Reportagem no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha



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Teve apenas uma passagem pela polícia, e assim mesmo com o nome falso de Roberto Silva. Depois de recolhidas pacientemente centenas de fragmentos de impressões digitais, a foto de Roberto


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— na verdade, João Acácio — foi espalhada pelo Brasil inteiro. Em 1967, prenderam-no, sentado numa cadeira de barbearia em Curitiba. Jovem e arrogante, tinha cabelos compridos e um enorme topete. Fascinou muitas mulheres. Mesmo algumas a quem estuprou se declararam atraídas por ele. Chegou escoltado ao antigo Departamento de Investigações (DI), certo de que viveria maus bocados. Foi espancado, para que revelasse quem era o receptador das jóias que roubava, mas mencionou apenas a existência de um certo Caboré. Nome correto e endereço nunca foram descobertos, e Caboré continuou como um mistério. A teimosia lhe custou intermináveis sessões de eletrochoque e de pau-de-arara (aparelho de tortura em que o preso é espancado de cabeça para baixo). Naquele tempo, início dos anos de chumbo no país, a tortura era ainda mais comum no DI.


Em 1967, Luz Vermelha foi trancado numa das celas da Penitenciária do Estado, em São Paulo. Sua ficha criminal era extensa: 4 homicídios, 7 tentativas de morte e 77 roubos. Pena: 351 anos de cadeia. No sistema penitenciário, foi classificado de muitas formas: normal, semi-imputável, inimputável, portador de periculosidade. Vagou por diversos presídios: Casa de Detenção, Penitenciária do Estado, Penitenciária de Presidente Wenceslau e Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Houve também várias idas e vindas ao Manicômio Judiciário. Na sala de objetos apreendidos em Franco da Rocha, está uma recordação de Luz Vermelha que o tempo apagou: um pedaço de pano em que ele fez, com o próprio sangue, o desenho de uma mulher nua. Para isso, cortou-se seguidamente com lâmina de barbear, movido por crises depressivas.


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A cela forte no antigo prédio do manicômio, na qual ficou por muito tempo nos anos 1970, deixou-o tuberculoso. Depois passou a ter crises delirantes e deu início a uma vida homossexual. Adaptou um selim especial numa bicicleta, que pedalava em busca da penetração e de momentos de prazer. Passou a maior parte dos seus 54 anos de vida em celas apertadas, escuras e úmidas. Foi um homem enlouquecido pelo isolamento da prisão.


— Era doente mental crônico. Os anos de cárcere aceleraram seu processo de destruição. Nesse meio adverso, a, degradação se acentuou de forma brutal — entende o psiquiatra forense Guido Arturo Palomba, que, por dez anos, acompanhou João Acácio no manicômio.


Para que se entenda melhor o que passava pela cabeça de Luz Vermelha, transcrevem-se a seguir trechos do seu primeiro exame de sanidade mental, realizado pelo psiquiatra Alexis Landgraf Carvalho, no dia 30 de outubro de 1968, no Manicômio Judiciário. O documento nunca foi publicado na imprensa. Assinado pelo diretor Paulo Fraletti, o laudo conclui que o criminoso possuía personalidade psicopática.


O trágico destino dos pais


Lembro de minha mãe como uma mulher doente, sempre de cama. Às vezes castigava eu e o Joaquim [o irmão Joaquim Tavares Pereira da Costa, um ano mais velho que João Acácio] pondo de joelhos. A mãe tinha os partos difíceis. O pai diz que eu quase nasci morto porque o parto dela foi muito trabalhoso. Diziam que a mãe começou a morrer quando eu nasci. Quando fiz 4 anos,


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ela morreu pra valer. Vinha então uma tia cozinhar e lavar roupa e o pai tomava conta da gente. Logo depois descobriram que o pai sofria de “doença por dentro” [tuberculose] e não podia cuidar de nós porque o mal podia passar, era contagioso. Foi mandado para o hospital da malária [Centro Hospitalar do Serviço de Controle da Malária]. Aí um tio que era muito nervoso veio morar com a gente. O tio massacrava nós. Um dia veio recado para visitar o pai que estava no hospital. Nós chegamos lá e ele estava no caixão. Meu irmão e eu ficamos desesperados. Eu tinha uns 5 anos quando meu pai morreu.


Os conflitos com a família


Nunca tive apoio de ninguém da família. Uma vez o tio bravo que morava com a gente fez um piquenique para conhecer um outro tio que era da praia de Guaratuba [litoral paranaense]. Vi ele só uma vez, O rapaz me agradou, deu guaraná e doce. Quando o tio bravo aumentou de me judiar e desprezar, fugi para Joinvile atrás do tio do guaraná. Como eu vivia solto e jogado pela rua, ele não quis me receber. A sua mulher só dava um prato de comida na porta, não deixava entrar dentro da casa e chegava a chamar a polícia para me afastar. Não deu apoio também. Esses dois receberam um castigo. A casa deles pegou fogo e até o passarinho morreu queimado. Achei melhor viver na rua.


A infância como engraxate e o início na vida do crime


De tanto andar para pedir comida, conheci Joinvile toda, a praça principal e os meninos engraxates. Fiquei


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engraxando sapato. Quando não tinha dinheiro, os meninos pagavam café e pão. Comecei com roubo pequeno. Os outros engraxates roubavam e eu ia com eles. Quando chegavam para dividir o dinheiro do roubo, eles brigavam. Aí me isolei. Os primeiros roubos que fiz foi de comida no bar. Depois roubava guarda-chuva que os homens deixavam em cima de bicicletas na porta do cinema. Roubava e ia vender no snooker. Eu queria andar melhor de roupa, e depois comecei a roubar lojas. Tinha uns 10 anos e já ficava o mais bacana do bem- vestido. Tinha dinheiro para ir ao cinema e namorar as meninas.


Entre o trabalho e a marginalidade


Um dia pensei que essa vida de ladrão não dava certo. Já estava manjado, queria parar e procurar serviço. Um dia vou passando numa rua e vi uma placa: “Precisa-se de ajudante de tinturaria”. Entrei e uma dona muito bacana me aceitou no emprego. Tinturaria São Pedro. De sexta para sábado amanhecia passando roupa. Nesse tempo, tinha 14 para 15 anos. Fiquei um ano assim. A patroa tinha uma filhinha de 12 anos, a Marianinha. Eu estava encarregado de tomar conta dela, levar no colégio, tudo, até comida fazia para ela. Comecei a gostar dela e ela de mim. Começamos a namorar escondidos. Um dia, sua mãe desconfiou e ficou vigiando a gente até que viu eu beijar ela. Fiquei com medo da mulher e pedi para ir embora. Um tempo depois, arrumei serviço em outra tinturaria. Eu ia bem, mas fiz uma burrice. Arrumei um terno de um freguês, passei direitinho e vesti para passear. O freguês me viu na porta do cinema e voltou na tinturaria para reclamar. O patrão achou


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ruim comigo, fiquei chateado e saí do emprego. Fiquei desempregado, sem conseguir nada e voltei a roubar.


A primeira prisão e a vingança


Depois de roubar uma televisão, fui preso. Eu e os comparsas tentamos fugir da cadeia, mas acabamos presos de novo. Eles disseram que eu era o cabeça e que tinha feito tudo sozinho. Foi mentira, porque eu só ajudei. Quando voltei na delegacia, me bateram, destroncaram meu pescoço, fiquei um mês e pouco sem quase poder comer, porque os polícias estouraram minha gengiva com chute e soco. Eram seis ou sete contra eu; gente covarde. Um delegado esquisito, forte. De repente, a doença do meu pai [tuberculose] quis pegar e aí me mandaram para o hospital. Fiquei lá uns meses, depois o médico disse que ia me dar alta. Para eles não me judiarem mais, fugi. Estava com raiva do delegado. Telefonava para a delegacia, fingia a voz e dizia que era do distrito de outra cidade, que tinha me prendido e não tinha guarda para me segurar. Um dia desses, enquanto o delegado saiu pensando que iria me buscar, tentei pôr fogo no jipe dele.


Um mundo chamado São Paulo


São Paulo era uma cidade bonita, grande. Logo no primeiro dia que cheguei, com toda a minha inteligência, me perdi. Eu vim com o objetivo de arranjar um emprego e trabalhar como cozinheiro, ajudante de cozinha, coisa assim. Eu queria viver direito; o sofrimento


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também enjoa. Fiquei uns três meses sem dinheiro e sem namorada. Conheci um cara na rua que era ladrão e conhecia a cidade inteira. Fomos roubar uma casa na rua Tuiuti [centro paulistano] e arrumei dinheiro. Tudo ficou mais fácil.


O galã das mulheres


Eu era especial para as mulheres. O melhor romance foi quando estava morando num hotel na rua Helvétia. Depois de roubar uma casa, comprei um terno e fui almoçar num bar da Brigadeiro Luís Antônio. Eu estava bem apresentado e assim chegou uma senhora bonita, de uns 40 anos. Larguei a comida, fui no balcão, pedi uma dose e chamei a atenção dela. Consegui levar a moça no cinema de noite. No meu quarto tinha uma guitarra e eu dizia que era guitarrista. Comprei uma peruca e saía com a guitarra no braço. Eles pensavam, no hotel, que eu era um artista. Enquanto isso, eu roubava. Eu passava por Roberto. Foi indo a amizade, depois o namoro e aí me apaixonei. Namorei uns seis meses. Tive relações, ela engravidou e prometi o casamento. A família dela soube e quis que eu casasse e fosse morar com eles. Eu dizia que tinha apartamento em Santos e vivia de renda, que o meu pai era fazendeiro. Mas eu era ladrão e eles não sabiam. Em outra casa que entrei para roubar, o marido tinha brigado com a mulher e obrigado ela a dormir no tapete da sala. Aí eu entrei em silêncio, pus ele no banheiro e o tranquei. Aí fiquei com a mulher dele e depois dei conselho para ela. Quando eu saí, ela soltou o homem.


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Figura. Luz Vermelha foi assassinado com uma quinquilharia de chumbo e pólvora de espingarda.

(Inicio da descrição da figura)

Na figura observa-se a manchete que diz: Família do ‘Bandido da Luz Vermelha’ aliviada com sua morte. Também traz na manchete a foto do bandido assassinado, ele esta deitado no chao, com uma faca em sua mão.

(Fim da descrição da figura)
O orgulho de ser bandido

Eu fazia assalto, roubava, saía e não acordava ninguém. Era coisa de primeira. Esse negócio de roubo, sem ser pela necessidade de comer, foi inspirado no cinema. Eu assistia muitas fitas que ensinavam a gente a roubar. Nessas revistas que a gente compra também é tudo assim. Existe gente que ganha a vida roubando os outros. A gente vê então que tem um destino desse porque tem outros que têm o destino de ser rico.


O mistério da luz vermelha


O vermelho é vida, sangue, força. O vermelho é a cor do rubi que os estudantes formados em advocacia usam. E muito bonito. A lanterna era comum, mas, como ti-


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nha um aro vermelho, irradiava luz vermelha. Adotei o vermelho como símbolo.


O pavor da morte


Nunca matei para roubar. Nas casas que roubava eu trancava as pessoas, mas não matava. Não gosto da morte. O que eu matei pra valer foi um cara sem-vergonha que veio dar facada em mim e eu estava sem nada para me defender. Tenho medo de morrer. Sei que um ladrão não tem vida certa.


Sonhos de João Acácio


Eu queria ser um cara bacana, honesto. Não sou a coisa ruim que o jornal fala agora. Se tivessem dado ajuda, eu não tinha esse destino de ladrão, não seria um analfabeto sem documento que ninguém quer dar emprego. Eu não sou assassino de morte. Aquele cara que eu matei, qualquer um mataria. Eu só queria viver do jeito de todo mundo.


Luz Vermelha não conseguiu viver como todo mundo. Depois de trinta anos de cárcere, recebeu o alvará de soltura no dia 27 de agosto de 1997, por ordem do juiz corregedor que aprovou o exame psiquiátrico feito na Casa de Custódia de Taubaté, onde estava internado. O diagnóstico de João Acácio, assinado pelos peritos Charles Louis Kiraly e Norberto Zõllner Júnior, apresenta a seguinte conclusão:


Consciência clara, falar fluente e coerente, lúcido, orientado no tempo e no espaço, orientado quanto a si


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mesmo, juízo crítico preservado. O pensamento é de conteúdo, forma e cursos normais. A memória está absolutamente preservada, não observamos déficits sejam cognitivos ou intelectivos. Não observamos quaisquer sinais ou sintomas sugestivos de atividade alucinatória em curso. Apresenta-se absolutamente disponível, é polido, denotando uma prospecção de futuro rara de se encontrar em indivíduos que se apresentam em longas reclusões. É absolutamente capaz de retomar o convívio social, tem laços familiares estáveis, os seus o assistem e já deram mostras suficientes do empenho em acolhê-lo no seio familiar.


Contrariando o parecer positivo, João Acácio deixou Taubaté sem dizer uma única frase conexa. O lendário bandido mal se lembrava de se chamar João. Ganhou o caminho da liberdade em meio ao polêmico debate sobre a avaliação de sua doença. Foi para a rua com a carteira de identidade, o CIC, a certidão de nascimento, uma passagem de ônibus para Joinvile e um pouco de dinheiro — suficiente apenas para as despesas de viagem. Quatro meses e dez dias depois, foi assassinado com um tiro na cabeça pelo pescador Nélson Pinveghuer — que já tinha passagem pela polícia por homicídio e tentativa de agressão — porque Luz Vermelha havia ameaçado assassinar sua família. O psiquiatra Guido Palomba comenta a respeito:


— Era certo que, em liberdade, ele agrediria ou seria agredido. Não era o fato de ser doente mental crônico que o fazia portador de periculosidade. Ele poderia cometer delitos que seriam a reação às suas necessidades de momento. A liberdade de Luz Vermelha foi o maior erro cometido pela Justiça brasileira.


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Foram quatro meses e dez dias que, para João Acácio, passaram como um raio — como um surto de euforia que só experimentam os que saem à rua depois de trinta anos encarcerados. Quatro meses e dez dias que, para os que o abrigaram, escoaram a conta- gotas — como quem vai descontando, hora a hora, a obrigação de abrigar um hóspede incômodo. Ele, o surtado incômodo, Luz Vermelha. Os outros, os hospedeiros incomodados, foram vários. Ficou para depois um trecho de entrevista dada para a revista IstoÉ, um ano antes de sua trágica morte, na qual ele disparou a falar muito e se fez entender quase nada. Nessa época, a matéria foi publicada sem os seguintes comentários:


*Quando eu sair, vou ter de novo mulheres [...], eu já cheguei a ter 26 mulheres na vida. E...] De briga não vou morrer se me matarem, vai ser de bala de ouro*.


Nota de canto de página para “Quando eu sair, vou ter de novo mulheres [...], eu já cheguei a ter 26 mulheres na vida. E...] De briga não vou morrer se me matarem, vai ser de bala de ouro”: Trecho retirado de entrevista gravada na época.

(Fim da nota de canto de página)


Deu tudo errado: namoradas paraJoão Acácio não surgiram. A revista veiculou essas declarações somente na semana de sua morte, e ele foi morto porque não parava de arranjar briga. A bala que o matou foi uma ninharia de chumbo e pólvora de espingarda. Quando venceu a pena de Luz Vermelha, houve gente que achou que ele teria de continuar trancafiado e ser submetido a tratamento psiquiátrico.

Preso, João Acácio perdeu tudo, da família aos dentes. Perdeu a razão também, o fiapo da razão que lhe restava. Colocado em liberdade, iria para a casa de seu irmão, Joaquim Tavares Pereira, aquele mesmo que sofria ao seu lado, na infância, com os maus-tratos do

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“tio bravo”. Joaquim, no entanto, não o aceitou, alegando: “Não tenho dinheiro para manter; tenho de pagar o IPVA da minha moto”.


Os primeiros a lhe abrir as portas foram os tios José Pereira da Costa e Míriam Maria da Costa. Moravam numa modesta casa de Joinvile, no bairro de Cubatão Grande. João Acácio, porém, começou a azucrinar a família, ameaçava matar todo mundo. Tia Míriam jogou um banco de madeira sobre ele, e lá se foi mais um dos poucos dentes que restavam. Expulso, Luz Vermelha morreu com o tiro de espingarda do pescador Pinveghuer.


Um dia antes de deixar o Manicômio de Franco da Rocha e ir para Taubaté, João Acácio confessou a um colega de pavilhão que, a partir daquele momento, gostaria de ser chamado apenas de Luz. Os dois estavam sentados numa das muretas do pátio, em frente do salão de visitas, brincando com um gato preto inquieto. Luz Vermelha levantou-se, olhou para o céu alguns minutos e gritou: “Luz, Luz, só Luz!”.


E foi-se embora, fazendo carícias no bichano.

Segunda Parte
Rotina insana
Cemitério dos vivos
A paisagem do Manicômio Judiciário é bela. Encravado nas
montanhas verdes do Oeste paulista, ergue-se um conjunto de prédios amarelos, cercados por muros altos e farpas de arame. Do topo das torres de vigia, vêem-se policiais que transitam pelas ruas de terra, ao lado de enfermeiros e médicos. É apenas mais um complexo penitenciário de Franco da Rocha, a “cidade dos loucos”. A população não se ofende com o estigma. Duas prisões de segurança máxima, uma de regime semi-aberto, uma unidade da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) e dois hospitais psiquiátricos. Mais de 6 mil presos e 2.700 doentes mentais. Ofensa é confundir Manicômio Judiciário com Hospício do Juqueri. A diferença está na população de enfermos que habita as duas instituições.
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A primeira abriga os que praticaram crimes sem ter a consciência psíquica de seus atos. A segunda abriga os que nunca delinqüiram e são considerados inofensivos a si próprios e à sociedade.


No manicômio há uma colônia masculina fechada, com 582 internos; uma colônia feminina, também fechada, com 76 internas, e um hospital para a desinternação progressiva, com 56 internos. A instituição possui 421 vagas e 614 pacientes. Dois portões de ferro, no início e no final de um corredor escuro, abrem o caminho para o mundo da insanidade.


Antes de se chegar ao pátio do prédio masculino, é preciso atravessar o salão de visitas, em que se realizam festas, cultos religiosos e reuniões de trabalho. Os seis pavilhões estão projetados em frente de uma ampla área vaga. Apesar do aumento das atividades de trabalho e de lazer, a ociosidade ainda predomina. Pacientes vagueiam nos pátios, andam em círculo, falam sozinhos, dormem no chão de cimento. Sentam-se nos canteiros das duas frondosas árvores fincadas em partes opostas do pátio, jogam conversa fora e esperam um dia após o outro. As pombas e os gatos se assustam com os gritos atordoados dos enfermos. Eles gritam para espntar o medo, mostrar coragem, ou simplesmente por gritar. Grande parte é de classe social baixa, sem profissão definida e com pouca escolaridade. Mal consegue pronunciar o nome de sua doença ou do remédio que toma.

As principais enfermidades dos habitantes do manicômio são:


esquizofrenia, psicose, epilepsia, transtornos delirantes e psicopatia. São consumidos mensalmente 123.200 psicotrópicos. As consultas geram em média 1.600 receitas ao mês. O antipsicótico Haldol
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é o mais indicado pelos psiquiatras, com 21.430 cápsulas, seguido do Neozine, com 18.326 cápsulas, e do Diazepam, com 15.115 cápsulas.


Os medicamentos agem no combate às alterações depressivas e eufóricas de humor, aos delírios de perseguição, às vozes que geralmente ameaçam ou dão ordens e às alucinações auditivas, como assobios, zunidos ou risos. Convulsões, sedação, déficit de atenção, reações alérgicas e parkinsonismo são os maiores efeitos colaterais dos remédios. Também é afetado o sistema endócrino; o ganho de peso é comum entre os internos. O esquizofrênico A. B. N. pesava 65 quilos quando entrou no Manicômio em 1996. Hoje passa dos


110 quilos e tem dificuldades até para andar. Na primeira visita que recebeu de sua mãe, no ano passado, ela quase não o reconheceu. Conta que, ao menos, ela deixou o hospital satisfeita, achando que estava forte e com muita saúde. Ele indica a barriga à mostra e lamenta não haver uniforme com suas medidas no hospital.

A. B. N. não gosta de falar sobre o dia em que estrangulou o sobrinho na fila do parque de diversões. Muda de assunto com tremenda lucidez e vai procurar comida.


Figura. Os internos consomem mensalmente mais de 123 mil cápsulas de anti psicóticos.

(Inicio da descrição da figura)

Na figura temos uma bandeja com varias divisões, sendo que em cada divisoria tem um tipo de cápsula.

(Fim da descrição da figura)
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Há alguns traços caractetísticos entre os pacientes. Um deles é referir-se aos delitos pelo artigo do Código Penal em que foram processados ou para os quais apresentam sua versão. Outro sintoma da doença é figurar como vítima. A maioria, porém, foi condenada como medida de segurança, por ser considerada inimputável pela Justiça. O laudo de insanidade mental, nesses casos, comprovou que o preso teve a capacidade de entendimento e determinação abolida no momento do crime. Outra parte enlouqueceu enquanto cumpria pena nas cadeias do sistema penitenciário.


Existe apenas mais uma instituição semelhante no estado de São Paulo: a Casa de Custódia e Tratamento deTaubaté, no vale do Paraíba — ligada, como o Manicômio Judiciário, à Secretaria de Administração Penitenciária. A constante força policial presente no dia-a-dia desses hospitais-presídio provoca, às vezes, situações hilariantes. Como no dia em que J. A. A. foi transferido da Cadeia Romão Gomes, destinada a policiais delinqüentes, para Franco da Rocha.


Dois camburões estacionaram em posição estratégica e fecharam a rua de acesso ao manicômio. Havia receio de uma possível tentativa de resgate. A ficha de transferência alertava: preso de alta periculosidade. Os guardas fizeram a cobertura da área e se espalharam por diversos lados da entrada. Fuzis, coletes à prova de bala e rádios transmissores. A equipe traçou um plano paraJ. A. A. descer com rapidez. Tudo, meticulosamente planejado, não levaria mais que dez minutos. O comandante da operação, um policial militar alto e forte, com boné e óculos escuros, gritou: “Desce! Desce, malandro!”.


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Na parte de trás do camburão, encolhido num dos cantos do porta-malas, J. A. A. perguntou:


—Já chegamos?


— Desce, malandro! — respondeu o PM, empurrando-o para fora.


Cabelo raspado, pernas miúdas, magreza generalizada. As
algemas apertavam os punhos magricelas do temível criminoso. J. A. A. caminhou alguns passos cabisbaixo e começou a chorar. O comandante da PM não entendeu a reação do bandido. Quase chegando ao portão, parou de andar. Os guardas se entreolharam temerosos. A parada, certamente, seria o sinal para o início da ação da quadrilha. Sutil tentativa! Um teatro para despistar os defensores da lei. Gatilhos a postos. Os policiais redobraram a atenção. J. A. A. perguntou:

— Doutor, posso pegar meu pente vermelhinho que caiu no carro?


— Entra, malandro! Entra!


Já dentro do hospital, o policial se compadeceu de J. A. A. ao saber de sua história. Por quatro anos investigador do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra), o mais novo paciente tinha sido preso em flagrante por seqüestro. A refém escolhida fora a filha de um dos delegados do setor em que trabalhava. A jovem permaneceu no cativeiro por menos de 24 horas. J. A. A. exigiu da família o resgate de R$ 850 milhões. Isso mesmo: quase o valor da fortuna de Sílvio Santos, o famoso apresentador de tevê. A equipe especializada anti-seqüestro do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) estranhou a quantia exigida para um simples delegado de classe média. Novo telefonema, e a


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confirmação do valor: R$ 850 milhões, e nem um centavo a menos. O dinheiro deveria ser colocado na caixa de registro de um sobrado na Vila Gumercindo, zona norte de São Paulo. Detalhe: o endereço era o da própria casa de J. A. A. O exame do paciente constatou, dias depois, que se tratava de personalidade psicopática, mas incapaz de oferecer risco.


Diferentemente de J. A. A., os pacientes costumam chegar aos montes no mesmo camburão. A ordem da polícia é economizar. São levantados, na entrada, dados formais de identificação, como nome, filiação, cor e procedência. Depois de fotografado, o detento ganha o uniforme da unidade: camisa e calça marrons, semelhantes a um pijama. Em seguida, é deslocado para o Centro de Terapia Intensiva (CT1), onde permanece em observação até o primeiro laudo psiquiátrico. Quando há suspeitas de crises agudas, o paciente é trancado na cela sem roupa. O suicídio é um comportamento freqüente dos esquizofrênicos. Aproximadamente 50% deles tentam se matar ao menos uma vez, e 15% dão cabo da própria vida no período médio de vinte anos de tratamento.


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