Publicado originalmente em 1902. Livro Digital nº 924 1ª Edição São Paulo, 2017. Romance Literatura Brasileira. José Pereira da Graça Aranha


Partiram. A estalajadeira, fincada na porta, enquanto eles



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Canaa - Graca Aranha - IBA MENDES


Partiram. A estalajadeira, fincada na porta, enquanto eles 
atravessavam o povoado, clamava aos vizinhos: 
– Vejam só. Não é que a desavergonhada teve sorte... E aquele 
sujeito com uma cara de santo! Pouca vergonha... 
Quando deixaram Santa Teresa e tomaram o caminho do Timbuí, 
Milkau recordou-se da sua primeira viagem com Lentz, 
atravessando num êxtase a pomposa região, para se libertar do 
Mal... A sua viagem de hoje era ainda um combate contra o 
sofrimento, contra o ódio entre os homens... Mas, afastando as 
apreensões de uma irremediável desilusão, o seu espírito tomava 
outro caminho e confiava que aquele doloroso incidente, 
interrompendo a descuidada bem-aventurança, passaria rápido, e 
tudo voltaria à doce calma. Amanhã, pensava ele, Maria tornará a 
ser feliz, o seu amante arrependido virá buscá-la, e todas as ligeiras 
feridas da dor serão curadas por um sopro de bondade... Isso deu-
lhe novas forças, e, esquecendo a tristeza, a miséria da sorte da 
companheira, foi alegre conversando com ela. 
Debaixo do sol ardente desciam e subiam morros, e durante as 
primeiras horas Maria marchava lépida, apesar de tudo. Mais tarde 
começou a fraquear e era com dificuldade que prosseguia. 
Sentaram-se às sombras das árvores, à beira dos caminhos. 
Descendo das regiões férteis, passavam tropas de burros carregados 
para o Porto do Cachoeiro, passavam viajantes montados, 
escoteiros, passava gente a pé, e só eles, descuidados, se deixavam 
ficar ali. Com o avançar da tarde, Milkau ficou inquieto, percebendo 


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que lhes era impossível alcançar o Rio Doce naquele dia. Pediu a 
Maria continuassem a caminhar até descobrirem uma colônia onde 
pernoitar. Andaram mais um pouco, e uma colônia se lhes deparou 
no alto da montanha. Milkau propôs subirem pela vereda que 
levava até lá, onde talvez conseguissem agasalho. Maria fez um 
esforço e foi subindo vagarosamente. 
A colônia para onde se dirigiam era um pequeno jardim europeu, 
que quebrava a uniformidade das habitações dos imigrantes. À 
medida que se aproximavam, iam sendo maravilhados.
Embaixo estendia-se uma série de vales recortados em mil aspectos 
diversos; ora montanhas baixas, formando massas enormes, secas, 
áridas; ora matas folhudas, negras; ora despenhadeiros, planícies, 
riachos, plantações, casas; tudo numa abundância de criação, num 
capricho de linhas, de desenho, como numa paisagem extravagante. 
Os viajantes foram-se deliciando com o cenário, perfumado com os 
aromas que vinham do jardim, até que, chegando à cancela, Milkau 
bateu palmas. Os cães ladraram atirando-se sobre a cerca, e logo um 
velho acudiu, sossegando-os com alegre autoridade: 
– Olá, patifes! assim é que se recebem visitas? 
Os cães afastaram-se rosnando, e o velho, alisando a longa barba 
branca, falou aos viajantes, mostrando no riso uma fila de dentes 
sãos. Milkau explicou-lhe o que os levara aí. E o velho, radiante, 
escancarou a porta, num gesto de agasalho fácil e espontâneo. 
Penetraram no jardim, que estava em triunfal floração. Os olhos não 
se podiam fixar em nenhum pormenor. A impressão que tiveram foi 
de um só conjunto de cores desdobradas ao infinito. A vista se lhes 
estendia farta e satisfeita sobre uma tela mágica, uma zona 
cambiante, uma irradiação espectral, divina e rara. 
Levou-os o velho para dentro da casa e ofereceu-lhes jantar, 
servindo-os à mesa e obsequiando-os como podia. Entretanto, ia-
lhes contando que era viúvo, morava ali só, havia muitos anos, as 


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filhas eram casadas e os filhos viviam na vizinhança; o que o 
entretinha era cultivar flores; o cafezal também o distraía, e da janela 
apontou as plantações no morro próximo, tratadas com o carinho de 
uma horta. Findo o jantar, vieram os três para o jardim. O homem 
da colônia deixou os hóspedes e foi regar as plantas. Milkau ficou 
um momento admirando os movimentos espertos e juvenis do 
ancião, e depois, seguido de Maria, começou a passear pelo jardim. 
Ela parecia nunca ter sofrido; uma resignação de nômada apagara 
rapidamente os vestígios da miséria. 
E um instantâneo olvido encerrou a sua agonia. Agora, toda era 
encanto por Milkau, e com os olhos postos nele ficava embebida 
num humilde enlevo. Encerrado ali, Milkau julgava-se fora da 
natureza tropical, via interrompida a eterna verdura, substituída a 
tragédia da natureza brasileira pela doçura europeia trazida nas 
flores que peregrinaram até aí. E o jardim lembrou a Milkau a terra 
que abandonara, e ele transportou-se no voo da saudade para velha 
Germânia. Naquela mesma hora era ali a hora da primavera... Tudo 
ressuscitava, saindo da morte gelada. Recordou-se dos bosques, dos 
jardins, das casas, da gente num regozijo de novidade ao calor 
benfazejo do sol. E no ânimo de Milkau amolentado pelo violento 
encontro da dor, entristecido, abatido, apontou no momento do 
crepúsculo uma ligeira sombra de nostalgia... Maria estava meio 
fatigada e inconscientemente apoiou a mão no ombro de Milkau. 
Este sentiu uma fulminante carícia, e o calor emanado das entranhas 
geradoras da mulher infiltrou-se nos seus nervos, entorpecendo-os 
bruscamente. E foram caminhando como espectros: olhos perdidos 
no vago, mudos e sonhadores. Com a queda do dia, as plantas 
cheiravam ainda mais. Quando eles passavam esquecidos, absortos, 
borboletas voavam saindo das plantas, como flores aladas... 
Andaram até onde o jardim ia acabar num lugar seco, descampado, 
onde, como uma mulher bela e daninha, uma palmeira se alteava, 
esterilizando a terra... Sentaram-se em uma pedra. Os olhos, depois 
de mergulharem no tremedal que ficava embaixo, no despenhadeiro 


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da montanha, ergueram-se para o céu, e acompanharam a morte do 
sol. Era uma representação fantástica. Sem raios, sem reverberação, 
o imenso globo ostentava uma sucessiva gradação de cores, como se 
dentro dele um mágico se divertisse em iluminá-lo. O mundo inteiro 
tinha parado para assistir ao espetáculo... O grande ator foi 
descendo no espaço sem nuvens, sobre a sua superfície as cores 
ainda continuavam numa infinita mutação, até que afinal ele 
mergulhou no horizonte e a terra tingiu-se de sangue e em seus mil 
nervos agitou-se toda...
Era noite... O colono acabara o serviço e veio ter com os hóspedes, 
convidando-os a se recolherem. Dentro, à mesa, os três conversaram 
sem interesse, até que o dono da casa, caindo de sono, propôs irem 
dormir. Mostrou a Milkau dois quartos contíguos, onde lhes tinha 
preparado as camas. 
E já a casa estava em sossego e Milkau, no seu leito, sem poder 
dormir, acompanhava o sono de Maria. O ressonar leve e regular da 
mulher vinha-lhe aos ouvidos, como uma música estranha que se 
lhe infiltrava, aquecendo-o... 
Seguia deliciosamente todo aquele brando respirar, e pouco a pouco 
uma funda perturbação lhe alvoroçava o sangue. Mulher!... pensava 
ele. E esta palavra evocadora dilatava-lhe os horizontes da 
restringida e quase apagada sensualidade. Mulher! E lá vinham do 
esquecimento, onde jaziam sepultadas, as visões lúbricas e lascivas... 
Mulher!... E um torpor, um espreguiçamento dos músculos o 
desequilibrou de uma vez e o atirou a uma vertigem de volúpia... 
Milkau levantou-se trêmulo, o coração galopando, a garganta 
estrangulada, a boca seca. Chegou-se à porta entreaberta do quarto 
de Maria. Cresceu-lhe o tremor e uma lânguida moleza o deteve, 
dando-lhe um instante de consciência e um profundo vexame... O 
homem forte ficou envergonhado desse momento de loucura, e, 
abrindo a janela, pôs-se a cismar debruçado sobre a Noite divina... 


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Amaldiçoou-se e teve nojo de si; viu-se o ludíbrio do desejo e 
descreu da redenção...
Maria continuava a dormir tranquilamente; o seu respirar chegava 
sempre aos ouvidos de Milkau, enchendo-os de um gozo infinito... 
Não era um ressonar de adormecida, era um suspiro de amante, 
debaixo de cujas camadas sonoras se sente o mistério do 
instrumento, que vos canta... O cheiro do jardim transtornava as 
coisas... Milkau estremeceu outra vez, sacudido pela volúpia... Era 
noite, e todos se amavam... Àquela hora chegava-lhe do Universo 
inteiro o eco do Amor... Só ele era mudo... E o seu olhar perscrutava 
as sombras da imensidade... Tudo se iluminava ao poder formidável 
da sua alucinação. E tudo era uma visão de amor: as bocas se 
beijavam com febre, os braços se apertavam enlaçados, os corpos, 
misturados, gemiam num frenesi de doidos... O solitário também 
amou... O sangue dentro dele, o jovem sangue parado pela ilusão, 
degelou-se num momento e, quente e sôfrego, clamou o corpo da 
mulher... Milkau deixou a noite tentadora e entrou no quarto de 
Maria. Os cabelos dela estavam soltos e caíam sobre o colo nu... 
Milkau recolheu a quentura do corpo feminino, que amornava o 
aposento, e nos cabelos de Maria, como em frocos macios e louros, 
mergulhou a mão até ao fundo... E ficou trêmulo, num frêmito 
convulso, mudo e refreado. Deslumbrado pela vertigem, via-lhe os 
cabelos descer pelo corpo abaixo, correntios, luminosos, como um 
rio de ouro... Ficou assim séculos pregado àquele corpo, sem poder 
ir além, numa arquejante respiração, que acordou a rapariga. Ela, 
com os olhos meio cerrados, perguntou: 
– Já são horas de partir? 
A voz inocente caiu sobre Milkau como uma rajada de frio. 
Retirou a mão e, voltando rapidamente a si, fugiu, murmurando: 
– Não, não... Dorme... Sossega. Não é nada... 


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Voltou à janela. E para ele, que não era mais o mesmo, a Noite era 
outra; não tinha mais aqueles acentos de volúpia, aqueles 
transportes de luxúria. Era serena e benfazeja como a face de uma 
irmã. Ficou longo tempo ali, humilhado, confuso, arrependido, e 
com a brisa misturou os queixumes da sua agonia sexual, e com o 
orvalho, que a madrugada para o sarar lhe derramou sobre a cabeça, 
confundiu as suas lágrimas de solitário. 
De manhã, ao deixarem a casa, o velho os acompanhou até à porta 
do jardim encantado, sorrindo-lhes com carinhosa malícia, como se 
costuma sorrir aos noivos. Maria retribuiu a saudação sem saber o 
que esta dizia. Milkau sentiu uma pungente tortura com aquele 
sorriso; mas logo, erguendo a cabeça, partiu altivo, como o vencedor 
de si mesmo. 

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