Português: contexto, interlocução e sentido



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. Acesso: 5 fev. 2016.
Página 253

O título do texto (Comportamento animal) deixa clara a opinião defendida ao longo do editorial: as invasões realizadas para libertar animais utilizados em pesquisas científicas não se justificam. Essa posição é retomada de modo explícito na conclusão do texto: “Numa democracia viva, como a nossa, há caminhos institucionais […] e invasões tresloucadas não se encontram entre os admissíveis”.

Ainda que esse editorial assuma como verdadeira a polêmica afirmação da existência de uma hierarquia em que seres humanos valem mais do que outras espécies (“uma vida humana vale mais que a de um cão, que vale mais que a de um rato”), é importante destacar que, em outros momentos, o texto explicita uma opinião contrária a qualquer tipo de radicalismo associado à questão analisada (“Isso não significa autorizar cientistas a atormentar, mutilar ou sacrificar quantos animais quiserem”).

Considerando os parâmetros de observação anteriormente definidos, a análise do texto permite ressaltar os seguintes aspectos:



Contexto discursivo: o texto é voltado para um interlocutor universal; está publicado no espaço fixo destinado aos editoriais em um jornal impresso de circulação nacional (e também no site do próprio jornal); não há autoria definida (característica desse gênero discursivo), o que permite concluir ter sido escrito por um dos editorialistas responsáveis pela emissão de opiniões associadas a esse órgão de imprensa.

Características do gênero discursivo: trata-se de um editorial. Isso fica evidente pela finalidade do texto (veicular a opinião de um órgão de imprensa sobre um acontecimento relevante); por apresentar uma introdução que contextualiza, de modo breve, a questão tematizada; pelo fato de explicitar enfaticamente, ao longo do texto, o posicionamento do jornal.

Conhecimentos prévios: como destacamos ao longo do texto, o leitor deveria ter conhecimento de uma série de fatos e informações para compreender a referência a eles feita no editorial. O foco desse gênero discursivo está na defesa de um ponto de vista sobre uma questão relevante. O editorialista pressupõe que o leitor compartilha das informações básicas relacionadas à questão abordada no texto, porque, caso contrário, a finalidade do gênero fica comprometida.

A leitura de editoriais

Como acontece com a notícia, quanto mais familiarizado estiver o leitor com a finalidade e a estrutura do gênero editorial, maior facilidade terá para lidar com as expectativas criadas pelo texto e, portanto, para compreendê-lo.

Uma condição clara para a realização de uma boa leitura de editoriais é dispor de informações suficientes sobre a questão em relação à qual o texto expressa a opinião do órgão de imprensa em que é publicado. Sem essas informações, o leitor não terá como “preencher” as referências feitas no texto, o que comprometerá sua compreensão do que está sendo dito.

Com relação à estrutura desse gênero, não basta o leitor saber que a finalidade de um editorial é manifestar opiniões. Ele deve assumir uma postura ativa, ou seja, deve avaliar os argumentos apresentados para sustentar o ponto de vista defendido no texto e decidir se concorda ou não com ele. Caso discorde, deve ser capaz de encontrar contra-argumentos que refutem parcial ou totalmente a opinião apresentada.

No caso dos gêneros de natureza argumentativa, o contexto de circulação traz informações importantes a serem consideradas pelo leitor.

Os vários órgãos de imprensa, como já dissemos, estão associados a diferentes perspectivas ideológicas. Esse viés ideológico se manifesta de modo mais claro nas opiniões que emitem a respeito de acontecimentos relevantes para o contexto nacional ou mundial.

Não se pode, portanto, realizar a leitura de um editorial julgando encontrar ali uma posição isenta. Esse é um gênero discursivo que deve manifestar o posicionamento de determinado jornal, revista ou portal da internet e tal posicionamento decorre da perspectiva ideológica desse órgão de imprensa.



O papel do leitor

Como procuramos mostrar ao longo deste capítulo, diferentes gêneros discursivos apresentam diferentes desafios a serem enfrentados pelos leitores. Por essa razão, não só é importante conhecer a estrutura dos gêneros discursivos, mas também reconhecer que a leitura de todos eles, em maior ou menor grau, precisa da participação ativa do leitor.


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Outra questão muito importante associada ao ato de ler diz respeito ao que deve ser a postura do leitor ao concluir a leitura de um texto e compreender seu sentido. Ele deve sempre definir qual é o seu posicionamento sobre o que acabou de ler. Em outras palavras: não deve tomar como verdade absoluta aquilo que lhe é apresentado por escrito. O leitor precisa interagir com o que lê, avaliando informações e argumentos, para responder a uma questão fundamental: como eu me posiciono frente ao texto lido?



Aula de leitura: exercício de interpretação de textos

1. Pesquisa e análise de dados

Ao longo deste capítulo, você aprendeu que ler um texto é muito mais do que compreender o sentido literal dos enunciados que o compõem e que diferentes gêneros discursivos oferecem diferentes desafios a seus leitores para que seu sentido seja compreendido.

Sua tarefa, agora, será reunir-se com seus colegas e, em grupo, selecionar um conjunto de três textos de diferentes gêneros discursivos que abordem um mesmo tema ou acontecimento. Sugerimos que vocês façam uma pesquisa em jornais de grande circulação e observem, por exemplo, o texto dos editoriais, das colunas assinadas, dos artigos de opinião, das notícias, das charges.

Uma vez selecionados os textos, vocês deverão elaborar um conjunto de questões que orientem a leitura de cada um desses textos por alguém como vocês: um estudante de Ensino Médio que pode ou não ter conhecimento dos temas abordados nos textos. Não se esqueçam de criar também as respostas esperadas para cada uma das perguntas feitas.

Concluído o trabalho, uma pessoa do grupo será escolhida para dar uma “aula de leitura” para os colegas de turma com base nos textos selecionados. Essa aula deverá ter uma parte expositiva (que trate de procedimentos de leitura) e uma parte prática (realização de atividades). É muito importante que, no encerramento dessa aula, as pessoas manifestem suas opiniões sobre a questão abordada nos textos selecionados.

2. Elaboração das questões e preparação da aula

>> Observem as questões propostas para o texto que abre este capítulo (vocês podem também observar as questões que constam das aberturas de capítulos anteriores). Vejam que elas procuram orientar a leitura, primeiro identificando elementos ou passagens significativas e, depois, oferecendo elementos para o leitor construir o sentido do que foi lido.

>> Identifiquem, em grupo, os elementos e as informações essenciais de cada um dos três textos selecionados por vocês:

• Decidam quais informações dizem respeito ao tema ou acontecimento abordado no texto e quais dizem respeito à estrutura do gênero discursivo escolhido;

• Lembrem-se de avaliar a relação entre o contexto discursivo (autoria do texto, local de circulação, perfil de leitor) e o sentido do texto;

• Avaliem qual é a melhor forma de lidar com os conhecimentos prévios de que o leitor deve dispor para compreender os textos escolhidos;

• Procurem separar as informações objetivas das opiniões eventualmente expressas sobre elas nos textos.

>> Com base nas questões elaboradas por vocês, selecionem qual(is) texto(s) será(ão) utilizado(s) para preparar a parte expositiva da aula sobre leitura e qual(is) será(ão) utilizado(s) para os exercícios de leitura.

>> Decidam se vão fazer uso de algum recurso multimídia: vídeo com informações gerais sobre o acontecimento tematizado nos textos, por exemplo; conjunto de slides para orientar a parte expositiva da aula.

• Coloquem-se na posição dos colegas que irão assistir a essa aula e perguntem-se qual poderia ser a melhor estratégia para ajudá-los a acompanhar e compreender o que será dito.


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Produção de texto

UNIDADE 8 Narração e descrição

A narração é, possivelmente, o mais antigo de todos os tipos de texto. Desde que a linguagem passou a fazer parte da existência humana, as pessoas dela se utilizam para relatar acontecimentos. Nesta unidade, conheceremos alguns gêneros que recorrem a estruturas narrativas e descritivas.



Capítulos

26. Relato oral e escrito, 258
• Relato: definição e usos

27. Carta pessoal e e-mail, 262
• Carta pessoal e e-mail pessoal: definição e usos

28. Blog, 275
Blog: definição e usos

29. Notícia, 280
• Notícia: definição e usos
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Procedimentos e recursos textuais

Modos de narrar

Eram os narradores que constituíam a maior atração. Ao seu redor se formava o círculo de pessoas mais numeroso e fiel.

[...] Suas palavras vinham de longe e permaneciam flutuando no ar por mais tempo do que as das pessoas comuns.

CANETTI, Elias. Narradores e escreventes. In: As vozes de Marrakech. Tradução de Marijane Lisboa. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 93. (Fragmento).

Os textos dos gêneros narrativos têm em comum o objetivo de contar algum acontecimento, real ou fictício. Objetivos e características podem variar, mas a narração permanece como um traço de identidade entre relatos, crônicas, contos, novelas, romances.

Muitas vezes, no interior de uma narrativa, é importante atribuir uma fala ou um comentário a uma personagem. Nessas situações, pode-se recorrer a diferentes modos de organização da linguagem para informar o que foi dito por alguém: o discurso direto, o discurso indireto e o discurso indireto livre. Escolhemos um trecho de um romance da escritora canadense Margaret Atwood, O assassino cego, para ilustrar essas três possibilidades.



O assassino cego é um romance de sofisticada construção narrativa, com três histórias que se intercalam. A narradora principal, Íris Chase Griffen, é uma octogenária que decide contar a história de quatro gerações da família Chase. Uma das personagens importantes dessa história é Laura, irmã de Íris, e autora de um romance intitulado O assassino cego. Os trechos desse romance, que são inseridos na história de família contada por Íris, narram o amor clandestino, na década de 1930, entre uma mulher da sociedade canadense e um escritor, autor de histórias de ficção científica.

As cenas entre os amantes são espaço para a emergência de uma nova voz narrativa, já que o escritor cria, a pedido de sua amada, histórias que se passam no planeta Zicron. O trecho abaixo foi retirado de uma passagem em que os amantes se encontram e ele começa a contar para ela uma das suas histórias.



O ovo cozido

O que vai ser, então?, ele diz. Dinner jackets e romance, ou naufrágios numa costa deserta? Você pode escolher: florestas, ilhas tropicais, montanhas. Ou outra dimensão do espaço –– é nisso que eu sou melhor.

Outra dimensão do espaço? Ah, realmente!

Não zomba, é um endereço útil. Qualquer coisa que você queira pode acontecer lá. Espaçonaves e uniformes colados no corpo, armas que soltam raios, marcianos com corpos de lulas gigantescas, esse tipo de coisa.

Você escolhe, ela diz. O profissional é você. Que tal um deserto? Eu sempre quis visitar um. Com um oásis, é claro. Seria simpático ter umas tamareiras. Ela está tirando a casca do sanduíche. Ela não gosta de casca. [...]

Ela contempla a manga arregaçada da camisa dele, branca ou azul-clara, depois seu pulso, a pele mais escura da sua mão. Ele irradia luz, deve ser o reflexo do sol. Por que não está todo mundo olhando? Ainda assim, ele é conspícuo demais para estar ali — ao ar livre. Há outras pessoas em volta, sentadas na grama ou deitadas nela, apoiadas nos cotovelos — outras pessoas fazendo piquenique, com suas roupas claras de verão. É tudo muito correto. No entanto, ela tem a sensação de que eles dois estão sozinhos; como se a macieira sob a qual estão sentados não fosse uma árvore, e sim uma barraca; como se houvesse uma linha desenhada em volta deles com giz. Dentro dessa linha, eles são invisíveis.

O início do texto registra a opção do narrador por apresentar a transcrição da fala das personagens (o escritor e sua amante).

Sempre que o narrador apresenta a fala integral das personagens, sem qualquer interferência, dizemos que ocorreu o uso do discurso direto.

As narrativas costumam marcar o discurso direto com o uso de travessões (—) ou aspas (“ ”) para identificar a fala da personagem. No caso do texto citado, o narrador usa apenas os verbos dicendi (falar, dizer, perguntar, retrucar, exclamar, etc.), para indicá-la.

Como o objetivo, nessa passagem, é recriar o encontro entre os amantes, o discurso direto será predominante, porque explicita a natureza dessa relação.

Em alguns momentos (fim do 4º parágrafo, 5º, e parágrafos finais), o narrador em 3ª pessoa informa sobre o estado de espírito das personagens e contribui com elementos de ambientação (espaço) da história.


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Que seja o espaço então, ele diz. Com túmulos, virgens e lobos — mas à prestação. Concorda?

À prestação?

Você sabe, como móveis.

Ela ri.

Não, eu estou falando sério. Você não pode regatear, isso pode levar dias. Vamos ter de nos encontrar de novo.

Ela hesita. Está bem, ela diz. Se eu puder. Se conseguir dar um jeito.

Ótimo, ele diz. Agora eu tenho de pensar. Ele mantém um tom de voz casual. Muita insistência poderia assustá-la.

No planeta... vamos ver. Saturno não, é perto demais. No planeta Zicron, localizado em outra dimensão do espaço, existe uma planície coberta de cascalho. Para o norte fica o oceano, cuja cor é violeta. A oeste, uma cadeia de montanhas, onde dizem que, depois que o sol se põe, vagueiam mulheres vorazes que habitam as ruínas dos túmulos ali existentes. Veja só, eu não esqueci de colocar os túmulos.

Isso foi muita gentileza sua, ela diz. [...]

A terra ao redor é árida, com uns poucos arbustos espinhentos. Não exatamente um deserto, mas bem próximo de um. Sobrou algum sanduíche de queijo?

Ela procura no saco de papel. Não, ela diz, mas ainda tem um ovo cozido. Ela nunca foi tão feliz antes. Tudo é novo outra vez, ainda por ser encenado.

Exatamente o que o médico receitou, ele diz. Uma garrafa de limonada, um ovo cozido, e você. Ele rola o ovo entre as palmas das mãos, quebrando a casca e em seguida descascando-o. Ela observa sua boca, o queixo, os dentes.

Ao meu lado, cantando no parque, ela diz. Toma aqui o sal para pôr no ovo.

Obrigado. Você se lembrou de tudo. [...]

A cidade foi destruída numa batalha, e o rei foi capturado e enforcado numa tamareira como sinal de triunfo. Quando a lua surgiu, ele foi retirado e enterrado, e as pedras foram empilhadas para marcar o lugar. Quanto aos outros habitantes da cidade, eles foram todos mortos. Chacinados — homens, mulheres, crianças, bebês, até os animais. Mortos com a espada, cortados em pedaços. Nenhum ser vivo foi poupado.

Isso é horrível.

Basta enterrar uma pá em algum lugar e algo de terrível surgirá. Bom para o negócio, nós prosperamos com ossos; sem eles não haveria histórias. Sobrou limonada?

Não, ela diz. Nós bebemos toda. Continue.

O nome verdadeiro da cidade foi apagado da lembrança pelos conquistadores, e é por isso — dizem os contadores de história — que o lugar agora é conhecido apenas pelo nome da sua própria destruição. A pilha de pedras marca, então, tanto um ato de recordação proposital quanto um ato de esquecimento proposital. Adoram paradoxos nessa região. [...]

As folhas da macieira farfalham. Ela olha para o céu, depois para o relógio. Estou com frio, ela diz. Também estou atrasada. Você pode jogar fora as evidências? Ela junta cascas de ovo, amassa papel encerado.

Por que a pressa? Não está frio aqui.

Há uma brisa vindo da água, ela diz. O vento deve ter mudado. Ela se inclina para a frente, preparando-se para se levantar.

Não vá ainda, ele diz depressa demais.

Tenho de ir. Devem estar me procurando. Se eu me atrasar, vão querer saber onde estive.

Ela alisa a saia, abraça o corpo com os braços, vira-se de costas, as pequenas maçãs verdes vigiando-a como olhos. [...]

ATWOOD, Margaret. O assassino cego. Tradução de Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 21-24. (Fragmento).

Dinner jackets: literalmente, jaquetas de jantar em inglês. Na Inglaterra, espécie de smoking usado em eventos formais.
Conspícuo: facilmente notado.

“Por que não está todo mundo olhando?” Não é possível, pelo contexto, decidir se essa é uma fala do narrador ou da personagem feminina. Sempre que a fala ou o pensamento de uma personagem se confunde com a voz do narrador, estamos diante do discurso indireto livre.

O uso do discurso indireto livre só acontece em textos narrados em 3ª pessoa, porque esse modo de organizar o discurso narrativo envolve os pensamentos de uma personagem e as observações de um narrador. Veja que é exatamente esse o caso do exemplo.

Uma outra ocorrência de discurso indireto livre pode ser identificada, agora associada à personagem masculina. Observe: não há como definir se a frase “Muita insistência poderia assustá-la” é um comentário do narrador ou um pensamento do escritor.

Em uma passagem da história que está sendo contada pelo escritor, observamos que ele recria, com as próprias palavras, o que era dito sobre as mulheres vorazes habitantes das ruínas.

Quando o narrador, em lugar de apresentar a fala das personagens em um diálogo, as reconstrói por meio da sua própria linguagem, temos a ocorrência do discurso indireto.

Nessa passagem, não é possível transcrever a fala de nenhuma personagem, porque o autor da história está incluindo algo que é dito por pessoas indeterminadas sobre as mulheres vorazes. Sabe-se o que se diz a seu respeito, mas não quem faz esses comentários. O discurso indireto, portanto, é a melhor opção para incluir esses “comentários”.

A segunda ocorrência do discurso indireto acontece quando o escritor resolve informar qual era o comentário feito pelos contadores de história sobre o nome da cidade. Note que, como o foco do texto está posto no fato de o nome da cidade ter sido esquecido e não no que alguém disse, é melhor a opção pelo discurso indireto. O uso do discurso direto, nessa passagem, faria com que esse foco se deslocasse para as personagens.
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Capítulo 26 Relato oral e escrito

Leitura

Os textos a seguir exemplificam um mesmo gênero discursivo, na sua realização oral e escrita. Leia-os com atenção.

Texto 1

Maya Gabeira

A melhor surfista de ondas grandes do mundo viu a morte de perto e está pronta para outra

[...]


Acordamos no escuro e botamos as motos aquáticas na água. Tsunami. Mar em fúria. Estava todo mundo transtornado. Mas todo mundo bota no piloto automático. Você espera muitos anos por aquele momento. Então é a hora da verdade, não tem que pensar muito, é agir. Não pode paralisar.

[...]


Eu estava na moto aquática com o Scooby. E o Gordo estava com o Burle. O Burle já entrou acelerando, botou o Gordo na corda... E capotou, perdeu o rádio de segurança, voltou correndo: “Ai, meu Deus, nunca vi isso. Tá enorme, tá enorme”. Scooby olhou para mim e pulou na água. Falei: “Não, eu vou surfar primeiro”. Naquela adrenalina toda, saltei para a moto aquática do Burle. O mar estava especial, liso, gigantesco. Só quatro motos na água.

Vacilei. O Burle tentou me colocar numa onda, não larguei a corda. Tentou outra, não larguei. Ele falou: “Decide: vai ou não vai?”. Falei: “Tô insegura. Tá grande demais”. A gente estava num negócio que era outra dimensão. Aí fiquei quieta, ele me levantou, entrou uma onda muito maior do que as duas que eu tinha perdido e, cara, depois da chamada do Burle...

Levantei confiante numa onda gigantesca. E Garret McNamara, que é o recordista mundial atualmente, levantou junto comigo. Pensei: “Tudo bem, ele vai pegar esta e eu vou na próxima”. Foi quando ouvi o Burle gritando: “Ele caiu, vai”. Eu estava bem posicionada, com velocidade boa, fui.

[...] Eu me joguei para o tudo ou nada. A onda era tão grande que já estava quebrando. Puxei para dentro, para pegar a parte ainda mais crítica da onda. Minha prancha pegou muita velocidade. Segurei um voo e aterrissei. Segurei outro voo e aterrissei. A cada voo eu pegava mais velocidade. E no terceiro perdi o controle.

[...] Quando fui para debaixo d’água, tomei um caldo, levantei bem, subi, fiz minha respiração. Na segunda porrada, de uma onda ainda maior do que a que me derrubou, fiquei um longo tempo debaixo d’água. Percorri uma longa distância. O problema maior foi que eu peguei a primeira onda da série, entende? Fui sendo atropelada.

Nessa segunda porrada, o Burle me perdeu por uns 4 minutos. Eu desapareci. Ele, então, foi para a beira. Pensou: “Esse corpo vai aparecer aqui”. Viu a minha prancha chegando, viu meu colete. Quando eu subi de novo, não tive tempo de respirar, veio uma onda do além, com muita força, e explodiu de novo em cima de mim. Fui para debaixo d’água com total consciência de que eu ia apagar. Tudo preto.

[...] Achei que não fosse subir de novo. Mas subi, minha roupa também boia, tem certa flutuação. Quando cheguei na superfície, ficou tudo branco, vários barulhos no ouvido. Pensei, juro que pensei isto: “Vou apagar, não tem mais como, isto é um processo sem volta, meu corpo está entrando em colapso”. Olhei para a esquerda e vi o cliff. Olhei para a direita e vi o Burle. E vi que ele me viu.

Ele veio na minha direção, jogou a prancha de resgate, não consegui pegar. Eu já estava realmente indo para um outro estágio. Ali não me lembro mais de barulho, era tudo silêncio. Ele diz que olhou no meu olho e viu: “Maya está morrendo”. Saiu das ondas, arrumou outro espaço para voltar e, quando voltou, tentou me pegar pela mão. Levanto a mão, a gente se encosta, mas não agarra.

Numa situação de adrenalina total, Burle me jogou a corda. Gritou: “Segura”. Não sei como eu escutei nem como tive forças para agarrar a corda. Fui arrastada o suficiente para sair da corrente que circula, do redemoinho, e ser jogada na corrente que leva para a praia. Depois de 5 metros, já estava apagada. Burle teve sangue-frio e entendeu onde eu ia boiar. Ele seguiu a espuma, se jogou no mar e me pegou. [...]

MONTEIRO, Karla. TPM, n. 138, dez. 2013. Disponível em:


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