Parte III
A Fotografia nas Práticas Discursivas Não-Escolares
Como Me Vejo? Como Me Vêem? Como Desejo Ser Visto?1
Notas Sobre a Construção do Sujeito pela Discursividade da Imagem
Armando Martins de Barros
Desejo uma fotografia
Como esta - o senhor vê - como esta:
assim magro,
Em que para sempre me ria
Como um vestido de eterna festa.
Como tenho a testa sombria,
Derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga que me empresta
Um certo ar de sabedoria.
Não meta fundos de floresta
Nem de arbitrária fantasia.
Não. nesse espaço que ainda resta
Ponha uma cadeira vazia
Ei, você, olhe para a máquina! É uma foto! Essas palavras aterrorizam qualquer mãe, irmã, tia, esposa ou namorada quando feita para — sinalizar um registro fotográfico feito, assim, "lance de flagrante". Tirar foto em casa, com mãe na cozinha, irmã penteando-se, namorada com roupa caseira é briga na certa. As mulheres de maneira geral detestam fotos que não sejam posadas, construídas para ser não o que somos mas como desejamos ser vistos. Parecermos nas fotos com o que somos, tem para muitos um certo ar de "pegadinha".
Ver e ser visto como corporeidade, ente no mundo, objeto-sujeito são elementos fundantes na construção do Sujeito. A imagem e o olhar são, assim, elementos da corporeidade, definindo os limites e possibilidades do ser-no- mundo e, como corpo, sua primeira unidade de cognição.
Nota de rodapé:
-
Cecília Meirelles. Como Me Vejo? Como Me Vêem? Como Desejo Ser Visto?
Fim da nota de rodapé.
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A visão estabeleceu na situação que vivemos as bases de uma possível linguagem, dando sentido aos nossos gestos. Não teria sido assimno alvorecer da humanidade, à 50.000 anos?
No limiar da Pré-História, o homo sapiens gradualmente construiu processos visuais de significação, dando sentido ao que via e à forma como era visto. Nas cavernas do Cromagnon ele representou-se como era e como desejava ser visto. Ver e ser visto é uma exploração da corporeidade. É uma forma de socialização e é um dos processos pelos quais o sujeito constrói sua subjetividade.
Vale a pena lembrarmos que a criança desenvolve seu aparelho ótico até os cinco anos tendo até essa idade uma relação visual com o mundo, especialmente com sua mãe (objeto provedor do seu leite e de sua existência). Ainda que vendo rudimentarmente, de forma incompleta, a criança "vê" antes de falar. Mas a visualidade não é condicionante da construção do Sujeito. Um indivíduo cego pode, prescindindo da visão, construir sua subjetividade, relacionando-se com o mundo e outros sujeitos, formando-se como ser reconhecido.
O presente texto apresenta-se como discussão preliminar sobre a fotografia, considerando-a como expressão de um sujeito que, via a materialidade da imagem, objetiva sua subjetividade, constrói-se como visibilidade no mundo, expondo-se não apenas como corpo que se apresenta mas como corpo que é visto e constrói-se pelo olhar do Outro. Assim, a fotografia deixa de ser espaço apenas para o fotógrafo e torna-se matéria prima para o pedagogo, para o psicólogo, para o historiador.
1. Olhar e corporeidade: como os outros me vêem.
Não me olhe no olho
que eu não sou caolho.
Não me olhe na mão
que eu não sou mamão.
Não me olhe no joelho
que eu não sou espelho.
Não me olhe no pé
que eunãosouchulé.
Não me olhe de baixo
que eu não sou riacho.
Não me olhe de cima
que acabou a rima.2
Nota de rodapé:
2.Elias José,Namorinho de portão. São Paulo, Editora Moderna.
Fim da nota de rodapé.
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Imaginemos um exercício que façamos com nossos alunos envolvendo três fotomontagens sendo, cada uma, uma proposta de olhar. Na primeira, cada aluno deve construir com fotos de si e com recortes de jornais e revistas uma fotomontagem que "fale" como os outros o vêem. Na segunda, devem realizar nova fotomontagem de como vêem a si próprio, em suas manias, virtudes e defeitos. Finalmente, na terceira e última devem apresentar fotomontagem com signos de como gostaria de ser visto. É possível que desse exercício surja uma nova possibilidade de compreensão de como a figuração projeta signos ao mesmo tempo icônicos, indiciários e simbólicos, explodindo com a exigência de que a fotografia é objetiva, realista, neutra.
Nossa gnose tende a fundar-se na visão. Na sociedade ocidental, nossa compreensão do mundo e a produção do conhecimento é fundada inicialmente em primeiro vermos o mundo, o inquirirmos.
Dizem os psicanalistas que somos seres que vêem e são vistos. Em algum momento, passamos a ter consciência de que somos vistos pelo Outro. Sim, em nosso crescimento como seres no mundo, somos impregnados pela percepção de que somos objetos de olhares. Nossa própria auto estima fundamenta-se parcialmente no que supomos ser o olhar do outro sobre nós. Tornamo-nos assim, também, seres que vêem a si próprios pelos olhos dos outros.
Antônio Quinet observa que, para os psicanalistas lacanianos, no fenômeno visual o sujeito não está presente apenas como vidente, mas também como visto. Ele está mergulhado no mundo da visibilidade.3 Sendo assim, a visibilidade está vinculada ao corpo, surgindo nessa perspectiva, uma confluência entre a compreensão lacaniana de "olhar" e aspectos da filosofia presente em Merleau-Ponty:
A corporeidade é ao mesmo tempo o que precede e o que preside a distinção entre o visível e aquele que vê.
A espessura do corpo, é o único meio que tenho para ir ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo delas as coisas carne.4
Nesse contexto, a corporeidade para Merleau-Ponty não é uma "presença biológica" mas "o ponto de contato entre o sujeito e o mundo. A corporeidade não é o "corpo", é algo situado em outra dimensão. Encontra-se no fundamento da percepção, refere-se ao corpo mas não é corpórea.
Notas de rodapé:
3. QUINET, Antônio. Um olhar a mais. Ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p.39.
4. MERLEAU-PONTY, apud QUINET, A. Antônio, op.cit., p. 39. Para fins de melhor compreensão pelo leitor, substituímos a expressão "carne", presente na tradução, por "corporeidade".
Fim das notas de rodapé.
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É nele que se situa o ponto do olhar que faz daquele que vê um visível. O corpo, mergulhado no mundo visível, é a prova do entrelaçamento do corpo e do mundo".5 Segundo a interpretação lacaniana de Quinet, as idéias de Merleau-Ponty anteciparam alguns eixos centrais da teoria lacaniana do campo visual: a preexistência de um olhar no espetáculo do mundo.
Nesse mundo que vejo, sou, antes de tudo, visto. Existe um olhar que tem a mim em sua mira, pois se vejo as coisas, elas também me olham, de tal forma que "vidente e visível se correspondem e não se sabe mais quem vê e quem é visto".6
Quinet recupera a reflexão de Sartre quando, na obra "O Ser e o Nada", descreve o olhar do outro que afeta o sujeito transformando-o em objeto olhado pelo "Outrem".
Se outrem se define em relação ao mundo como o objeto que vê o que vejo, minha relação fundamental com outrem-sujeito deve poder ser encarada como minha possibilidade permanente de ser visto por ele. Em poucas palavras, aquilo a que se refere minha apreensão de outrem no mundo como sendo provavelmente um homem, é minha possibilidade permanente de ser-visto-por-ele, Isto é, a possibilidade permanente para um sujeito que me vê de se substituir ao objeto visto por mim. O ser-visto-por-outrem é a verdade dover-outrem7
2. Como me vejo.
Espelho, espelho meu,
Existe alguém,
mais bonita do que eu?
A fotografia, embora seja aparentemente apenas um registro do reflexo da luz sobre os objetos no mundo tem, na verdade, uma dimensão simbólica espetacular: ela "fala" às nossas representações. Assim, as imagens fotográficas mobilizam não apenas nossa visualidade como dialogam com nosso "olhar" - entendido como o sentido que damos ao que vemos.
Notas de rodapé:
5. QUINET, op. cit, p.39-40.
6. MERLEAU-PONTY, apud QUINET, op. cit., p. 40.
7. Diz Sartre: "Outrem é aquele que me olha a cada instante e seu olhar se manifesta na maioria das vezes pela convergência de seus olhos sobre mim. Mas ele pode se manifestar como um olhar imaginado no campo do Outro, como, por exemplo, o olhar de alguém a partir de um farfalhar de galhos seguido de silêncio". SARTRE, apud QUINET, op. cit., p. 40.
Fim das notas de rodapé.
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Não basta que a foto em que posamos mostre que "ali estamos". Na imagem, acreditamos que deva estar o que desejamos ser, o que pensamos realmente ser, o que queremos que os outros pensem ver.
Ao pedirmos que os alunos façam uma foto montagem com a representação visual de como se vêem, é possível encontrarmos um conjunto de características que falam de virtudes que são um "dever" ou a uma sobrecarga de funções e ações indiciadas na presença de relógios, de figuras representando o tempo passando, de signos que apresentam um excesso de funções e fazeres, além da redução da qualidade de vida que implica na sobrecarga de jornadas, especialmente de alunas.
Um exemplo fantástico dessa postura podemos identificar caso decida fazer uma foto meio que para terminar um filme, na casa de parentes queridos não se surpreenda: haverá uma revolta geral. Te dou um conselho: se você quiser tirar a foto na marra, "dê um tempo", tipo um minuto para a melhoria do look, caso seja sua irmã, mãe, tia, prima ou namorada. Acredite, ele irá pentear-se, dar uma acertada na roupa, dispensar a vassoura e não vai jamais posar com o umbigo no fogão. Não, dizem elas: que seja na parte da casa mais bonita. Tipo na sala, com a janela de fundo ou comaquele quadro bonito.
Depois, com a foto revelada e ampliada em papel, ela é averiguada e caso a fotografada não concorde com sua representação, a foto é devidamente rasgada e, você, pobre fotógrafo de flagrante, fica meio de quarentena, culpado por pensar que a foto pode ser realista.Seu modelo, vai querer uma foto de como ela própria se vê, isto é, algo que não se relaciona diretamente com o que é visível, neutro e objetivo. A foto envolve essa característica singular: ela é também o que desejamos ser, ela é subjetiva e arbitrária, umapose diante da vida.
3. Como desejo ser visto
A fotografia, sendo um registro de um momento finito, produzido no passado e como imagem, congelada no tempo, serve como um estranhamento ao presente pois carrega o que já foi, como um contrabando do tempo passado no agora. Toda fotografia cinde o agora num outro, num tempo passado que está aqui. É essa cisão que nos fascina. Fascínio por um passado que contexta o presente que se esvai, que agora já era.
Mas pode a fotografia ser também a expectativa de um futuro? No plano fotoquímico, em que a luz sensibiliza o papel fotográfico, não. Mas, como "olhar", a foto pode servir como antecipação simbólica do que deseja
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e sustenta como "utopia" ( topos em lugar algum). Explico. As vezes, quando a vida é generosa, vivemos um momento de esperança, de alegria, de fraternidade, de amor. Se tempo é fugaz mas registrado em imagens fotográficas, fica aquele instante guardado como desejo sonhado, perseguido, como possibilidade de encontro nosso conosco, como encontro futuro do "ver" com o "olhar".
Nessas horas, quando solicitamos aos alunos a possibilidade de realizarem essa imagem, expressão radical de sua condição de sujeito, confirmamos essa possibilidade temporal que emerge da fotografia: a condição de futuro. Em todos esses casos, a imagem fotográfica é dispensada pelo sujeito de quaisquer exigência de realismo. Ao contrário, sua dimensão é simbólica, arbitrária, subjetiva, permitindo ao seu autor uma composição envolvendo fotomontagens, rompimento da perspectiva, figuras flutuando, ausência de ponto de fuga, numa composição que faz ecoar a perspectiva renascentista onde as coisas tem sua proporção e tamanho referendado apenas pela sua relação matemática e ótica, com o olhar.
4. Conclusões preliminares
Mamãe, me empresta tua bolsa,
teu colar e teus sapatos.
Depois me passa batom Que vou tirar um retrato.
As fotografias podem servir à uma melhor compreensão do universo da escola? Responderíamos afirmativamente. As fotografias podem servir-nos como fontes históricas? sim, pois possibilitando a pesquisa sobre o mundo escolar em diferentes épocas e espaços, remetendo ao vestuário, aos tipos étnicos, à composição de gênero, à arquitetura escolar, aos materiais e recursos pedagógicos, que podem ser melhor compreendidos quando correlacionados a fontes escritas ou depoimentos orais.
As imagens fotográficas podem servir como recursos didáticos ao tratamento de conteúdos curriculares? Responderíamos afirmativamente pois é possível utilizá-las como "motivadoras", como "estratégias", permitindo a discussão de conteúdos nas mais variadas disciplinas, possibilitando a abordagem de questões sociais amplas, de forma inclusive transversal, numa relação que sugere, inclusive a distinção entre as agências de produção privadas e governamentais, entre as temáticas das imagens, entre as formas de composição e figuração.
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Mas, as fotografias também podem ser pensadas como mediações na construção dos sujeitos, como instâncias que mediam o sujeito em sua compreensão e inserção no mundo, humanizando-o. Esse investimento é perceptível quando optamos em nos utilizar das fotografias familiares, permitindo a emergência da experiência pessoal dos alunos que falam de suas imagens e de como elas os construíram.
As imagens fotográficas podem servir a uma "educação do olhar"? A medida que a sociedade é saturada por imagens na mídia e não dispõe de espaços que permitam a apreensão dos códigos que as constróem, a escola, entre outras atribuições, deve sistematizar conhecimentos voltados à historicização desses recursos, à sua discussão na mídia (televisão, cinema, vídeo, imprensa, HQ) em seus códigos específicos (linguagem fotográfica, cinematográfica, videográfica etc), contextualizando seus percursos. Com isso, auxiliamos o aluno a melhor analisar as mensagens de diferentes origens e intenções, sejam políticas, ideológicas, artísticas.
Todo esse movimento meu leitor, serve para compreendermos que o olhar nos traz uma pluralidade de sentidos, dependendo do lugar existencial, psicológico, social que ocupe ao "ver". As imagens que cada um visualiza necessariamente não tem o mesmo sentido para os demais observadores. Importa pois estarmos sensíveis a essa polissemia, encontrando estratégias que ampliem a capacidade dos indivíduos serem herdeiros da experiência do Outro. Talvez, um caminho esteja em seguirmos o olhar do poeta, na sensibilidade de quem sempre explorou o ato de ver como expressão do sensível:
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam o muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais, borboletas brancas, duas a duas, como que refletidas no espelho de ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Veja. As vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante da minha janela e, outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar para poder vê-las assim."
Nota de rodapé:
8. MEIRELLES, Cecília. A arte de ser feliz.
Fim da nota de rodapé.
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Bibliografia
AUMONT, Jaccques. A imagem. São Paulo, Campinas: Ed. Papirus, 1993. 1ª edição.
DUBOIS, Phillipe. O Ato Fotográfico e outros ensaios. São Paulo, Campinas: Editora Papirus. 1994, 1ª edição.
ELIAS, José. Namorinho de portão. São Paulo, Editora Moderna.
MEIRELLES, Cecília. A arte de ser feliz.
MERLEAU-PONTY. O visível e o invisível. São Paulo, Editora Perspectiva: 2000, 4ª edição.
QUINET, Antônio. Um olhar a mais. Ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
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Atividades Complementares
Depoimentos no filme Janela da Alma
1. Texto de Antônio Cícero
A primeira vez que eu coloquei um óculos pude notar a quantidade de detalhes que se vê normalmente e que eu não via antes. Por exemplo, achei maravilhoso ver que as árvores eram múltiplas. Quero dizer que sempre soube intelectualmente que as árvores continham folhas, mas eu só via uma massa verde. Com os óculos vi o que antes não via nas plantas individuais. Passei a perceber com os óculos a multiplicidade. Aquilo para mim foi uma descoberta maravilhosa.
2. Texto de Paulo César Lopes
Na verdade, o olhar não existe. Sempre é "um" olhar, um olhar condicionado. Um olhar do homem, que vê o mundo de um jeito, diferente dos animais que vêem de outro. A gente não conhece as coisas como elas são. As coisas são mediadas pela nossa experiência.
O olhar é uma interpretação, tudo o que a gente olha, está mediado pelos nossos conceitos, pelos nossos valores. Às vezes, a gente passa diariamente diante de um muro, sempre vê o mesmo muro. Mas, num determinado momento, aquilo se abre diferente. Parece outra coisa, coisa nunca vista antes.
(Quando coloquei o óculos pela primeira vez) foi como um medo. a questão do olhar do outro. Do outro achar que eu estivesse enxergando e eu, não enxergar nada. Eu tinha esse medo assim. Tinha coisa que eu não sei explicar, o que era especialmente o medo mas eu, por exemplo, quando estava usando os óculos não era para enxergar, mas para ocultar a cegueira
. Era uma forma de medo, de vergonha porque eu tinha de colocar os óculos. Sempre essa presença do medo, como uma coisa difusa.
Na verdade, o crescimento nasce muito disso, do incômodo, o incômodo nos faz procurar coisas.
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Poesia: Brincando de não me olhe
Elias José. Namorinho de portão. São Paulo, Editora Moderna.
Não me olhe de lado que eu não sou melado
Não me olhe de banda que eu não sou quitanda.
Não me olhe no meio que eu não sou recheio
Não me olhe na janela que eu não sou panela.
Não me olhe no olho que eu não sou caolho.
Não me olhe na mão que eu não sou mamão.
Não me olhe de baixo que eu não sou riacho.
Não me olhe de cima que acabou a rima.
Não me olhe de frente que eu não sou parente.
Não me olhe de trás que eu não sou satanás.
Não me olhe da porta que eu não sou torta.
Não me olhe no portão que eu não sou leitão.
Não me olhe no joelho Que eu não sou espelho.
Não me olhe no pé que eu não sou chulé.
Textos Complementares: Poesias de Cecília Meirelles
ENCOMENDA
Desejo uma fotografia
Como esta - o senhor vê
como esta:
Nem estes olhos tão vazios.
Em que para sempre me ria
Como um vestido de eterna festa.
Como tenho a testa sombria
Derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga que me empresta
Um certo ar de sabedoria.
Não meta fundos de floresta
Nem de arbitrária fantasia.
Não.
nesse espaço que ainda resta
Ponha uma cadeira vazia.
Eu não tinha este rosto de hoje
Assim calmo, assim triste, assim magro.
Nem o lábio tão amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força.
Tão paradas e frias e mortas.
Eu não tinha este coração
RETRATO
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil;
Em que espelho ficou perdida A minha face?
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A ARTE DE SER FELIZ
"Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam o muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. borboletas brancas, duas a duas, como que refletidas no espelho de ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Veja. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante da minha janela e, outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar para poder vê-las assim".
Texto: Versão de Conto Popular, por Ricardo Azevedo
O CASO DO ESPELHO
Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata. Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca, apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos:
- Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?
- Isso é um espelho - explicou o dono da loja.
- Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato de meu pai. Os olhos do homem ficaram molhados.
- O senhor. conheceu meu pai? perguntou ele ao comerciante.
O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira.
- É não - respondeu o outro. - Isso é o retrato de meu pai. É ele sim! Olha o rosto dele. Olha a testa E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?
O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho baratinho. Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira. A mulher ficou só olhando. No outro dia, esperou o marido sair prá trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo
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atrás. Fez o sinal da cruz, tapando a boca com as mãos. em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.
-Ah, meu Deus! - gritava ela desnorteada - É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu.
Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida.
- Que foi isso, mulher?
-Ah, seu traidor de uma figa! quem é aquela jararaca no retrato?
- Que retrato? perguntou o marido, surpreso.
- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira! O homem não estava entendendo nada.
- Mas aquilo é o retrato do meu pai! Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:
- Cachorro, sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre o velho lazarento e uma jaburaca safada e horrorosa? A discussão fervia feito água na chaleira.
-Velho lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido. A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar para casa.
- Que é isso, menina?
- Aquele cafajeste arranjou outra!
- Ela ficou maluca - berrou o homem de cara amarrada.
- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá. É o retrato de outra mulher.
A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato. Entrando no quarto, abriu a gaveta e desembrulhando o pacote espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo e soltou uma sonora gargalhada.
- Só se esse retrato é o da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, cacarecada, bruaca, desengonçada, capenga, careca, caduca, velha e desdentada que já vi até hoje!
E completou, feliz, abraçando a filha:
- Fica tranqüila, a bruaca do retrato já está com os dois pés na cova."
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