4. As caixas de cheiro
Cheirar o mundo... Nada aparentemente mais ambicioso. Mas, no trabalho com crianças DV estimulá-las a reconhecer o mundo pelos odores é viabilizar sua mobilidade, seu pertencimento e interação no tempo, no espaço, a partir da experiência sensorial (pois mediada pelo seu corpo) e social (pois os odores são produzidos no mundo, pelo mundo, em diferentes ações).
Consideremos um indivíduo cego que constantemente locomove-se numa rua, utilizando-se de um ponto de ônibus próximo a uma perfumaria. Esta terá odores que identificarão o lugar. Isso porque a reunião de odores dos cosméticos criam um novo odor próprio, singular àquele lugar...Mas consideremos que a mesma rua possui uma farmácia, nela estão presentes
Nota de rodapé:
16. Ivanoilson então refere-se ao livro tátil produzido pelas pedagogas em formação Paula Bronkstein, Lucieid Garcia e Paula Correia.
Fim da nota de rodapé.
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os odores da higiene (sabonetes, perfumes) e dos medicamentos para doenças, com seus aromas específicos.
Consideremos que na esquina da rua onde desloca-se o indivíduo cego, haja um posto de gasolina ou oficinas de automóveis: elas dispõem de odores que auxiliam a pensar e conceituar a singularidade de suas práticas pelos cheiros de gasolina, de óleos, de graxas, de pneus. Talvez nessa mesma rua existam sapataria e loja de roupas e os cheiros de couros e lonas confundam-se. O mesmo talvez ocorra entre uma livraria e uma papelaria onde emanam odores de papeis-árvores trabalhados com químicas diferentes. Se a rua dispor de camelôs, vendendo alimentos, é possível que ele gradualmente identifique as barracas pelo que vendem: doces, churros, cachorro quente, pipoca, amendoins torrados...
É possível que um indivíduo em DV, estimulado em sua educação a trabalhar os odores possa perceber uma esquina pela confluência de cheiros que deságuam àquele ponto, pelo deslocamento de ar que nesse ponto ocorre, algo perceptível no trabalho com professores em exercícios de locomoção seja nas ruas de Paraty, seja nas esquinas da avenida Presidente Vargas, Rio Branco ou Uruguaiana, na cidade do Rio de Janeiro...
4.1. Implicações no mundo familiar
Não é raro a existência de crianças em DV impedidas na infância a explorarem o ambiente em torno com as mãos. Por exemplo, a mãe ensina que explorar o mundo com as mãos pode levar a quebra de objetos como o controle da televisão, ouumbibelô na estante. Esse procedimento familiar causa sérios danos no momento de aprenderem o sistema braille porque o aluno tende a se tolher. Assim, a criança fica paralisada: não toca, não pega. Caso você pegue a mão dessa criança, ela encolhe-se e não tem quem a faça mexer em nada, manusear coisa alguma...
A criança DV é pouco estimulada em família. Ela conhece pouco a casa e pouco conhece os odores presentes na particularidade dos ambientes da casa. Por exemplo, ela pouco vai à cozinha, ambiente de grande riqueza de odores. E essa postura pode ser mudada pelo mundo da escola, orientando os pais a tornarem a casa um objeto de odores, passível de ser manipulado e ponte para "cheirarmos o mundo". Mas consideremos uma situação nova e cotidiana em uma casa: a criança em DV tendo que sozinha ir à cozinha. É bem ilustrativo o depoimento que obtivemos de um adulto em DV:
Certa vez minha mãe comprou aqueles jogos de potes de cozinha para café, açúcar, sal, trigo etc. Eu estava sozinho em casa e resolvi fazer um suco. Fui procurar açúcar e me dei conta que todos na casa tinham
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saído. E o meu desafio era enorme: qual desses potes iguais está o açúcar. Fui então experimentando de tudo um pouco, pois era inevitável, eu não tinha o trato com o odor e os potes eram todos iguais...
A importância do recurso à ”caixa de cheiros” é enorme pois a criança tende a não ser estimulada a perceber a diferença, por exemplo, entre pimenta-do-reino e açúcar. Esse processo deve ser construído pela escola e pela família.
4.2. O fazer do professor
Pensei em fazer uma atividade com meus futuros alunos de em cada canto da sala colocar um cheiro e os alunos com os olhos vendados e seguindo pistas brincariam com esses cheiros, tentando adivinhá-los e conhecendo-os. (Michelle Ramos)
Ao professor, importa o desafio de trabalhar metodologias que associem odores aos conteúdos curriculares, associá-los a experiências articulando-as a projetos pedagógicos e materiais paradidáticos como ”caixas de cheiros”. Na formação do pedagogo, na formação ou capacitação de professores e no trabalho propriamente em turmas especiais ou inclusivas o recurso torna-se de grande utilidade.
Estabelecer ”caixas de cheiros” com cheiros do mundo: caixas de ”cheiros de casa”, caixas de cheiro de doces, ou de ácidos, ou de salgados, ou cheiros da rua, de forma a se construir uma ”biblioteca de cheiros” gradualmente...
As ”caixas de cheiro”estão na fronteira entre duas propostas pedagógicas diferentes: construir exercícios específicos sobre a vida diária ou, realizálos sem a formalidade de conteúdos específicos em disciplina específica. A inserção ou não desses conteúdos distingue por exemplo a atuação do Instituto Benjamin Constant, vinculado ao MEC, e o Instituto Helena Antipoff, pertencente à Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. No Benjamin Constant existe um espaço de formação denominado ”Atividade da Vida Diária” (AVD) no segundo segmento do Ensino Básico. Entre a Classe de Alfabetização e a quarta série ocorre o que denominam de ”Copinha”.17 A rede municipal do Rio de Janeiro opta por não formalizar em um conteúdo particular, mas aberto a um contexto de sala de aula e do tema que estão trabalhando.
Nota de rodapé:
17. Segundo depoimentos de ex-alunos do IBC, tanto a AVD, quanto a ”Copinha” realizam-se em ações de aprendizado de mobilidade cotidiana. A AVD envolve maior complexidade, como descascar uma laranja a cozinhar feijão ou arroz, amarrar o sapato, vestir, tomar banho, colocar cinto, abotoaduras etc enquanto a ”copinha” elementos mais simples como escovar os dentes, colocar pasta na escova etc.
Fim da nota de rodapé.
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4.3. A construção da caixa
Fomos então até uma vidraçaria mas não daria para fazer as divisórias de vidro em uma caixa de sapato por ser muito mole. Comoqueríamos usar o vidro, pensamos em fazer uma caixa de madeira, mas não deu certo porque além do custo ficar muito alto, a caixa ficaria com um cheiro da madeira muito forte atrapalhando os cheiros que utilizaríamos. Na divisória pensamos então em colocar papelão e deu certo. Cobrimos as divisórias com papel pardo e a caixa com papel camurça, por ser agradável ao toque. (Carina de Souza)
Pensamos na caixa, idéia de como guardar os cheiros, incentivar o abrir e o fechar dos materiais... Percebo que as caixinhas que escolhemos não são muito resistentes. Durarão pouco. (Ana Bastos)
Na produção de uma caixa, a solução quanto a sua forma pode estar em fazê-la retangular, permitindo como que uma distância física entre esses ”grupos de odores”... Quanto a forma de condicionamento dos materiais que exalam os odores, a solução a princípio seja separá-los, dividi-los em paredes ou lacres dentro das caixas, via copos, vidros, pequenas garrafas.
Uma ”caixa de cheiros” é uma estratégia excelente para estimular a criança DV a uma nova postura. Mas, para isso, o material utilizado em uma ”caixa de cheiros” não deve ser frágil. Caixa com gavetas, por exemplo, deve ser resistente uma vez que a criança terá interesse em pegar e puxar. A criança não tem consciência da força que ela dispõe e pode estragar um material mais frágil. Vale a pena uma pesquisa de materiais em sua resistência e textura...
4.4. A disposição dos cheiros nas caixas: cognição
Pensamos em como dividiríamos a caixa em 10 partes para que os cheiros ficassem isolados. Chegamos a conclusão de utilizar uma caixa de sapato diminuindo sua altura para que os cheiros se aproximassem da superfície e dividi-la em 10 partes para colocar diferentes cheiros, na tampa pensamos em fazer 10 furos, de acordo com cada divisão... (Carina de Souza) ”-
Quanto aos cheiros, logo pensei em uma coleção de sabonetes que minha mãe tem do boticário. Nesses sabonetes, os cheiros são de pitanga, maracujá e castanha de caju, adorado pelo Edson. Retiramos o de pitanga, já que Carina conseguiu as folhas da pitangueira
Pegamos também alho, capim-limão, canela, orégano, café, casca de banana. (Michelle)
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Depois da caixa pronta fomos pensando nos cheiros.
Colocamos o orégano na caixa e ao fecharmos não conseguimos sentir seu cheiro, então trocamos para a pimenta. (Carina de Souza)
Caso consideremos as ”caixas de cheiro” instrumentos ordenados em um trabalho pedagógico é possível pensarmos em uma seqüência onde a criança tenha acesso primeiro aos odores que reconhece no cotidiano mais simples, partindo depois para aqueles que desconhece, percebendo, gradualmente, as texturas do odor...
Numa ”caixa de cheiros” os ácidos devem ser vistos ao final, na última seqüência, porque caso contrário, agridem os sentidos. Caso você sinta o cheiro de algo ácido e, depois, o odor de outro doce a pessoa que experimenta a experiência terá dificuldades sensoriais.
Na minha caixa, por exemplo, coloquei cheiros de cozinha, mesmo os sabonetes, pois um é de maracujá e o outro é de caju, e os professores disseram que era necessário colocar cheiros que fazem parte da vida das crianças, que por sua maioria não tem costume de estar na cozinha em contato com cheiros de condimentos, temperos, enfim. (Carina de Souza)
É preciso colocar cheiros do dia-a-dia, cheiros de perfume, chocolate,..., recolher os cheiros do mundo para que a criança se familiarize. É interessante também porque através da caixa se pode fazer várias brincadeiras, como o jogo da memória, fazer uma casa com a caixa e também trabalhar as diferentes texturas. (Carina de Souza)
Uma caixa de cheiros pode ser construída com pequenas garrafas, com formato das de água mineral. Acondicionadas numa caixa, como um engradado e fechadas com suas respectivas tampas e uma máscara com tubo para ingressar na garrafa e sentir o odor. Essa forma pode permitir não apenas o aprendizado de novos cheiros mas uma ludicidade com a memória, pela repetição de cheiros em função da textura da tampa da garrafa. Essa forma de trabalho pode ser, inclusive, utilizada em grupos de inclusão, estimulando também os videntes.
Uma caixa de cheiros pode apresentar-se também sob a forma de uma maquete como, por exemplo, de uma casa, manipulável com o tato pela criança. A caixa-casa pode Ter formas cheirosas. Se é o quarto do bebê, tenha um boneco com a forma e o cheirinho do bebê. Na peça da cozinha, ou da sala, ou dos demais cômodos, a referência com seus cheiros específicos. Em um processo de complexidade superior, envolver texturas plásticas o cheiro e seu nome: o objeto é macio? é áspero? é liso? é corrugado? é ondulado?
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Uma possibilidade em uma caixa de cheiros é apenas trabalhar com um odor. Por exemplo: a carambola tem um perfume. Ela apresenta-se em cosmético, em fruta, em sabonete. O mesmo pode ser feito com a maçã envolvendo seus derivados como chá, detergente, biscoito, gelatina. Pode-se inclusive associar o odor a um conjunto de produtos onde apresenta-se uma textura, um gradiente de aromas derivados como no café: seu cheiro é doce? é ácido? é suave? é fraco? é forte? é amargo? Como é seu grão? tem semente? vira pó?
4.5. Formas de manuseio: motricidade
A ”caixa de cheiros” deve ser um objeto totalmente estimulante portanto, envolvendo um conceito de manuseio, que estimule o abrir, o fechar, o movimento corporal enfim. Para uma criança DV é muito importante ser estimulada a esse tipo de atitude envolvendo o abrir uma caixa, sentir o odor pelos orifícios ou, introduzir sua mão e procurar objetos no interior de uma caixa.
Caixas com diferentes tamanhos e volumes, com gavetas ou orifícios, com texturas singulares (aveludadas, lisas, plásticas, com ranhuras) permitem à criança uma estimulação, o reconhecimento e memorização da diversidade. O exercício com essa diversidade estimula a criança a experimentar o corpo, experimentar sua percepção, a manipular, mexer, Ter autoconfiança e curiosidade, elementos fundamentais em seu processo de socialização e cognição do mundo, estimulando seus processos mentais superiores.
São movimentos que a criança deve fazer para aprender a guardar seus próprios objetos: ”vou guardar aqui tal coisa, aquela outra, comprida, de veludo, guardo no outro lugar, essa, mais lisinha, na outra gaveta”. Nesse processo, ela começa a descobrir que existem formas diferentes, formas que não conhece mas pode aprender. Com a caixa de cheiros ela é estimulada à manipulação sem censura, a abrir, a brincar, a cheirar, a sentir diferentes coisas no seu próprio tempo, sentido tatilmente formas e texturas diferentes.
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Atividades Complementares
Vereador Godoy e sua Filha, Depoimento no Filme ”Janela da Alma”
sobre andar na cidade sozinho
A gente vai fazendo um mapa na cabeça. Eu fiz uma maquete de Belo Horizonte. Eu tenho que ficar ligado noutros referenciais: subida, descida, barulho de rua são os meus sinais. Eu vou construindo essas referências mentais.
Eu nasci com ritinose pigmentar e por volta dos 17 anos eu fiquei cego. A primeira dificuldade é aceitar a cegueira e é um processo. Eu tinha uma facilidade que era morar numa casa que tinha quarenta pessoas. Minha avó e avô moravam com os meus irmãos, mais os outros netos. Isso de certa forma protegeu-me da super proteção porque não tinha como ter uma atenção maior do que os outros. Era muita gente mesmo, diariamente eram cinqüenta pessoas que almoçavam, que tomavam café... Então era uma briga por ganhar pão! Eu não sei se por compreensão dos meus sete irmãos eu não tinha um tratamento especial. Nisso eu levava porrada igual aos meus irmãos. Recebia tarefa para fazer e meus tios pediam muito: - Faz isso; vai comprar aquilo... E eu fazia arte com todos os meus primos. Eram uns 20 primos que moravam na mesma casa. Era uma loucura.
Godoy conta a situação de, na praia com a filha, Tê-la sentido cair dos braços, dentro d’água
Nossa, essa hora foi terrível porque não tinha ninguém na praia, era tardinha. a sorte é o tal do contraste do poente: a água fica toda leitosa, branca, assim que meio prateada pelo sol. Minha filha quando toma sol fica uma negra do Alabama. Eu olhando para o mar vi aquela coisa negra assim na água, naquele leite, eu bati a mão: era ela. Daí a razão dos meus cabelos brancos... Foram dez, vinte segundos, um século de angústias...
Eu sonho com imagens. Em todo o lugar que vou, pergunto que cor que é, como é, a forma. E eu sonho. Sonho sonhos eróticos, inclusive.
Na vida sexual, no relacionamento afetivo com mulheres, as dificuldades que temos é a de todos. Mas, na cama, ali, na transa, não tem problema não. Não sinto falta de ver. Esse negócio do tato ajuda. Assim, as parceiras sempre
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gostam do tato que explora mais com a mão. A parceira que está comigo sempre pergunta se eu prefiro ficar com a luz acesa ou apagada. Elas preferem apagar e ficar, assim, ”no zero à zero.
Depoimento da Filha do Vereador Godoy
”Em vez de achar que isso era um problema, ter um pai cego, era o contrário. A gente queria levar o meu pai na escola prá todo mundo conhecer meu pai cego. Era um orgulho. Dizia: - Gente, vocês tem que conhecer meu pai, meu pai não enxerga!
Era uma vantagem quase em relação aos outros meninos. Eu tive que levá-lo na escola várias vezes para todo mundo Ter certeza de que ele não enxergava mesmo.
Quando eu comecei a aprender a ler eu tinha que ler para ele. Eu queria ler para ele, queria que ele ouvisse. Não tinha jeito de ele ler prá mim, então tinha esse estímulo. Eu acho que isso era uma coisa diferente para outras pessoas: eu estar sempre contando para ele as coisas que eu estava vendo, que eu estava conhecendo...
Oficina: Caixa de Cheiros e LivrosTáteis
Exploração de produtos e processos pertinentes à produção de ”caixas de cheiro” e ”livros táteis” objetivando estimular a capacidade sensitiva e a interação com o mundo, através do tato, do odor, da audição. O processo visa também a fixar conceitos quanto à ”duração” e ”lugar” (tempo e espaço), referentes à base do trabalho fotográfico, visando o entendimento pela criança do instante congelado, miniaturizado numa forma bidimensional, levemente texturizado, em altos relevos fundados em linhas; permitir que essa produção se construa com intensa oralização, com interlocução descritiva, afetiva e fraterna.
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