Reportagem no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha



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Arrumar paragrafos.
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divagar sobre assuntos de “japonês” e “ouro”, o perigo torna-se iminente. Utiliza, como forma de defesa para sua alucinação, a mania de furar os olhos das pessoas. Não importa quem esteja por perto, paciente, funcionário ou visitante. Certa vez, de trás da grade, roubou a caneta do bolso da camisa de um enfermeiro que se distraiu, e por pouco não lhe perfurou o olho. O dissimulado J. P. C. é alto e raquítico. Diz ouvir vozes de três japoneses, chamados Nagasaki, Ioshiguchi e Tashiguchi, que o mandam “matar para recuperar o ouro.
— Matei um. Não. Matei dois... Não... Matei cinco. Eu mato por causa do ouro. As vozes dos japoneses me mandam matar pelo ouro que tem no largo do Arouche. O Brasil está em pé de guerra com a fndia e eu matei o árabe por causa do ouro. Preferia estar livre e ganhar quatro barras de ouro por mês do que estar aqui e ganhar vinte barras por semana, dizia ele.
Nem os fortes medicamentos conseguem conter surtos com o grau de violência dos de J. P. C. Alguns pacientes tomam até cinco doses de remédio em comprimido ou três aplicações de injeção por dia. Como já dito, o antipsicótico mais usado é o Haldol. A droga atua no combate ao delírio que leva o paciente a agir com violência, obedecendo a vozes e sinais imaginários. Cada ampola de Haldol demora entre oito e doze horas para fazer efeito e, como sintoma colateral, produz a impregnação. Nesse período, é necessário isolar o doente. A hora do medicamento nem sempre transcorre de forma pacífica: a maioria dos internos resiste principalmente à injeção e chega a agredir os agentes da equipe de disciplina. Em uma das sessões de medicação, o paciente mediu forças com quatro
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funcionários da segurança e um auxiliar de enfermagem dentro da cela. O enfermeiro, tendo numa das mãos a seringa e em outra um algodão encharcado de álcool, esquivava-se dos murros e pontapés na tentativa de dar a injeção. Depois de quase vinte minutos de empurra-empurra e agressões por parte do paciente, cumpriu-se a missão. O psiquiatra Gilles Espósito, que integra o corpo clínico da instituição desde 1988, acompanhou a cena do lado de fora da cela e acrescenta:
— Há dois anos fui agredido por um doente que, repentina- mente, virou a mesa sobre mim na sala do consultório, O incidente me custou uma lesão nas pernas.
Ser médico no CTI requer um esforço ilimitado, por vezes sobre-humano. Quando começa o expediente, ele deve primeiramente atender aos internos isolados. É a forma de priorizar quem mais necessita de tratamento no manicômio.
— Muitas vezes isso é inútil. No dia seguinte à aplicação do remédio, o paciente ameaça uma reação. Só ameaça. Uma semana depois, lá está o mesmo indivíduo sendo encaminhado para o isolamento — diz Gilles. E conclui: — O sentimento de impotência diante da doença é terrível.
Os psiquiatras reconhecem que a recuperação do doente internado no CTI faz parte de um processo complexo e difícil, mas sempre se espera algum tipo de melhora. É impossível calcular o tempo médio de vida do paciente isolado. O caso inédito de A. E L. surpreendeu a junta psiquiátrica do manicômio. Ele viveu no “corredor da morte” os quase 27 anos em que esteve em Franco da Rocha. Sempre na cela 9. Dizia que o lado par do corredor era
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amaldiçoado. Conhecido como Guerreiro, raptou e matou a mãe, mas acreditava ter cometido um crime político. Dizia sofrer de remorso por ter se ausentado da luta contra o Alto Comando Revolucionário criado pelo governo militar em 1964. Gostava de escrever tratados comunistas dos quais não se extraía uma frase conexa. Carrancudo, foi o doente mais temido durante muito tempo. Era um dos poucos que os médicos não atendiam no consultório. Recebia cuidados na própria cela, pela portinhola. Mesmo isolado, exibia um ar de superioridade e prepotência. O último exame de saúde mental realizado antes de sua morte, em 1998, concluiu que ele praticamente não teve evolução nos anos de cárcere em Franco da Rocha: “Sem resposta terapêutica. Tendência ao isolamento e negação. Indisciplinado. Paciente psicótico, mantém atitude negativa e hostil”.

Fotos antigas de A. E L. impressionam pelo olhar assustado e ao mesmo tempo assustador. Ele parece fixar com receio os militares inimigos de seu exército imaginário, mas sabe-se que isso não o impedia de atacá-los. Em meio às constantes crises de depressão, agredia funcionários, pacientes ou quem mais se aproximasse. Sua fase arredia acontecia na semana antecedente à comemoração do

Figura. Os medicamentos do CII são mais fortes e produzem reações colaterais.
(Inicio da descrição)

A figura é composta por uma prateleira composta por vários tubos contendo remédio.



(Fim da descrição)
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Dia das Mães. O fenômeno não é raro no Manicômio Judiciário. A ansiedade pela falta de visitas ou as lembranças do crime cometido no passado perturbam o enfermo. Em certas épocas do ano, como o Dia dos Pais, Natal ou Ano Novo, o CTI torna-se pequeno para os doentes em recaída. Muitos entram em surto nos pavilhões e necessitam ser isolados. Certo dia, M. N. E., o Biruta, que assassinou a tesouradas os dois irmãos menores, ouviu um colega comentar que toda a sua família viria de longe festejar com ele o Natal, que receberia presentes e comeria peru. Horas depois de saber que seria assim o Natal do colega, entrou num processo de abatimento psicológico. Não queria comer ou tomar remédio. Mesmo detido, ficou incontrolável, até ser dopado com doses contínuas de Haldol. Logo depois do réveilion, Biruta recuperou-se e voltou a conviver de forma tranqüila com os demais.
Os pacientes isolados dependem dos funcionários para quase tudo: beber água, alimentar-se e tomar banho. Pratos de comida esfriam durante horas ao pé da cela, à espera do enfermo. A maioria não tem disposição para comer. O corredor é trancado às 17h e aberto na madrugada apenas em casos de emergência. Normalmente reabre às 8h da manhã para a medicação. O ruído dos portões se abrindo desperta alguns pacientes. Nas paredes, um retrato intrigante das mentes em crise: letras, siglas e números desenhados por todos os lados, com restos de carvão ou com fezes, formam um alfabeto incógnito. Inscrições guardam um código exclusivo dos doentes mentais. Na cela 4, uma súplica — talvez a única compreensível nas paredes do CTI: “Quando eu morrer, que não seja só de tédio”.
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O homem da alma morta
A loucura irreversível faz parte da realidade em Franco da C1 Rocha. Na categoria dos que morreram na instituição, está o paciente mais antigo do hospital, E. T. F., conhecido como Sansão. Ele tinha 57 anos e viveu 34 no Manicômio Judiciário. Seu passatempo predileto era passear pelos pavilhões cantarolando sucessos de Nélson Gonçalves. Assim decorreu a conversa dele com o repórter por alguns dias na segunda semana de setembro de 2000. Entre perguntas e respostas — muitas vezes desconexas — foi possível conhecer os dramas e as alegrias de Sansão, além de recordar boa parte do repertório de Nélson Gonçalves. Para continuar a entrevista, foi preciso muitas vezes acompanhar o entrevistado, que cantava.
Sansão não gostava de ficar muito tempo na cama. Levantava-se para conferir o tempo, todos os dias, às 6h da manhã. Sentia- se incomodado com o frio e a chuva, e dias ensolarados o animavam. Ele era sempre o primeiro a ser entrevistado pelas equipes de reportagem que aportavam no manicômio. Contava que já tinha um discurso pronto. Esse incluía argumentos para justificar a loucura, nos quais entravam as circunstâncias de ter sido criança carente, adolescente problemático e adulto renegado.
— Eles adoram. Aí falo bem da diretoria para poder passear — conta, referindo-se à estratégia lúcida que lhe rendeu, por muito tempo, o direito de caminhar pela vizinhança.
Seus dias transcorriam com o mesmo desalento de sua rotina. Lamentava estar “velho e sem músculos”, mas se animava ao lembrar como era forte e vigoroso na juventude:
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— Minha mãe me deu o apelido de Sansão por causa de umas histórias que falavam de pilares derrubados.
Filho de imigrantes italianos, o paciente mais antigo do Manicômio nasceu no bairro da Mooca, em São Paulo. Mudou-se com a família para um barraco da prefeitura em Santo André e aí trabalhou, no início dos anos 1960, como catador de papel, ajudante numa fábrica de rádios e servente de pedreiro. Estudou durante sete anos, mas não conseguiu sair da segunda série do primário. Faltava muito às aulas e tinha mau comportamento. Certa vez, foi expulso da escola porque trancou dois amigos no banheiro feminino, que ali ficaram horas. Perdeu o pai, tuberculoso, aos 9 anos, e sua mãe, dona Assunta, viveu internada treze anos no Hospício do Pinel, identificada como esquizofrênica.

Ingressou na vida do crime aos 10 anos. Roubava roupas dos camelôs que começavam a se formar nas ruas do ABC (cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul). Aos 21 anos, praticou seu primeiro e último crime fora das grades. Já passava da meia-noite quando invadiu, pela porta do fundo, uma loja de departamentos na periferia de Santo André. Queria levar

Figura. Em maio de 1989, Sansão já não mostrava o vigor que antigamente assustava os carcereiros.
(Inicio da descrição)

Figura é composta por várias pessoas caminhando em uma fila indiana.

(Fim da descrição)
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brinquedos e roupas infantis. Foi preso em flagrante e, em junho de 1963, conheceu o submundo da Casa de Detenção de São Paulo. — Ele ficou louco lá. O chefe da disciplina quis que fosse para o manicômio — afirma o irmão mais velho de Sansão, que prefere não se identificar. Ninguém entendia o que se passava pela cabeça de Sansão, nem ele próprio: — Ficava desnorteado. “Ela” pedia com amor para roubar e matar. Dizia que eu era Deus. Era meiga e carinhosa. Falava coisas bonitas para mim. A voz da menina às vezes até me fazia chorar. No Carandiru, submeteram-no às sessões de eletrochoque, pau-de-arara e muitas borrachadas. Tornou-se violento e imprevisível, o que o levou, várias vezes, à cela forte e à solitária. Seu prontuário registra uma seqüência de desvios de comportamento: brigou com outro preso, tentou fugir, ateou fogo no colchão, jogou um prato no rosto de um agente penitenciário e lançou fezes no pátio. A cada delito, mais espancamento. Os sinais de debilidade mental aumentavam com o correr dos dias. — Qualquer preso musculoso, atarracado e mal-encarado causava medo nos policiais. Por ser assim, Sansão foi vítima de muita violência — explica o psiquiatra Carlos Eduardo Garcia, que acompanha o caso desde a década de 1970.
Quando era maltratado, a personagem do delírio ficava mais presente do que nunca. A solução encontrada foi mandá-lo para o Manicômio Judiciário. Foi internado no dia 16 de julho de 1966, numa época em que a instituição de Franco da Rocha enfrentava grave crise. Um dos primeiros laudos retrata o tormento que a voz
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imaginária produzia em Sansão: “Ela fala a todo instante que seu fim será triste, porque o espírito da múmia encarnado nele também teve um fim triste”. Os psiquiatras indicaram que os distúrbios alucinatórios agravavam suas constantes crises convulsivas e epilépticas. Com quatro meses de manicômio, ele tentou fugir. Levou um tiro na perna direita e fraturou o perônio. — Eu corria mais que eles — divertia-se.

Em um surto de agressividade, matou um colega de cela a pontapés e cabeçadas. Não há muitos detalhes do crime no prontuário de Sansão. Foi declarado, no mesmo ano, um detento de alta periculosidade e submetido aos mais variados tipos de tratamento repressivo, como o “sossega-leão”.


— Era muita injeção. Não dava para agüentar. Batia a cabeça na parede para diminuir a dor — contava.
As cabeçadas nos muros e grades do CTI lhe causaram afundamento na região frontal do crânio. Alguns psiquiatras acreditam que a perda de parte da massa cerebral explicaria seu comportamento anormal.

— Sou Sansão porque sou forte! — repetia sempre.


Viveu nove anos isolado no CTI, porque o consideravam um dos internos mais agressivos. Já não esboçava emoção e não tinha cuidados com a higiene. A voz da menina havia retornado com intensidade: ele tinha de matar para salvar as crianças. Ao sair de uma das longas temporadas no “corredor da morte”, numa tarde fria de 1985, assassinou a primeira pessoa que viu pela frente. Era o paciente Alfredo da Mata, de 88 anos, que, dizem alguns internos, perguntou-lhe se era “o famoso Sansão”. O velho foi morto a cabe-
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çadas. No interrogatório, Sansão disse ao juiz que “quem mata é Deus” e suplicou que o tratassem com carinho.
Então, consideraram-no irrecuperável. Outro laudo de insanidade mental, realizado em junho de 1980, dizia que sua memória estava comprometida pelas alucinações. O parecer definitivo dos peritos do Manicômio Judiciário, apresentado ano após ano ao juiz corregedor, conclui: “Não há cura. Não existe possibilidade de retorno ao convívio social. A sua permanência nesta instituição é segurança para si mesmo e para a sociedade”.
Nos últimos meses, seu tratamento tornou-se mais ameno. Tomava calmantes para dormir, porque tinha sono muito agitado. Ingeria diariamente 280 g de Gardenal, para impedir que a “voz” voltasse a atacar. Em certa hora estava calmo, sereno, mas logo passava a falar desenfreadamente, sem deixar de manter-se apático e indiferente ao mundo a seu redor.
— Minha alma está morta — sentenciava.
Sansão amarrou sua caneca na velha gravata. Descansou depois de atender a uma equipe de médicos que veio do Rio de Janeiro especialmente para realizar uma bateria de exames com o lendário paciente do Manicômio de Franco da Rocha. E quem não quer
Figura. O lendário paciente foi internado às pressas na enfermaria em setembro de 2000. Morreu três dias depois.
(Inicio da descrição)

Figura mostra a foto de um enfermo com um rosto um pouco machucado.

(Fim da descrição)
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entender a cabeça de Sansão? Um velho boato dizia que seu cérebro estava requisitado pela Faculdade de Psiquiatria da USE Assim que morresse, ficaria exposto no departamento de psicopatologia para a análise dos estudantes de medicina. Mais um dia de sol intenso chega ao fim em Franco da Rocha. O portão do pavilhão é trancado, enquanto se ouve uma voz distante: “Boemia, aqui me tens de regresso...”.

Nove dias depois da última entrevista com o repórter, Sansão acordou de madrugada e se despediu dos companheiros e funcionários. Havia contraído uma forte pneumonia e parecia pressentir que algo de ruim aconteceria. Morreu às 8h da manhã do dia 28 de setembro. No velório, ao lado de um ramalhete de margaridas, estavam seu irmão mais velho e dois pacientes vizinhos de dormitório.


Jardim da vaidade
Distante quase 2 km do prédio central do manicômio, situase a colônia das mulheres enfermas mentais. Para chegar lá, é preciso cruzar um portão de grade controlado pela polícia e esperar que se abra a portaria. A primeira imagem da colônia é também a mais presente na lembrança: dezenas de pacientes, escoradas no portão de aço cerrado, acenam ou berram para quem se aproxima do outro lado. No alto da parede, um quadro antigo da ressurreição de Cristo. Afetividade e carência se misturam no lugar em que são confinadas as criminosas portadoras de doenças psiquiátricas do estado de São Paulo.
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O manicômio abriga 76 mulheres com tipos variados de transtorno mental. Psicopatas com alto grau de periculosidade e psicóticas comuns dividem o mesmo espaço e recebem tratamento igual. A maioria passa o dia perambulando pelo pátio ou repousando nos dormitórios. São seis quartos espaçosos, com quinze a vinte pacientes morando em cada um. O barulho dos rádios, verdadeira miscelânea de estilos musicais, de rap a hinos religiosos, anima o mulherio. Entre calcinhas e sutiãs pendurados pelas janelas, elas dançam, cantam, brigam, namoram ou escrevem. Outras permanecem isoladas no silêncio. Grande parte, porém, adora mesmo um bate-papo — ainda que desprovido de razão. Como o indistinto diálogo de D. H. A., simpática negra de fala rápida, e M. J. 5., senhora robusta de testa franzida, que decidiram, em certo cair da tarde, discutir o que era a loucura. Altamente concentradas, as duas permaneceram quase meia hora sentadas no chão do pátio.
— Os motoristas de táxi e os entregadores de batata afetam os meus nervos e o meu cérebro, e tenho uma reação explosiva. Como se fosse uma janela com um botãozinho. A janela vai fechando, fechando, e o cérebro sofre — afirmou D. H. A., entre um gole e outro de café frio.
Figura. Manter a auto-estima das pacientes é um dos desafios na colônia feminina.
(Inicio da descrição)

Figura mostra uma pessoa com um rosto feliz.



(Fim da descrição)
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M. J. S. meneava a cabeça como sinal de positivo, enquanto repetia a última palavra de cada frase de D. H. A. Afirmou:
— Não me aprumo nunca. Era uma encrencada só. Parecia ter estourado uma nova guerra. Fui lavar roupa no riacho e senti que era Deus. Senti que tinha de fotografar as árvores, os bichos e toda aquela gente com a cabeça. A crise durou até que o remédio aumentou, e aí comecei a melhorar.
A divagação não é regra geral nas conversas entre as internas do manicômio. Muitas sofrem de desvio de personalidade e, com a ajuda dos remédios, conseguem manter-se lúcidas. Falam da comida, do tempo, dos sonhos. Uma parte evita tecer comentários sobre a família. São jovens e idosas que tiveram a identidade violada muito cedo — como M. A. E 5., a Déa, 43 anos, que perdeu o pai na infância, vítima de repentino derrame cerebral. A mãe e as irmãs tinham saído para apanhar frutas no pomar, quando o homem começou a passar mal. Agonizou nos braços da filha. Déa nunca mais superou esse trauma. Sentia-se culpada pela perda do pai, o que a tornou uma adolescente perturbada. Sonhava com ele, todas as noites, passeando no bosque cheio de flores ou tirando leite da vaca. Surtou na madrugada da primeira menstruação. O fluxo de sangue chegou acompanhado de vozes alucinatórias que, conforme sua psicose, vinham de suas vias genitais. Avista escureceu. As manchas vermelhas, a sujeira entre as pernas, o remorso. Déa matou a mãe com sete facadas.
— Eu sentia que ela não gostava de mim. Sabia que colocava remédio na comida e no aparelho de som — delira.
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Um fenômeno crescente nos últimos anos, no universo das enfermas de Franco da Rocha, tem sido o da internação de jovens entre 18 e 25 anos. O quadro clínico se reproduz a cada entrada: estado psicótico devido ao uso de substâncias entorpecentes. O traço de abandono também se reproduz: menina de rua, interna da Febem, presa comum e, finalmente, paciente do Manicômio Judiciário. A maioria dos delitos está vinculada a consumo e tráfico de drogas. 5. R. P., moça delgada de 24 anos, foi internada no início de 2000. Estava infestada de piolhos e chorando muito, vítima de desarranjo depressivo. No dia 9 de agosto de 1998, por volta das 2h da manhã, foi presa em flagrante pela Polícia Civil, por porte de drogas: escondia, no bolso da calça, dois papelotes de cocaína e quatro pedras de crack. No Distrito Policial do Jaçanã, em São Paulo, passou a morder-se e a queimar-se com cigarro. Gritava nas madrugadas para afirmar que a estavam violentando. Foi jurada de morte pelas outras detentas. Chegou ao manicômio inquieta e desorientada. Em seu prontuário, um único documento: o parecer do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental da Santa Casa de São Paulo, caracterizando-a como “psicótica e infantilizada”.
Ela fugiu aos 17 anos da casa dos pais, em São José do Rio Pardo, São Paulo, onde nasceu, para ganhar a vida como prostituta no largo do Arouche, na boca-do-lixo. Precisava arrumar dinheiro para sustentar o vício, iniciado aos 11 anos. A cada tragada de crack, novos fantasmas. A cada fumada de maconha, mais vozes. A droga se tornara uma obsessão compulsiva, carregada de ataques esquizofrênicos. Passou em claro a primeira noite em Franco da Rocha. Apática, dizia que gostaria de ver seus pais e que não queria mais
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sentir medo. A família, localizada, encarregou uma vizinha de enviar uma carta avisando que não desejava mais saber dela, porque já tinha “dado muito trabalho”.
Além dos delitos relacionados com drogas, o crime feminino mais comum está ligado a tragédia familiar. Assassinato de filhos, marido ou conhecido. Há um número impreciso de pacientes hospitalizadas por um tipo de enfermidade peculiar: a psicose pós-parto. É uma crise mental que ocorre após o parto e se caracteriza por delírios e depressão grave. Registra-se um caso a cada mil partos. A mãe tem pensamentos de agressão em relação à criança no período de seis semanas depois de dar à luz. Geralmente faz afirmações irracionais e tem idéias obsessivas sobre a saúde e o bem-estar do bebê. Pode não amá-lo ou feri-lo, às vezes ter as duas reações ao mesmo tempo. A maior parte das pacientes é de baixa renda, sofre com a desestruturação do lar e a falta de apoio. É possível contar nos dedos as que recebem visitas periodicamente — realidade bem diferente da vivida pelos homens do manicômio. Um levantamento interno realizado na colônia feminina em agosto de 1996 revelou que 52% dos delitos foram cometidos após surto psicótico
Figura. Parte das mulheres do manicômio evita falar sobre o relacionamento com a família.
(Inicio da descrição)

Figura mostra a foto de uma mulher

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agudo. Isso significa que, anteriormente, a família da paciente buscou socorro em hospitais e ambulatórios nos momentos de crise, mas não foi ajudada. A precariedade do sistema de saúde mental e a falta de vagas para internação na rede pública impulsionaram grande parte dos crimes. Muitas mortes seriam evitadas se as pacientes fossem atendidas antes do surto.
A família de E. S. O., apelidada de Tormenta, vivenciou essa experiência traumática. Com apenas 3 anos, a interna presenciou o atropelamento do irmão. Tempos depois, ainda criança, recebeu uma tijolada na cabeça quando passeava no colo da tia. Ao perceber suas reações estranhas, os pais suplicaram ajuda, mas não foram atendidos. Somente aos 18 anos Tormenta conseguiu, pela primeira vez, uma vaga para internação em Botucatu, São Paulo, sua cidade natal. Tarde demais: o diagnóstico indicava que a jovem se havia desligado da realidade e que seu comportamento era imprevisível. Poucas semanas no Hospital Cantídio de Moura Campos foram suficientes para comprovar o acerto do diagnóstico. Tormenta acordou à noite, sem chamar a atenção das enfermeiras, e extraiu, com as mãos, os olhos de outra paciente que dormia no quarto. Aterrorizou o hospital. A solução encontrada foi aprisioná-la na cama com camisa-de-força. Passado um tempo, ao pedir para ir ao banheiro, tentou de novo arrancar os olhos de outra paciente. Detida para tratamento no Manicômio Judiciário, passou a ser uma das internas mais agitadas da colônia. Entre risos imotivados e caretas, grita por um cigarro ou porque quer ir à rua. À noite, é obrigada a dormir no CTI para não atrapalhar o sono das demais.
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Fazem-lhe companhia no CTI pacientes envolvidas em brigas ou roubos nos dormitórios. A maioria não permanece de castigo mais que uma semana, situação bem diferente da de anos atrás, quando algumas ficavam até um mês, nuas, na cela de isolamento. Eram severamente castigadas e tinham a saúde comprometida pelo frio e pela fome. Ainda assim, o CTI feminino é menos dramático do que o masculino. A auxiliar de enfermagem Solange Carvalho, há quatro anos funcionária da colônia, assegura que as mulheres também são menos agressivas que os homens. Conta, no entanto, que já teve os cabelos puxados, recebeu mordidas e alguns sopapos quando fazia a distribuição dos medicamentos.
— Não é possível ficar com raiva ou mágoa da paciente. É nosso papel tratar essa gente — avalia. — Mas tenho muito receio.
Certas normas de conduta ditam o comportamento do mulherio. É proibido deitar-se ou sentar-se na cama de outra paciente sem a prévia autorização da dona. Bisbilhotar objetos pessoais — abrir cartas, mexer em fotos, experimentar roupas — é considerado falta grave; pode valer a exclusão do dormitório e uma temporada no CTI.


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