A população feminina do manicômio também é mais solidária. Quando C. S. T., a Cleo, foi internada na clínica prestes a morrer, S. L. e outras duas colegas fizeram vigília à beira do leito. Assim que se confirmou o óbito, as três assinaram uma carta de despedida em primeira pessoa: Hoje senti meu corpo como sendo de borracha. As interpretações da saúde continuam confusas. Tudo relacionado
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com doença. Os médicos são ignorantes e não vai ser injeção que vai segurar a crise. Cada pessoa faz o seu mundo, mas tem que haver uma transformação constante de todos os mundos, interligação, tenho que ter contato com outros mundos, não só doença, mas dos outros mundos que sejam interessantes. Valeu, Cleo.
— Por muito tempo, o hospital feminino foi um local insalubre. O tratamento se baseava na humilhação, e as pessoas eram tratadas como objetos. A qualquer sinal de espontaneidade ou de individualidade, havia repressão — recorda a psicóloga Margarida Calligaris Mamede.
Ela explica que a luta contra o processo de “coisificação” das pacientes tem sido a principal bandeira do departamento de psicologia. Responsável pelo atendimento psicoterápico das internas, Margarida acredita que, como reflexo da sociedade, as mulheres também são discriminadas na instituição. Ainda prevalecem problemas básicos de higiene. O sabonete para banho é coletivo e não existe água potável para beber.
A questão da vaidade é outro ponto marcante. Liberado há seis meses pelo setor de disciplina, o espelho sempre foi proibido
Figura. As cartas são o único contato das enfermas com o mundo do outro ado dos muros.
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Figura mostra uma mulher deitada em uma cama escrevendo uma carta.
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em Franco da Rocha por ser objeto cortante. Os psicólogos, entretanto, criticam a proibição e afirmam que ela agride a auto-estima das pacientes. O narcisismo é considerado uma importante ferramenta na noção de integridade do indivíduo e parte fundamental no tratamento da psicopatologia. A todas as outras perdas — de objetos, de familiares, de amigos, da cidadania — soma-se a do acesso à própria imagem. A estranheza com que algumas pacientes encaravam o corpo e o rosto depois de algum tempo era inenarrável. O tratamento a que são submetidas, muitas vezes baseado no consumo excessivo de medicamentos, faz com que engordem até 10 kg nos primeiros três meses de internação. O choque de se verem repentinamente transformadas por completo causava as mais diversas reações. Algumas surtavam, outras mergulhavam em crises depressivas e outras ainda despedaçavam o espelho.
— Quebrar o espelho é estilhaçar o rosto recém-descoberto, estilhaçar a si mesma — explica Margarida.
O trabalho que ela comanda na colônia feminina tem recebido elogios de profissionais em palestras e seminários de psicologia em todo o país. Mais que uma conquista pessoal, Margarida vê o programa como caminho para o resgate de pacientes em profundo sofrimento psíquico. Os resultados são práticos. Há dois anos, num exercício terapêutico de investigação clínica, ela propôs para as internas a formulação de um desenho-história. C. J., paciente em tratamento com histórico de vida marcado pelo abandono e pela marginalidade, desenhou um coração pintado com traços fortes de vermelho. Disse:
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— Era uma vez um coração que só batia; um dia alguém encontrou ele aberto e entrou dentro dele. E a partir daí ele, em vez de bater, só sorria. E só.
Dores do parto
Certa manhã chuvosa de início de primavera a enfermaria feminina estava mobilizada para atender R. C. A., a Rutinha. Paciente psicopata, de 26 anos, urrava aos prantos, reclamando de fortes dores no útero. De plantão no CTI masculino, o médico levaria algum tempo para chegar. Entre o diz-que-diz dos enfermeiros, ouviu-se uma voz na porta da sala:
— É dor de parto mal resolvido. Só pára com água quente e bastante chá de eucalipto.
Os funcionários silenciaram por segundos e decidiram ignorar o comentário. Uma mulher bem-ajeitada, de cabelos ruivos, longos e tratados, era a dona da voz. A franja sobre o rosto encobria parte dos enigmáticos olhos verdes. Trazia as mãos no bolso e tinha feição de menina, mas a calça justa e a camisa apertada deixavam transparecer o corpo marcado pela idade.
— É dor de parto mal resolvido. Tenho certeza — insistiu, convicta.
Novo silêncio entre os enfermeiros. Que funcionária petulante seria aquela? Logo, uma das atendentes pediu para a moça se retirar. Não houve reações. E lá foi ela, acompanhada da enfermeira, para o outro lado da grade.
A dona da voz arrogante era paciente: V. P. A., Ismália, 45 anos, interna do manicômio desde 28 de agosto de 1997. Já dentro
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do dormitório, sozinha na cama, perguntou ao repórter se tinha acreditado no que dissera. Mal ouviu a resposta e passou a apresentar sua família. Mostrou com orgulho as sete fotos coladas na parede, dando destaque a sua predileta, com uma das netas que bocejava no berço. O semblante entristeceu quando lembrou da última visita, havia nove meses. O último telefonema se dera havia seis meses, e a última carta, cinco meses. Ismália, no entanto, não perdeu a pose.
A boneca de pano, feita com tranças douradas e vestido quadriculado, adquirida no distrito policial em que ficara presa, era a sua grande companheira. Todas as noites a abraçava como se abraçasse a família. Era capaz de chorar horas seguidas para provar o amor que sentia por aquelas pessoas que a boneca representava.
Na parede próxima à cama de Ismália, faltava a imagem de dois familiares: a do marido, H. A., e a de Mariana, filha mais velha do segundo casamento. O único homem nas fotos era o genro, casado com uma das cinco filhas. Todas as lembranças do marido tinham sido queimadas havia quatro anos. Roupas, cartas, documentos — e fotos. O ódio que então movia suas palavras ao recordar H. A. era o oposto da paixão avassaladora que mantivera por 26 anos de casamento. Culpava o destino: quando o pai morreu ela tinha 5 anos, e quando a mãe abandonou o lar tinha 12. Arrumou serviço como empregada doméstica e conheceu um estudante, com quem teve uma filha. Meses depois, flagrou a irmã com o então namorado. Rompeu o romance e perdeu o emprego. O pedreiro H. A., de classe média, representava a realização dos sonhos de Ismália Aos 15 anos, enfim, surgia um homem para amar pelo resto da vida. O casal namorou menos de uma semana e decidiu morar junto.
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— Não sabia nada da pessoa com quem estava casando — ela contou, abraçada à boneca.
Aos 21 anos, tornou-se mãe pela segunda vez. Mais uma menina. Em menos de três anos, outras três filhas. Agora, seis mulheres e H. A. dividiam o mesmo teto. O feitio assombroso do marido veio à tona com o crescimento das crianças. Conforme os anos passavam, todas eram submetidas a sessões diárias de esp ancamento. E torturadas, sem razão aparente, com fios de enceradeira e pedaços de madeira. Uma simples desobediência terminava em violência física. Para sair de casa, era necessário vestir roupas compridas que cobrissem os hematomas. Ameaças de morte impediam as mais velhas de denunciar o pai que as atormentava em casa. Diante das surras, ninguém compreendia Ismália: ora defendia as filhas, ora permanecia omissa e, às vezes, até cúmplice dessa barbárie.
A loucura de H. A. tomou proporções assustadoras com o decorrer dos anos, na cidade litorânea paulista de Caraguatatuba. Em meio às agressões, passou a aliciar as filhas, desvirginando as cinco, uma a uma, desde os 6 anos. As meninas viveram como escravas sexuais do pai por mais de uma década. O ciúme de H. A. era tão obsessivo que elas não puderam freqüentar a escola por muito tempo. Certo dia, Mariana, a mais velha, observou que sentia enjôos constantes e que seu umbigo estava para fora. O exame comprovou o que todos temiam: estava grávida do próprio pai. Revoltada, Ismália culpou a filha pela criança que viria. Dias depois de saber da notícia, Mariana ouviu da mãe o que jamais poderia imaginar:
— Você vai pagar caro por assumir meu lugar!
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A insanidade dominara de vez Ismália. Seu transtorno mental alternava atitudes de lucidez e de desvario. Pior: as filhas estavam, de fato, sem a proteção da mãe, a única pessoa capaz de livrálas da prisão do incesto. Mariana muitas vezes pensou que ela própria fosse louca e sentia ódio ao pensar na possibilidade de dar à luz uma criança gerada por seu pai. H. A. alcançou tal ponto de alucinação que alisava a barriga da gestante e dizia que seu filho querido iria nascer. No dia 21 de maio de 1990, aos 15 anos, Mariana ganhou seu primeiro filho. Outra menina — excepcional e deficiente visual.
— Sempre tentei entender o jogo de minha mãe nessa trama toda. Ela chegou a me dizer que um dia alguém me daria o troco, para que nunca mais eu roubasse nada dela — diz Mariana.
Apesar do nascimento do bebê, os maus-tratos e a violência sexual continuaram. Até o dia em que Mariana engravidou outra vez. Pouco mais de um ano depois da primeira gestação, no dia 30 de setembro de 1991, nasceu seu segundo filho com o pai. Uma menina de 3 kg, cheia de saúde. A rivalidade entre mãe e filha se acirrou, enquanto H. A. já ameaçava aliciar as novas integrantes da família. Em novembro de 1993, após um bate-boca com Ismália, Mariana foi atingida na cabeça por um caibro e acabou internada no Hospital de São Sebastião. Depois de medicada, a enfermeira, que não sabia quem fizera o ferimento, solicitou a H. A. que a mãe da paciente fosse banhá-la. O homem relutou, exigindo fazer isso ele mesmo. A funcionária desconfiou e avisou à Delegacia de Mulheres de Caraguatatuba. Uma semana depois, no horário de visita, H. A. foi preso. Imóvel no leito do hospital, Mariana chorou, sem
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saber se era de felicidade ou de tristeza, O que sabia é que não lhe seria fácil libertar-se do peso do passado.
As irmãs de Mariana tiveram sua guarda retirada pelo Conselho Tutelar do Fórum da Infância e Juventude até alcançar a maioridade. A última vez em que conversaram, Ismália perguntou se Mariana sentia ódio dela. A resposta foi negativa, mas ela costuma dizer que as mágoas nunca mais serão apagadas de sua vida. A maioria das cenas do drama familiar ocorreu numa pequena casa de pau-a- pique, construída à beira da praia. Ao conhecer o local, podem-se imaginar os gritos de agonia afogados pelo barulho do mar. Um pouco desse sentimento foi exposto por Mariana num livro comovente, escrito por ela em dezembro de 1996. É um relato corajoso que desperta no leitor, ao mesmo tempo, angústia, medo e revolta. —
Quando começo a relembrar o que se passou em minha vida, nem eu mesma acredito que estou viva. Às vezes me olho no espelho e me pergunto se existo — afirma Mariana, hoje com 25 anos.
Assim que o caso se tornou público, Ismália foi condenada como cúmplice dos crimes de H. A. — atualmente preso na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté — e encaminhada ao Manicômio Judiciário, por ser considerada inimputável. Ela vive à base de antipsicóticos e jura nunca ter pensado que o marido fosse o pai das filhas de Mariana. Afirma categoricamente ter achado que as crianças eram produto de um caso secreto da filha com alguém. O exame de insanidade mental atesta que Ismália “parece conformada com a tragédia familiar. É como se se tivesse desligado de tudo — de sua memória, de seu passado, de seu delito —, e isso leva a concluir que a periculosidade se mantém”.
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Hoje empregada doméstica em Caraguatatuba, Mariaia é a única das filhas que não visitou a mãe em Franco da Rocha.
Na semana seguinte à das dores sofridas na enfermaria, Rutinha e Ismália almoçavam no refeitório e cantavam uma música impossível de descrever. Entre uma colherada e outra de feijão, elas acenaram escontraidamente.
— Tô bacana. Tô bacana. Dor de parto foi embora — disse Rutinha, com o sorriso banguela.
Seu último boletim médico indicava no prontuário: “Duas doses diárias de antiinflamatório para conter dores uterinas ocasionadas por um aborto malsucedido no passado”.
Um dia no baile
dia de baile começa cedo em Franco da Rocha. Antes das 8h já há pacientes prontos para a folia. É um dos momentos mais aguardados por todos no manicômio, talvez tanto quanto o da visita da família ou mesmo o de receber o laudo de desinternação. Acontece a cada quinze dias, normalmente às sextas-feiras, mas, nos últimos tempos, o baile foi cancelado pela diretoria, porque houve mulheres acusadas de lucrar com a atividade de recreação. Cobravam três pacotes de bolacha ou dois maços de cigarro para dançar. Beijos e abraços custavam, no mínimo, oito maços de cigarro. O baile do Dia dos Namorados ganhou um tom especial, porque marcou o retorno da festa após seis meses de suspensão.
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Na semana anterior, dezenas de pacientes enfeitaram o salão de visitas. Tinham como missão deixar aconchegante o lugar. Nas paredes, recortes de coração colados ao lado de outros corações. Alguns flechados por Cupido, outros solitários. Fiapos de papel crepom, amarrados ao teto, balançando ao léu, davam o colorido ao local, O psicótico R. G. M., 26 anos, do pavilhão 4, ficou responsável pelo som. Nas folgas do trabalho na rua, fazia bico como disc-jóquei nos barzinhos do bairro de Santo Amaro, em São Paulo. Por trás das caixas de som, revelava o segredo do badalado remelexo: é preciso tocar todos os estilos, acompanhando o vigor dos pacientes.
— Para hoje há uma coleção exclusiva de hits românticos — disse ele, mostrando as fitas cassetes.
Enquanto o grupo da faxina dava os retoques finais, a ansiedade movimentava a maioria dos pavilhões. Pacientes ajudavam outros a se vestir e opinavam sobre a roupa que deveriam usar. A maioria não tem muita opção, é verdade, mas vale exibir toda peça diferente do tradicional uniforme. J. O, o seu Simão, achou F. B.
Figura. Nos animados bailes do manicômio, homens e mulheres dançam e trocam carícias.
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Figura mostra um homem e uma mulher de rostos juntos, a mulher usa um óculos escuro.
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S. simples demais. A calça de sarja preta, doada pelo irmão, estava curta, não combinava com o tênis bege. A solução foi tentar arrumar, às pressas, uma peça emprestada de algum colega. Não conseguindo ajuda, seu Simão descolou outra saída: cedeu para o amigo a calça marrom, trocada com um paciente por cigarro, que seria o presente de seu pai no dia da visita. — Depois a gente dá uma lavada e pronto — combinou.
Antes de sair, seu Simão chamou F. B. S. e disse que ainda lhe faltava algo. Remexeu a caixa de papelão, até encontrar o apetrecho final. Separou uma dezena de correntes de prata e colocou no pescoço de E B. 5. O moço se sentiu mais pesado, porém orgulhoso. — Agora sim, rapaz. O mundo é seu — incentivou seu Simão. Cada paciente prepara o seu melhor traje para o dia do baile. O desfile de roupas é excêntrico. Entre os homens, o artista plástico A. C. F. perguntava se realmente não era o mais elegante: camisa de viscose vermelha, calça verde com detalhes azuis e chinelo de couro. Apesar do sol causticante, H. J. usava touca preta e óculos com aros amarelados. V. 5. ., o Sete-léguas, tinha chapéu de boiadeiro e a camisa da seleção brasileira. J. A. P. veio sem camisa, com gravata no pescoço e meia branca na cabeça. C. A. D., descalço, vestia camisa repicada e colada com recortes de jornal. Mais vaidosas, as mulheres demoraram para chegar. O início do baile acontece sempre às 9h da manhã ejá se passava das 10h. Os agentes de segurança escoltam as internas, inscritas dias antes para participar do baile. O trecho entre a colônia feminina e o prédio masculino é percorrido a pé. A maioria desce cantando e traçando planos para
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namorar. São jovens e senhoras de todas as idades, que desfilam com exuberância vestidos coloridos, sapatos altos e óculos escuros.
— Os homens enlouquecem com essa violeta no canto da saia — comentou a paciente J. G. C. em meio a risos.
As mulheres chegam provocando euforia nos pátios, enquanto os funcionários pedem calma. Eles, no entanto, entendem a expectativa dos internos. A porta do salão é aberta para os homens somente quando elas já estão dentro. Poucas têm parceiros fixos; eles podem, até mesmo, ser trocados duas ou três vezes no mesmo dia.
É Dia dos Namorados, mas permite-se um único carinho: o beijo. Qualquer carícia mais ousada é imediatamente censurada pela equipe de disciplina. Uma vez ou outra, algum casal mais atirado tenta escapar para o banheiro. Outra artimanha usual é a prática de sexo oral por baixo das mesas reservadas para o bate-papo.
O arrasta-pé começa com fervor total. Os mais desinibidos logo convidam as moças para dançar. Parte reluta, tenta manter a pose de mulher difícil. O doente mental tem sua dignidade. A troca de olhares é predominante de um lado e de outro. Vorazes, elas utilizam com ansiedade técnicas de sedução. Mexem o cabelo, dançam sensualmente e mandam beijinhos. Os homens observam com olhos clínicos — semelhantes aos que os examinam diariamente para aumentar ou diminuir as doses de remédio.
O pescador L. M. M., o Lázaro, sonhou, naquela noite, que encontraria uma namorada no baile. Encontrou N. S. P., a Esmeralda, sentada sozinha, fumando. Não passava das 11h da manhã. Era ela, tinha convicção. A moça usava gargantilhas de bronze. Como no sonho. Estatura mediana, cheinha, olhos escuros e grandes, cabelos
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longos, levemente avermelhados pelo sol, sorriso bonito e acolhedor, pele morena. Encarava todos como uma guerreira do sertão. Maria Bonita. Era ela, certamente. O sonho dizia: a casa dos dois amantes seria o agreste. Lázaro sentiu-se o próprio Virgulino Ferreira da Silva. Ameaçou dar passos em sua direção, mas voltou atrás. A coragem não era a mesma de Lampião. Saberia Esmeralda da gravidade dos seus surtos? Compreenderia o motivo do assassinato de suas duas ex-mulheres? Elas não amavam como deveriam amar. Lançavam as redes ao mar, limpavam os peixes, cuidavam dos filhos e da casa, mas não o amavam de verdade. Não tinham o sangue sertanejo. Amor fraudulento, enganoso, fajuto. Depois de asfixiar até a morte as duas últimas esposas, Lázaro enterrara os corpos no quintal. Diagnóstico: esquizofrenia hebefrênica. O paciente sofre drásticas alterações afetivas, e seu discurso é cheio de divagações e incoerente, parecendo, aos observadores, vazio de sentido e de sentimento.
— Uma espécie de “apagão”. O tempo pára e a gente mata sem saber — ele próprio define.
Naquele momento, Esmeralda era a oportunidade que lhe aparecia de provar para si mesmo que tudo tinha passado. Pela primeira vez, um baile no manicômio. Não entendia como as coisas funcionavam, mas sonhara. Era suficiente. A distância até sua paixão não somava 5 m. Respirou fundo, deu alguns passos, desistiu. Após o almoço, a oportunidade seria ideal. Voltaram os pacientes, a música, a dança dos casais. Lázaro permaneceu ali parado, fitando Esmeralda. Faltava bravura. A bravura de Lampião. O relógio não pára: quase 2h da tarde. O baile não passa das 3h. Lázaro conversa
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sobre vários assuntos com alguns colegas. Está prestes a desistir, quando surge uma idéia. Aproxima-se, sem pretensão aparente, de Esmeralda. Sua Maria Bonita está só. Ele fecha os olhos como se acometido de um mal-estar e diz:
—Ah! Meu Deus! Que tontura forte! Que náusea! Acho que o doutor exagerou no Diazepam(3).
—Você está bem? — pergunta gentilmente Esmeralda. — Dá para agüentar — responde. Os dois se aproximam no banco gelado de cimento. Esmeralda tenta acalmar Lázaro:
— É assim mesmo. O Neozine que eu tomo dá uma tremedeira danada na perna e na mão. Tem vezes que pareço uma batedeira, dá pra fazer omelete. A conversa toma rumos diferentes. A intimidade começa a surgir. Na hora de ir ao banheiro, Lázaro conta ao repórter, animadamente, que vai roubar um beijo de Esmeralda. Diz que ela gostou do seu “jeitão” e se sentiu feliz por ter feito parte de seu sonho. Que se encantou com a idéia de ser como Maria Bonita. Ele convida a moça para dançar. Corpo com corpo, apertadinhos, sente que aquele é o momento. Afasta os cachos ásperos do cabelo de sua guerreira. Pergunta, suavemente, se pode beijá-la. O silêncio de Esmeralda incomoda Lázaro. Ela passa as unhas malcortadas por suas costas e diz “sim”. Nada mais. Lázaro está nas nuvens. O sertão é aqui. Poderia, enfim, beijar os lábios de uma mulher depois de quatro anos detido. Obrigado, Maria Bonita. Obrigado, Lampião.
Início da nota de rodapé
3. tipo de antipsicórico.
Fim da nota de rodapé
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O sonho da noite anterior é real. Passa uma das mãos sobre a boca, engole a saliva e prepara o golpe decisivo. De repente, como se atingida por um tiro da espingarda do rei do cangaço, Esmeralda vira os olhos e larga subitamente os seus braços. Cai no chão, a língua para fora, debatendo-se. Os enfermeiros atropelam Lázaro, que permanece estático no centro do salão, as mãos meio erguidas. Esmeralda é retirada do local e levada para a enfermaria. Nada grave: mais uma crise convulsiva causada por forte emoção. Lázaro não acredita. Parece contemplar as cabeças mutiladas do casal de sertanejos. Desolado, caminha de volta ao pavilhão. O jeito é aguardar o próximo sonho.
O baile do Dia dos Namorados continua como se nada tivesse acontecido. Casados e solteiros extravasam o sentimento amargo da solidão do manicômio. Às vezes, o acaso prega uma surpresa. Como no baile de fim de ano, em que L. F. A., paciente internada por ser cúmplice da perversão sexual do marido, J. D., divertia-se com um dos esquizofrênicos do pavilhão 4. Os dois pacientes trocavam palavras de carinho quando, inesperadamente ela avistou o marido do outro lado do
Figura. A música tem papel terapêutico no tratamento de psicót icos, paraflóicos e esquizofrênicos.
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Figura mostra alguma pessoas em volta de um homem que está plantando bananeira, literalmente falando de cabeça para baixo.
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salão, aos beijos com uma paciente. L.F.A. mal podia imaginar que J.D. havia sido transferido para o manicômio. Após uma briga passageira, o casal refez as pazes e voltou a conviver dentro das limitações impostas pela instituição. Em dias de baile, o que vale mesmo é esgotar as forças dançando até os últimos minutos. A melodia é eterna. Roberto Carlos canta lentamente: “Não se esqueça, nem um segundo! que eu tenho o amor maior do mundo! como é grande o meu amor por você”. Abraçando o parceiro, sente-se ternura. O coração é aquecido. Nada mais importa. O passado, as dores, as tristezas, O que vale é seguir o ritmo da música.
Paixões ardentes
romance entre os pacientes não termina com os bailes entusiasmados. Inúmeros casais mantêm encontros periódicos durante semanas, meses e até anos consecutivos. A relação se mantém por meio de cartas e encontros fortuitos, que acontecem segundo o calendário das atividades de recreação das colônias masculina e feminina. Há relacionamentos tão sólidos que surpreendem os psiquiatras e a própria direção do hospital. A paixão é um fogo que arde, talvez com a intensidade cantada por Camões, no Manicômio Judiciário.
A maquiadora M. A. T. e o gari C. S. S. se conheceram no baile de carnaval de 1999. No vaivém do animado trenzinho, esbarraram_se entre pierrôs e serpentinas. No mesmo dia, olhos nos olhos, trocaram juras de amor eterno. Dez meses depois, na véspera de Natal, trocaram as alianças de noivado e anunciaram o casamento.
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A notícia empolgou o manicômio. O casal recebeu votos de felicidade de todos os pavilhões. “Estamos torcendo por vocês. Sejam felizes”, dizia o recado do pavilhão 1. O passo seguinte foi brigar na Justiça pela aprovação do pedido. M. A. T. tentou, por intermédio de seus advogados, encaminhar a solicitação ao juiz corregedor, mas não houve resposta. Podia ser o primeiro casamento de enfermos mentais criminosos na história do sistema de saúde mental no Brasil.
— Vou desfrutar da lua-de-mel como desfruto de um belo prato de macarrão com carne moída — sonhava C. S. S.
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