TAVOLARO, Douglas. A casa do delirio: uma reportagem no manicômio judiciário de Franco da Rocha. 3. ed. São Paulo: SENAC, 2004. 186 p.
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A casa do delírio
Reportagem no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha
Douglas Tavolaro
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Dados internacionais de Ctalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Tavolaro, Douglas. A casa do delírio: uma reportagem no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha/ Douglas Tavolaro. – 3ª ed. – São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
ISBN 85-7359-239-7
1. Hospitais psiquiatricos 2. Insanidade 3.Manicômio Judiciário de Frando da Rocha 4.Repórteres e reportagens I. Título
01-6424
CDD – 070.449362210981612
Índices para cálogo sistemático: 1.Manicômio Judiciário de Franco da Rocha: Reportagens: Jornalismo
070.449362210981612
2. Reportagens: Manicômio Judiciário de Franco da Rocha: Jornalismo
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A casa do delírio
Reportagem no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha
Douglas Tavolaro
3ª edição
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© Douglas Tavolaro de Oliveira, 2001
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Sumário
Nota do editor página – 7
Agradecimentos página – 9
Prefácio página – 13
Marcelo Coelho – 16
Apresentação página – 17
Introdução página – 21
Primeira parte — Memória da casa dos loucos página – 23
Segunda parte — Rotina insana página – 73
Terceira parte — Caminho da lucidez página – 173
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Nota do editor
O jornalista DouglasTavolaro retrata aqui a “rotina insana” do Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, maior abrigo de doentes mentais criminosos do Brasil. Para fazer o retrato, esteve muitas vezes, por mais de um ano, nesse presídio-hospício, respirando sua atmosfera, pesquisando em seus arquivos, conversando com profissionais que aí atuam e com pacientes internados. Várias vezes também foi em busca de profissionais e pacientes que passaram pela instituição e tinham o que contar da experiência.
“A associação da loucura com o crime é cruel”, observa o autor — e evocadora de uma realidade incômoda. Mas A casa do delírio, a que Tavolaro deu “um tratamento ao mesmo tempo jornalístico, humano, objetivo e cheio de compaixão”, no dizer do prefaciador Marcelo Coelho, recompensará amplamente os
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leitores que enveredarem pela galeria de seus personagens representativos da população que trabalha, sofre e tem esperanças de vida melhor.
O Senac São Paulo, que está focalizando a atualidade brasileira e suas perspectivas em muitos livros, mostra nesta obra como profissionais de saúde procuram tornar melhor e mais digno o maior manicômio do país.
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Agradecimentos
Alguns amigos leram trechos ou a íntegra deste livro e fizeram comentários preciosos. Meu muito obrigado a Eduardo Marjnj, Marco Antonio Araujo, Marcelo Coelho, Wellington Andrade, Sérgio Rizzo, Natália Rangel Azevedo, Cláudia Pinho, Antonio Carlos Prado e Hélio Campos Mello. Meu muito obrigado às psicólogas Thelma Pascucci e Margarida Calligaris, pela lição de vida, e a Sheila, pela compreensão da ausência.
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Deus escolheu as cousas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as co usas fracas do mundo para envergonhar os fortes.
1 Coríntios 1,22
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Prefácio
Jornalistas têm muitos defeitos. Um dos mais conhecidos é o prazer que sentem com a desgraça alheia. Falar em “desgraça alheia”, aliás, já é um pouco agir como jornalista — impessoalizando, com um clichê, o sofrimento real de alguém. Seja como for, esse prazer de jornalista não nasce apenas do hábito cotidiano de lidar com catástrofes e crimes, O hábito produz, no máximo, uma certa indiferença, O prazer vem de outra coisa. É que, diante de uma tragédia, abstraímos a existência real das pessoas envolvidas para ver simplesmente a notícia - o caso inédito, o acidente específico, o pormenor bizarro, não a intensidade, grave e física, da dor humana.
Bem que os jornalistas podem retrucar que não é culpa deles: o leitor é que gosta de ler notícias assim. Todos, de fato, estão de acordo: sensacionalismo e desumanidade não são características apenas dos jornais populares, aqueles que “espremendo sai sangue”,
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mas se manifestam (com padrões de gosto e de linguagem, certamente) em qualquer órgão de imprensa e em qualquer de seus leitores.
Este livro de Douglas Tavolaro tinha algumas chances de dar errado. Não só porque ele é jornalista até a raiz dos cabelos, mas também porque é bem jovem — o autor de A casa do delírio tem apenas 24 anos. Não me lembro da frase exata, mas Proust se refere em algum lugar ao egoísmo e à crueldade das pessoas jovens. Um livro-reportagem contando o cotidiano do Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, em São Paulo, escrito por um jovem jornalista: como não esperar um desfile de aberrações mentais narrado com sensacionalismo, clichês e insensibilidade humana? Ou, então — caso houvesse a precaução de evitar esses defeitos —, não ficaríamos diante de um livro “politicamente correto”, piegas e desinteressante?
A casa do delírio não é nada disso. O leitor acompanha as histórias mais desconcertantes e terríveis de doença mental sem perder nunca o interesse, mas, claro, também sem perder nunca a dimensão do sofrimento dos personagens retratados. A figura tão estereotipada do “louco furioso”, do “assassino paranóico”, não é substituída por um discurso edificante em torno da legitimidade e da criatividade do delírio, mas, sim, por um tratamento ao mesmo tempo jornalístico, humano, objetivo e cheio de compaixão.
Não sei bem como Tavolaro consegue isso. Percebo que, mais do que uma disposição para entender a história de cada paciente, mais do que o talento para narrar com ritmo e vivacidade os crimes que tantos personagens cometeram contra os outros e contra si mesmos, o autor tem a virtude crucial da delicadeza: não apenas
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sabe contar uma história, mas também sabe interrompê-la, sabe calar-se.
Chamo a atenção do leitor para o modo como Tavolaro termina cada capítulo: sem se precipitar em conclusões moralistas ou desfechos retumbantes, mas num diminuendo que parece deixar aos poucos a cena, despedindo-se do personagem que retratou. Uma despedida que não é desesperançada, pessimista ou impiedosa, mas que devolve, com simpatia e tristeza, cada doente à realidade dramática com que convive. Drama de instituições psiquiátricas malcuidadas, drama de doenças que muito lentamente vão sendo pesquisadas, drama de pessoas que sofrem terrivelmente, e que este livro nos faz entender um pouco mais.
Douglas Tavolaro escreveu-o com leveza, com humor, com interesse autêntico pelo que vê; formas, sem dúvida, de uma virtude que não é tão simples nem tão imediata quanto parece: a simpatia. Simpatia profunda, que não exclui — ao contrário, exige — um olhar sério e investigativo sobre a realidade. Para aproximar-se dela, não para reduzi-la à brutalidade de notícia.
Marcelo Coelho
Articulista, membro do Conselho Editorial do jornal Folha de São Paulo
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Apresentação
O hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima, ou, simplesmente, Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, é o maior abrigo de doentes mentais criminosos do Brasil. Abriga enfermos que cometeram delitos e estão sob a custódia da Justiça como inimputáveis — não podem ser responsabilizados nem condenados porque não têm condições psí— quicas de compreender seus atos transgressores. São brasileiros de diversas origens, vítimas da mais perversa forma de exclusão social. A associação da loucura com o crime é cruel.
A casa do delírio busca mostrar de perto esse outro mundo, repleto de histórias que despertam curiosidade, estranheza e emoção. Conhecer as peculiaridades da insanidade enclausurada é tomar contato com uma realidade irreal que muitos preferem ignorar. Estão ali pacientes que convivem com regras próprias num mundo em que se misturam medo, paixão e cólera.
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As paginas adiante se aventuram na reconstrução da memória do presídio-hospício, em sua rotina insana e nos caminhos de procura da razão. Retratam a maneira pela qual profissionais de saúde estão pensando em torná-lo melhor e mais digno. Para isso, foi preciso dar voz aos cidadãos do manicômio. Resgatar caso a caso os enfermos, conversando com eles, fundindo-se em suas tragédias, procurando compreender seus contornos sociais e familiares.
Esse é um pouco o mundo do repórter: ser louco pela vida. Por que não lembrar sempre a definição do saudoso jornalista Marcos Faerman, para quem a reportagem é a arte da reconstrução dos fatos? “O repórter deseja desvendar segredos, vidas e almas com o encanto da revelação e do novo”, dizia ele. Sua missão é prosseguir na arte de lidar com a beleza e o horror e na fascinante descoberta de mundos estranhos: como o dos 614 presos-loucos que sobrevivem em Franco da Rocha, em meio à deficiência do sistema de saúde mental brasileiro.
Mas o dia-a-dia dos doentes não se reduz a calamidades. Há, em seu universo, satisfação em atitudes prosaicas, como trabalhar na horta, estudar com os colegas ou pintar quadros. Há realização em feitos heróicos, como cantar no coral ou conquistar uma namorada no baile. A marca desse novo tempo surgiu com o Programa de Desinternação Progressiva. Em onze anos de atividade do programa, 478 homens e mulheres, entre psicóticos, psicopatas, epilépticos e paranóicos, que um dia cometeram crime porque foram traídos por um surto, estão na rua trabalhando e sustentando família. Os números mostram a vitória do ser humano contra a insanidade. E proporcionam a certeza de que os doentes mentais
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delinqüentes não estão condenados pelo resto da vida ao confinamento e à solidão.
As informações deste livro referentes a prescrição de remédios, termos clínicos e história dos pacientes foram colhidas em laudos psiquiátricos dos estabelecimentos pelos quais eles passaram.
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Introdução
Este livro foi construído com base na leitura de livros de psiquiatria, de prontuários de arquivo do manicômio e em entrevistas com 107 pacientes. Foram catorze meses ininterruptos de idas semanais à instituição.
Agradeço, a todos os internos, a boa vontade com que me atenderam. Além das horas que passaram respondendo a perguntas, os entrevistados e seus familiares cederam anotações, diários, documentos, cartas e fotografias. Os nomes dos pacientes vivos aparecem aqui apenas com as iniciais ou pelos apelidos. O livro é resultado do aprimoramento do trabalho de conclusão de curso em jornalismo da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Desde o início deste trabalho, contei com o auxílio inestimável do secretário da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, do juiz corregedor Otávio Augusto Machado de Barros Filho, da diretora Odete Lanzotti e de todos os funcionários do hospital de custódia.
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Primeira Parte
Memória da casa dos loucos
A trajetória da vertigem
Esta aventura pelo mundo da razão perdida começa em 31 de dezembro de 1933, dia da fundação do Manicômio Judiciário de Franco da Rocha. Foi uma tarde festiva para o antigo povoado de Estação do Juqueri, assim chamado em homenagem à ferrovia construída pela companhia inglesa São Paulo Railway. Ela ligava São Paulo ao Asilo de Alienados Juqueri, inaugurado em maio de 1898. Os moradores do local, a maioria da capital paulista e de cidades vizinhas, mudaram-se para a região atraídos pela propaganda do governo, que oferecia emprego no hospício. Outros vinham à Estação do Juqueri visitar parentes internados e acabavam comprando um lote de terra no distrito, para construir e morar com a família.
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Naquele dia, véspera de ano-novo, muitas pessoas se concentraram diante do edifício suntuoso. Era uma obra de arquitetura elegante, situada no alto de um terreno de 185.000 m2, cedido ao Asilo Juqueri pelos governos Cerqueira César e Bernardino de Campos, O edifício foi um projeto do Escritório Ramos de Azevedo e apresentava uma das maiores novidades da arquitetura da época, o estilo art nouveau.
A paixão pela curva e pelos ornamentos lembrava as cidades européias do século XIX. Havia abundância de mármore, pinho, cerâmica e outros materiais importados, num conjunto que deliciava os espectadores como se estivessem pisando em luxuoso cenário artístico. A marca registrada Ramos de Azevedo impôs ao Manicômio o sentido de uma arquitetura da grandeza, da arte que se afirma em cada portão, nas janelas arredondadas e nas escadarias estudadas — tudo como se fizesse parte do cenário de alguma ópera. Tal encanto tornou o edifício uma das maiores marcas, no Brasil, de uma arte exótica muito apreciada pela aristocracia rural e pela burguesia, que tinham os olhos fixos na Europa.
Foram seis anos de construção, quatro a mais do que o planejado. Para o atraso das obras contribuiu principalmente a crise econômica e social que marcou o início da década de 1930. A quebra da Bolsa de Nova York abalou as exportações do café e reduziu drasticamente as verbas destinadas ao investimento público. Só em 1933 encerrou-se a construção, quando Armando Sales de Oliveira já era o interventor federal no estado de São Paulo.
Um ano antes, por volta de julho de 1932, o prédio foi usado como pavilhão de tratamento dos feridos da Revolução Constiticionalista.
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Em fase final de construção, acolheu centenas de voluntários civis incorporados aos batalhões das forças que lutavam pela criação da Assembléia Constituinte. Os combatentes paulistas da revolução armada recebiam os primeiros socorros depois de feridos, nas regiões vizinhas, pelas tropas legalistas de Getúlio Vargas.
Em sua proposta inicial, o Manicômio Judiciário trazia alguns padrões que se tornaram comuns na virada do século. São Paulo recebia, nesse período, o impacto do início da industrialização. A cidade antiga dos bondes e das carroças perdia seu charme. Com 30 mil habitantes em meados do século 19, saltou para mais de 350 mil no início do século 20— onze vezes mais em cerca de cinqüenta anos. O fluxo desordenado das ruas abalou o cenário bucólico paulistano e gerou um exército de excluídos. Loucos, desempregados, ex-escravos, prostitutas, sifilíticos, jogadores e bêbados dividiam as ruas e compunham uma multidão que representava, para as elites, o risco de contágio de epidemias, como febre amarela, tifo e varíola, e de revoluções sociopolíticas, como as insurreições anarquistas e a greve geral de 1917.
Começava, então, a prática de “limpar” as ruas desses desvalidos, loucos ou sãos, para preservar a sociedade. A idéia era formar uma cidade asséptica. Os cidadãos considerados improdutivos — idosos ou deficientes com tendência para comportamentos agressivos — também encontraram seu espaço definitivo no manicômio.
Esse quadro de desordem ofereceu campo fértil para uma nova forma de racionalidade do homem paulistano que, apoiada no saber técnico-científico, desejou transformar suas relações sociais.
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A racionalidade avançou indissociável de uma rede de conhecimentos que acolheu teorias urbanistas, sociológicas, pedagógicas, sanitaristas e psiquiátricas — marcadas em São Paulo, por exemplo, pelo Código Sanitário, pela criação do Instituto Butantã e do Instituto Pasteur, ou pelas primeiras turmas de alienistas (especialistas em doenças psiquiátricas) formadas pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
A criação de um local exclusivo para abrigar os doentes mentais delinqüentes aproximava a burguesia paulista dos europeus, e o entusiasmo da elite refletiu-se na festa de abertura do Manicômio Judiciário.
Um relato em detalhes do clima que tomou conta da inauguração foi feito no jornal Diário da Noite. As mulheres, com insinuantes vestidos de seda, apreciavam as janelas em forma de ferradura do novo prédio. Os tons rosa-seco e lavanda dos chapéus com cortes enviesados contracenavam com o cinza-pálido das paredes e com os efeitos decorativos do cinza-escuro do teto. As crianças corriam com terninhos apertados e já sem a gravata, ou com os vestidos
Figura. Fachada do antigo Manicômio Judiciário arquitetado por Ramos de Azevedo.
(Inicio da descrição da figura)
Ao fundo da figura observa-se árvores, um pouco mais a frente há uma casa, e a fachada do manicômio, este também com árvores à frente.
(Fim da descrição da figura)
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cheios de babadinhos e sujos de terra, na imensa área verde em frente do edifício. Brincavam de ciranda ou de polícia-e-ladrão entre as dezenas de figueiras plantadas no terreno. As árvores de folhas amarelas foram especialmente importadas do estado americano de Virgínia. Médicos, comerciantes e advogados discutiam o futuro do empreendimento. Alguns apostavam que o local seria, em pouco tempo, padrão de referência na área de saúde mental, enquanto outros acreditavam que o sucesso da instituição dependeria do aumento do orçamento público. As discussões decorriam entre pequenas doses de champanhe e porções de caviar.
Mas faltava um convidado ilustre na festa de inauguração que parou o vilarejo Estação do Juqueri: o psiquiatra Francisco Franco da Rocha, falecido exatamente um mês antes, vítima de enfisema pulmonar. Idealizador da proposta de criar um espaço único para os doentes mentais criminosos, já em 1895 ele assinara diversos artigos para os jornais O Estado de S. Paulo e Correio Paulistano, criticando a inexistência de uma instituição com essas características. Bem articuladas e incisivas, suas travessias literárias ironizavam com delicadeza o poder público. Em 1911, ele criticava o sistema judiciário e os governantes da época dizendo que a lei era deficiente no trato aos enfermos mentais. Afirmava que as discussões políticas em torno do assunto não passavam de pura e simples teoria. Na prática, segundo Franco da Rocha, nada era resolvido. Somente uma grande reforma poderia solucionar essa intrínseca questão.
Por volta de 1896, Franco da Rocha acumulava dois cargos importantes: diretor do então Serviço de Assistência aos Psicopatas e coordenador do Hospício da Várzea do Carmo, um velho asilo
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psiquiátrico situado num sobrado na rua Tabatingüera, no centro de São Paulo. Com freqüência, em artigos para os jornais da capital, o médico denunciava as precárias condições do hospício, muitas vezes caracterizando o lugar como “um casarão fechado e de aspecto soturno”. Afirmava sempre que a situação deficiente do internato agravava as condições psíquicas dos pacientes.
Diversos prontuários registram que doentes mentais criminosos se tornaram ainda mais arredios e voltaram a delinqüir após a internação no Hospício da Várzea do Carmo. O sistema de saúde mental no tratamento dos dementes furiosos girava, então, como um círculo vicioso: se eles, trancafiados por um mês em hospícios comuns como o da Tabatingüera, não apresentavam novo surto de violência, eram soltos, voltando a fazer parte do grupo de loucos moradores de rua. As famílias eram as primeiras a abrir mão do paciente, cujo destino acabava sendo a vida de andarilho e o manicômio.
Para compreender melhor esse processo, basta ver que um dos primeiros internos do Juqueri foi um adolescente que, num impulso paranóico, assassinou a mãe com golpes de cadeira. Havia flagrado os pais em relação sexual. No seu mundo de crises psicóticas, agiu com violência para impedir a gravidez dela e, aos 16 anos, foi expulso de casa pelo pai. Depois de perambular pela cidade de São Paulo durante décadas, foi recolhido à força no Juqueri, em 1902, quando tinha 33 anos. Matara a facadas um casal de mendigos que mantinha relação sexual na rua. Foi movido pelo mesmo impulso do primeiro crime. Os médicos no hospício avaliaram que, devido à doença, o jovem ficara convencido da missão de impedir, a qualquer custo, a reprodução humana.
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Casos como esse eram comuns no dia-a-dia profissional de Franco da Rocha. O médico fazia parte do primeiro grupo de especialistas que carregavam na bagagem acadêmica as lições do tratamento moral de Philippe Pinel — estudioso que via na loucura um distúrbio da razão passível de tratamento — e as teorias organicistas da degenerescência, que atribuíam os distúrbios a deformações gênitas transmissíveis aos descendentes, justificando o isolamento que impedisse a proliferação da doença. Como resultado de sua filosofia eclética, Franco da Rocha decidiu lutar pela formação do primeiro Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo.
Em 1925, permanecia inabalável, pelas páginas do jornal O Estado de S. Paulo, na defesa do seu sonho. Em um de seus artigos, escreveu que insistiria o quanto fosse necessário para conseguir a construção de um asilo especial para os insanos delinqüentes. Utilizava como exemplo a iniciativa dos Estados Unidos, nação já tida naquela época como grande modelo, que tinha acabado de inaugurar um manicômio com características semelhantes ao que era defendido pelo psiquiatra brasileiro.
Um levantamento interno realizado em 1926, pelo Departamento de Saúde de São Paulo, apontou a existência de 1.500 doentes mentais delinqüentes nas cadeias do estado. Somente nojuqueri viviam 165 criminosos, sendo 95 brasileiros e 70 estrangeiros. Os imigrantes internados eram, em sua maioria, italianos sonhadores que buscavam no Brasil a prosperidade e o sucesso, tendo como inspiração os empreendedores da família Matarazzo. Ao encontrar uma realidade bem diferente da imaginada em sua terra natal, logo se entregavam ao álcool, em busca do consolo para a saudade e do
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esquecimento esquecimento para tamanha frustração. O fim quase sempre era a internação ou a morte.
Devido à constante luta de Franco da Rocha, o professor de Medicina Legal da USE Alcântara Machado, apresentou ao Congresso Estadual o Projeto de Lei n2 3, que criou oficialmente o Manicômio Judiciário. Naquela manhã de 13 de dezembro de 1927, o plenário se encontrava repleto.
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