Por outro lado, quanto mais o ser se torna obediente à Lei, tanto mais ele se aproxima do S, isto é, ganha nas suas qualidades de positividade, subindo para a luz, para a felicidade, para a vida. Como pode o ser continuar usando a sua liberdade no sentido de aumentar o próprio dano e diminuir a própria vantagem, quando o seu instinto quer o oposto, isto é, diminuir o primeiro e aumentar o segundo? O fato é que há sempre maior vantagem em obedecer e sempre maior dano na desobediência. Do fundo do senão pode deixar de falar a sua própria natureza íntima, que é a de ser cidadão do S. Acontece então que automaticamente a posição em descida se faz cada vez mais insustentável e insuportável. Eis que o problema tende a resolver-se por si mesmo, porque a mecânica da utilidade cessante e do dano emergente, por si mesma leva fatalmente ao arrependimento à retificação.
Tudo isto, porém, não basta para destruir a possibilidade teórica duma revolta perpétua e definitiva, possibilidade que não se pode negar, porque sem ela a liberdade do ser não seria mais liberdade. É necessário que a obra de Deus esteja em absoluto acima de toda tentativa de alteração, inatingível na sua perfeição. Então, há no fim outro meio, último e definitivo de defesa: o da destruição do ser. Veremos agora em que sentido.
Antes de tudo a lógica impõe ter de admitir essa possibilidade teórica, porque se não se admitisse a mesma, seria necessário admitir-se uma possibilidade ainda mais difícil de aceitar: a da criatura destruir a obra de Deus. Resta então apenas uma solução: quando o ser quiser usar a sua liberdade para permanecer definitivamente rebelde a Deus, então não é escravizado; ele é eliminado. Essa solução é devida a duas impossibilidades:
1) a de tirar ao ser a liberdade, violando a própria natureza da divina substância de que é constituído.
2) a de permitir que tal liberdade possa destruir a perfeição da obra de Deus.
Temos falado de destruição e eliminação do ser. Como é
que isto acontece?
Neste caso também, Deus continua sempre respeitando a liberdade do ser. Não é que Deus o queira destruir à força, o que sereia pior que tirar-lhe a liberdade. A destruição do ser está implícita na própria estrutura do fenômeno. O ser não fez na liberdade o uso para o qual ela estava destinada, isto é, no sentido positivo, construtivo, mas a empregou às avessas, em sentido emborcado, isto é, negativo, destrutivo. É lógico que, com a revolta o ser, aprofundando-se cada vez mais na negatividade do AS, por si mesmo acabe destruindo-se e eliminando-se. É lógico que, no caso limite da revolta perpétua e definitiva, o ser tenha que atingir o extremo do processo de emborcamento da positividade na negatividade, isto é, um estado de destruição completa de toda a positividade e de absoluto triunfo da negatividade, o que quer dizer o nada. É automático e fatal que, por sempre querer negar tudo, o ser rebelde acabe negando até a si próprio, até ao seu próprio aniquilamento. Não quis ele, usando a sua livre vontade, destruir todas as qualidades positivas que possuía no S? E o que pode ficar quando tiramos de uma entidade tudo o que é positivo? Não pode ficar senão o nada. Eis a solução, automática e fatal, implícita no próprio fenômeno da queda, sem intervenções coativas e exteriores. É o próprio fato de ter o ser desejado com a revolta escolher o uso do método da negação, que fatalmente deve levá-lo para o seu aniquilamento do nada.
Tudo é simples e claro, regido por uma lógica perfeita, como num processo matemático. A dificuldade em compreendê-lo está no fato de que estamos acostumados a pensar antropomorficamente e ficamos fechados nessa forma mental, também quando enfrentamos esses problemas. Por isso eles não são equacionados de modo certo e, não encontrando explicação, tudo tem de acabar na fé cega e no mistério. Mas esta não é solução, não pode ser aceita hoje, que a mente humana vai amadurecendo. Deus não é exterior
aos fenômenos, como o é o homem que vive no relativo. Seria pensar antropomorficamente. Deus é interior a tudo o que existe, como o nosso eu é interior ao nosso corpo e nele age, o movimenta e cura, por dentro e não de fora para dentro. Eis o que nos ensinam estes fenômenos que vamos observando.
Continuando o nosso processo lógico, poder-se-ia, porém, contrapor esta dificuldade: o ser, criatura filha de Deus, é antes de tudo espírito, constituído da substância de Deus que é eterna. ora essa substância e o espírito feito com ela, porque não tiveram origem, não podem ter fim, porque não foram criados, não podem ser destruídos .
Respondemos: que foi criado na primeira criação realizada por Deus? O que nasceu não foi a substância, mas a sua individualização pessoal, que constitui o ser. A substância de Deus é a suaobra que, com a criação, foi transubstanciada no particular modelo da individuação pessoal. Somente esta individuação teve um nascimento. Por isso, ela somente pode morrer. Então o aniquilamento final de que aqui falamos, se pode referir só a essa individuação, que constitui o ser, e não à eterna substância da qual ele é constituído. Eis que, quando entendemos o conceito de destruição e aniquilamento neste sentido, tudo se torna lógico, claro e admissível .
Tudo isto é também justo, porque o rebelde, neste caso, acaba destruindo somente a si próprio e nada mais, só a sua individuação, seu eu pessoal e nada do que pertence ao S, à Lei, nem aos outros elementos que não se rebelaram ou que escolheram recuperar o que tinham perdido, seguindo o caminho de volta. Assim o mal fica sempre fechado em si, isolado, levado à destruição só de si próprio, quando o singular elemento livremente o quiser. Ninguém pode ser infectado por essa doença, que mata só quem a gerou dentro de si e quis depois, definitivamente, aceitá-la.
Tudo isto é justo, também, porque a destruição do ser é o retorno contra ele, do impulso de destruição que ele com a revolta lançou contra o S. Quanto mais aprofundamos a nossa pesquisa para compreender a estrutura da Lei e as suas reações, tanto mais nos apercebemos que não há um Deus à imagem e semelhança do ser humano que intervém premiando ou punindo. Os fatos falam diferentemente. Deus não opera nesta forma antropomórfica. Embora Ele exista em forma pessoal no Seu aspecto transcendente, em nosso universo não O encontramos, a não ser no Seu aspecto imanente em forma impessoal, presente a todos os fenômenos e individuações do Ser. Então, quando nós violamos a Lei e ofendemos Deus, não é que a Lei reage ou que Deus pune; são as forças do S que nos devolvem os impulsos que lançamos contra Ele. É o retorno dos nossos próprios impulsos que ricocheteiam para trás, que proporciona a reação à ação e as equilibra, constituindo a base da justiça divina. O que os fatos nos dizem a respeito da natureza de Deus, é diferente do que o homem, pensando antropomorficamente, até agora imaginou. É difícil para ele, acostumado à incerteza da escolha e tentativa, própria do seu estado de imperfeição, compreender esse estranho modo de operar segundo um determinismo automático que parece mecânico, porém, age com lógica, justiça e segurança absolutas, como só pode acontecer na obra perfeita de Deus.