Português: contexto, interlocução e sentido



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. Acesso em: 25 fev. 2016. Tradução livre. (Fragmento).

> Com base nas informações apresentadas nos capítulos anteriores sobre o contexto em que surgiu o Pós-Modernismo, discuta com seus colegas: qual a relação entre a técnica empregada por Pollock e a época que ele pretende expressar?

Da imagem para o texto

3. A fragmentação do mundo contemporâneo atinge o indivíduo, que se percebe isolado, sem vínculos duradouros, e busca o prazer pessoal a qualquer preço. Rubem Fonseca (1925-) é um dos escritores que abordam os efeitos violentos dessa desagregação na sociedade.

Passeio noturno — Parte I

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha, no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.

Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisa sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não para de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?

A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.

Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.

Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os para-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia diferença, mas não aparecia ninguém em



Música quadrifônica: que ocupa quatro canais diferentes. Normalmente, a reprodução de som ocorre em estéreo, ou seja, em dois canais diferentes.
Servia à francesa: o serviço à francesa é considerado a maneira mais formal de servir uma refeição. A comida é apresentada por garçons, em travessas, a cada convidado, de acordo com uma ordem hierárquica preestabelecida.
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condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.

Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos para-lamas, os para-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.

A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.



FONSECA, Rubem. 64 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 243-244.

a) O protagonista chega em casa com uma pasta cheia de papéis relacionados ao trabalho. O que essa informação pode indicar?

b) Releia: “Os sons da casa: minha filha, no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu filho”. De que modo a linguagem utilizada contribui para revelar pistas do afastamento entre a personagem e seus filhos?

4. No 2º parágrafo, o protagonista descreve um de seus hábitos. Que hábito é esse?

> Nesse parágrafo, qual o efeito produzido pela utilização da expressão “como sempre” e do verbo “esperava”?

5. O 3º parágrafo oferece importantes informações sobre o relacionamento familiar. O que o fato de o jantar ser servido à francesa indica?

a) Explique o que representa o comentário a respeito do crescimento dos filhos e do peso do casal.

b) Nesse parágrafo, uma passagem confirma a natureza do relacionamento familiar sugerida no 1º parágrafo. O que ela indica?

c) O texto oferece muitas pistas sobre a condição socioeconômica do protagonista. Transcreva algumas delas em seu caderno e explique que condição é essa.

6. Cada referência à esposa é acompanhada por uma fala dessa personagem. Que tipo de esposa ela parece ser?

a) Por que a apresentação da fala da esposa é essencial para caracterizá-la?

b) Na leitura do texto, é possível identificar a válvula de escape encontrada pela esposa para lidar com a tensão familiar. O que ela faz?

7. Qual atitude do protagonista no 4º parágrafo demonstra cinismo? Explique o objetivo dessa atitude.

> A fala da mulher em relação ao carro e aos passeios noturnos revela desconfiança. Explique.

8. O 5º parágrafo contém toda a ação principal. Ele é iniciado por um acontecimento aparentemente irrelevante, mas que, somado a outros, indica um acúmulo de tensão. Quais são esses acontecimentos?

a) Que tipo de emoção sente a personagem quando vê o carro com o qual irá sair?

b) Quando sai de casa, a personagem dá várias pistas de que não pretende somente passear para aliviar a tensão. Que pistas são essas?

c) Antes de conhecer o final do texto, o que o leitor imagina que o protagonista irá procurar na rua?

9. As ações do protagonista surpreendem o leitor? Por quê?

> O modo como ele se refere à sua vítima denota desprezo pela condição socioeconômica dela. Explique, justificando com o texto.

10. O que dá prazer ao protagonista, segundo o texto? Justifique.

> Podemos identificar, no comportamento da personagem, traços de um indivíduo que vive em uma sociedade marcada pela valorização dos bens materiais e pela perda dos valores morais, familiares e éticos. Por quê?

11. Leia novamente o último parágrafo.

> A família não sabe o que o homem acaba de fazer, mas o leitor sabe. A frase “amanhã vou ter um dia terrível na companhia” tem um impacto diferente na família e no leitor. Por quê?

Os extremos do século XX

Os valores da sociedade moderna passaram por transformações significativas com o término da Segunda Guerra. As décadas de 1960 e 1970, em especial, foram culturalmente efervescentes. O consumismo, a exploração de um ser humano por outro e os limites da consciência passaram a ser questionados. Surgiram músicas de protesto, movimentos contra a discriminação sexual e racial.

Uma palavra poderia ser escolhida como o símbolo da civilização contemporânea: informação. Com o surgimento da internet, a velocidade de transmissão de informações aumentou de tal maneira que a televisão perdeu o status de veículo mais rápido de transmissão de dados.
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Nasce, com o século XXI, o repúdio ao conhecimento estanque, absoluto. O convite à interdisciplinaridade, à ética e à responsabilidade social soa como resistência a um tempo em que o ser humano rompeu os limites da civilização ao utilizar os recursos da ciência para torturar e destruir, voltando, em muitos casos, ao estado de barbárie.

O fim da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim em 1989, desencadeou um processo de rápida reorganização política que deu origem à globalização da economia: integração dos mercados mundiais, controlados por grandes corporações internacionais.

As pressões do mercado aumentam as distâncias entre ricos e miseráveis. Enquanto os habitantes dos países desenvolvidos têm alta qualidade de vida e fácil acesso à educação e à produção artística, boa parte dos países africanos é massacrada por guerras étnicas, enfrenta a fome e a miséria decorrentes de décadas de exploração nas mãos dos colonizadores estrangeiros e vê a ignorância crescer entre a população. Na África, por exemplo, uma criança morre a cada 3 segundos vitimada pela fome ou por doenças decorrentes da Aids. Esse é o altíssimo preço cobrado pela era dos extremos.

O Brasil conheceu, nos 20 anos seguintes à instalação do governo militar, iniciado em 1964, os tempos difíceis da ditadura, da repressão, da tortura. Paradoxalmente, o país teve, nesse período, uma intensa e rica produção cultural. O espírito de contestação que mobilizava europeus e norte-americanos influenciou também nossa cultura. Surgiram o Cinema Novo, o Tropicalismo, o teatro engajado, as músicas de protesto de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros.

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Manifestação pelas Diretas Já, Praça da Sé, São Paulo, 1984.

ORLANDO BRITO/COMUNICAÇÕES S/A ABRIL

A eleição indireta de Tancredo Neves em 1985 marcou o fim do regime militar. Com a morte de Tancredo, José Sarney, vice-presidente, tomou posse. Em 1990 foi substituído por Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito pelo voto direto após a ditadura. Dois anos depois, Collor foi afastado após um processo de impeachment, assumindo o vice Itamar Franco. Fernando Henrique Cardoso foi eleito nas duas eleições seguintes, 1994 e 1998, e, em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito para a presidência. Reelegeu-se, em 2006, para mais um mandato presidencial. Em 31 de outubro de 2010, o Brasil elegeu a sua primeira presidente mulher: Dilma Rousseff. Nas eleições presidenciais de 2014, Dilma reelegeu-se para um segundo mandato.



A literatura do mundo contemporâneo: um espelho fragmentado

A massificação tira a identidade das pessoas, transforma o indivíduo em um ser anônimo. O consumo e a posse de mercadorias tornam-se medidas de sucesso profissional. Nesse contexto, a produção de arte também se massifica e, através dos meios de comunicação, visa alcançar o maior público possível.

Na literatura, os efeitos da massificação são visíveis. Surgem os best-sellers, livros que viram moda e são divulgados em listas de mais vendidos nas revistas semanais. O desejo de possuir o livro que todos dizem estar lendo, de assistir ao último filme campeão de bilheteria, de conhecer as músicas dos grupos de maior sucesso são importantes fatores para o consumo dos bens culturais contemporâneos.

O que se percebe é que, por trás dos livros, filmes e músicas que alcançam sucesso imediato junto ao grande público, há uma indústria poderosa, capaz de fabricar ídolos, identificar, explorar e vender tendências para todos os gostos e todas as classes sociais. É esse mecanismo que está na base da massificação.

No que diz respeito à literatura, a indústria cultural modifica de modo importante a relação entre os agentes do discurso, principalmente autores, leitores e obras. Com o objetivo declarado de garantir que o livro seja consumido pelo maior número possível de pessoas, editoras passam a trabalhar com estraté gias de propaganda e marketing: textos escritos sob encomenda para agradar um consumidor cujo perfil foi identificado por meio de pesquisas, campanhas publicitárias planejadas para atingir especificamente esse público. Nessa perspectiva, a recepção do texto pelo leitor torna-se uma questão secundária, menos importante que o consumo da obra.

O público leitor, restrito à elite até a década de 1940, cresceu e passou a contar com a adesão da classe média. Esse crescimento desencadeou a multiplicação do perfil do leitor. Hoje, há um público interessado em obras de autoajuda, outro que se interessa pelos romances mais “fáceis”, o que compra


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livros para exibi-los na estante, e há ainda os leitores que buscam obras instigantes, com evidente qualidade literária. Esses leitores, além da inspiração pessoal e do desejo de trilhar novos caminhos estéticos, desafiam escritores a abandonar fórmulas e modelos passados e a encontrar novas maneiras de traduzir com qualidade o espírito da época em que vivem.

Embora o conjunto das obras literárias produzidas a partir da década de 1950 apresente traços muito diversificados, algumas marcas da Pós-Modernidade podem ser identificadas em várias delas.

Marcas da produção pós-moderna

O desenvolvimento de novas tecnologias de reprodução e difusão da arte (fotografia, rádio, cinema, televisão, vídeo, computador) fez com que a separação entre a arte considerada culta e a denominada arte popular fosse desaparecendo. Alguns dos mais conhecidos artistas do século XXI investiram na reprodução de autênticos símbolos da sociedade de consumo.

Um dos objetivos da arte pós-moderna é a sua comunicabilidade. Por isso, ela promove a incorporação de todas as estéticas passadas, combinando-as de modo inovador.

Um outro traço característico de sua produção é a intertextualidade: textos escritos no passado são relidos a partir de uma visão paródica, muitas vezes com objetivo irônico. Esse procedimento, que já era utilizado pelos autores da primeira geração modernista, faz do texto uma grande colagem de outros textos.

O ser humano da sociedade pós-moderna parece cultivar uma postura niilista: ele não acredita em nada, não luta por nenhum ideal humanista, abandonou as ilusões que animaram a história em momentos anteriores (a religião, o progresso, a consciência, a utopia). Seu grande “deus” é o consumo.

Tome nota

Niilismo é um termo usado para definir diversas filosofias radicais e inspirado pelos estudos do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900). Indica que os seguidores dessas filosofias contestam todos os valores e acreditam que nada existe de absoluto.

Um mundo sem conceitos ou modelos produz um ser humano individualista, que se volta cada vez mais para si mesmo, preocupado em satisfazer seus desejos e alcançar suas metas.

A vida em uma sociedade voltada para o consumo traz marcas inequívocas. A principal delas é a tentativa incessante de fazer com que o ser humano relaxe, viva de maneira mais descontraída. Para tanto, investe-se no humor e no erotismo como meios de tornar menos dramático o contexto social delicado em que vivemos. É comum, na produção literária pós-moderna, encontrar temas sérios tratados com humor.

Essas características poderão ser, em maior ou menor medida, identificadas na narrativa, na poesia e no teatro, como veremos a seguir.



Entretenimento e interação

Atualmente, há pessoas que fazem verdadeiras maratonas, assistindo a todos os episódios de uma temporada de séries de uma só vez, graças ao dinamismo da indústria cultural, que expandiu para a internet o alcance das fórmulas para a TV, oferecendo conteúdo interativo e qualidade digital.



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Cartaz de divulgação da primeira temporada da série norte-americana House of cards, exibida em 2013, pela Netflix.

REPRODUÇÃO

A ficção contemporânea em Portugal

O clima de tensão política, interna e externa, vivido por Portugal nas últimas três décadas do século XX teve alguns importantes desdobramentos literários. Duas tendências se manifestam na produção dos autores contemporâneos: a continuidade dos romances de tom neorrealista, em que os enredos representam reconstruções ficcionalizadas do mundo real; e a busca de uma nova forma narrativa, livre das influências anteriores e mais compatível com a renovação que se inicia com o fim da ditadura salazarista.

Autores como Vergílio Ferreira, José Cardoso Pires e Agustina Bessa-Luís consolidam sua obra ficcional, registrando seus nomes entre os importantes romancistas portugueses da segunda metade do século XX. Merece atenção especial, porém, a força dos romances de António Lobo Antunes e José Saramago, que contribuíram para expandir os limites da literatura portuguesa para muito além das fronteiras de seu país.

Lobo Antunes e as marcas indeléveis da guerra

Médico psiquiatra, António Lobo Antunes (1942-) transformou-se após passar três anos em Angola, na fase final da Guerra Colonial. Da experiência na então colônia portuguesa na África, o escritor extraiu a matéria que definiria seus romances: o pesadelo da guerra.

O mais conhecido romance de Lobo Antunes sobre o pesadelo colonial é Os cus de Judas, publicado em 1979. Nessa narrativa de clara inspiração autobiográfica, o leitor é tratado como interlocutor direto do narrador-protagonista,
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um médico português enviado para servir em Angola. A incapacidade de compreender a lógica da guerra em meio à qual se vê envolvido é intensificada pelo uso do fluxo de consciência. Observe.

[...] eu pensei que vivia há um ano no arame com os mesmos homens sem os conhecer sequer, comendo a mesma comida e dormindo o mesmo sono inquieto entrecortado de sobressaltos e suores, unidos por uma esquisita solidariedade idêntica à que irmana os doentes nas enfermarias de hospital, feita do comum, sabe como é, receio, pânico da morte, e da inveja feroz dos que prosseguem lá fora um quotidiano sem ameaças nem angústia a que se deseja desesperadamente voltar, escapando à absurda paralisia do sofrimento, vivia há um ano com os mesmos homens e não sabíamos nada uns dos outros, não decifrávamos nada nas órbitas ocas uns dos outros, o rosto com que se saía para a mata era rigorosamente idêntico ao que se trazia da mata [...].

A pouco e pouco a usura da guerra, a paisagem sempre igual de areia e bosques magros, os longos meses tristes do cacimbo que amareleciam o céu e a noite do iodo dos daguerreótipos desbotados, haviam-nos transformado numa espécie de insectos indiferentes, mecanizados para um quotidiano feito de espera sem esperança [...].

ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. 2. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 98-99. (Fragmento).

Cacimbo: período de chuvas e nevoeiros característico das regiões costeiras e insulares da África.
Daguerreótipos: fotografias tiradas com um antigo aparelho inventado por Daguerre, físico e pintor francês, que fixava as imagens obtidas na câmara escura numa folha de prata sobre uma placa de cobre.

Saramago: o olhar do presente analisa o passado

Primeiro escritor de língua portuguesa a ser agraciado com o prêmio Nobel de Literatura, em 1998, José Saramago (1922-2010) tornou-se mundialmente famoso com o romance Memorial do convento, no qual traça um retrato do Portugal barroco, durante o reinado de D. João V.



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O escritor Saramago, em Madri, Espanha, 2009.

PIERRE-PHILIPPE MARCOU/AFP

O livro tematiza a tensão entre o saber científico (representado pelo Frei Bartolomeu de Gusmão, o voador e sua passarola) e a força da fé e do misticismo (presente nos Autos de Fé e nos poderes de Blimunda). Essa obra caracteriza a identidade literária de Saramago: um novo tipo de romance histórico, em que a reconstrução do passado é feita por um narrador que, a partir do momento presente, avalia e comenta os episódios que vai contando.

Outra marca da ficção de Saramago é a construção de alegorias narrativas que representam momentos históricos específicos. Um bom exemplo desse procedimento pode ser encontrado em O ano de 1993, obra de caráter futurista escrita em 1975, um ano após a Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura de António Salazar.

Em um momento em que Portugal ainda precisava encontrar uma nova face política e a sociedade tinha de enfrentar o desafio de resgatar a história dos longos anos sombrios, Saramago concebe um texto que é um misto de prosa e poesia. Nele, as cidades, ocupadas por lobos ferozes, precisam ser reconquistadas pelos seres humanos.



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[...] De dia uma enorme ausência guarda as portas da cidade

E as ruas têm aquele excesso de silêncio que há no que foi habitado e agora não

Na cidade apenas vivem os lobos

Deste modo se tendo invertido a ordem natural das coisas estão os homens fora e os lobos dentro

Nada acontece antes da noite

Então saem os lobos a caçar os homens e sempre apanham algum

O qual entra enfim na cidade deixando por onde passa um regueiro de sangue

Ali onde em tempos mais felizes combinara com parentes e amigos almoços intrigas calúnias

E caçadas aos lobos

SARAMAGO, José. O ano de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 22-23. (Fragmento).

Regueiro: sulco por onde escorre a água, pequena corrente de água. No texto, o sulco é formado pelo sangue que escorre da pessoa capturada pelos lobos.

Os lobos simbolizam as forças opressoras que, por mais de quarenta anos, governaram Portugal. A imagem das pessoas que abandonam a cidade sugere a aceitação da ditadura, a apatia que contribuiu para que os direitos individuais fossem cerceados.

Seja nos romances claramente históricos ou na construção de alegorias que ajudam a tematizar problemas reais a serem enfrentados pela sociedade contemporânea, Saramago criou uma obra claramente comprometida com a ideologia marxista e com a defesa dos direitos humanos.
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O “tsunami linguístico” de Valter Hugo Mãe

antónio jorge da silva, barbeiro, se vê obrigado a ir morar em um asilo, aos 84 anos e, acompanhado pela saudade, reflete sobre o sentido da velhice que, em lugar da sabedoria, traz esquecimento e remorso; maria da graça e quitéria, duas “mulheres-a-dias” (empregadas domésticas, em Portugal), enfrentam uma rotina opressiva e sonham com a felicidade futura; a voz desolada de uma menina de 11 anos que começa a enfrentar a vida após a morte da sua irmã gêmea. Esses são alguns dos temas de romances do escritor Valter Hugo Mãe (nome artístico de Valter Hugo Lemos, que nasceu em Angola, mas se considera português), que nos revelam algumas das facetas do aclamado autor, a quem Saramago definiu como “tsunami linguístico, semântico e sintático”.

benjamim (de o nosso reino), baltazar serapião (de o remorso de baltazar serapião) antónio jorge da silva (de a máquina de fazer espanhóis), protagonizam, com maria da graça e quitéria (de o apocalipse dos trabalhadores), o que se conhece como “tetralogia das minúsculas”. Romances escritos sem uma única letra maiúscula, por opção do autor, que também não as utilizava em seu próprio nome, para sugerir uma recondução da literatura à liberdade primeira do pensamento. Sua opção reflete também uma certa utopia de igualdade, imposição de uma democracia que atribuía ao leitor a tarefa de decidir o que deveria ou não merecer destaque. Com a palavra, o barbeiro antónio jorge da silva:

somos bons homens. não digo que sejamos assim uns tolos, sem a robustez necessária, uma certa resistência para as dificuldades, nada disso, somos genuinamente bons homens e ainda conservamos uma ingénua vontade de como tal sermos vistos, honestos e trabalhadores. um povo assim, está a perceber. pousou a caneta. queria tornar inequívoca aquela ideia e precisava de se assegurar da minha atenção. não tenho muita vontade de falar, sabe, senhor, estou um pouco nervoso, respondi. não se preocupe, continuou, a conversa é mais para o distrair e, se ficar distraído sem reacção, também não lho levo a mal. é o que fez a liberdade, acrescentou. um dia estamos desconfiados de tudo, e no outro somos os mais pacíficos pais de família, tão felizes e iludidos. e podemos pensar qualquer atrocidade saindo à rua como se nada fosse, porque nada é. as ideias, meu amigo, são menores nos nossos dias. não importam. [...]

MÃE, Valter Hugo. a máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 11. (Fragmento).

Aclamado pela crítica como o grande nome da literatura portuguesa contemporânea, Valter Hugo Mãe também é poeta, músico e artista plástico. Vencedor dos prêmios Almeida Garrett, José Saramago e Portugal Telecom, as histórias que cria têm um grande potencial afetivo, embora venham sempre acompanhadas por um pessimismo que beira o tragicômico.



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