. Acesso em: 30 set. 2009. (Adaptado).
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Como avaliar produções escritas de modo objetivo
O trabalho com a produção de textos escritos traz consigo um problema: como avaliar seu resultado de modo objetivo? O propósito da correção de redações deve ser, sempre, orientar o aluno sobre o que fazer para melhorar sua produção escrita em função do(s) leitor(es) dos seus textos.
Vamos, agora, sugerir alguns procedimentos de avaliação de redações que, se adotados sistematicamente, podem tornar mais tranquilo, para professor e aluno, o momento da correção. Trata-se, na verdade, do estabelecimento de alguns critérios a serem utilizados durante o processo de avaliação dos textos e, muito importante, no momento de atribuição de notas às redações.
O que é um critério de correção?
Critérios de correção são, no contexto específico da avaliação de textos, os parâmetros que o professor estabelece para “corrigir” as redações escritas por seus alunos.
Sem parâmetros, ou critérios, estaremos fazendo uma correção holística; em outras palavras, realizando uma avaliação que terá por base a impressão geral causada pelo texto no professor.
Por que utilizar critérios de correção?
A utilização de critérios predefinidos, ao avaliar um texto, contribui para garantir que, no momento da leitura, observemos diferentes aspectos da sua estrutura.
A adoção de uma analogia bastante simples entre a construção de um texto e a construção de uma casa talvez esclareça melhor nosso ponto de vista. Para construir uma casa é preciso, em primeiro lugar, dispor de um projeto arquitetônico, que permitirá a visualização do resultado final, antes de construída a casa; aprovado o projeto, passa-se às fundações (aquilo que dará sustentação à edificação); em seguida, serão levantadas as paredes, que dividirão os vários ambientes da casa e sustentarão o telhado, a última coisa a ser feita antes do acabamento.
De certa forma, a elaboração do texto escrito deve seguir uma sequência semelhante: parte-se de um projeto de texto, no qual são definidos os elementos básicos a serem trabalhados futuramente, para que o autor possa ter uma ideia de qual será o resultado final do texto; em seguida, tem início a construção do texto propriamente dito, de acordo com o que foi estabelecido no projeto, de tal forma que o autor não se esqueça de levantar nenhuma das “paredes” necessárias para a sustentação do telhado, a sua conclusão. Pronto o texto, seu autor poderá, no momento de releitura, dedicar-se aos “acabamentos”, pequenas alterações feitas visando muito mais à forma do que ao conteúdo.
Uma consequência necessária — e muito desejável! — da utilização de critérios para a avaliação de redações é a maior objetividade garantida ao processo de leitura e correção. Resta pouco espaço para a impressão e, portanto, para a correção subjetiva...
Primeiro passo: determinar os critérios com os alunos
Podemos iniciar nossos trabalhos estabelecendo, com nossos alunos, os critérios que serão utilizados na correção dos textos que eles produzirão durante as aulas. Essa é outra característica muito importante, e benéfica, da adoção de critérios de correção: os alunos sabem como seus textos serão corrigidos. Assim, professores e alunos dispõem de um conjunto de parâmetros comuns, referentes à estrutura do texto com o qual trabalharão durante as aulas.
Muitas vezes experimentamos, em nossa vida escolar, a frustração de receber, como observação do professor em uma redação, algo como “desenvolva mais o conteúdo”, “melhore seu texto”, “pouco claro” ou “seu texto está truncado”... Mas, desenvolver o quê? Não parece óbvio que, se soubéssemos como fazê-lo, o teríamos feito no momento de escrever a redação? Ninguém erra voluntariamente, ainda mais quando o resultado do “erro” é traduzido em uma nota baixa. O segundo tipo de observação é extraordinariamente vago. Devemos ser capazes de dizer algo mais específico do que “desenvolva mais o conteúdo”, ao comentar um texto. Como podemos esperar que os alunos escrevam com clareza se nós, seus mestres, não conseguimos fazê-lo nas poucas linhas que dirigimos a eles?
É evidente que existem textos cujo conteúdo precisa mesmo ser mais bem desenvolvido, e o objetivo do professor é conseguir que seu aluno, em uma próxima oportunidade, resolva o problema. A inadequação está, porém, na maneira como a observação é feita, porque não oferece nenhuma referência mais concreta dos aspectos de forma e/ou conteúdo que precisam ser modificados para que o texto melhore, ou de como o aluno poderia desenvolver “mais” o conteúdo.
Caso dispuséssemos de critérios de correção, no entanto, teríamos como fazer referência direta aos problemas identificados no texto, porque nossos alunos conheceriam previamente os parâmetros a serem utilizados durante a avaliação.
Em lugar de dizer “melhore sua redação”, o professor dirá algo a respeito da organização de argumentos ou indicará problemas nas estruturas sintáticas ou coesivas que possam estar perturbando a compreensão do texto.
O aluno lerá o comentário e saberá, por exemplo, que os problemas de coesão comprometem as estruturas de referência e as unidades de ligação do texto — e saberá porque aprendeu em aula! —, podendo identificar com maior exatidão o que precisa ser modificado em seu texto.
O resultado da adoção de critérios será não só uma avaliação mais objetiva por parte do professor; será, principalmente, uma possibilidade de trabalhar melhor
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os problemas identificados com os alunos durante as aulas de produção de texto.
Os critérios de correção: uma proposta específica
Faremos, agora, a apresentação de uma proposta concreta de critérios a serem adotados no momento de corrigir e avaliar os textos dos alunos. Eles não são os únicos possíveis, é claro!
Esses critérios resumem as indagações que se devem fazer a um texto com relação aos modos de estruturação e articulação dos elementos formais e de conteúdo.
Destacamos, com negrito e itálico, os critérios sugeridos.
Avaliação da leitura e desenvolvimento da proposta
Uma redação escrita em resposta a um tema proposto pelo professor deve necessariamente considerar alguns elementos básicos que definem tal tema: orientação geral apresentada, delimitação da questão a ser analisada, presença de informações que motivem a reflexão solicitada, etc.
O professor, ao preparar um tema, deve fazê-lo considerando qual(is) elemento(s) de um gênero específico (de natureza expositiva, argumentativa, narrativa ou injuntiva) deseja enfatizar por meio de sua proposta.
Frequentemente, ao prepararmos uma proposta de produção de texto, temos uma certa expectativa e somos surpreendidos por um desenvolvimento diferente do esperado por parte dos alunos. Quando tal fato ocorre, as consequências podem ser muito produtivas para uma aula de Produção de texto. Se a inadequação ao tema for geral, devemos nos perguntar, por exemplo, se aquilo que esperávamos estava claro na proposta. Caso o problema não esteja na definição do tema, podemos detectar uma dificuldade na compreensão de algum aspecto trabalhado em sala e estaremos diante de uma boa oportunidade de retomá-lo a partir dos exemplos de inadequação identificados nas redações.
O uso da coletânea de textos
É muito difícil escrever um texto a partir do nada. Se somos solicitados a produzir um trabalho sobre um determinado tema, o procedimento natural a ser adotado é o de primeiro realizar uma pesquisa para, de posse das informações e dados selecionados pela pesquisa, escrevermos um texto sobre a questão proposta. Por que não adotarmos o mesmo procedimento com nossos alunos?
Uma coletânea é, basicamente, um conjunto de textos (verbais e não verbais) de natureza diferente (extraídos de jornais, revistas, livros, etc.) que acompanham um tema, cujo objetivo é colocar à disposição das pessoas que optem por desenvolvê-lo algumas informações que podem ser utilizadas no cumprimento da tarefa proposta.
Ao apresentar uma proposta de produção de texto acompanhada de um conjunto de informações, o professor estará proporcionando melhores condições para que seus alunos escrevam de modo mais consistente (em lugar, por exemplo, de apenas dizer que eles precisam melhorar o conteúdo...) e terá, no momento da avaliação, a oportunidade de verificar a qualidade de sua leitura. Defendemos enfaticamente o fornecimento de uma coletânea de textos que instrua melhor as propostas de produção de texto a serem trabalhadas em sala de aula porque sabemos ser esse um local privilegiado de avaliação de leitura. Os alunos, por sua vez, “obrigados” a utilizar dados extraídos da coletânea, perceberão que leitura e escrita são duas atividades interdependentes e, portanto, concluirão não ser possível produzir boa escrita sem boa leitura.
A avaliação do desenvolvimento do gênero discursivo proposto
Ao longo dos capítulos, demos uma grande atenção à caracterização da estrutura dos gêneros discursivos apresentados. É imperativo, portanto, que a avaliação dos textos produzidos em resposta aos temas propostos leve em consideração a maneira como os elementos estruturais foram trabalhados pelo aluno.
Na avaliação desse item, estaremos preocupados com as características estruturais que devem ter gêneros narrativos, expositivos, argumentativos e injuntivos, verificando em que medida o aluno se vale da estrutura característica do gênero a ser produzido para organizar seu raciocínio e apresentá-lo ao leitor de forma convincente (ou verossímil, no caso das narrativas).
Aspectos gramaticais (o uso que o aluno faz da língua escrita)
A correção gramatical é, sem dúvida, um elemento importante do texto escrito, mas precisamos tomar cuidado para não a valorizar excessivamente.
Para tanto, achamos aconselhável que o professor crie uma espécie de hierarquia gramatical. Explicando melhor, deve-se procurar determinar quais são as inadequações que realmente comprometem a compreensão do texto, por um lado, e, por outro, que evidenciam a pouca familiaridade do aluno com as estruturas próprias do texto escrito.
Poderíamos pensar, só para lembrarmos alguns desses problemas, nos seguintes aspectos: utilização dos tempos e modos verbais (com o cuidado de di ferenciar o aluno que tem apenas um problema de acentuação gráfica, confundindo, digamos, falara e falará, por usar o acento de forma equivocada, daquele que realmente optou por uma flexão de tempo inadequada); concordâncias verbal e nominal; escolha lexical (por exemplo, a substituição sistemática de ter por possuir, ou porque por pois, como se houvesse palavras “melhores” e “piores”, etc.); interferência excessiva de estruturas da linguagem oral no texto escrito.
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Avaliar o uso da modalidade escrita da língua portuguesa não deve significar, no entanto, uma mera contagem de “erros”. O professor precisa reconhecer os casos em que o aluno optou por uma estrutura sintática, ou mesmo por uma determinada palavra, e que essa opção contribuiu significativamente para o texto resultante. Estamos tão acostumados a corrigir “erros” que abandonamos por completo a observação dos acertos, e essa é uma atitude a ser evitada. Cabe ao professor identificar tanto os erros quanto os acertos e ponderá-los ao fazer sua avaliação.
Coerência
Todo texto escrito deve apresentar uma unidade lógica, algo a que nos referiremos, a partir dessa definição bastante simplificada, como coerência. A avaliação da coerência de um texto está muito relacionada ao domínio que o aluno tem da estrutura característica do gênero do discurso a ser produzido e da qualidade da leitura que é capaz de fazer do tema e da coletânea.
No caso de textos de natureza argumentativa, observar a construção da coerência do texto significa estar atento à maneira como o aluno desenvolve sua redação. Muitas vezes, em lugar de relacionar fatos, argumentos, dados, ele apenas se limita a comentá-los. No caso de temas acompanhados de coletâneas, esse procedimento prejudica a articulação textual, o que, consequentemente, compromete a coerência. É comum, também, o aluno utilizar (sem perceber) dois elementos da coletânea que são contraditórios, como se fossem complementares... situações como essas são avaliadas no item coerência.
Falar em coerência narrativa implica discutir o conceito de verossimilhança, ou, em outras palavras, a possibilidade de criação de um mundo ficcional em que acontecimentos irreais pareçam possíveis. O leitor de narrativas é bastante tolerante nesse sentido, estando disposto a aceitar as premissas criadas por um narrador para o comportamento de personagens no interior de um mundo ficcional (podemos pensar nos contos de fadas como exemplo óbvio), mas costuma exigir que tais premissas sejam respeitadas ao longo do texto. Soluções apresentadas abruptamente, no final da narrativa, que não foram sendo preparadas ao longo do desenvolvimento do enredo, não costumam contribuir muito para a construção da coerência desse tipo de texto, e o professor precisa estar atento para isso ao avaliar textos narrativos escritos por seus alunos.
Coesão
Ainda com relação à organização gramatical e semântica do texto, podemos considerar um último critério: a coesão. Um texto coeso pode ser definido, de forma bastante simplificada, como aquele que apresenta unidade e uma perfeita relação entre todas as suas partes. Para que isso ocorra, o aluno precisará valer-se de algumas estruturas que, na língua, cumprem exatamente a função de garantir a coesão dos textos. São elementos coesivos, por exemplo, os pronomes, as conjunções, a pontuação, apenas para lembrarmos alguns.
Certamente poderíamos verificar a utilização de tais recursos no momento em que estivéssemos avaliando a correção gramatical, mas acreditamos ser mais interessante “separar” os aspectos puramente gramaticais da análise dos recursos coesivos. Explicamos por quê.
Em primeiro lugar, essa opção justifica-se pela maior importância, na construção do texto escrito, dos recursos coesivos. Sempre seremos capazes de entender o que um aluno quis dizer ao escrever “assucar”, mesmo que ele tenha usado dois esses em lugar do cê-cedilha, e tenha esquecido a regra de acentuação das paroxítonas terminadas em r. Mas nem sempre seremos capazes de recuperar, por exemplo, o referente de um pronome mal empregado. O caso mais dramático talvez seja o dos possessivos de 3ª pessoa (seu e sua), que provocam muitos casos de ambiguidade quando utilizados de forma inadequada.
Um segundo motivo, ainda mais forte do que o primeiro, é a íntima relação entre alguns problemas de coesão e o que podemos chamar de problemas de coerência. São frequentes os casos em que a escolha inadequada de uma conjunção (recurso coesivo) prejudica a compreensão de uma relação entre duas estruturas sintáticas. Podemos dizer: O ladrão foi preso porque assaltou o banco, ou O ladrão foi preso quando assaltou o banco, mas certamente não estamos autorizados, em termos lógicos, a dizer O ladrão foi preso apesar de ter assaltado o banco. Trata-se de escolher entre diferentes conjunções (respectivamente, causal, temporal e concessiva), para, por meio dessa escolha, explicitarmos como deve ser entendida a relação semântica entre diferentes estruturas sintáticas; por vezes, algumas relações não são aceitáveis em termos de coerência, como é o caso da relação de concessão entre o assalto ao banco e a prisão do ladrão. Em ocorrências como essas, diz-se que um problema de coesão afetou dramaticamente a coerência do que está sendo dito. Por outro lado, um problema de concordância, acentuação ou ortografia muito dificilmente provocaria o mesmo tipo de consequência para o texto escrito. Por esses motivos, achamos melhor analisar a coesão separadamente da correção gramatical nas redações de nossos alunos.
Por que a criatividade não deve ser um critério?
Podemos, agora, voltar à noção de criatividade no texto escrito. A análise dos diferentes aspectos responsáveis pela estruturação de um texto permite ao professor determinar em qual(is) dele(s) o aluno sobressaiu em relação a seus colegas. Um desempenho acima da média, ou mesmo excepcional, no trabalho com o foco narrativo, ou com a articulação de argumentos, deverá refletir-se na nota que o professor atribuirá ao trabalho realizado por aquele
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aluno com relação à estrutura de um gênero narrativo ou argumentativo.
É bem possível que, em uma avaliação holística, essa mesma redação fosse considerada “criativa”. No entanto, se forem utilizados critérios específicos em lugar de uma mera “impressão”, o professor recompensará o aluno tendo condições de determinar exatamente qual, dentre os vários elementos analisados, ele soube desenvolver melhor do que seus colegas.
Por que recorrer à “criatividade” quando podemos mostrar a nossos alunos que um bom texto é aquele que traz marcas de autoria, pois é fruto de um trabalho cuidadoso com cada um dos elementos constitutivos do gênero a ser desenvolvido?
Sugestões de leitura
Para começar a refletir
Como fazer com que os alunos não transformem as atividades de leitura e escrita em meros exercícios escolares? Essa é, sem dúvida, uma questão que preocupa os professores, porque sabem que, enquanto as atividades de leitura e produção de textos não ganharem significado para os alunos, muito dificilmente eles farão o investimento necessário para conquistar a autonomia com relação aos textos que leem e escrevem.
No texto apresentado a seguir, a professora Irandé Antunes enfrenta essa questão, defendendo que a adoção de uma visão de escrita “processual e interativa”, fundamentada nas noções de interdiscursividade/ intertextualidade, tem o potencial de criar o espaço de interlocução necessário para que os alunos percebam a importância dos usos sociais efetivos da escrita e da leitura em uma cultura letrada como a nossa.
Da intertextualidade à ampliação da competência na escrita de textos
Introdução
Minha reflexão pretende ser, no momento, uma contribuição para a didática da escrita, tomando como ponto de apoio aspectos pragmáticos da textualidade linguística.
O interesse dos linguistas por minimizar as distâncias que separam a investigação acadêmica da prática pedagógica de ensino das línguas, nomeadamente no que se refere à ampliação da competência para a escrita, tem motivado um grande número de pesquisas científicas. Tais pesquisas, como muito bem se poderia esperar, têm atentado prioritariamente para a natureza da escrita enquanto atividade processual e interativa e, bem menos, para sua dimensão mais restrita de mero desempenho mecânico, que resulta em um produto acabado, quase sempre, fruto de uma versão única. É nessa direção processual e interativa que oriento também a presente reflexão.
Tem sido consensual a observação de que, mesmo nos estágios mais avançados da escolarização (incluindo aqui o universo da pós-graduação), as pessoas revelam dificuldades no desempenho da escrita de textos formais, relevantes e coerentes. À pergunta se, na verdade, existem textos incoerentes, costuma-se apontar o universo da escola (sobretudo no fundamental e médio) como sendo aquele reduto onde podem ser encontrados exemplares bem próximos daquilo que se poderia caracterizar como textos incoerentes, ou “não textos”. Parece que, às dificuldades normais que a escrita poderia comportar, somam-se outras, quando essa escrita preenche apenas a condição prática escolar, ou seja, quando essa escrita se esgota no conhecido exercício escolar de redação.
Na análise dos fatores que estariam na gênese do problema, tem-se nomeado:
• o caráter de artificialidade dos contextos escolares que a escrita é solicitada;
• a ausência de uma dialogicidade, ainda que apenas simulada;
• o afastamento das propostas de produção escrita em relação aos usos sociais que efetivamente são feitos;
• a representação que os alunos construíram, na própria escola, acerca da escrita e dos requisitos que determinam sua adequação e qualidade;
• a estreiteza na compreensão das operações processuais implicadas na atividade de escrever.
Com base na abrangência desses fatores, muitos parâmetros podem ser tomados como fundamento para consideração do problema. Entretanto, escolho, no momento, deter-me no aspecto da condição processual da escrita — um desdobramento da própria natureza da linguagem —, por considerar seu grande alcance e relevância para uma didática da escrita que seja mais eficiente.
Considerar a escrita sob a ótica da atividade processual nos leva, naturalmente, à noção da intertextualidade. Nesse ponto, admito, pode ter início uma escrita que, mesmo sendo exercício de aprendizagem, deve e pode ultrapassar o aspecto vazio e sem sentido da atividade escolar que começa com a proposta do instrutor e acaba no produto que é apresentado a seus olhos de mero avaliador.
[...]
O pressuposto dessa proposta não é outro senão o princípio de que toda interação verbal é apenas um elo de uma grande cadeia, que se estende indefinida e ininterruptamente, perpassando a história da própria humanidade. A escrita, portanto, é uma atividade socializada e socializante, pela qual se efetiva e se assinala a continuidade das concepções e se marca a trajetória humana.
Em suma, proponho uma visão de escrita, processual e interativa, que se fundamenta nas noções da interdiscursividade ou da intertextualidade, conforme passamos a expor a seguir.
Retomando a noção de intertextualidade
Em um sentido bem amplo, a noção de intertextualidade remonta, como adiantamos logo atrás, à ideia de que a humanidade, no curso de sua história, realiza um único e permanente discurso, que se vai compondo, que se vai completando, articu-
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lando e refazendo, de maneira que poderíamos vê-lo com uma grande linha, inteira e sem rupturas. Dessa forma, todos os nossos discursos apenas continuam os discursos anteriores, e a originalidade total de cada discurso está, simplesmente, em nunca ser a primeira palavra. A multidão de todas as outras pessoas que nos precederam e com quem convivemos fala pela nossa voz. Como poeticamente diz Ferreira Gullar, em seu poema Muitas vozes:
Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes arrasta em alarido.
Pressupõe-se, nessa primeira dimensão, uma intertextualidade ampla, tácita, praticamente inevitável. É aí que se situa, por exemplo, a questão da tipologia textual, segundo propõem, entre outros, Beaugrande & Dressler [...], pois qualquer texto, na sua estruturação e organização, constitui, por si só uma marca de intertextualidade, uma vez que tipos e gêneros são regulados por modelos prévios em circulação. “Os textos se apoiam em outros textos”, afirma Bazerman no título de um dos capítulos de seu livro Gênero, agência e escrita [...].
Assim, todo texto é, sob qualquer condição, um intertexto, na medida em que, como tipo e como gênero, se enquadra num modelo específico — o seu arquétipo — socialmente recorrente e reconhecido como um exemplar concreto. É da conformação de um determinado texto às particularidades enunciativas de seu tipo ou de seu gênero que decorrem os esquemas superestruturais de sua organização, uma das condições que lhe garantem adequação e relevância. A intertextualidade é, pois, uma das propriedades constitutivas de qualquer texto, ao lado da coesão, da coerência, da informatividade, entre outras.
Ainda no domínio dessa intertextualidade mais vasta, insere-se tudo quanto, em um texto, pressupõe a remissão, mesmo que não declarada, a outros textos prévios. Por esse viés, fica postulada uma intertextualidade de extrema amplitude, pois se torna imensamente difícil discernir o que não está vinculado ao conhecimento prévio de outros textos, principalmente se ‘texto’ está significando, aqui — o que é legítimo supor — toda e qualquer atuação semiológica verbal.
Em um sentido mais restrito, se entende a intertextualidade como a operação que se efetiva pela inserção explícita de determinado texto em outro texto. Na verdade, essa inserção costuma ser de um fragmento (maior ou menor) de um texto em outro, como acabei de fazer em relação ao poema de Ferreira Gullar. Essa inserção, ainda, pode remeter, ipsis litteris, ao texto de origem, ou pode assumir a forma de uma paráfrase (o mesmo dito com outras palavras) ou de uma alusão, apenas, sem referências indicativas de sua procedência.
De qualquer forma, seja em sentido amplo, seja em sentido restrito, todo texto, na sua produção e na sua recepção, está ligado ao conhecimento que os interlocutores têm acerca de outros textos previamente postos em circulação. Ou seja, recorre-se à intromissão de outro(s) texto(s), em um texto particular, como uma forma natural de a atividade comunicativa ocorrer.
Em síntese, igual ao que ocorre na coesão ou na coerência a intertextualidade entra na determinação dos parâmetros de constituição do texto, como resultado inevitável da sua natural ancoragem em conhecimentos já existentes, veiculados por diferentes materiais anteriormente em circulação.
[...]
É essa intertextualidade ampla, difusa, interdisciplinar, sedimentada no saber já produzido, sistematizado e divulgado pela comunidade, que me interessa, agora, para a análise da atividade da escrita. É nessa intertextualidade, assim, externa ao espaço pedagógico e anterior ao momento da produção textual, que me firmo para propor uma didática da escrita apoiada nos parâmetros mais amplos e mais remotos de repertórios informacionais.
Sabe-se que a dimensão da intertextualidade representa, sem dúvida, um referencial para a determinação dos recursos linguísticos a serem utilizados e, dessa forma, constitui um suporte para o cálculo da adequação do texto às suas situações de ocorrência.
A atividade de escrever: onde e quando começa?
Quando a escola se propõe a ensinar a produção de textos, na verdade, ela deverá objetivar capacitar os alunos para a prática social da múltipla e funcional comunicação oral e escrita. De outra maneira, não teria sentido nem o trabalho de quem ensina nem o esforço outro de quem se dispõe a aprender.
Retomando o caráter funcional e pragmático do exercício da linguagem, volto ao princípio de que a escrita é uma atividade de intercâmbio e interação, na qual determinado modo de atuar passa pelo contingente do ‘dizer’ verbal.
E retomando, ainda, o ponto da intertextualidade acima apresentado, parto do princípio de que esse dizer verbal não surge, não irrompe na instância imediata da sua materialização, o que equivale a afirmar que ele remonta a outros dizeres a partir dos quais se efetiva. A escrita de um texto não começa nem no espaço nem no momento em que são “traçadas as primeiras linhas”. Começa muito antes. Bem antes, mesmo.
Com base nesse princípio é que se pode admitir que elaborar ou redigir um texto, em medidas diferentes, comporta, entre outras, operações de:
a) recapitulação,
b) remontagem,
c) reenquadramento associativo de conceitos, dados e informações,
d) conformação a um tipo e a um gênero de texto socialmente determinado.
As três primeiras operações, é evidente, implicam a ativação de conhecimentos já adquiridos, providenciados remota ou proximamente, direta ou indiretamente, de modo a permitirem que, de um ponto anterior, se avance na configuração de uma instância comunicativa relevante. Ou para fazer desse ponto suporte, apenas, de novas abordagens, ou para fazê-lo avançar, ou para confirmá-lo, ou refutá-lo. De tal forma que cada novo texto traz reutilizado, recapitulado ou, melhor dizendo, reenquadrado outro ou outros textos precedentes. Essa reutilização é relevante ainda pelo fato de possibilitar que, a partir
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dos textos retomados, o falante ou escritor se posicionem e elaborem seus próprios argumentos.
A última das operações, aquela ligada às tipologias do texto que se pretende produzir, remete para outra espécie de saber prévio: a dos esquemas superestruturais de organização dos textos, ligados, por sua vez, aos tipos de situação e de eventos culturalmente construídos [...].
O exercício da escrita escolar
Sem entrar em maiores considerações, quero partir do estado pouco positivo e pouco expressivo da produção de gêneros escritos na escola, fixando-me, particularmente, em aspectos de sua coerência e de sua relevância conteudística. Quero partir da admissão de que as deficiências mais significativas dessas produções advêm não de competências locais, ligadas a paradigmas linguísticos, principalmente aqueles de teor gramatical. Quero partir da confirmação de que a didática da escrita se tem concentrado na aquisição desses paradigmas, os quais, se são legítimos, não deixam de ser parciais e insuficientes. Quero partir da certeza de que a concentração nesses paradigmas gramaticais tem afastado professor e aluno do escopo mais amplo que constitui a atividade da escrita — a qual é processo que se realiza, repito, por uma série de operações e não ato isolado, dependente de competências imediatas e pontuais.
Essa consideração me leva a indicar, retomando, até certo ponto, elementos de outras propostas anteriores, que o insucesso da escrita escolar é responsabilidade mais de outros fatores do que do componente linguístico. Na verdade, esse insucesso tem raízes em espaços e momentos anteriores àqueles da elaboração de um trabalho escrito. Tem raízes na ausência de uma condição básica, insubstituível, necessária, que é ter o que dizer. Ou seja, tem raízes na contingência daquela intertextualidade não estimulada, não providenciada na escola, que se satisfaz na rotina de escrever textos sem discussão prévia de informações e dados, sem planejamento, sem rascunhos, imobilizada numa única versão, em geral, improvisada.
Dessa preparação — próxima e remota — é que se poderia partir para aquelas [...] operações de:
• recapitulação, ou que partes do que eu já sei podem ser trazidas para o texto que escrevo no momento?
• de remontagem, ou como posso dar a esse saber acumulado um novo rosto, uma nova formulação?
• de reenquadramento, ou em que pontos ou sob que outras perspectivas posso avançar na inserção dos saberes recapitulados e remontados?
Sem essa intertextualidade, provedora de um repertório de dados, de informações, de conceitos, de princípios, de outras narrativas, de que forma administrar o processo de redigir seja o que for, desde sua primeira planificação até o momento final de sua elaboração?
Uma evidência nem sempre tida em conta na didática da escrita é que, anterior ao “como dizer” ou “em que ordem dizer”, está “o que dizer”, ponto onde começa, inclusive, a condição de relevância do texto. O princípio da “expressabilidade” defendido pela pragmática linguística, segundo o qual “tudo o que se quer dizer pode ser dito” (nas palavras de Searle [...]) pressupõe que algo há para ser dito, ou seja, algo está mnemonicamente disponível para ser, na hora devida, acionado.
Na normalidade dos casos, esse algo a ser dito não é inteiramente original, pelo menos desde o ponto de ancoragem, já que o “novo” pressupõe um “dado” em relação ao qual ele pode ser considerado novo. Isso é mais admissível ainda quando se trata de comentários, de textos de opinião e outros de natureza expositiva ou argumentativa (os tais textos dissertativos tão usuais na prática escolar).
Pelo viés exposto, parece-me podermos chegar a um dos pontos radicais para explicar os maus desempenhos dos alunos em suas tarefas escolares. Com muito poucas exceções, tais exercícios são propostos, quase sempre, sem a providência de uma operação precedente de armazenamento de informações e, dessa forma, são realizados sob a precariedade de paradigmas, de onde não é possível partir para uma produção particular relevante, a qual, na verdade, é original sem deixar de ser reconsideração, reenquadramento ou reinvenção.
A escrita produzida na escola, mesmo aquela sob a condição do treino ou do exercício, nunca deveria ser uma escrita pontual, no sentido de ser construída no momento imediato de sua materialização gráfica, como se escrever não implicasse uma atividade processual constituída na sucessividade de operações diversas e igualmente determinantes.
A natureza de tais operações conduz a que, forçosamente, qualquer atividade de redação se inicie muito antes até mesmo do momento pré-escritural da planificação. Isto é, se inicie na consulta, na confrontação com outros materiais, de qualquer forma atinentes aos tópicos que se pretende comentar.
A continuidade que sob esse modelo é promovida sela a natureza dialógica de toda a criação, que, sendo novidade, o é pela relativa mobilização e retomada de unidades, elementos ou aspectos disponíveis pelo conhecimento de outras produções anteriores.
Em nenhum momento, pretendo que a mobilização dos dados e das informações prévias fique restrita ao planejamento imediato que antecede o exercício motor da escrita. Nem mesmo essa atividade de planificação está aqui, primariamente, em jogo.
O que pretendo ressaltar — no empenho de emprestar à didática da escrita um cunho verdadeiramente interdisciplinar — é a necessidade, a curto e a longo prazos, de aquisição, de ampliação de repertórios, amplos, diversificados e relevantes, a partir dos quais possa ser possível a construção de novas exposições, de novos comentários, de novas análises. Não só: é necessário que sejam explicitadas as regras desse jogo, desse quase ritual de recuperação e de reaproveitamento das “lições” anteriormente aprendidas.
Talvez, nessa perspectiva, tivesse mais interesse entrar em contato com os escritos dos outros. Talvez, assim, pudéssemos constatar mais êxito na tarefa de redigir.
[...]
Antunes, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola, 2009. p. 161-169. (Fragmento).
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Montando a sua estante
Dos muitos livros consultados durante a elaboração desta obra, selecionamos alguns cuja leitura pode se mostrar valiosa para a reflexão sobre os diferentes gêneros do discurso ou que nos ajudaram a desenvolver a perspectiva metodológica adotada.
A leitura desses títulos contribuirá não só para ampliar a formação do professor, mas também para auxiliá-lo a definir novas estratégias de abordagem e discussão dos gêneros do discurso.
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