—Tenho coisas boas a fazer para a humanidade.
Uma semana depois de seu último depoimento, feito no Primeiro de Maio, os psiquiatras, alertados pela diretoria do manicômio, proibiram novos contatos com Mussalém. O professor incluiu a conversa que teve com o repórter na suposta conspiração militar que lhe custou o confinamento em Franco da Rocha.
— O caso é delicado. Ele possui a séria tendência de envolver todos em sua paranóia de perseguição. Eu gostaria de que o senhor
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não tivesse uma aproximação maior com ele, para sua própria segurança — alertou, com elegância a diretora Odete Lanzotti.
Nos meses seguintes a essa proibição a relação com Mussalém limitou-se a acenos distantes no pátio enquanto ele completava sua rotineira caminhada pela quadra de esportes. O professor exibia olhos altivos, andava a passos curtos e lentos. Parecia haver algo misterioso em seu sorriso sarcástico. Desde então, as incursões pelo manicômio foram discretamente escoltadas pelos agentes penitenciários.
Surto criativo
Apartida final do campeonato interno de futebol reuniu mais de duzentos pacientes na quadra do manicômio. O chão de cimento do pátio não era obstáculo para os jogadores. Enfrentaram-se as seleções do pavilhão 1 e do pavilhão 6. Os doentes torciam com moderação ou simplesmente assistiam ao jogo concentrados.
O futebol é o maior passatempo do hospital. Até há algum tempo, as traves não eram de ferro, porque se receava que alguém
Figura. A pintura é o passatempo mais estimulado pelos psiquiatras no hospital-presídio.
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A figura mostra um homem sentado em uma mureta, segurando um quadro pintado.
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se machucasse ou agredisse um colega com o poste. Marcava-se o gol com um desenho em tinta branca na parede, o que prejudicava a atuação do juiz. Nunca se sabia, de fato, se a bola havia entrado ou ido para a linha de fundo. Na manhã daquela nublada sexta- feira de agosto, porém, as redes que pendiam das traves estavam lá, prontas para ser estufadas pelos artilheiros.
O jogo levou quase três horas. Parou-se o cronômetro diversas vezes, sempre que um paciente invadia a quadra. Alguns eram arrancados a pontapés, enquanto outros teimavam em permanecer entre as quatro linhas. E. M. A. tornou-se famoso por interromper muitas vezes as partidas disputadas no hospital. Parecia adivinhar quando o jogo era importante. Quanto maior a torcida, mais queria atrapalhar. Na grande final, foi vigiado pelos funcionários do posto cultural. Ainda assim, conseguiu atrasar o início do segundo tempo enroscando-se de propósito numa das redes. Certo dia, um colega se irritou e perguntou se ele gostaria de jogar. E. M. A. disse que sim e, na primeira oportunidade, deitou em cima da bola, paralisando a partida. Com ele vigiado e controlado, a final do torneio pôde ser encerrada. Vitória do pavilhão 6: 4 a O. A diferença do placar se igua-lou
Figura. Os quadros retratam o misterioso instinto que rege a palheta dos artistas enfermos montais.
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A figura mostra um quadro de uma mulher com um dedo apontando para a cabeça, com os seios a mostra, e na sua barriga, duas outras mãos segurando um embrião.
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no CTI: O.V.B., goleiro do pavilhão 1, e R.S., atacante do pavilhão 6, foram recolhidos à cela de isolamento na mesma noite. O goleiro teve crise depressiva devido aos frangos sofridos, e o artilheiro surtou devido à emoção de receber o troféu como craque do torneio.
Uma simplicidade digna marca o lazer dos internos de Franco da Rocha. Além do futebol, o núcleo de recreação comanda diversas atividades, como cursos de arte, gincanas e festivais de música. Diretor do setor há um ano, Hélio Alves conta com entusiasmo o trabalho de reintegração social realizado por meio do entretenimento. Lembra-se de algumas festas e de grupos de teatro apresentando-se para os fascinados doentes. E também de um desfile de soldados e da alegria dos internos ao ouvir tiros de canhão no pátio do hospital. Atualmente, um de seus maiores orgulhos é o coral do manicômio.
— Os sentimentos de emoção contidos em cada música são de arrepiar — afirma.
O sucesso tem sido tão grande que há diversas apresentações agendadas em faculdades e seminários de psicologia. São 22 coralistas, catorze homens e oito mulheres, que cantam, em média, por quarenta minutos. O maestro é o agente de segurança e excompositor Benedito Teixeira, de 54 anos. Antes de cada apresentação, que só acontece com a permissão do juiz correged0r ele faz questão de enfatizar a força terapêutica da música e recriminar o preconceito do qual os doentes são vítimas. O coral é acompanhado pelos acordes do violão tocado por E. F. N., psicopata. B. A.,
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soprano, há quatro anos internado, conta que, no momento em que solta a voz, consegue sentir-se uma pessoa como as outras:
— Parece que estou voando. Quando aquele monte de gente começa a aplaudir, sinto um orgulho danado de mim mesmo.
Além de participar das aulas de canto, B. A. tem como passatempo predileto assistir às sessões de cinema organizadas pelo posto cultural. Como as poucas tevês dos internos ficam sintonizadas 24 horas na Rede Globo — com transmissão por antena parabólica —, a opção que resta é a improvisada telona. Filmes como O sexto sentido e Titanic lotaram em diversas ocasiões. A unanimidade, no entanto, continua sendo de Indiana Jones e os caçadores da arca perdida e de Os Trapalhões na Serra Pelada. Na Sexta-feira Santa de 2000, desativou-se o cinema por volta das 1 5h durante a transmissão de um filme sobre a Paixão de Cristo. É que, no final da sessão, no momento em que Jesus Cristo pede para afastar dele o cálice, o psicótico W F. J. saltou sobre as cadeiras da sala escura e por pouco não destruiu a tevê. Desejava livrar Jesus do martírio do calvário. Paulista de Ribeirão Preto, W. E J. já quebrou, em quase vinte anos de tratamento, mais de cinqüenta aparelhos de televisão no hospital
Figura. Em um canto ou outro dos pavilhões, sempre há um paciente lidando com música.
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A figura mostra um homem com uma gaita.
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Ele diz que se comunica com os apresentadores e com os artistas por telepatia. Em janeiro de 1984, tentou roubar o aparelho de tevê que estava numa Kombi estacionada na porta de um banco. Foi preso quando retirava o vidro traseiro do carro.
— O Golias estava pedindo ajuda. Era o programa dele, e não o do Flávio Cavalcanti. Moacyr Franco, Lolita, Jair Rodrigues, Zaccaro. Nenhum queria ver o Golias. Todos queriam ver o Flávio Cavalcanti. Fui obrigado a fazer alguma coisa - justifica-se, em seu universo de alucinações.
Outro passatempo dos doentes é a participação em atividades religiosas. Os evangélicos realizam cultos semanais no salão de visitas. Os católicos rezam missa a cada 45 dias. Religiões diferentes ganham cada vez mais espaço no mundo do delírio. O esquizofrênico S.B.H. se converteu ao budismo em março, depois de ler alguns livros sobre a doutrina oriental. Agora acredita que sua missão espiritual no manicômio é arrebanhar adeptos do movimento hindu. Sentado de cócoras no pavilhão 3, com um lençol enrolado na cabeça, prega solenemente para um grupo de pacientes:
— Buda está desperto dentro de vocês. Siddartha Gautama é iluminado. A verdade nobre do sofrimento mostrada por Gautama Buda é que o ser humano precisa sofrer, viver preso e se tratar. A senda para a liberdade de vocês é manter pensamentos equilibrados e positivos. Buda nos recomenda pensar que o homem que não se acha louco vive em estado de ilusão por acreditar que pode possuir coisas de existência eterna.
Os doentes se entreolham curiosos, perdidos nas palavras do mestre. O que vale mesmo é gastar o tempo. Os artistas do manicômio
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geralmente nascem assim. Começam procurando algo para fazer, descobrem um talento e logo colecionam admiradores de suas obras de arte.
A aposta no surto criativo no hospital começou com o psiquiatra e crítico de arte Osório César, marido da pintora Tarsila do Amaral e ligado ao movimento modernista. Foi ele quem iniciou o tratamento pela arte nos asilos psiquiátricos de Franco da Rocha. Fundou no Juqueri, na década de 1950, a Escola Livre de Artes Plásticas, em que um grupo pequeno de quinze pacientes passava o dia fazendo desenhos, pinturas e esculturas. A escola foi depois extinta, mas ganhou adeptos no Manicômio Judiciário. Osório César valorizava o trabalho artístico dos doentes mentais a ponto de fotografar todas as obras criadas por eles. Mudou também o modo de apreciar a arte dos internos do hospital em 1922, no mesmo ano em que a Semana de Arte Moderna de São Paulo abordou o tema do ponto de vista do processo de criação, exemplificado pela condição existencial dos esquizofrênicos.
— Os pacientes aprendem novas maneiras de enfrentar a realidade, além de concretizar idéias representativas para eles — explica
Figura. Um dos maiores orgulhos do manicômio, o coral se apresenta em faculdades e seminários.
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A figura mostra varias pessoas com folhas de canto, e um maestro a frente.
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José Salvino Filho, funcionário do núcleo de recreação. — O processo de reintegração é aprimorado e acelerado por meio da arte. Os doentes mostram à sociedade que são capazes de produzir algo útil.
O escultor de madeiras E V., preso por estrangular o filho, diz que a arte é o seu único prazer. Expressa, em suas obras, vasto conhecimento histórico e literário, buscando inspiração na Grécia Antiga ou em clássicos como Dom Quixote e Romeu e Julieta.
— Tento fugir da realidade usando a imaginação e mostrando isso na madeira.
Apesar dos esforços para enquadrá-la conceitualmente, não há adjetivos para a arte dita esquizofrênica. O legado da psicóloga alagoana Nise da Silveira ajudou a desmistificar, também em Franco da Rocha, a figura do louco, tido como pessoa alienada, pouco afetiva, incapaz de estabelecer vínculo com o mundo ao redor. Nise, que morreu em outubro de 1999, foi responsável por uma revolução no tratamento psiquiátrico prescrito aos enfermos, defendendo o misterioso instinto que rege a paleta desses artistas. As inúmeras obras que seu trabalho suscitou, preservadas numa das salas do setor de recreação do manicômio, retratam, sem referências na teoria estética, situações próximas às vivências externas dos pacientes. 1. T., um dos pintores do manicômio, assina seus quadros como New Picasso. O apelido surgiu depois de um visitante ter dito que suas obras eram semelhantes às do artista espanhol. 1. T, internado desde fevereiro de 1983, quando assassinou o pai e a mãe com uma pistola semi-automática, é um desenhista nato. O estrabismo no olho direito não atrapalha suas criações:
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— A vida não imita a arte coisa nenhuma. Eu crio a vida em quadros ininteligíveis.
Os traços de Paulista
Aos 39 anos, P.R.P., o Paulista, é o principal artista do 1º manicômio. Desde a infância em Amparo, pequena cidade paulista, o rapaz franzino já demonstrava gosto pelo desenho. Revelava seus dotes em contornos mal-acabados no verso das bulas de antidepressivos usados pelo pai. O velho choramingão — era assim que os filhos chamavam o pai — tinha bom coração, mas o desejo compulsivo pelo álcool o consumia aos poucos. No final do expediente, no posto de saúde em que trabalhava seis horas diárias como enfermeiro, o ritual era o mesmo: batia o cartão e partia ao encontro da cachaça em um boteco próximo. Chegava em casa embriagado, mostrava arrependimento, derramava-se em lágrimas nos braços da esposa, Sônia, e dormia aos roncos, para repetir a jornada no dia seguinte.
Dona Sônia, nervosa, ríspida, sentia-se molestada pelo vício do esposo, arrependida do casamento malsucedido. Achou que deveria entregar-se ao trabalho: fez carreira de funcionária pública municipal e aposentou-se como escriturária. Na Quarta-feira de Cinzas de 1968, o marido tentou roubar uma bicicleta e acabou preso na Casa de Custódia e Tratamento deTaubaté. Meses depois, num domingo bem cedo, decidiu morar com uma manicure que havia conhecido em uma gafieira de São Paulo. O único bem que deixou para a família foi a casa de três cômodos em Amparo.
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Silva, irmão mais velho de Paulista, ainda mora nessa casa apertada, no vilarejo Jardim Brasil. O repórter o encontrou sentado à janela engraxando uma bota preta descorada. A ladeira de terra permanecia triste como na época em que Paulista jogava bola com os irmãos, enquanto dona Sônia aguardava o marido voltar do bar.
Era final de tarde. Silva olhou cismado. Esteve internado durante nove anos no mesmo manicômio em que o irmão, Paulista, vive atualmente. Em 1987, estilhaçou as portas de vidro de um mercado no centro da cidade para roubar oito maços de cigarro. Foi preso em flagrante e levado para a Penitenciária do Estado. Provocou brigas na cadeia porque ficava agitado, e por isso o mandaram para Franco da Rocha. Fala como se ainda estivesse preso e não constrói duas frases sem usar a gíria da carceragem. Vaidoso, observa de um lado e de outro se o sapato está bem lustrado. Avisa que sua mãe desapareceu há três meses e que ninguém sabe do seu paradeiro. Dispõe-se, no entanto, a apresentar uma tia que teria informações sobre dona Sônia.
Após quarenta minutos passeando com o repórter de carro pela cidade com a volta aos mesmos lugares, Silva indica uma bela
Figura. A dramática trajetória de Paulista ganha corpo em suas inúmeras pinturas.
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A figura mostra varias pessoas com quadros pintados.
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residência de mármore enfeitada por um jardim de margaridas, a poucos quarteirões de sua casa. Pede para parar e vai embora resmungando baixinho. Surge, então, Susana, irmã de Sônia, a simpática tia que acolheu Paulista por dois anos. Ela recorda a indiferença do rapaz diante das severas broncas ao descobrirem que ele trancafiava o gato no congelador. Diz que o avô paterno de Paulista e uma tia sofriam de doenças mentais.
— Eu falava para minha irmã que os meninos não estavam bem — afirma Susana, atenta aos trovões que anunciavam um forte temporal.
Conta como foi traumatizante para Paulista e seus irmãos viverem internados no Educandário Nossa Senhora do Amparo — um alojamento frio, situado atrás de um posto de gasolina mal iluminado, numa estrada que leva a Campinas. A Fazenda do Martírio, como é conhecido o bairro rural, era o local mais temido pelas crianças. Diziam que ex-escravos percorriam as ruas da região na calada da noite, em busca de filhos rebeldes.
— Achei várias vezes facas escondidas no quarto do Paulista. Mas ele não era agressivo. Já o Marcos era um pouco mais atirado. Levantava de madrugada, escondia-se embaixo da cama e imitava cachorro — relembra a freira Maria Rita Pinheiro, educadora que conviveu com os irmãos no internato. — Eu sempre disse que Antônio Carlos era o mais equilibrado — acrescenta, referindo-se ao outro irmão de Paulista.
Tinha razão. Antônio Carlos foi preso há seis anos por ter usado drogas durante um surto psicótico, mas logo retomou o rumo na vida. Hoje é pastor evangélico em Sorocaba e prega seu testemunho
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de conversão. Jair, o caçula da família, era o irmão mais engraçado e também o mais admirado por Paulista. Começou a ter atitudes estranhas. Certa vez, dona Sônia, sozinha no quarto, sentiu um cheiro forte de gás. Correu para a cozinha e viu o filho abaixado sobre o botijão, aspirando o fluido. Faltou pouco para a casa explodir. Os acidentes tornaram-se freqüentes, até que dona Sônia decidiu ligar para o manicômio e pedir a internação do filho. Jair foi recolhido para tratamento até 1997, quando ganhou a liberdade.
A chuva despenca sobre Amparo. Susana lembra que a separação dos irmãos na época em que deixaram o internato foi outro choque na vida de Paulista, que cada dia mais se dedicava à pintura. Florescia com seu talento artístico uma terrível enfermidade mental. Ele sempre reclamava das vozes estranhas que ouvia. Dizia ficar desesperado ao ver vultos num caixão preto. Quando as aparições começavam, corria para o quarto e apertava nas mãos um terço que ganhara no educandário. Sentia uma dor insuportável a sufocar-lhe o peito. Começou a espalhar tatuagens por todas as partes do corpo para se proteger das “forças malignas”. Desenhou nas costas um Cristo a carregar a cruz; nas pernas, uma borboleta; nos braços, um índio; no peito, a estrela-d’alva. Tempos depois, quando soube que seu pai tinha morrido numa briga de bar, desenhou uma tatuagem especial no peito, próximo ao coração: um escorpião, signo do “velho choramingão”.
No mercado em que Paulista trabalhou, o gerente se recorda das alucinações do rapaz. Diz que foi demitido em seis meses porque não cumpria horário e passava repentinamente sem motivo, a esbravejar com os clientes. Nesse tempo, Paulista começou a usar
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drogas. Etílicos, solventes e estimulantes apagavam de sua mente a suposta perseguição da qual era vítima dia e noite.
— Muitas vezes ele se contorcia em dores, e sua mãe não sabia o que fazer — lembra Susana.
Em 1981, entrou pela primeira vez num hospital psiquiátrico, recolhido por guardas da cidade que o viram gritando sozinho, chamando o demônio. Estava abatido, sem ânimo para se alimentar ou cuidar da higiene pessoal, e logo fugiu para casa. Isso haveria de repetir-se outras vezes: era mandado para um sanatório e, semanas depois, aparecia no portão de casa com uma pequena trouxa de roupa na mão e um sorriso maroto. Em outubro de 1989, almoçou e avisou à mãe que iria à igreja rezar pelo pai. “Cuidado, filho!”, recomendou dona Sônia, como se pressentisse a proximidade de algo ruim. Era quase 13h quando ele entrou em surto. As vozes, os vultos, o caixão preto, a dor no peito. Tudo girava. Onde estaria o terço?
Paulista avista um Corcel azul com as janelas abertas, estacionado numa garagem. O portão estava encostado. Subitamente, rouba os primeiros objetos que encontra: dois pares de óculos
Figura. Internado há nove anos, o artista imortaliza suas obras nos muros do manicômio.
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A figura mostra um internado atras de grades, com uma pintura na própria parede do manicômio.
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escuros modelo Safile-Italy, pretos, com armação bege, guardados no porta-luvas do carro. Não valiam mais que R$ 20,00. Ele desfila com um dos pares por poucos metros, até ser detido por uma viatura da Polícia Civil e preso na Cadeia Pública de Amparo. Cerca de quinze dias depois, foi convocado para depor em juízo. Disse que era aposentado e fez uma declaração que deixou o juiz e o promotor intrigados:
— Se eu desejasse um foguete para ir à Lua, minha mãe daria!
Paulista tenta agora justificar o pequeno crime:
— Estava contrariado. Era tanta opressão, uma moléstia, vozes e, nos meus ouvidos, um zumbido de morrer.
A junta psiquiátrica do manicômio diagnosticou: mais um caso de esquizofrenia paranóide.
— No delírio de sua mente, as pessoas que o rodeiam desejam sempre prejudicá-lo ou tirar dele algum proveito — explica o psiquiatra Roberto Moscatello, responsável pelo tratamento de Paulista.
Ao chegar em Franco da Rocha, o artista de Amparo mostrava-se agressivo. Quase todos os dias provocava brigas com outros pacientes, ficando isolado várias vezes na cela, de castigo, por mau comportamento. Um dia, ao admirar na biblioteca um livro do pintor Di Cavalcanti, descobriu que poderia desenvolver sua paixão pela arte. Pediu papel, giz de cera, guache, e não parou mais. Acorda às 6h da manhã, toma café e começa a pensar em novos desenhos. Define seu estilo como abstrato, mosaico e surreal.
— Tem a ver com a moral de Cristo — diz, enquanto mostra com orgulho mais de trinta desenhos guardados sob o colchão.
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Há um ano, Paulista recebeu o certificado de mérito da comissão julgadora do segundo concurso Arte de Viver, que envolveu artistas de todo o sistema penitenciário paulista. Sua maior conquista, no entanto, aconteceu no final de 1997, quando foi convidado para participar do vernissage da mostra Arte nas Prisões, no Clube Homs, em plena avenida Paulista. Promovida pela Secretaria da Administração Penitenciária, a exposição contou com mais de quarenta obras, entre quadros e esculturas produzidos por presidiários de São Paulo. Era a primeira vez que o artista deixava o manicômio e tinha contato direto com a sociedade.
— Nunca tinha visto tanto carro, tanta luzinha, tanto prédio. Fiquei louco de ver tanta gente bacana conta ele, lembrando que chegou ao local de camburão.
Paulista dividiu espaço na exposição com um artista que, digamos, se tornou famoso por outras obras: Florisval de Oliveira, o ex-policial Cabo Bruno, um dos “justiceiros” ou matadores de bandidos mais famosos do Brasil, que expôs doze trabalhos na mostra. Entre uma apresentação e outra, os dois ficaram colegas. Conversaram sobre as expressões da arte e a vida na cadeia. Cabo Bruno contou que tentou, sem sucesso, produzir seus quadros com tendências abstratas.
— Consegui me fixar em formas definidas e concretas — explicou ele a Paulista, que fazia pouco caso dos comentários do ex- policial.
Para Paulista, sua criação figura como símbolo da excelência da arte.
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— São verdadeiras relíquias, lindos de fazer inveja a qualquer artista famoso, uns melhores que os outros — afirma, sem disfarçar a falta de modéstia.
Paulista gasta em média dois dias em cada obra, porque prefere desenvolver seu trabalho por etapas, com muita calma. Parte de suas pinturas é comprada por parentes de outros internos durante as visitas. Alguns desenhos chegam a ser vendidos por vinte maços de cigarro, a moeda corrente do manicômio. O então governador Mário Covas encantou-se com a habilidade de Paulista e comprou duas telas quando visitou a instituição pela última vez.
O prazer de Paulista pela arte é compartilhado por outro sentimento: um amor secreto de infância. Diz ser apaixonado por uma prima de Amparo, a comerciante Elizabeth, filha de sua tia Susana. A moça tem uma filha de 3 anos e perdeu o noivo num acidente de carro. Paulista sorri como criança ao lembrar do dia em que nasceu essa paixão platônica.
— Era linda. Me deu carona no Chevette amarelo, todo polido, todo brilhante. Parecia uma princesinha dirigindo aquele carro, uma princesinha mesmo. Era linda.
Desde que chegou ao manicômio, há onze anos, Paulista escreve uma carta por semana a Elizabeth declarando o seu amor. Relata com detalhes planos para o futuro ao lado dela e pretensões de formar uma família.
Elizabeth jamais respondeu a uma carta, mas Paulista não se entrega:
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— Ela é muito ocupada, o senhor sabia? Vive sempre cheia de coisas pra fazer.
Quando o repórter voltou de Amparo, chegou a notícia de que dona Sônia estava morando no apartamento de uma amiga em Guaianases, bairro da periferia de São Paulo. Ela decidiu passar um tempo longe de casa porque foi agredida com um soco no rosto por Silva, o filho que adora ver as botas lustradas. Já passava das 21h quando ela atendeu a ligação. Bastaram alguns instantes de conversa para que toda a sua dor fosse revelada. Ao ouvir falar de Paulista, perguntou:
— Ele morreu?
Diante da resposta negativa, mostrou outra vez sua amargura:
— Não quero falar. Boa noite.
Desligou.
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Terceira parte
Caminho da lucidez
E quem não é doido?
Não é preciso muito esforço para compreender que as pessoas estão pensando em tornar o Manicômio Judiciário melhor, mais digno ou menos cruel. Há diversos planos em andamento e um grupo de profissionais de saúde mobilizado, que pensa que loucura maior é não fazer nada pelo hospital. Em seu universo, existe muito mais do que apenas a miséria absoluta. A paulista Odete Lanzotti, 47 anos, é uma funcionária pública que trabalha desde a adolescência com enfermos mentais delinqüentes. Conheceu o marido no dia-a-dia do serviço — os dois são funcionários do hospital — e criou suas duas filhas num belo sobrado a poucos quarteirões dali.
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