Publicado originalmente em 1902. Livro Digital nº 924 1ª Edição São Paulo, 2017. Romance Literatura Brasileira. José Pereira da Graça Aranha


parte manchas esplêndidas se ostentavam. E sobre a campina



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Canaa - Graca Aranha - IBA MENDES


parte manchas esplêndidas se ostentavam. E sobre a campina 
esverdeada, vaporosa, uma dessas manchas, ligeiramente azulada, 
movia-se, arqueava-se, abaixava-se, erguia-se e se ia lentamente 
dissipando. O sol não tardou a vir, e a natureza sacudiu-se, a névoa 
fugiu. O céu espanou-se e dilatou-se em maravilhosa limpidez. A 
mancha móvel sobre a planície definiu-se no perfil de um pobre 
cavalo que passeava na verdura os seus olhos de velhice e fadiga, 
tristes e longos. De passada, com os túmidos e negros beiços
afagava a erva, triturando-a com fastio e desânimo, enquanto a sua 
atenção de cavalo experimentado estava voltada para a cabana, a 
cuja porta os seus donos, os novos colonos magiares, o miravam 


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com interesse. A neblina leve, veloz, vinha distraí-lo daquela 
postura de curiosidade humilde, e acariciava num frio elétrico o seu 
pelo ralo e falhado. Estremecia num gozo manso, e estendendo o 
focinho, arregaçando os beiços, sensual e grato, beijava o ar. Não 
mais encontrava a névoa, que fugira para os montes, levada pela 
brisa, como se fosse o imperceptível véu que envolvesse alguma 
deusa errante e retardada. Um raio de sol, porém, descera a brincar-
lhe nos olhos e incendiava-lhe a pupila. Meiguices da natureza. 
Um dos jovens magiares, levando uma corda, caminhou para o 
cavalo. O animal entregou-lhe a cabeça numa mistura de abandono 
e tédio. O rapaz passou-lhe o cabresto e o levou ao poste fronteiro à 
casa, onde o amarrou. Os colonos tinham resolvido principiar 
naquele dia a plantação do prazo, e o velho deu ordem de partir 
para a queimada. Os filhos armaram-se das ferramentas de lavoura, 
o cigano, saindo de sua modorra e apenas armado de um chicote, 
acompanhou os outros, que, desamarrando o cavalo, seguiram com 
ele para o roçado. As raparigas que ficavam em casa cheias de 
instintivo pavor viam o grupo afastar-se vagarosamente. 
Chegaram ao aceiro que, aberto como uma larga ferida sobre o 
dorso da terra, era um sulco de alguns metros de largura, 
circundando a queimada. Da mata carbonizada ainda resistiam de 
pé alguns troncos despojados, enegrecidos. Milkau e Lentz, 
passeando àquela hora, passaram perto do roçado e viram chegar aí 
o grupo dos vizinhos. 
– Ainda bem – disse Milkau –, eles vão trabalhar, fazia-me dó ver 
esta gente apática, irresoluta, entorpecida na preguiça. 
– Mas para que trazem eles quase arrastado aquele cavalo? – 
perguntou Lentz. 
E os dois se afastaram um pouco e ficaram a distância, 
acompanhando os movimentos do grupo. 


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O velho colono segurou o animal pelo cabresto e o colocou no meio 
da vala. Os filhos puseram-se de lado, num recolhimento religioso. 
O pai puxou o cavalo para a frente. De chicote em punho, o cigano 
seguia atrás, e a primeira vergastada, cortando o ar num sibilo, caiu 
em cheio sobre o animal. Este, como arrancando-se de si mesmo, 
pinoteou assustado. Novas lambadas foram arremessadas por mão 
vigorosa. Estirou o cavalo o pescoço para a frente, abaixou-se, 
alongou-se, encostando quase o ventre a terra, como para se libertar 
do flagelo que lhe vinha do alto. Os seus membros se estorciam, 
confrangidos sob a dor imensa. E desapiedadamente, puxavam-no 
para diante, levando-o ao furor do açoite. Naquele sacrifício 
cumpria-se uma missão sagrada: ligava-se à nova terra o nervo da 
tradição da terra antiga. Quando os antepassados tártaros desceram 
do planalto asiático, e no solo europeu renunciaram à vida errante 
dos pastores, para lavrar o campo e buscar na cultura a satisfação da 
vida, sacrificaram aos deuses o velho companheiro de peregrinação 
nas brancas estepes. E, assim, a imolação ficou sempre no espírito 
dos descendentes como um dever, cujas raízes se estendem até ao 
fundo da alma das raças. 
Continuava o grupo a caminhar. O velho, como um sacerdote, 
conduzia a vítima, seguida do cigano, em cujo rosto se recompunha 
a antiga expressão infernal e terrível dos antepassados, num 
retrocesso harmônico e rápido, produzido pelo singular efeito da 
paixão sanguinária. Os outros assistiam mudos à cerimônia. O 
chicote vibrava incessante; as suas pontas de ferro cortavam o 
lombo do animal. O ar leve e frio, penetrando nos fios de carne viva, 
causava uma dor fina, aguda, acerba, e a vista e o cheiro do sangue 
excitavam ainda mais a energia do flagelador. Veio-lhe uma 
histérica insensibilidade, uma rudimentar anestesia, uma assassina 
obsessão. Estonteou-o uma vertigem, mas o açoite não parou. Os 
sulcos na carne abriam-se mais fundos; o sangue escorria frouxo. 
Mofino de dor, o cavalo prosseguia arrastado, regando a terra. Gotas 
vermelhas respingavam sobre a descoberta cabeça do velho magiar, 


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de uma brancura de açucena. As suas narinas dilatavam-se em 
lânguido gozo. Cavos gemidos ressoavam no peito da besta. E no 
seu olhar infinito de moribundo traduziam-se os humildes protestos 
e os tímidos apelos de misericórdia. 
E o relho soava, enquanto o mártir ia lento, de pescoço estirado, 
pernas trôpegas, esvaindo-se pelas veias abertas, como torneiras de 
sangue. O cigano mais terrível, mais feroz, transfigurava-se, e da sua 
garganta afinada irrompeu brusco, sonoro, o canto de guerra dos 
velhos tártaros. O chicote cruel e rápido marcava o compasso desse 
ritmo estranho. O contágio do furor apoderou-se dos outros, que, 
imobilizados, assistiam ao sacrifício. E embriagados pouco a pouco 
pelas frases da música, pela sugestão do rito, pelo odor de carne 
sangrenta, acompanhavam o canto, num coro infernal. O animal, 
exausto, caíra de lado, como um peso inerte. O açoite inexorável 
ainda o levantou uma vez, e no solo, como numa verônica, ficou 
estampada a imagem do seu corpo, impressa em sangue. Prosseguia 
sem interrupção, fogoso, lúgubre, o canto que feria asperamente o 
ar, e era o eco da melodia satânica da morte. O cavalo deu mais 
alguns passos, cambaleando como um alucinado, e afinal prostrou-
se sobre a terra. Arquejante, resfolegando num espaçado estertor, 
morria vagarosamente. Nas suas pupilas de moribundo 
fotografaram-se num derradeiro clarão as fisionomias dos algozes. E 
essa imagem medonha, que se lhe guardara no interior dos olhos, 
era a infinita tortura que o acompanharia além da própria morte, 
presidindo à dolorosa decomposição da sua carne de mártir. 
Cessaram as vozes. Os homens agruparam-se em torno do cadáver, 
rezando como fantasmas loucos. Poças e fios vermelhos manchavam 
o sulco. A camada de argila, lisa, escorregadia como uma couraça, 
tornava o seio da terra impenetrável ao sangue, que, sorvido pelo 
sol, se evaporava e dissolvia no ar. Era a rejeição do sacrifício, o 
repúdio da imolação, rompendo a cruenta tradição do passado. A 
nova Terra juntava a sua contribuição aos límpidos ideais dos novos 
homens... 


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– E para quê? – dizia Milkau comovido até às lágrimas, – e para que 
a tortura, a fecundação pelo sangue, se Ela, risonha e alegre, como 
uma rapariga bela e fresca, lhes daria os seus frutos, cedendo tão 
somente às brandas violências do amor?... 

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