CAPÍTULO 8
A passagem da miséria na nova vida de Milkau deixara o seu
vestígio perturbador. No espírito dele uma melancolia teimosa se
espraiava infinita, vaga, entorpecedora, e agora o pensamento
rolava vertiginoso para o desânimo... Não podia esquecer a desgraça
de Maria. Não há sofrimento, cismava ele, tão insignificante que não
clame aos que passam piedade e reparação com o alarido de cem mil
bocas. Não há desgraça pequena. Toda a dor é imensa.
E para afugentar a persistente Tristeza, que o cercava e lhe estendia
os braços amorosos, Milkau consagrava-se ainda mais ao trabalho.
Já por esses tempos a colônia tinha um belo e florescente aspecto.
Todo o “prazo” estava cultivado, e os pés de café, que brotavam
num indomável viço, cobriam como um manto a antiga hediondez
do roçado. Desaparecera a coivara, o terreno semelhava um
verdejante parque cercado das árvores imensas da floresta, apenas
interrompida, e a humilde casinha dos dois emigrados estava
coberta de trepadeiras, que se abriam em flores, dando àquele
jardim ali nos trópicos um perpétuo ar festivo à vivenda.
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Milkau era agricultor por instinto, e todas as suas faculdades de
atenção, de imaginação, as empregava com desvelo e ardor no
trabalho com as próprias mãos, que enobrecia o seu destino
humano. Lentz era o caçador. Restringido a um círculo de limitada
atividade, o seu espírito, sempre retrógrado, buscava expandir-se
nessa forma inicial e selvagem da civilização. Caçava, lutava com os
animais, devastava as matas, e aliado a outros colonos de igual
inclinação, em poucos meses para ele já não havia segredos na
floresta brasileira. No mesmo teto esses dois homens exprimiam
duas culturas diferentes. Um oferecia ao mundo façanhas, matanças,
sacrifícios de sangue, e o outro, simples lavrador, frutos da terra,
flores do seu jardim... Mas, longe do ódio, da luta fratricida, entre
esses dois intérpretes sucessivos da vida, formara-se uma atração,
uma solda inquebrantável e que ainda significava a imagem dessa
impulsiva liga entre todos no mundo, que cada dia será crescente,
até se tornar universal e indestrutível.
Milkau trabalhava sempre. E quando, curvado sobre a enxada, a
fronte suada, os nervos cansados, um repouso suave, um
esquecimento devia adormecer-lhe os pensamentos, lá vinha ainda
nesses instantes o tormento da piedade, o contínuo testemunhar da
desgraça alheia, com o uma mancha na sua visão radiante.
“Não é no trabalho que está a salvação da miséria, nem o estímulo
para o desalento. Que importa que nos fatiguemos, que ensopemos
a terra com o nosso suor, que cubramos o mundo de flores saídas
das nossas mãos infatigáveis, se ali adiante, ao nosso lado, vive a
Dor; se todo esse sangue, essas flores, esses frutos não são bálsamos
para aquela ferida estranha!... Que bem fariam a cor, o perfume e o
sabor das coisas ao padecer de Maria? Como remediar, sarar a morte
do sonho, a decepção, enfim? Também ela não mourejava dia e noite
no trabalho, como um forçado? E a consolação lhe vinha? Oh! não, é
preciso haver outra coisa no mundo. Outra coisa mais santa, mais
poderosa, mais doce, mais divina, mais sutil, mais benfazeja, mais
vasta e mais misteriosa...
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O Amor!...” Assim pensava Milkau, enquanto a enxada, manejada
pelos braços inconscientes, cavava a terra.
Várias vezes fora à “colônia”, onde Maria se empregara, para levar-
lhe algum conforto. Ela se retraía cada dia mais e nem mesmo a ele
confiava os passos do seu martírio. Milkau respeitava esse pejo, e
sem insistir em desnudar-lhe o coração recomendava à gente da casa
a maior caridade para a desgraçada, pedindo que velassem por ela e
a não desamparassem na próxima crise. Os colonos prometiam-lhe
tudo, mas na verdade o sentimento deles era outro: tratavam a
miserável com desdém, mesmo com rancor, como uma intrusa que
lhes ia roubar a tranquilidade, dar-lhes trabalho e aumentar-lhes o
custeio da casa. Maria não se queixava. Aos antigos tormentos
juntava o desprezo e o ódio dos novos patrões. E ainda assim se
agarrava a essas raras migalhas de uma desdenhosa
condescendência humana, atormentada pelo medo do doloroso
momento, que se aproximava.
Por aquele tempo a vida de Milkau continuava a ser minada pela
tristeza. E também para o companheiro, fora a caça, nada havia na
colônia capaz de encher-lhe a imaginação. Durante o dia
trabalhavam, mudos e abismados nas suas cismas, e era com um
passo moroso e incerto que vagavam às tardes pelas habitações
vizinhas. Num desses passeios foram até uma colônia, que ainda
não tinham visto. À porta estava um ancião, que os convidou a
repousar um pouco, e, enquanto a família se entretinha nos arranjos
domésticos e no trato dos animais, os dois amigos ficaram a
conversar com o velho. Falaram da Alemanha, e o ancião narrou-
lhes sem demora traços da sua vida. Era um veterano do exército
prussiano cuja memória estava cheia de lembranças da última
grande guerra. Lentz se interessava pelos pormenores dessas
histórias, e o velho falava satisfeito e vaidoso de entreter os jovens.
Na sua narrativa imaginosa passavam cidades estranhas, desfilavam
exércitos, estrondeava o tumulto das batalhas, desabavam cargas de
cavalaria, a chuva oblíqua da metralha mudava em lama
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sanguinolenta a miserável e inquieta poeira humana, varrida em
turbilhões heroicos pelo tufão da Conquista. O velho soldado
terminou por contar que uma vez, num reconhecimento, caíra do
cavalo e por cima do peito lhe passara num galope o animal de um
camarada, e como, abandonado, a vomitar sangue, fora por um
acaso colhido na estrada. Desde então dera baixa e emigrara para o
Brasil, onde o clima quente lhe mantinha a vida... A essas
lembranças misturava outros episódios da invasão, quadros da
cultura estrangeira apenas entrevista e que recolhera à retina com
essa sensação de deslumbramento maravilhoso, como a que ficava
do minuto de um Bárbaro no seio da civilização... Ainda o
apavorava o terror da disciplina. Escapara de ser fuzilado, porque
uma noite de dezembro, em França, fazendo parte de uma
guarnição, exigira dos moradores da casa onde se acampara uns
cobertores. E essa extorsão, além do que era permitido reclamar, ele
ia pagando com a vida. Lentz aplaudiu então a Força imortal, que
comandava e era temida... E sorria como havia muito tempo não lhe
era dado. Entusiasmado, o veterano ergueu-se, e caminhando
trôpego levou os vizinhos para dentro da casa para mostrar-lhes
velhos retratos de reis, vistas da Prússia, estampas da guerra. Tudo
era antigo, mobílias, quadros e lembranças. Tudo ali era uma volta
ao Passado.
Em caminho para a colônia, disse Lentz:
– Que consolo senti indo à casa desse velho! Parecia ter penetrado
um instante no passado intacto da Prússia.
– Mas é preciso não amares demais esse passado – observou Milkau.
– E por que não me retemperarei nas fontes da minha raça? –
perguntou Lentz, com um tom enfático de superioridade.
– Por quê? Porque – respondeu Milkau – o que estimas nesse
passado é exatamente o que ele tem de humilhante e vergonhoso.
Amas o seu espírito de destruição, o demônio que o agitava, a alma
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senhoril, a servidão, a guerra, o sangue, tudo o que separa e
destrói... Dia a dia será reduzido o campo da veneração pelas
instituições da Antiguidade. Amemos o sacrifício feito pelo amor
humano, a ciência, a arte... Mas aquele amor inconsiderado por tudo
o que é passado, tudo o que foi, é um dos sopros mais poderosos
para a desordem universal. E eu tenho que o estudo das coisas
antigas, o prestígio das próprias letras mortas são outros tantos
venenos que acobardam a alma do homem de hoje e dão um
encanto crescente ao mistério da Autoridade... Os que se colocam no
passado, aqueles cujas almas se fazem artificialmente antigas, esses
são os verdadeiros inimigos do gênero humano, são os pregadores
da desordem, os profetas do tédio e da morte.
– Tu sabes bem – interrompeu Lentz –, não é tudo do passado que
eu amo, mas regozijo-me quando testemunho nele a ostentação das
fortes qualidades humanas da nossa Pátria.
– E que benefício resulta dessa força, dessa grandeza da Pátria?
– Oh! Exatamente o que nela venero é a tendência imperial, a fibra
belicosa, a expansão universal, a tenacidade, o gênio militar, a
disciplina...
– Mas que é a Pátria?
– A Pátria... ora, Milkau, tu não sabes? É a raça, uma civilização
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