- Você é um dos bons teólogos do reino. Você está predestinado por Deus para um bispado. Você ainda apanha a mitra. Você há-de ficar na história da Igreja portuguesa como um grande bispo, Ferrão!
- Bispo, senhor vigário-geral! Isso era bom! Mas era necessário que eu tivesse o arrojo dum Afonso de Albuquerque ou dum D. João de Castro, para aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!
E ali ficara, entre gente pobre, numa aldeia de terra escassa, vivendo de dois pedaços de pão e uma chávena de leite, com uma batina limpa onde os remendos faziam um mapa, precipitando-se a uma meia légua por um temporal desfeito se um paroquiano tinha uma dor de dentes, passando uma hora a consolar uma velha z quem tinha morrido uma cabra... E sempre de bom humor, sempre com um cruzado no fundo do bolso dos calções para uma necessidade do seu vizinho, grande amigo de todos os rapazitos a quem fazia botes de cortiça, e não duvidando parar, se encontrava uma rapariga bonita, o que era raro na freguesia, e exclamar: "Linda moça, Deus a abençoe! "
E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes era tão célebre, que lhe chamavam "a donzela".
De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando horas de estação aos pés do Santíssimo Sacramento; cumprindo com uma felicidade fervente as menores práticas da vida devota; purificando-se para os trabalhos do dia com uma profunda oração mental, uma meditação de fé, de onde a sua alma saía ágil, como dum banho fortificante; preparando-se para o sono com um destes longos e piedosos exames de consciência, tão úteis, que Santo Agostinho e S. Bernardo faziam do mesmo modo que Plutarco e Sêneca, e que são a correção laboriosa e sutil dos pequenos defeitos, o aperfeiçoamento meticuloso da virtude ativa, empreendido com um fervor de poeta que revê um poema querido... E todo o tempo que tinha vago abismava-se num caos de livros.
Tinha só um defeito o abade Ferrão: gostava de caçar! Coibia-se, porque a caça tira muito tempo, e é sanguinário matar uma pobre ave que anda azafamada pelos campos nos seus negócios domésticos. Mas nas claras manhãs de Inverno, quando ainda há orvalho nas giestas, se via passar um homem de espingarda ao ombro, o passo vivo, seguido do seu perdigueiro - iam-se-lhe os olhos nele... Às vezes, porém, a tentação vencia; agarrava furtivamente a espingarda, assobiava à Janota, e com as abas do casacão ao vento, lá ia o teólogo ilustre, o espelho da piedade, através de campos e vales... E daí a pouco - pum... pum! Uma codorniz, uma perdiz em terra! E lá voltava o santo homem com a espingarda debaixo do braço, os dois pássaros na algibeira, cosendo-se com os muros, rezando o seu rosário à Virgem, e respondendo aos bons-dias da gente pelo caminho com os olhos baixos e o ar muito criminoso.
O abade Ferrão, apesar do seu aspecto "gebo" e do seu grande nariz, agradou a Amélia, logo desde a primeira visita à Ricoça; e a sua simpatia cresceu, quando viu que D. Josefa o recebia com pouco alvoroço, apesar do respeito que o mano cônego tinha pela ciência do abade.
A velha, com efeito, depois de ter estado só com ele numa prática de horas, condenara-o com uma única palavra, na sua autoridade de velha devota experiente:
- É relaxado!
Não se tinham realmente compreendido. O bom Ferrão, tendo vivido tantos anos naquela paróquia de quinhentas almas, as quais caíam todas, de mães e filhas, no mesmo molde de devoção simples a Nosso Senhor, Nossa Senhora e S. Vicente, patrono da freguesia, tendo pouca experiência de confissão, encontrava-se, subitamente, diante duma alma complicada de devota da cidade, dum beatério caturra e atormentado; e ao ouvir aquela extraordinária lista de pecados mortais, murmurava espantado:
- É estranho, é estranho...
Percebera bem ao princípio que tinha diante de si uma dessas degenerações mórbidas do sentimento religioso, que a teologia chama Doença dos escrúpulos - e de que na sua generalidade estão afetadas hoje todas as almas católicas; mas depois, a certas revelações da velha, receou estar realmente em presença duma maníaca perigosa; e instintivamente, com o singular horror que os sacerdotes têm pelos doidos, recuou a cadeira.
Pobre D. Josefa! Logo na primeira noite em que chegara è Ricoça (contava ela), ao começar o rosário a Nossa Senhora, lembra-lhe de repente que lhe esquecera o saiote de flanela escarlate, que era tão eficaz nas dores das pemas... Trinta e oito vezes de seguida recomeçara o rosário, e sempre o saiote escarlate se interpunha entre ela e Nossa Senhora!... Então desistira, de exausta, de esfalfada. E imediatamente sentira dores vivas nas pernas, e tivera como uma voz de dentro a dizer-lhe que era Nossa Senhora por vingança a espetar-lhe alfinetes nas pemas...
O abade pulou:
- Oh minha senhora!...
- Ai, não é tudo, senhor abade!
Havia outro pecado que a torturava: quando rezava, às vezes, sentia vir expectoração; e, tendo ainda o nome de Deus ou da Virgem na boca, tinha de escarrar; ultimamente engolia o escarro, mas estivera pensando que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia de embrulhada para o estômago e se ia misturar com. as fezes! Que havia de fazer?
O abade, de olhar esgazeado, limpava o suor da testa.
Mas isto não era o pior: o grave era, que na noite antecedente, estava toda sossegada, toda em virtude, a rezar a S. Francisco Xavier - e de repente, nem ela soube como, pôs-se a pensar como seria S. Francisco Xavier nu em pêlo!
O bom Ferrão não se moveu, atordoado. Enfim, vendo-a olhar ansiosa para ele à espera das suas palavras e dos seus conselhos, disse:
- E há muito que sente esses terrores, essas dúvidas...?
- Sempre, senhor abade, sempre!
- E tem convivido com pessoas que, como a senhora, são sujeitas a essas inquietações?
- Todas as pessoas que conheço, dúzias de amigas, todo o mundo... O inimigo não me escolheu só a mim... A todos se atira...
- E que remédio dava a essas ansiedades de alma...?
- Ai, senhor abade, aqueles santos da cidade, o senhor pároco, o Sr. Silvério, o Sr. Guedes, todos, todos nos tiravam sempre de embaraços... E com uma habilidade, com uma virtude...
O abade Ferrão ficou calado um momento: sentia-se triste, pensando que por todo o reino tantos centenares de sacerdotes trazem assim voluntariamente o rebanho naquelas trevas de alma, mantendo o mundo dos fiéis num terror abjeto do Céu, representando Deus e os seus santos como uma corte que não é menos corrompida, nem melhor, que a de Calígula e dos seus libertos.
Quis então levar àquele noturno cérebro de devota, povoado de fantasmagorias, uma luz mais alta e mais larga. Disse-lhe que todas as suas inquietações vinham da imaginação torturada pelo terror de ofender a Deus... Que o Senhor não era um amo feroz e furioso, mas um pai indulgente e amigo... Que é por amor que é necessário servi-lo, não por medo... Que todos esses escrúpulos, Nossa Senhora a enterrar alfinetes, o nome de Deus a cair no estômago, eram perturbações da razão doente. Aconselhou-lhe confiança em Deus, bom regime para ganhar forças. Que não se cansasse em orações exageradas...
- E quando eu voltar, disse enfim erguendo-se e despedindo-se, continuaremos a conversar sobre isto, e havemos de serenar essa alma.
- Obrigada, senhor abade, respondeu a velha secamente.
E apenas a Gertrudes daí a pouco entrou a trazer-lhe a botija para os pés, D. Josefa exclamou, toda indignada, quase choramigando:
- Ai, não presta para nada, não presta para nada!... Não me percebeu... É um tapado... É um pedreiro-livre, Gertrudes! Que vergonha num sacerdote do Senhor...
Desde esse dia não tornou a revelar ao abade os pecados medonhos que continuava a cometer; e quando ele, por dever, quis recomeçar a educação da sua alma, a velha declarou-lhe sem rodeios que, como se confessava com o Sr, padre Gusmão, não sabia se seria delicado receber de outro a direção moral...
O abade fez-se vermelho, respondeu:
- Tem razão, minha senhora, tem razão, deve-se ter muita delicadeza nessas coisas...
Saiu. E daí por diante, depois de ter entrado no quarto a saber-lhe da saúde, de ter falado do tempo, da estação, das doenças que iam, de alguma festa na igreja, - apressava-se em se despedir e ir para o terraço conversar com Amélia.
Vendo-a sempre tão tristonha, interessara-se por ela; para Amélia, as visitas do abade eram uma distração, naquela solidão da Ricoça; e assim se iam familiarizando, a ponto que nos dias em que ele regularmente vinha, Amélia punha um mantelete e ia pelo caminho dos Poiais esperá-lo até junto da casa do ferrador. As conversas do abade, falador incansável, entretinham-na, tão diferentes dos mexericos da Rua da Misericórdia, - como o espetáculo dum largo vale com árvores, plantações, águas, pomares e rumor de lavouras, recreia os olhos habituados às quatro paredes caiadas duma trapeira da cidade. Tinha com efeito uma destas conversações semelhantes aos jornais semanais de recreio, o TESOURO DAS FAMÍLIAS ou as LEITURAS PARA SERÕES, em que há de tudo - doutrina moral, histórias de viagens, anedotas de grandes homens, dissertações sobre a lavoura, citação duma boa chalaça, traços sublimes da vida dum santo, um verso aqui e além, e até receitas, como uma muito útil que deu a Amélia para lavar as flanelas sem encolherem. Só era monótono quando falava da sua família paroquiana, dos casamentos, batizados, doenças, questões, ou quando começava as suas histórias de caça.
- Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Córrego das Tristes, quando uma revoada de perdizes...
Amélia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam façanhas da Janota, pontarias fabulosas contadas em mímica, com imitações de vozes de pássaros, e pum, pum de fuzilaria. Ou então era descrições das caçadas selvagens que ele lera com gula - a caça ao tigre do Nepal, ao leão da Argélia e ao elefante, histórias ferozes que arrastavam a imaginação da rapariga para longe, para os países exóticos onde a erva é alta como os pinheiros, o sol queima como um ferro em brasa, e entre cada ramagem reluzem os olhos duma fera... E depois, a propósito de tigres e de malaios, lembrava- lhe um história curiosa de S. Francisco Xavier, e ei-lo lançado, o terrível palrador, na descrição dos feitos da Ásia, das armadas da Índia e das estocadas famosas do cerco de Dio!
Foi mesmo um desses dias, no pomar, em que o abade, tendo começado por enumerar as vantagens que o cônego tiraria de transformar o pomar em terra de lavoura, acabara por contar perigos e valores dos missionários da Índia e do Japão - que Amélia, então em toda a intensidade dos seus terrores noturnos, falou dos ruídos que ouvia na casa e dos sobressaltos que lhe davam.
- Oh, que vergonha! disse o abade rindo; uma senhora da sua idade ter medo de papões...
Ela então, atraída por aquela bondade do senhor abade, contou-lhe as vozes que ouvia de noite por detrás da barra da cama.
O abade pôs-se sério:
- Minha senhora, isso são imaginações que deve a todo o custo dominar... Decerto tem havido prodígios no mundo, mas Deus não se põe assim a falar a qualquer, por detrás das barras das camas, nem permite ao demônio que o faça... Essas vozes, se as ouve, e se os seus pecados são grandes, não vêm de detrás da cama, vêm-lhe de si mesma, da sua consciência... E pode então fazer dormir ao pé de si a Gertrudes, e sem Gertrudes, e todo o batalhão de infantaria, que as há-de continuar a ouvir... Havia de as ouvir, mesmo que fosse surda. O que é necessário é calmar a consciência que reclama penitência e purificação...
Tinham subido ao terraço, falando assim: e Amélia sentara-se fatigada num dos bancos de pedra que ali havia, e ficara a olhar a quinta ao longe, os tetos dos currais, a longa rua de loureiros, a eira, e a distância os campos que se sucediam planos e avivados do tom úmido que lhes dera a chuva ligeira da manhã: agora a tarde estava de uma placidez clara, sem vento, com grandes nuvens paradas que o sol do poente tocava de vivos cor-de-rosa tenro... Pensava naquelas palavras tão sensatas do abade, no descanso que gozaria se cada pecado que lhe pesava na alma como um penedo se tomasse ligeiro e se dissipasse sob a ação da penitência. E vinham-lhe desejos de paz, dum repouso igual à quietação dos campos que se estendiam diante dela.
Um pássaro cantou, depois calou-se; e recomeçou dai a um momento com um trinado tão vibrante, tão alegre, que Amélia sorria, escutando-o.
- É um rouxinol...
- Os rouxinóis não cantam a esta hora, disse o abade. É um melro... Aí está um que não tem medo de fantasmas, nem ouve vozes... Olhe que entusiasmo, o maganão!
Era com efeito um gorjear triunfante, um delírio de melro feliz, que dera de repente a todo o pomar uma sonoridade festiva.
E Amélia, diante daquele chilrear glorioso dum pássaro contente, subitamente, sem razão, num destes abalos nervosos que vêm às mulheres histéricas, rompeu a chorar.
- Então, que é isso, que é isso? fez o abade muito surpreendido.
Tomou-lhe a mão, com uma familiaridade de velho e de amigo, calmando-a.
- Que infeliz que sou!.., murmurou ela aos soluços.
Ele então muito paternal:
- Não tem razão para o ser... Sejam quais forem as aflições, as inquietações, uma alma cristã tem sempre a consolação à mão... Não há pecado que Deus não perdoe, nem dor que não calme, lembre-se disso... O que não deve é guardar em si o seu desgosto... É isso que sufoca, que a faz chorar... Se eu lhe posso valer, sossegá-la, é procurar-me...
- Quando? disse ela toda desejosa já de se refugiar na proteção daquele santo homem.
- Quando quiser, disse ele rindo. Eu não tenho horas para consolar... A igreja está sempre aberta, Deus está sempre presente...
Ao outro dia cedo, antes da hora em que a velha se erguia, Amélia foi à residência; e durante duas horas esteve prostrada diante do pequeno confessionário de pinho - que o bom abade por suas mãos pintara de azul-escuro, com extraordinárias cabecinhas de anjos que em lugar de orelhas tinham asas, uma obra de alta arte de que ele falava com uma secreta vaidade.
Capítulo XXII
O padre Amaro acabara de jantar, e fumava, com os olhos no teto, para não ver o carão chupado do coadjutor que havia meia hora ali estava, imóvel e espectral, fazendo cada dez minutos uma pergunta que caía no silêncio da sala como os quartos melancólicos que dá de noite um relógio de catedral.
- O senhor pároco já não é assinante da Nação?
- Não. senhor, leio o Popular.
O coadjutor recaiu num silêncio, começando logo a coligir laboriosamente as palavras para uma nova pergunta. Soltou-a enfim, com lentidão:
- Não se tornou a saber daquele infame que escreveu o Comunicado?
- Não senhor, foi para o Brasil.
A criada entrou, neste momento, dizendo que "estava ali uma pessoa que queria falar ao senhor pároco". Era a sua maneira de anunciar a presença de Dionísia na cozinha.
Havia semanas que ela não aparecia - e Amaro, curioso, saiu logo da sala fechando a porta sobre si, e chamou a matrona ao patamar.
- Grande novidade, senhor pároco! E vim a correr, que é sério. Está cá o João Eduardo!
- Ora essa! exclamou o pároco. E eu justamente a falar dele! É extraordinário. Olha que coincidência...
- É verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E já estou informada de tudo. O homem está mestre dos filhos do Morgadinho.
- Que Morgadinho?
- O Morgadinho dos Poiais... Se vive lá, ou se vai pela manhã e vem à noite, isso não sei. O que sei é que voltou... E janota, fato novo...
Eu entendi que devia avisar, porque pode estar certo que ele, mais dia menos dia, dá pela Ameliazinha lá na Ricoça... É no caminho para casa do Morgado... Que lhe parece?...
- Forte besta! rosnou Amaro com rancor. Quando não serve é que aparece. Então por fim não foi para o Brasil?
- Pelos modos, não... Que a sombra dele não era, era ele mesmo em carne e osso... A sair da loja do Fernandes por sinal, e todo peralta... Sempre é bom avisar a rapariga, senhor pároco, que se não vá ela plantar de janela...
Amaro deu-lhe as duas placas que ela esperava - e daí a um quarto de hora, desembaraçado do coadjutor, ia no caminho da Ricoça.
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Batia-lhe forte o coração quando avistou o casarão amarelo, pintado de novo, o largo terraço lateral em linha com o muro do pomar, ornado de espaço a espaço no parapeito de vasos nobres de pedra. Ia enfim, depois de tão longas semanas, ver a sua Ameliazinha! E já se alvoroçava à idéia das exclamações apaixonadas com que ela lhe cairia nos braços.
Ao rés-do-chão eram as cavalariças, do tempo da família morgada que outrora ali habitara, agora abandonadas às ratazanas e aos tortulhos, recebendo a luz por estreitas janelas gradeadas que quase desapareciam sob camadas de teias de aranha; entrava-se por um imenso pátio escuro, onde havia longos anos se acastelava a um canto toda uma montanha de pipas vazias; e o lance de escadaria nobre, que levava aos aposentos, era à direita, flanqueado de dois leõezinhos de pedra, benignos e sonolentos.
Amaro subiu até um salão de teto de carvalho apainelado, sem mobília, com a metade do soalho coberta de feijão seco.
E, embaraçado, bateu as palmas.
Uma porta abriu-se. Amélia apareceu um instante, toda despenteada e em saia branca; deu um gritinho, bateu com a porta - e o pároco sentiu-a fugir para o interior do casarão. Ficou muito desconsolado no meio do salão, com o seu guarda-sol debaixo do braço, pensando na boa familiaridade com que entrava na Rua da Misericórdia - que até pareciam as portas abrir-se de si mesmo e o papel das paredes clarear-se de alegria.
Ia bater as palmas outra vez, já quezilado, quando a Gertrudes apareceu.
- Oh, senhor pároco! Entre, senhor pároco! Ora até que enfim! Minha senhora, é o senhor pároco! - gritava, na alegria de ver enfim uma visita querida, um amigo da cidade, naquele desterro da Ricoça.
Levou-o logo para o quarto de D. Josefa, ao fundo da casa, um quarto enorme, onde, num pequeno canapé perdido a um canto, a velha passava os dias encolhida no seu xale, com os pés embrulhados num cobertor.
- Oh, D. Josefa! Como está? Como está?
Ela não pôde responder, tomada dum acesso de tosse que lhe dera a comoção da visita.
- Como vê, senhor pároco, murmurou enfim muito fraco. Para aqui vou, arrastando esta velhice. E vossa senhoria? Por que não tem aparecido?
Amaro desculpou-se vagamente com os afazeres da Sé. E compreendia agora, ao ver aquela face amarela e cavada, com uma medonha touca de rendas negras, que tristes horas Amélia ali devia passar. Perguntou por ela; avistara-a de longe, mas ela deitara a fugir...
- É que não estava decente para aparecer, disse a velha. Hoje foi dia da barrela.
Amaro quis então saber em que se entretinham, como passavam os dias naquela solidão...
- Eu para aqui estou. A pequena para aí anda.
Depois de cada palavra, parecia abater-se numa fadiga e a sua ronqueira crescia.
- Então não se tem dado bem com a mudança, minha senhora?
Ela disse que não, num movimento de cabeça.
- Deixe falar, senhor pároco, acudiu a Gertrudes que ficara de pé, ao lado do canapé, gozando a presença do senhor pároco. - Deixe falar... É que a senhora exagera também... Levanta-se todos os dias, dá o seu passeinho até à sala, come a sua asita de frango... Temo-la aqui, temo-la arribada... É o que diz o Sr. abade Ferrão, a saúde foge a toda a brida e para voltar vem a passo.
A porta abriu-se. Amélia apareceu, muito escarlate, com o seu antigo robe-de-chambre de merino roxo, o cabelo arranjado à pressa.
- Desculpe, senhor pároco, balbuciou, mas hoje tem sido um dia de balbúrdia...
Ele apertou-lhe a mão gravemente; e ficaram calados, como se estivessem separados pela distância dum deserto. Ela não tirava os olhos do chão, enrolando com a mão trêmula uma ponta da manta de lã que trazia solta pelos ombros. Amaro achava-a mudada, um pouco inchada das faces, com uma ruga de velhice aos cantos da boca. Para romper aquele silêncio estranho, perguntou-lhe também se se dava bem...
- Para aqui vou indo... É um pouco triste isto. É como diz o Sr. abade Ferrão, é muito grande para a gente se sentir em família.
- Ninguém veio para aqui para se divertir, disse a velha sem descerrar as pálpebras, com uma voz seca que perdera toda a fadiga.
Amélia baixou a cabeça, fazendo-se pálida.
Amaro então, compreendendo num relance que a velha torturava Amélia, disse com muita severidade:
- É verdade, não foi para se divertirem... Mas também não foi para se entristecerem de propósito... Pôr-se uma pessoa de mau humor e fazer aos outros a vida negra, é uma falta horrível de caridade; não há pecado pior aos olhos do Senhor... É indigno da graça de Deus quem tal pratica...
A velha rompeu a choramigar, muito excitada:
- Ai, o que Deus me guardou para os últimos anos da vida...
Gertrudes animou-a. Então, senhora, que até lhe fazia pior estar a afligir-se assim... Ora o disparate! Tudo se havia de remediar com a ajuda de Deus. Saúde não havia de faltar, nem alegria...
Amélia chegara-se à janela, decerto para esconder também as lágrimas que lhe saltavam dos olhos. E o pároco, consternado com a cena, começou a dizer que D. Josefa não estava suportando com a verdadeira resignação duma cristã aqueles dias de doença... Nada escandalizava mais Nosso Senhor que ver as criaturas revoltarem-se contra as dores ou os encargos que ele mandava... Era insultar a justiça dos seus decretos...
- Tem razão, senhor pároco, tem razão, murmurou a velha muito contrita. Eu às vezes nem sei o que digo... São coisas da doença.
- Bem, bem, minha senhora, é resignar-se e tratar de ver tudo cor-de-rosa. É o sentimento que Deus mais aprecia. Eu compreendo que é duro estar para aqui enterrada...
- É o que diz o Sr. abade Ferrão, acudiu Amélia voltando da janela, a madrinha estranha... Assim arrancada aos hábitos de tantos anos...
Notando então a citação repetida das palavras do abade Ferrão, Amaro perguntou se ele costumava vir vê-las.
- Ai, tem-nos feito muita companhia, disse Amélia. Vem quase todos os dias.
- É um santo! exclamou a Gertrudes.
- Decerto, decerto, murmurou Amaro descontente dum entusiasmo tão vivo. Pessoa de muita virtude...
- De muita virtude, suspirou a velha. Mas... - calou-se, não ousando decerto exprimir as suas reservas de devota. E exclamou numa súplica: Ai, o senhor pároco é que devia vir por aqui, ajudar-me a levar esta cruz da doença...
- Hei-de vir, minha senhora, hei-de vir. É bom para a distrair, para lhe dar as noticias... E a propósito, tive ontem carta do nosso cônego.
Rebuscou na algibeira, leu alguns períodos da carta. O padre-mestre já tinha quinze banhos. A praia estava cheia de gente. A D. Maria passara doente com um furúnculo. O tempo famoso. Todas as tardes grandes passeatas a ver recolher as redes. A S. Joaneira, boa, mas falando sempre na filha...
- Pobre mamã... choramigou Amélia.
Mas a velha não se interessava com as novidades, gemendo a sua ronqueira. Foi Amélia que perguntou pelos amigos de Leiria, pelo Sr, padre Natário, pelo Sr, padre Silvério...
Ia escurecendo já: a Gertrudes fora preparar o candeeiro. Amaro enfim ergueu-se:
- Pois, minha senhora, até outro dia. Esteja certa que hei-de aparecer de vez em quando. E nada de afligir... Agasalho, boa dieta, e a misericórdia de Deus não a há-de abandonar...
- Não nos falte, senhor pároco, não nos falte!...
Amélia estendera-lhe a mão, para se despedir ali no quarto; mas Amaro gracejando:
- Se não lhe causa incômodo, menina Amélia, sempre é bom vir mostrar-me o caminho, que eu perco-me neste casarão.
Saíram ambos. E apenas no salão, a que as três largas vidraças davam ainda uma claridade:
- A velha faz-te a vida negra, filha, disse Amaro parando.
- Que mereço eu mais? respondeu ela baixando os olhos.
- Desavergonhada, eu lhas cantarei!... Minha Ameliazinha, se soubesses o que me tem custado...
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