para mim mesmo pareceu uma explicação fraca e ele me olhou como se eu fosse Webster em pessoa.
- Então talvez "perspectiva" seja o que você vê e "percepção" o que você pensa sobre o que vê.
Mais tarde tive de conferir. O verdadeiro Webster diz que "perspectiva" é "o aspecto com o qual um assunto ou suas partes são visualizadas mentalmente, especificamente: uma visão das coisas (objetos ou acontecimentos) em sua relação verdadeira ou importância relativa". "Percepção" é "consciência do meio ambiente através da sensação física", ou "capacidade de compreender: entendimento, compreensão — sinônimos — penetração, discernimento, discriminação".
Na verdade eu tinha entendido de trás para frente. Será que tinha mesmo? Eu pensava que era uma aula de vocabulário, mas era o Dhamma dele que ensinava para mim. Fiz disso o meu koan (questionamento em forma de paradoxo usado pelo zen-budismo para chegar ao conhecimento intuitivo): "Qual é a diferença entre percepção e perspectiva?" E foi muito útil imediatamente. Embora eu soubesse que estávamos indo visitar aldeias no campo, visualizei uma imagem da chegada a um centro bem pequeno, com lojas e carros e até um pequeno comitê de recepção, ao qual eu já estava acostumado e do qual gostava muito. Mas quando chegamos à aldeia de Nawa Makulewa, fiquei atônito. A estrada
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era uma trilha de gado ampliada. Havia dois ou três barracos... ponto final. A aldeia de 250 habitantes estava com Sarvodaya há quatro anos. Nós íamos comparecer a uma reunião para discutir o programa de poupança da aldeia, mas soubemos que tinha havido uma morte em uma das famílias e por isso a reunião fora cancelada. Em vez disso fomos procurar o tesoureiro da aldeia, um fabricante de móveis chamado W. W Senewerathna Banda, que tinha acabado de passar uma semana esculpindo uma maravilhosa cadeira de madeira toda ornamentada. Preço de venda: US$85. Fora frete e taxas.
- Nós éramos completamente desorganizados antes de Sarvodaya chegar - ele me disse com tradução de Vinsor. - Agora temos uma visão. Temos esperança.
Então fomos para o campo para ver de que forma o dinheiro estava sendo gasto no lugar. Uma mulher de 32 anos obteve um empréstimo de 10 mil rúpias (100 dólares) para montar uma olaria. Isso dois anos antes e já havia praticamente saldado a dívida. Outra família conseguiu recursos para pôr um teto sobre suas cabeças - literalmente. Atrás deles sua pequena casa, que em todo o resto parecia bastante pobre, agora tinha um telhado novo em folha.
Sarvodaya estava ajudando a suprir o básico elementar. Diversas vezes Vinsor observou que davam prioridade à construção de sanitários e poços. Em uma aldeia vimos um poço recém-cons-truído que economizaria para as mulheres uma caminhada de 800 metros todos os dias para pegar a cota diária de água. Seria aquele o mesmo país que dois mil anos antes deslumbrou o mundo com sistemas de irrigação muito além da imaginação de qualquer um na época? O que tinha acontecido com o Sri Lanka nesse meio tempo? Felizmente eu não tive de responder a esse koan. Já estava bastante atrapalhado usando o meu novo koan para criar um ponto de vista competente para as minhas percepções sobre o Sri Lanka. E conforme iam mudando, o respeito que nutria pela tarefa imensa do dr. Ariyaratne só crescia.
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