parte manchas esplêndidas se ostentavam. E sobre a campina
esverdeada, vaporosa, uma dessas manchas, ligeiramente azulada,
movia-se, arqueava-se, abaixava-se, erguia-se e se ia lentamente
dissipando. O sol não tardou a vir, e a natureza sacudiu-se, a névoa
fugiu. O céu espanou-se e dilatou-se em maravilhosa limpidez. A
mancha móvel sobre a planície definiu-se no perfil de um pobre
cavalo que passeava na verdura os seus olhos de velhice e fadiga,
tristes e longos. De passada, com os túmidos e negros beiços,
afagava a erva, triturando-a com fastio e desânimo, enquanto a sua
atenção de cavalo experimentado estava voltada para a cabana, a
cuja porta os seus donos, os novos colonos magiares, o miravam
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com interesse. A neblina leve, veloz, vinha distraí-lo daquela
postura de curiosidade humilde, e acariciava num frio elétrico o seu
pelo ralo e falhado. Estremecia num gozo manso, e estendendo o
focinho, arregaçando os beiços, sensual e grato, beijava o ar. Não
mais encontrava a névoa, que fugira para os montes, levada pela
brisa, como se fosse o imperceptível véu que envolvesse alguma
deusa errante e retardada. Um raio de sol, porém, descera a brincar-
lhe nos olhos e incendiava-lhe a pupila. Meiguices da natureza.
Um dos jovens magiares, levando uma corda, caminhou para o
cavalo. O animal entregou-lhe a cabeça numa mistura de abandono
e tédio. O rapaz passou-lhe o cabresto e o levou ao poste fronteiro à
casa, onde o amarrou. Os colonos tinham resolvido principiar
naquele dia a plantação do prazo, e o velho deu ordem de partir
para a queimada. Os filhos armaram-se das ferramentas de lavoura,
o cigano, saindo de sua modorra e apenas armado de um chicote,
acompanhou os outros, que, desamarrando o cavalo, seguiram com
ele para o roçado. As raparigas que ficavam em casa cheias de
instintivo pavor viam o grupo afastar-se vagarosamente.
Chegaram ao aceiro que, aberto como uma larga ferida sobre o
dorso da terra, era um sulco de alguns metros de largura,
circundando a queimada. Da mata carbonizada ainda resistiam de
pé alguns troncos despojados, enegrecidos. Milkau e Lentz,
passeando àquela hora, passaram perto do roçado e viram chegar aí
o grupo dos vizinhos.
– Ainda bem – disse Milkau –, eles vão trabalhar, fazia-me dó ver
esta gente apática, irresoluta, entorpecida na preguiça.
– Mas para que trazem eles quase arrastado aquele cavalo? –
perguntou Lentz.
E os dois se afastaram um pouco e ficaram a distância,
acompanhando os movimentos do grupo.
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O velho colono segurou o animal pelo cabresto e o colocou no meio
da vala. Os filhos puseram-se de lado, num recolhimento religioso.
O pai puxou o cavalo para a frente. De chicote em punho, o cigano
seguia atrás, e a primeira vergastada, cortando o ar num sibilo, caiu
em cheio sobre o animal. Este, como arrancando-se de si mesmo,
pinoteou assustado. Novas lambadas foram arremessadas por mão
vigorosa. Estirou o cavalo o pescoço para a frente, abaixou-se,
alongou-se, encostando quase o ventre a terra, como para se libertar
do flagelo que lhe vinha do alto. Os seus membros se estorciam,
confrangidos sob a dor imensa. E desapiedadamente, puxavam-no
para diante, levando-o ao furor do açoite. Naquele sacrifício
cumpria-se uma missão sagrada: ligava-se à nova terra o nervo da
tradição da terra antiga. Quando os antepassados tártaros desceram
do planalto asiático, e no solo europeu renunciaram à vida errante
dos pastores, para lavrar o campo e buscar na cultura a satisfação da
vida, sacrificaram aos deuses o velho companheiro de peregrinação
nas brancas estepes. E, assim, a imolação ficou sempre no espírito
dos descendentes como um dever, cujas raízes se estendem até ao
fundo da alma das raças.
Continuava o grupo a caminhar. O velho, como um sacerdote,
conduzia a vítima, seguida do cigano, em cujo rosto se recompunha
a antiga expressão infernal e terrível dos antepassados, num
retrocesso harmônico e rápido, produzido pelo singular efeito da
paixão sanguinária. Os outros assistiam mudos à cerimônia. O
chicote vibrava incessante; as suas pontas de ferro cortavam o
lombo do animal. O ar leve e frio, penetrando nos fios de carne viva,
causava uma dor fina, aguda, acerba, e a vista e o cheiro do sangue
excitavam ainda mais a energia do flagelador. Veio-lhe uma
histérica insensibilidade, uma rudimentar anestesia, uma assassina
obsessão. Estonteou-o uma vertigem, mas o açoite não parou. Os
sulcos na carne abriam-se mais fundos; o sangue escorria frouxo.
Mofino de dor, o cavalo prosseguia arrastado, regando a terra. Gotas
vermelhas respingavam sobre a descoberta cabeça do velho magiar,
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de uma brancura de açucena. As suas narinas dilatavam-se em
lânguido gozo. Cavos gemidos ressoavam no peito da besta. E no
seu olhar infinito de moribundo traduziam-se os humildes protestos
e os tímidos apelos de misericórdia.
E o relho soava, enquanto o mártir ia lento, de pescoço estirado,
pernas trôpegas, esvaindo-se pelas veias abertas, como torneiras de
sangue. O cigano mais terrível, mais feroz, transfigurava-se, e da sua
garganta afinada irrompeu brusco, sonoro, o canto de guerra dos
velhos tártaros. O chicote cruel e rápido marcava o compasso desse
ritmo estranho. O contágio do furor apoderou-se dos outros, que,
imobilizados, assistiam ao sacrifício. E embriagados pouco a pouco
pelas frases da música, pela sugestão do rito, pelo odor de carne
sangrenta, acompanhavam o canto, num coro infernal. O animal,
exausto, caíra de lado, como um peso inerte. O açoite inexorável
ainda o levantou uma vez, e no solo, como numa verônica, ficou
estampada a imagem do seu corpo, impressa em sangue. Prosseguia
sem interrupção, fogoso, lúgubre, o canto que feria asperamente o
ar, e era o eco da melodia satânica da morte. O cavalo deu mais
alguns passos, cambaleando como um alucinado, e afinal prostrou-
se sobre a terra. Arquejante, resfolegando num espaçado estertor,
morria vagarosamente. Nas suas pupilas de moribundo
fotografaram-se num derradeiro clarão as fisionomias dos algozes. E
essa imagem medonha, que se lhe guardara no interior dos olhos,
era a infinita tortura que o acompanharia além da própria morte,
presidindo à dolorosa decomposição da sua carne de mártir.
Cessaram as vozes. Os homens agruparam-se em torno do cadáver,
rezando como fantasmas loucos. Poças e fios vermelhos manchavam
o sulco. A camada de argila, lisa, escorregadia como uma couraça,
tornava o seio da terra impenetrável ao sangue, que, sorvido pelo
sol, se evaporava e dissolvia no ar. Era a rejeição do sacrifício, o
repúdio da imolação, rompendo a cruenta tradição do passado. A
nova Terra juntava a sua contribuição aos límpidos ideais dos novos
homens...
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– E para quê? – dizia Milkau comovido até às lágrimas, – e para que
a tortura, a fecundação pelo sangue, se Ela, risonha e alegre, como
uma rapariga bela e fresca, lhes daria os seus frutos, cedendo tão
somente às brandas violências do amor?...
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