Partiram. A estalajadeira, fincada na porta, enquanto eles
atravessavam o povoado, clamava aos vizinhos:
– Vejam só. Não é que a desavergonhada teve sorte... E aquele
sujeito com uma cara de santo! Pouca vergonha...
Quando deixaram Santa Teresa e tomaram o caminho do Timbuí,
Milkau recordou-se da sua primeira viagem com Lentz,
atravessando num êxtase a pomposa região, para se libertar do
Mal... A sua viagem de hoje era ainda um combate contra o
sofrimento, contra o ódio entre os homens... Mas, afastando as
apreensões de uma irremediável desilusão, o seu espírito tomava
outro caminho e confiava que aquele doloroso incidente,
interrompendo a descuidada bem-aventurança, passaria rápido, e
tudo voltaria à doce calma. Amanhã, pensava ele, Maria tornará a
ser feliz, o seu amante arrependido virá buscá-la, e todas as ligeiras
feridas da dor serão curadas por um sopro de bondade... Isso deu-
lhe novas forças, e, esquecendo a tristeza, a miséria da sorte da
companheira, foi alegre conversando com ela.
Debaixo do sol ardente desciam e subiam morros, e durante as
primeiras horas Maria marchava lépida, apesar de tudo. Mais tarde
começou a fraquear e era com dificuldade que prosseguia.
Sentaram-se às sombras das árvores, à beira dos caminhos.
Descendo das regiões férteis, passavam tropas de burros carregados
para o Porto do Cachoeiro, passavam viajantes montados,
escoteiros, passava gente a pé, e só eles, descuidados, se deixavam
ficar ali. Com o avançar da tarde, Milkau ficou inquieto, percebendo
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que lhes era impossível alcançar o Rio Doce naquele dia. Pediu a
Maria continuassem a caminhar até descobrirem uma colônia onde
pernoitar. Andaram mais um pouco, e uma colônia se lhes deparou
no alto da montanha. Milkau propôs subirem pela vereda que
levava até lá, onde talvez conseguissem agasalho. Maria fez um
esforço e foi subindo vagarosamente.
A colônia para onde se dirigiam era um pequeno jardim europeu,
que quebrava a uniformidade das habitações dos imigrantes. À
medida que se aproximavam, iam sendo maravilhados.
Embaixo estendia-se uma série de vales recortados em mil aspectos
diversos; ora montanhas baixas, formando massas enormes, secas,
áridas; ora matas folhudas, negras; ora despenhadeiros, planícies,
riachos, plantações, casas; tudo numa abundância de criação, num
capricho de linhas, de desenho, como numa paisagem extravagante.
Os viajantes foram-se deliciando com o cenário, perfumado com os
aromas que vinham do jardim, até que, chegando à cancela, Milkau
bateu palmas. Os cães ladraram atirando-se sobre a cerca, e logo um
velho acudiu, sossegando-os com alegre autoridade:
– Olá, patifes! assim é que se recebem visitas?
Os cães afastaram-se rosnando, e o velho, alisando a longa barba
branca, falou aos viajantes, mostrando no riso uma fila de dentes
sãos. Milkau explicou-lhe o que os levara aí. E o velho, radiante,
escancarou a porta, num gesto de agasalho fácil e espontâneo.
Penetraram no jardim, que estava em triunfal floração. Os olhos não
se podiam fixar em nenhum pormenor. A impressão que tiveram foi
de um só conjunto de cores desdobradas ao infinito. A vista se lhes
estendia farta e satisfeita sobre uma tela mágica, uma zona
cambiante, uma irradiação espectral, divina e rara.
Levou-os o velho para dentro da casa e ofereceu-lhes jantar,
servindo-os à mesa e obsequiando-os como podia. Entretanto, ia-
lhes contando que era viúvo, morava ali só, havia muitos anos, as
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filhas eram casadas e os filhos viviam na vizinhança; o que o
entretinha era cultivar flores; o cafezal também o distraía, e da janela
apontou as plantações no morro próximo, tratadas com o carinho de
uma horta. Findo o jantar, vieram os três para o jardim. O homem
da colônia deixou os hóspedes e foi regar as plantas. Milkau ficou
um momento admirando os movimentos espertos e juvenis do
ancião, e depois, seguido de Maria, começou a passear pelo jardim.
Ela parecia nunca ter sofrido; uma resignação de nômada apagara
rapidamente os vestígios da miséria.
E um instantâneo olvido encerrou a sua agonia. Agora, toda era
encanto por Milkau, e com os olhos postos nele ficava embebida
num humilde enlevo. Encerrado ali, Milkau julgava-se fora da
natureza tropical, via interrompida a eterna verdura, substituída a
tragédia da natureza brasileira pela doçura europeia trazida nas
flores que peregrinaram até aí. E o jardim lembrou a Milkau a terra
que abandonara, e ele transportou-se no voo da saudade para velha
Germânia. Naquela mesma hora era ali a hora da primavera... Tudo
ressuscitava, saindo da morte gelada. Recordou-se dos bosques, dos
jardins, das casas, da gente num regozijo de novidade ao calor
benfazejo do sol. E no ânimo de Milkau amolentado pelo violento
encontro da dor, entristecido, abatido, apontou no momento do
crepúsculo uma ligeira sombra de nostalgia... Maria estava meio
fatigada e inconscientemente apoiou a mão no ombro de Milkau.
Este sentiu uma fulminante carícia, e o calor emanado das entranhas
geradoras da mulher infiltrou-se nos seus nervos, entorpecendo-os
bruscamente. E foram caminhando como espectros: olhos perdidos
no vago, mudos e sonhadores. Com a queda do dia, as plantas
cheiravam ainda mais. Quando eles passavam esquecidos, absortos,
borboletas voavam saindo das plantas, como flores aladas...
Andaram até onde o jardim ia acabar num lugar seco, descampado,
onde, como uma mulher bela e daninha, uma palmeira se alteava,
esterilizando a terra... Sentaram-se em uma pedra. Os olhos, depois
de mergulharem no tremedal que ficava embaixo, no despenhadeiro
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da montanha, ergueram-se para o céu, e acompanharam a morte do
sol. Era uma representação fantástica. Sem raios, sem reverberação,
o imenso globo ostentava uma sucessiva gradação de cores, como se
dentro dele um mágico se divertisse em iluminá-lo. O mundo inteiro
tinha parado para assistir ao espetáculo... O grande ator foi
descendo no espaço sem nuvens, sobre a sua superfície as cores
ainda continuavam numa infinita mutação, até que afinal ele
mergulhou no horizonte e a terra tingiu-se de sangue e em seus mil
nervos agitou-se toda...
Era noite... O colono acabara o serviço e veio ter com os hóspedes,
convidando-os a se recolherem. Dentro, à mesa, os três conversaram
sem interesse, até que o dono da casa, caindo de sono, propôs irem
dormir. Mostrou a Milkau dois quartos contíguos, onde lhes tinha
preparado as camas.
E já a casa estava em sossego e Milkau, no seu leito, sem poder
dormir, acompanhava o sono de Maria. O ressonar leve e regular da
mulher vinha-lhe aos ouvidos, como uma música estranha que se
lhe infiltrava, aquecendo-o...
Seguia deliciosamente todo aquele brando respirar, e pouco a pouco
uma funda perturbação lhe alvoroçava o sangue. Mulher!... pensava
ele. E esta palavra evocadora dilatava-lhe os horizontes da
restringida e quase apagada sensualidade. Mulher! E lá vinham do
esquecimento, onde jaziam sepultadas, as visões lúbricas e lascivas...
Mulher!... E um torpor, um espreguiçamento dos músculos o
desequilibrou de uma vez e o atirou a uma vertigem de volúpia...
Milkau levantou-se trêmulo, o coração galopando, a garganta
estrangulada, a boca seca. Chegou-se à porta entreaberta do quarto
de Maria. Cresceu-lhe o tremor e uma lânguida moleza o deteve,
dando-lhe um instante de consciência e um profundo vexame... O
homem forte ficou envergonhado desse momento de loucura, e,
abrindo a janela, pôs-se a cismar debruçado sobre a Noite divina...
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Amaldiçoou-se e teve nojo de si; viu-se o ludíbrio do desejo e
descreu da redenção...
Maria continuava a dormir tranquilamente; o seu respirar chegava
sempre aos ouvidos de Milkau, enchendo-os de um gozo infinito...
Não era um ressonar de adormecida, era um suspiro de amante,
debaixo de cujas camadas sonoras se sente o mistério do
instrumento, que vos canta... O cheiro do jardim transtornava as
coisas... Milkau estremeceu outra vez, sacudido pela volúpia... Era
noite, e todos se amavam... Àquela hora chegava-lhe do Universo
inteiro o eco do Amor... Só ele era mudo... E o seu olhar perscrutava
as sombras da imensidade... Tudo se iluminava ao poder formidável
da sua alucinação. E tudo era uma visão de amor: as bocas se
beijavam com febre, os braços se apertavam enlaçados, os corpos,
misturados, gemiam num frenesi de doidos... O solitário também
amou... O sangue dentro dele, o jovem sangue parado pela ilusão,
degelou-se num momento e, quente e sôfrego, clamou o corpo da
mulher... Milkau deixou a noite tentadora e entrou no quarto de
Maria. Os cabelos dela estavam soltos e caíam sobre o colo nu...
Milkau recolheu a quentura do corpo feminino, que amornava o
aposento, e nos cabelos de Maria, como em frocos macios e louros,
mergulhou a mão até ao fundo... E ficou trêmulo, num frêmito
convulso, mudo e refreado. Deslumbrado pela vertigem, via-lhe os
cabelos descer pelo corpo abaixo, correntios, luminosos, como um
rio de ouro... Ficou assim séculos pregado àquele corpo, sem poder
ir além, numa arquejante respiração, que acordou a rapariga. Ela,
com os olhos meio cerrados, perguntou:
– Já são horas de partir?
A voz inocente caiu sobre Milkau como uma rajada de frio.
Retirou a mão e, voltando rapidamente a si, fugiu, murmurando:
– Não, não... Dorme... Sossega. Não é nada...
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Voltou à janela. E para ele, que não era mais o mesmo, a Noite era
outra; não tinha mais aqueles acentos de volúpia, aqueles
transportes de luxúria. Era serena e benfazeja como a face de uma
irmã. Ficou longo tempo ali, humilhado, confuso, arrependido, e
com a brisa misturou os queixumes da sua agonia sexual, e com o
orvalho, que a madrugada para o sarar lhe derramou sobre a cabeça,
confundiu as suas lágrimas de solitário.
De manhã, ao deixarem a casa, o velho os acompanhou até à porta
do jardim encantado, sorrindo-lhes com carinhosa malícia, como se
costuma sorrir aos noivos. Maria retribuiu a saudação sem saber o
que esta dizia. Milkau sentiu uma pungente tortura com aquele
sorriso; mas logo, erguendo a cabeça, partiu altivo, como o vencedor
de si mesmo.
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