CAPÍTULO 2
–Não vejo nada claro – disse Lentz. E, fechando os olhos feridos pela
luz grandiosa do dia, sentia dentro das pálpebras, na câmara rubra
das pupilas, fuzilar relâmpagos de sol.
– Quem me dera – murmurava então Milkau – que o sol se não
apagasse... A pátria do homem devia limitar-se a um canto da terra
onde não houvesse sombra.
E os dois caminhavam afastando-se do Porto do Cachoeiro na
direção de Santa Teresa. A princípio a estrada cortava por cima de
pequenos morros descobertos, onde, numa paisagem acidentada e
limpa, passeavam errantes as sombras das nuvens; daí a momentos
ela morria na boca da mata. Milkau e Lentz, ao penetrarem na
escuridão repentina e fria, sentiram pelos olhos o véu de uma ligeira
vertigem. Pouco a pouco eles se recompuseram, e então admiraram.
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A floresta tropical é o esplendor da força na desordem. Árvores de
todos os tamanhos e de todas as feições; árvores que se alteiam,
umas eretas, procurando emparelhar-se com as iguais e desenhar a
linha de uma ordem ideal, quando outras lhes saem ao encontro,
interrompendo a simetria, entre elas se curvam e derreiam até ao
chão a farta e sombria coma. Árvores, umas largas, traçando um raio
de sombra para acampar um esquadrão, estas de tronco pejado que
cinco homens unidos não abarcariam, aquelas tão leves e esguias
erguendo-se para espiar o céu, e metendo a cabeça por cima do
imenso chão verde e trêmulo, que é a copa de todas as outras. Há
seiva para tudo, força para a expansão da maior beleza de cada uma.
Toda aquela vasta flora traduz a antiguidade e a vida. Não se sente
nela sombra de um sacrifício que seria o triunfo e o prêmio da
morte. Dentro, as parasitas se enroscam pelos velhos troncos, com a
graça de um adorno e de uma carícia. Há mesmo árvores que são
mães de árvores e suportam com fácil e poderosa galhardia a filha,
que lhe sai do regaço, e mais esplendorosa, às vezes, que a rija e bela
progenitora. Uma infinita variedade de arbustos cresce às plantas
dos gigantes verdes; é uma florazinha miúda, compacta e atrevida,
dentro do bojo de outra mais ampla e opulenta. E tudo se ergue, e
tudo se expande sobre a terra, compondo um conjunto brutal,
enorme, feito de membros aspérrimos, entretecido no alto pela
cabeleira basta e densa das árvores e embaixo pela rede intérmina
das fortes e indomáveis raízes; todo ele se entrelaça, enroscando-se
pelos braços gigantescos, prendendo-se como por tenazes numa
grande solidariedade orgânica e viva... Pelas frestas das árvores,
pela transparência das folhas, desce uma claridade discreta, e nessa
suave iluminação se desenrola dentro do mato o cenário pomposo
das cores. Elas são em si vivas e quentes, mas a gradação da sombra,
que ora avança, ora se afasta, comunica-lhes da negrura do verde ao
desmaio do branco a matização completa, triunfal. E lá em cada
boca da estrada, as portas da mata formam um círculo longínquo,
azulado, como portas feitas só de luz, e de uma luz zodiacal e
docemente infinita... De todo o corpo colossal, das folhas novas e
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das folhas mortas, dos troncos verdes e dos troncos carunchosos,
das parasitas, das orquídeas, das flores selvagens, da resina que se
derrama vagarosa ao longo das árvores, dos pássaros, dos insetos,
dos animais ocultos no segredo da selva, se desprende um cheiro
misterioso e singular, que se volatiliza e se difunde no imenso todo,
e, tal como o aroma das catedrais, acalma, embriaga e adormece as
coisas. Na volúpia harmoniosa desse perfume, que é acre e
tonteante, com a claridade que é branda, está a fonte do repouso da
mata... O silêncio que mora na floresta é tão profundo, tão sereno
que parece eterno. Feito das vozes baixas, dos murmúrios, dos
movimentos rítmicos dos vegetais, é completo e absoluto na sua
perfeita harmonia. Se por entre as folhas secas amontoadas no solo
se escapa um réptil, então o ligeiro farfalhar delas corta a doce
combinação do silêncio; há no ar uma deslocação fugaz como um
relâmpago, pelos nervos de todo o mato perpassa um arrepio, e os
viajantes que caminham, cheios da solidão augusta, voltam-se
inquietos, sentindo no corpo o frio elétrico e instantâneo do pavor...
– Extraordinário – disse Lentz, saindo do seu espanto. Milkau
replicou:
– A sensação que aqui recebemos é muito diferente da que nos deixa
a paisagem europeia.
– Aqui o espírito é esmagado pela estupenda majestade da
natureza... Nós nos dissolvemos na contemplação. E, afinal, aquele
que se perde na adoração é o escravo de uma hipnose: a
personalidade se escapa para se difundir na alma do Todo... A
floresta no Brasil é sombria e trágica. Ela tem em si o tédio das
coisas eternas. A floresta europeia é mais diáfana e passageira,
transforma-se infinitamente pelos toques da morte e da ressurreição,
que nela se revezam como os dias e as noites.
– Mas este espetáculo de uma grande mata brasileira é assombroso,
não é? – interrogou Lentz.
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– É. A verdade, porém, é que, ao tocarmos a região do assombro, tal
espetáculo nos priva da liberdade de ser, e afinal nos constrange. É o
que sucede com esta força, esta luz, esta abundância. Nós passamos
por aqui em êxtase, não compreendemos o mistério...
E mudos continuavam a caminhar pela estrada coberta, os olhos de
ambos a desmancharem-se de admiração.
Passado algum tempo, Lentz exprimiu alto o que ia pensando:
– Não é possível haver civilização neste país... A terra só por si, com
esta violência, esta exuberância, é um embaraço imenso...
– Ora – interrompeu Milkau – tu sabes bem como se tem vencido
aqui a natureza, como o homem vai triunfando...
– Mas o que se tem feito é quase nada, e ainda assim é o esforço do
europeu. O homem brasileiro não é um fator do progresso: é um
híbrido. E a civilização não se fará jamais nas raças inferiores. Vê, a
História...
MILKAU
Um dos erros dos intérpretes da História está no preconceito
aristocrático com que concebem a ideia de raça. Ninguém, porém,
até hoje soube definir a raça e ainda menos como se distinguem
umas das outras; fazem-se sobre isso jogos de palavras, mas que são
como esses desenhos de nuvens que ali vemos no alto, aparições
fantásticas do nada... E, depois, qual é a raça privilegiada para que
só ela seja o teatro e o agente da civilização? Houve um tempo na
História em que o semita brilhava em Babilônia e no Egito, o hindu
nas margens sagradas do Ganges, e eles eram a civilização toda; o
resto do mundo era a nebulosa de que se não cogitava. E, no
entanto, é junto ao Sena e ao Tâmisa que a cultura se esgota hoje
numa volúpia farta e alquebrada. O que eu vejo neste vasto
panorama da História, para que me volto ansioso e interrogante, é a
civilização deslocando-se sem interrupção, indo de grupo a grupo
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através de todas as raças, numa fatal apresentação gradual de
grandes trechos da terra, à sua luz e calor... Uns se vão iluminando,
enquanto outros descem às trevas...
LENTZ
Até agora não vejo probabilidade da raça negra atingir a civilização
dos brancos. Jamais a África...
MILKAU
O tempo da África chegará. As raças civilizam-se pela fusão; é no
encontro das raças adiantadas com as raças virgens, selvagens, que
está o repouso conservador, o milagre do rejuvenescimento da
civilização. O papel dos povos superiores é o instintivo impulso do
desdobramento da cultura, transfundindo de corpo a corpo o
produto dessa fusão que, passada a treva da gestação, leva mais
longe o capital acumulado nas infinitas gerações. Foi assim que a
Gália se tornou França e a Germânia, Alemanha.
LENTZ
Não acredito que da fusão com espécies radicalmente incapazes
resulte uma raça sobre que se possa desenvolver a civilização. Será
sempre uma cultura inferior, civilização de mulatos, eternos
escravos em revoltas e quedas. Enquanto não se eliminar a raça que
é o produto de tal fusão, a civilização será sempre um misterioso
artifício, todos os minutos rotos pelo sensualismo, pela bestialidade
e pelo servilismo inato do negro. O problema social para o
progresso de uma região como o Brasil está na substituição de uma
raça híbrida, como a dos mulatos, por europeus. A imigração não é
simplesmente para o futuro da região do País um caso de simples
estética, é antes de tudo uma questão complexa, que interessa o
futuro humano.
MILKAU
A substituição de uma raça não é remédio ao mal de qualquer
civilização. Eu tenho para mim que o progresso se fará numa
evolução constante e indefinida. Nesta grande massa da
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humanidade há nações que chegam ao maior adiantamento, depois
definham e morrem, outras que apenas esboçam um princípio de
cultura para desaparecerem imediatamente; mas o conjunto
humano, formado dos povos, das raças, das nações, não para em sua
marcha, caminha progredindo sempre, e os seus eclipses, os seus
desmaios não são mais que períodos de transformações para épocas
fecundas e melhores. É a fatalidade do Universo que se cumpre
nesse Todo que é uma parte dele... Quando não há um trabalho à
flor das coisas, luminoso e doce, há uma elaboração subterrânea,
tenebrosa e forte. Às vezes, é num ponto isolado da superfície que se
dá a opacidade das trevas, e pela fusão um povo aí se forma
recapitulando a civilização desde o seu ponto inicial e preparando-
se para levar o progresso mais longe que os povos geradores...
LENTZ
Como? Então o contato dos povos da arte com os selvagens
determina um precipitado que excede aqueles na capacidade
estética?
MILKAU
A arte, Lentz, pode diminuir ou aumentar em alguma das suas
expressões, segundo várias solicitações do meio e da época, mas
pelo fato de não florescer certa forma de Arte o progresso artístico
não deixa de ser maior. Se a verdade estivesse na conclusão
contrária, então a humanidade teria retrocedido depois do período
do grego, e da Renascença, porque até agora a História não conta
épocas tão felizes para a Escultura e para a Pintura.
LENTZ
Mas toda a questão está na compreensão do progresso moral.
MILKAU
Quando a humanidade partiu do silêncio das florestas para o
tumulto das cidades, veio descrevendo uma longa parábola da
maior escravidão à maior liberdade. Todo o alvo humano é o
aumento da solidariedade, é a ligação do homem ao homem,
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diminuídas as causas de separação. No princípio era a força, no fim
será o amor.
LENTZ
Não, Milkau, a força é eterna e não desaparecerá; cada dia ela
subjugará o escravo. Essa civilização, que é o sonho da democracia,
da fraternidade, é uma triste negação de toda a arte, de toda a
liberdade e da própria vida. O homem deve ser forte e querer viver,
e aquele que um dia atinge a consciência de sua personalidade, que
se entrega a uma livre expansão dos seus desejos, aquele que na
opulência de uma poesia mágica cria para si um mundo e o goza,
aquele que faz tremer o solo, e que é ele próprio uma floração da
força e da beleza, esse é homem e senhor. O fim de toda a sua vida
não é a ligação vulgar e mesquinha entre os homens; o que ele busca
no mundo é realizar as expressões, as inspirações da Arte, as nobres,
indomáveis energias, os sonhos e as visões do poeta, para conduzir
como chefe, como pastor, o rebanho. Que importam a solidariedade
e o amor? Viver a vida na igualdade é apodrecer num charco...
MILKAU
Toda a marcha humana é uma aspiração da liberdade; esta é o
verdadeiro apoio, o estímulo, a razão de ser de uma sociedade. A
ordem não é um princípio moral; é apenas um fator preexistente e
indispensável ao conceito social; não pode haver sociedade sem
ordem, como cálculo sem números; a harmonia existirá por
momentos, mesmo num regime de escravos e de senhores, mas será
instável, e sem a liberdade não há ordem possível; a busca e a
realização da liberdade como fundamento da solidariedade são o
fim de toda a existência... Mas para aí chegar, que caminho não
percorreu o homem!... A liberdade é como a própria vida, nasce e
cresce na dor...
LENTZ
Oh! mas essa dor deita gotas de amargura sobre a vitória. Não, o
verdadeiro homem é o que se libertou de todo o sofrimento, aquele
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cujos nervos não se contraem nas agonias, o que é sereno e não
sofre, o que é soberano, o que é onipotente, o que tem sua
integridade completa e fulgurante; o que não ama, porque o amor é
um desdobramento doloroso da personalidade.
MILKAU
O que nos une solidariamente na humanidade é o sofrimento. Ele é
a fonte do amor, da religião e da arte, e não se pode substituir a sua
consciência fecunda pelo império de uma insensibilidade feroz.
LENTZ
Quanto a mim, penso que devemos voltar atrás, apagar até aos
últimos traços as manchas desta civilização de humildes, de
sofredores, de doentes, purificar-nos do seu veneno, que nos mata
depois de nos entristecer.
MILKAU
Eu vejo na exaltação das tuas palavras que há em nós uma tristeza
diversa diante do quadro da vida dos homens... mas sempre tristeza
e desespero. O mal é universal, ninguém está satisfeito por estes
tempos; todos se lamentam, e nem senhores, nem escravos, nem
ricos, nem pobres, nem cultivados, nem simples têm o seu quinhão
de alegria, de satisfação, como queriam. E quando numa sociedade o
indivíduo sofre, essa gota de agonia é bastante para condenar todo o
fundamento da comunhão. Há uma crise em tudo, o próprio solo é
vacilante e trêmulo, o mundo está abalado, a atmosfera é
irrespirável. No meio de confusas aspirações, neste contato estranho
de sentimentos tão vários, pode-se acaso fundar a harmonia
sossegada e doce da vida? A religião foi-se; ela é do tempo, e, como
próprio tempo, uma vez perdida, não volta mais... Uma civilização
de guerreiros persiste no meio do surto da alma pacífica do homem.
Tudo se confunde, se mistura e se repele num torvelinho de
desespero... A sombra do passado penetra demasiado na morada do
homem moderno e enche-lhe a casa de espectros e visões, que o
detêm e o perturbam. E o futuro, mensageiro do gesto consolador,
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vem avançando a medo como um ladrão noturno... Mas eu não
esperei o seu passo vacilante e tardo: despi a minha roupagem
pesada, e lépido então fui buscar o perfume e os alimentos que,
vagaroso e divino, ele vem trazendo aos homens. E como dentro em
mim é doce a salvação!
LENTZ
E para aí chegares?... Deixaste pátria, família, sociedade, uma
civilização superior?
MILKAU
Deixei o que era vão.
LENTZ
E à Europa, e à Alemanha nada mais te prende?
MILKAU
Somente o que elas têm de grande no passado. Mas isto é o
incorpóreo, é o invisível, e eu não preciso de me sentar sobre as
ruínas para amá-lo. É a obra da imaginação e da memória. O meu
culto ao que é humano é ativo, reside na dupla consciência da
continuidade e da indefinidade do progresso. O que a Europa nos
mostra, como forma da vida, é apenas um prolongamento
desarmônico das forças de ontem e das solicitações do presente.
LENTZ
Não compreendo como por um ato de vontade se possa trocar
Berlim pelo Cachoeiro... De que cidade da Alemanha és tu?
MILKAU
Sou de Heidelberg, e de lá guardo as minhas mais longínquas
recordações. Vejo-me ao lado de meu pai, dia e noite ligados, como
o corpo e a sombra... Ele era um professor de colégio, um desses
universitários muito instruídos, mas, como a maior parte deles,
indeciso em sua vasta cultura escolar. Meu pai, Lentz, era a própria
doçura, e as imagens que dele conservo no fundo da minha pupila
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são de um homem feito de sorrisos suaves e inextinguíveis; tinha
uma inteligência sutil e aérea, mas o pudor da audácia o entorpecia,
e por isso todo o seu grande capital de bondade e de amor ficou
sepultado no fundo do seu coração, e o mundo o ignorou. Ele
continha e refreava a imaginação. Oh! como ele mesmo criava
barreiras ao seu espírito! Os preconceitos chegavam-lhe ao apelo da
sua timidez, e ele os acariciava como se fossem numes protetores.
Mas em tudo isso havia uma infelicidade funda, que lhe devia ser o
amargor da vida. As suas expressões nunca transpiraram o sangue
de todo o seu amor humano. Foi o perfume que guardou no interior
da alma sem o transfundir além, e desse excesso de concentração
veio-lhe a morte...
LENTZ
E nesse tempo que idade tinhas?
MILKAU
Eu saía da universidade e entrava no mundo quando meu pai
morria. Minha mãe com lágrimas molhava noite e dia as saudades
plantadas no seu coração. Ela foi mesquinha de dor, e eu amei-a até
à sua morte como uma filha tamanhinha e mofina...
LENTZ
E então?
MILKAU
Depois de três anos dessa existência, entre a recordação e a piedade,
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