Reportagem no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha



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Com o passar dos meses, os dois foram transferidos para a colônia de desinternação progressiva. Havia chances de ganharem a liberdade mais cedo. M. A. T. chegou, nessa época, a alugar uma casa de dois quartos em bairro distante de Franco da Rocha. Ao mesmo tempo, C. S. S. viveu uma experiência inesquecível: o fim da virgindade. Como os pacientes da desinternação são submetidos a uma espécie de regime semi-aberto, gozam do direito de visitar a família nos finais de semana e feriados. M. A. T. não se acanha ao contar como deflorou o sorridente rapaz:
— Tive de tomar algumas iniciativas. Ele é bem tímido. Eu dizia para incentivar: “Vai, amor! Vai, amor! Você é um leão!” — detalha, com orgulho.
Nem tudo, porém, foi perfeito. Os percalços começaram pela diferença de idade: ela com 43 anos e ele apenas com 27. O temperamento explosivo de M. A. T., que a reconduziu, em julho de 2000, para o regime fechado da colônia feminina, depois de ameaçar de morte outra paciente, tornou-se uma barreira para a
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união civil do casal. Outra complicação foi seu desejo de, após morar um tempo em Franco da Rocha, voltar para a Bela Vista, bairro típico paulistano, onde a prenderam três anos antes. Dependente de drogas, mantinha contato com vários traficantes internacionais. Comercializava os entorpecentes numfiat da zona sui, até que uma das equipes da Delegacia de Narcóticos (Denarc) grampeou seu telefone. Os policiais flagraram a maquiadora quando preparava uma remessa de cocaína para a Europa.

A submissão de C. S. S. também era considerada empecilho. As autoridades temiam que o relacionamento descambasse para uma situação de conflito insustentável e prejudicasse a evolução terapêutica dos dois. Eles, no entanto, demonstravam estar determinados a casar-se.


— C.S.S. foi uma flor que colhi no pântano — derrete-se M.A.T.

Em abril de 2000, três meses antes do retorno da noiva ao regime fechado, C. S. S. conquistou a liberdade. Está desempregado e mora de favor com a mãe e o irmão em Guarulhos, São Paulo. Gasta duas horas entre trem e ônibus para visitar M.A.T. no

Figura. Nos braços do parceiro, casados e solteiros extravasam o ricômodo sentimento de solidão.
(Inicio da descrição)

Figura mostra homem negro e mulher branca dançando vanerão.

(Fim da descrição)
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manicômio, todos os sábados e domingos. Chega às 9h30 e vai embora às 15h, fim do horário de visita. C. S. S. agora proibiu a noiva de participar dos bailes. M. A. T acata a ordem sem discussão. Estéril, ela sonha ter um filho por inseminação artificial. Já consultou especialistas em planejamento fhmiliar e recebeu um alerta:
o noivo sofre de deficiência congênita, o que significa que a possibilidade de nascer uma criança excepcional é de 35%. Isso não parece obstáculo para o casal.

— Ninguém pode separar o que o destino uniu — afirma C. S. S. A paixão é capaz de sustentar o elo entre o paciente e sua mulher, mesmo depois que ele tenha matado, violentado ou praticado algum crime. Em dias de visita, o salão do manicômio é tomado por mulheres desejosas de reencontrar o parceiro. Não se importam com a discriminação dos amigos e conhecidos nem com a enfermidade mental do companheiro.

— É só sair de casa e aparece alguém para perguntar: “Já vai ver o louquinho, vai?”. Fico em silêncio e deixo a raiva passar. Amo meu esposo, ele é o homem da minha vida — afirma L. V. C., esposa de R. M. C., interno do pavilhão 3.
Enquanto desembrulha o pacote de coxinhas e retira da sacola uma garrafa de Coca-Cola, a moça, bem-vestida e de cabelos molhados, conta que é desprezada pelos próprios pais por manter contato com R. M. C. O paciente, de 31 anos, natural de Sorocaba, assassinou dois vizinhos a tiros, impulsionado por uma crise de alucinações. Além da rejeição da família, L. V. C. enfrenta o ambiente hostil do manicômio para trazer roupas e alimentos e passar algumas horas ao lado do marido. Percorre sozinha, a pé, o longo
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caminho até a estação de trem. Economizar a passagem do ônibus significa voltar ao hospital em breve. A cada visita, como já é de praxe, é submetida a uma rigorosa revista na portaria. Os presentes que traz de casa são minuciosamente vasculhados. Há algum tempo chegavam a cortar o bolo e destruir o papel de presente. Agora, o controle de segurança é mais ameno. L. V. C. ergue os braços, enquanto a funcionária escorrega as mãos pelo seu corpo de cima a baixo.
—Vale a pena superar o constrangimento para estar com meu marido — garante.

O fogo do amor é capaz de levar as mulheres dos pacientes de Franco da Rocha a assumir riscos inimagináveis. No início de maio de 2000, um agente penitenciário demonstrou alívio com a chegada da diretora de plantão ao portão das visitas.


— A senhora veio na hora certa. Corra ver com os próprios olhos — disse o funcionário.
Na miúda sala de revista, encurralado numa das paredes, um menino franzino, de 13 anos, sem camisa e com a bermuda entre os tornozelos, olhava assustado a presença da diretora e do carrancudo segurança.
—Abaixa aí, moleque. Mostra o que você trouxe — esbravejou o agente. Dentro da cueca, 26 g de maconha. Do lado de fora da sala, a mãe do menino reclamava da demora na revista. A diretora tentou descobrir do suspeito como conseguira a droga, enquanto caminhava pelos jardins do manicômio. Ele não se abriu, estava com medo de denunciar o traficante. Acionou-se a polícia, descobriu-se
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a verdade: o padrasto, internado havia dois anos por esquizofrenia decorrente do uso de drogas, encomendara a maconha a um amigo. Na delegacia, a mulher tentou justificar a atitude, alegando não poder viver longe do marido.
Mais surpreendente ainda que a coragem — ou insensatez — de perder a liberdade pelo ardor da paixão é a história de amor envolvendo um paciente enfermo mental e duas funcionárias do manicômio. Um mirabolante triângulo amoroso, que compõe o enredo do romance mais intrigante de Franco da Rocha.
A aventura platônica teve início com a internação do lavrador mineiro A. B. S., o Tico, no dia 20 de setembro de 1985. Alcoólatra, ele se embriagava e agredia a mulher, com quem vivia numa pequena casa em Mirandópolis, interior paulista. Na adolescência, já demonstrava sinais de esquizofrenia: ouvia vozes das árvores e dos animais e não conseguia dormir à noite. Certa madrugada de maio de 1981, aos 27 anos, Tico voltou para casa com agudas alucinações. Assim que abriu a porta, derrubou sua mulher no chão e lhe desferiu dezenas de chutes na cabeça. A morte foi instantânea. Os psiquiatras do manicômio concluíram que o paciente possuía uma “cisão da personalidade” e vivia “num mundo irreal de fantasias”.
Depois de dois anos na ociosidade dos pátios, pediu para trabalhar como ajudante de cozinha. Ali conheceu V. F., 45 anos, hoje auxiliar de assistência social do hospital. Na época, a funcionária, divorciada e mãe de dois filhos, desempenhava a função de cozinheira no refeitório masculino. Como chefe de Tico, cobrava do paciente mais agilidade no recolhimento dos pratos e na limpeza
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das mesas. Evitava conversas paralelas ao serviço. Apesar de ser introvertido e falar pouco, Tico sempre foi gentil e galanteador. Passou a elogiar V. E Puxava conversa, respeitosamente, mas sempre de igual para igual.
— Não me intimidava pelo fato de ser paciente. Era nada mais que uma pessoa doente em tratamento — conta Tico, que diz não se considerar atraente.
Enquanto esfregava o pano, o paciente desengonçado observava V. F. mexer uma enorme colher de pau. O avental sobre a cintura e o sorriso maroto encantavam Tico. A intimidade foi aumentando, a ponto de V. E passar a presenteá-lo com tipos diferentes de comida e de roupas. O que ela não sabia é que, ao mesmo tempo, o paciente sedutor conquistava os sentimentos de outra funcionária: a auxiliar de enfermagem V. M., também divorciada e mãe de três filhos. A hora de distribuir os medicamentos nos pavilhões era especial. Os batimentos de seu coração aumentavam e seu rosto suava frio. V. M. e Tico passaram a trocar cartas e a dialogar com maior freqüência. Ingênua, V. E, por sua vez, acreditava pia- mente nas confissões de amor ouvidas todos os dias.
— Pegamos uma amizade muito forte. Ele tinha um excelente papo — relembra V. F.
A escolhida, no entanto, foi V. M. Depois de ganhar a liberdade em setembro de 1989, Tico namorou a moça por alguns meses e logo a convenceu da idéia de morarem juntos na casa dela em Franco da Rocha. Não durou mais de quatro anos. Hoje funcionária da colônia feminina, V. M. não fala do assunto. Ninguém entendeu exatamente o porquê da separação. O que se sabe é que,
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nesse período, ela perdeu um filho e sofreu graves problemas de saúde. Ainda guarda rancor do antigo companheiro.
Nesse tempo, Tico voltou a procurar V. F. Os dois se reencontraram no caminho da estação de trem. O ex-paciente implorou perdão e confessou estar arrependido da decisão tomada no passado, de preferir V. M. Convidou a auxiliar de assistência social para jantar, mas recebeu um “não” como resposta. As tentativas se repetiram, até que V. E cedeu ao convite. Almoçaram em Mairiporã, cidade vizinha a Franco da Rocha, com medo de ser reconhecidos. Tico se declarou apaixonado desde os tempos de faxina no refeitório. V. F. conta que enfrentou uma crise de consciência e precisou de ajuda para tomar uma decisão.
— Era loucura o que estava fazendo. Carregava a culpa por alimentar um sentimento irracional. Havia um conflito dentro de mim entre a razão e a vontade — diz ela. — Passado algum tempo, mudei a forma de encarar as coisas.
Depois de três noites de jantar, o primeiro beijo. Após algumas semanas, a oficialização do namoro e a decisão de morarem juntos. Como no primeiro relacionamento, Tico convenceu V. E a dividir com ele sua casa, situada próximo ao manicômio. Na noite de núpcias, a funcionária novamente ficou insegura quanto à decisão tomada. Ela conta:
—Tinha medo de dormir ao lado de alguém que havia matado a própria mulher. E se ele tentasse o mesmo comigo? Precisaria ser mais rápida e matá-lo primeiro.
As críticas vieram de todos os lados, dos vizinhos e amigos aos colegas de trabalho. Quando Tico chegava ao manicômio para
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buscar V. F., no final do expediente, ouviam-se, pelos corredores, comentários de que ela era “meio doida”. Marcada por altos e baixos, a união durou seis anos. V. E pediu a separação quando o marido roubou seu cartão bancário e efetuou um empréstimo em seu nome. Ainda assim, ela não se arrepende dos anos vividos ao lado do ex-paciente.

— Meu primeiro marido era violento e covarde. Enchia a cara de álcool e agredia a mim e aos meus filhos, todo santo dia. Foi um homem pior que Tico. Não consigo entender quem era o louco.


Uma pessoa bonita
A terapia ocupacional é fator decisivo no tratamento dos doentes mentais em Franco da Rocha, incentivando neles atividades de trabalho e educação desenvolvidas em programas pelo Centro de Assistência Complementar. Há alguns anos, a possibilidade de laborterapia era remota. Em 1980, os terapeutas contratados pelo governo enfrentaram a estrutura debilitada do local para implementar diversos projetos de reabilitação. Os pacientes faziam, então, redes de pescar para um funcionário que atuava como intermediário em algumas empresas. Uma ou outra indústria contratava um grupo reduzido de internos para fixar alças em sacolas plásticas ou costurar bolas de couro. Não pagavam mais que R$ 25,00 a cada um por mês.
As funções disponíveis aos doentes aumentaram a partir de então. Eles se dividem na execução de tarefas como faxina dos pavilhões, limpeza da cozinha, transporte de lixo e serviços de manutenção do prédio.
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Figura. Eu sou uma pessoa muito bonita porque foi o tema do concurso de redação.
(Inicio da descrição)

A figura mostra uma carta, abaixo o texto contido nela.

Redação

Tema: Eu sou uma pessoa muito bonita porque...



Eu sou uma pessoa muito bonita porque sou feitura das Santas mãos do criador e tenho a capacidade de amar, sentir usufruir de toda beleza da vida, sou transparente, posso transmitir ao próximo um pouco de tudo que tenho, não tenho ódio, mágoa, nem rancor, sou pacífico, calmo, tranquilo, não busco ser amado o quanto amo, nem ser compreendido o quanto compreendo, não tenho nenhuma deficiência que me impeça ser bonito, sou alegre, simpático, bem sucedido, realizado, carinhoso, e respeitado.
Estou sempre sorrindo, pois dentro de mim há uma paz maravilhosa, sou educado, inteligente, manso e prudente, desfruto de uma familia maravilhosa, que me ama muito, amo e sou amado.
Posso ocupar todos os espaços que a vida me oferece, sempre distinguindo os respectivos, conheço o meu limite e sei muito bem ministrá-los.
Tenho prazer em fazer o bem sem olhar a quem, sei aplaudir meus amigos e adversários na vitória e na derrota, não tenho inimigos, sou sempre amigo e só tenho amigos, sou de boa sorte e próspero.
Sei superar as horas difíceis, sou conservado, tenho caráter, posso distinguir o certo do errado, sou conhecido e me orgulho muito de ser a pessoa que sou.

Assinado: Pavilhão 01

(Fim da descrição)
Cuidam das rosas e hortaliças plantadas no jardim do hospital e da horta conservada no terreno da colônia de
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desinternação progressiva. No início de 2000, foram selecionados vinte esquizofrênicos em estado crônico para participar do cultivo da terra. O Projeto dos Psicóticos Graves, como é chamado o programa, tem por objetivo reintegrar os enfermos no convívio com colegas e funcionários. As mulheres fazem faxina, enceram o chão e limpam os dormitórios com escovões. Ajudam na cozinha e desenvolvem atividades tradicionalmente femininas: fazem bordados, croché, tricô e almofadas. As oficinas de pano de prato empregam catorze pacientes e produzem mensalmente mais de cem peças, vendidas a preço de custo no bazar montado no manicômio.
A maior conquista dos últimos anos foi a inauguração da metalúrgica destinada exclusivamente aos homens do regime fechado. São vinte pacientes que optam por receber salário mínimo ou uma cesta básica no final do mês. Os internos passam o turno de oito horas na fabricação de móveis para escritório. O epiléptico G. O., internado por tentar assassinar a avó a pauladas, afirma que sua maior alegria é escrever para casa falando da quantidade de poltronas que monta diariamente.
Figura. O maior obstáculo dos profissionais de saúde é evitar a ociosidade dos internados.
(Inicio da descrição)

Figura mostra um homem sentado ao chão ao lado de uma porta de grades com um cadiado.

(Fim da descrição)
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— Conto uma por uma, escrevo no papel e coloco no correio. Suar faz bem. Sinto o remédio sair pelos poros — diz, mostrando com satisfação a cadeira que acabou de parafusar.

O esquizofrênico S. F. E. sustenta a família consertando ferro velho na oficina do manicômio. Os R$ 98,00 que recebe no final do mês manda inteiramente para a mulher e o filho, que moram em Campinas. Apesar de não receber a visita de nenhum dos dois, garante que é uma maneira de redimir-se dos transtornos causados pelo estupro da cunhada em 1996. Parece que isso ajudou a estruturar melhor seus sentimentos.



— O trabalho envolve uma série de movimentos do corpo, penetrando fundamentalmente na vida psicológica — explica Maria Luiza Piolli, diretora de assistência complementar.
Há quem não se importe com a função terapêutica do trabalho e explore a boa-fé dos pacientes e da própria direção do manicômio. Foi o caso da empresa 1KM Indústria e Comércio de Móveis, que em 27 de janeiro de 1998 completaria oito meses de trabalho na instituição, autorizada pelo Estado. A indústria entregava o material, e os pacientes atuavam na confecção de sofás. Naquele dia, os policiais do Departamento de Investigações de Crimes contra o Patrimônio (Depatri) localizaram mais de 50 t de mercadorias roubadas, entre rolos de tecidos, espuma, madeira e estruturas metálicas, que valiam R$ 750 mil, escondidas no galpão de manutenção do hospital. A polícia chegou ali depois de várias queixas de roubo de tecidos dos comerciantes da região do Pari, no centro de São Paulo. O dono da empresa foi indiciado por receptação e cancelou-se a concessão de uso das dependências do manicômio.
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Além do trabalho na metalúrgica e na preservação do edifício, uma parcela mínima dos internos é selecionada para auxiliar as equipes técnicas, os diretores e os assistentes sociais. É o alto escalão na oferta de empregos de Franco da Rocha. As vagas são preenchidas segundo as indicações de bom comportamento e o nível de escolaridade dos concorrentes — requisitos um tanto complicados de encontrar no Manicômio Judiciário, pois a falta de estudo é regra geral entre os enfermos. Cerca de 95% deles não possuem sequer o ensino fundamental e não se interessam ou não têm condições psíquicas de freqüentar a escola.
Esse é outro grande desafio do hospital de custódia: a forma pela qual proporcionar oportunidade de estudo aos doentes mentais, detentores do estigma de bandidos perigosos. A barreira tem sido superada pela equipe da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap), órgão governamental ligado à Secretaria da Administração Penitenciária. Atualmente são 110 alunos-pacientes que assistem às aulas em duas salas instaladas no posto cultural. Uma equipe de monitores, composta por dois estagiários e uma supervisora, realiza esse trabalho. A proposta curricular visa a facilitar o desenvolvimento terapêutico e a explorar ao máximo as potencialidades individuais e coletivas dos alunos, considerando sua experiência pessoal e seu estado mental. Descoberto por meio da prática e da reflexão, o método pedagógico integra as áreas de educação e cultura, criando atividades de arte-educação. São tarefas extraclasse com objetivos específicos, como socialização, criatividade, associação, participação e colaboração.
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— A idéia é atingir a totalidade do indivíduo, ciente de que as circunstâncias em que os alunos vivem podem ou não facilitar o tratamento — afirma Cláudia Nascimento, supervisora da Funap em Franco da Rocha.
Um dos maiores atrativos da escola do manicômio é a biblioteca. O acervo de seiscentos livros, resultado de doações dos últimos anos, fica à disposição dos pacientes. São realizados diariamente cerca de trinta empréstimos. Algumas obras retornam danificadas ou simplesmente não retornam. A sala de leitura, disponível quando não há aula, fica repleta em alguns dias da semana. Os temas mais udos são ficção científica, romances e teses de psiquiatria. Depois de uma semana de atraso, o psicótico R.5.K. entrou carrancudo na biblioteca para fazer a devolução de uma tese sobre psicopatologia. Pediu desculpas pela demora e tentou justificar-se mostrando um calhamaço de anotações. Estava determinado a entender que raio de doença lhe afligia a cabeça. Não acreditava na versão do psiquiatra e se considerava pronto para descobrir por que não era tido como uma pessoa normal.

— Quero saber o que ele quis dizer com esse negócio de “transtorno esquizoafetivo controlado por interações com receptores da

Figura. Há alguns anos, espelhos eram proibidos no manicômio. Os doentes entravam em surto com a mudança da própria imagem.
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Figura mostra a foto de um homem com um espelho na mão, porém virado para o lado contrário.

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dopamina das estruturas subcorticais” — disse R. S. K., indicando um dos rascunhos.

No dia seguinte, foi retirado à força da sala de consulta, depois de quase vinte minutos de discussão com o médico. Os internos da fila começaram a reclamar da demora no atendimento. A. S., 40 anos, pernambucano, bibliotecário do manicômio, não liga mais para esse tipo de contratempo. Para ele, o que realmente importa é o conhecimento que vem dos livros. Detido para tratamento há um ano e dez meses, é um apreciador da leitura. Passa as horas cuidando das obras e lendo sem parar. Conta que desistiu de entender os enigmas da psiquiatria, porque o faziam relembrar o crime daquela madrugada de fevereiro de 1998:


— Ouvi um barulho vindo da janela do quarto. O galo cantava. Era o aviso. Matei minha mulher quando ela dormia. Depois sentei na porta de casa e esperei a polícia chegar.
Agora, sentado atrás da mesa da biblioteca, sonha ganhar novamente a liberdade e tornar-se, um dia, diplomata, engenheiro ou advogado. Por enquanto, conforma-se com o ganha-pão que lhe rende R$ 24,00 por oito horas diárias de trabalho.
Sonhos e delírios como os de A. S. são comuns entre os doentes. Essa foi a conclusão da junta de psicólogosque avaliou as redações do primeiro concurso de literatura do manicômio. Propôs-se como tema a continuação da frase: “Eu sou uma pessoa muito bonita porque...”. Os textos, desde poemas até longas narrações, algumas acompanhadas de desenhos e rabiscos, transmitem a realidade interior dos enfermos. Um dos destaques foi a redação intitulada Reflexo da beleza:
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No meu pobre e imperfeito linguajar posso tentar definir o belo. A vida é bela. Sou apenas reflexo do que eu não posso ser, mas agradeço ao Criador o simples ser que sou. Estou sempre me reerguendo, estou sempre aprendendo e ensinando a viver e apreciar a beleza da vida. Na minha compreensão imperfeita sou fraco, sou forte, sou ignorante, sou inteligente, sou feio, sou bonito. Sou simplesmente o reflexo do Criador. E por isso eu sou uma pessoa muito bonita.
Professor Paranóia
Logo após o carnaval de 2000, a escola da Funap ganhou um LJ colaborador de peso: J. M., o Mussalém, professor aposentado de ciência política da Universidade de Campinas (Unicamp). Isso mesmo: professor de ciência política. Para quem imagina o manicômio como um depósito de loucos, encontrar alguém com a estatura intelectual de Mussalém pode ser ainda mais chocante do que vislumbrar seres maltrapilhos que falam enraivecidos para as paredes ou mordem o próprio corpo. A paranóia é assim: um mal incontido que não escolhe classe social para atacar.
O professor Mussalém chegou a Franco da Rocha no dia 14 de abril de 1999, transferido da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, onde viveu quatro anos numa cela isolada, no pavilhão mais seguro da cadeia. Eram 2h da tarde quando o camburão da Polícia Militar estacionou no portão do hospital. Surgiu, então, lentamente, um senhor alto, forte, de cabelos grisalhos bem aparados,
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fisionomia inofensiva, roupas claras e um par de sandálias de couro. Os olhos castanho-escuros examinaram o portão principal em todo o contorno. Educadamente, cumprimentou com um breve gesto os agentes de segurança e se despediu. Desde então, passou a viver como um exilado. Voltou a estudar e a aprofundar seus conhecimentos por meio de livros que comprava diretamente das editoras via sedex. Tornou-se um dos melhores jogadores de xadrez da história do hospital.
Faltava pouco para o almoço no feriado do Dia do Trabalho, e Mussalém dormia. O pavilhão 1, ala em que mora com 55 pacientes, estava abafado. Não havia na unidade atividades programadas pelo núcleo de recreação. O rádio, instalado na improvisada cabeceira — montada sobre duas caixas de madeira, uma em cima da outra—, tocava suavemente As bodas de Fígaro, de Mozart. A sintonia era a de sempre, de 24 horas por dia na Rádio USP FM. Uma pilha de CDs de música erudita servia de apoio para algumas cebolas partidas e um minúsculo pote de mel. A coletânea Bolero de Ravel é o disco preferido do professor. Sente-se encantado toda vez que ouve a música. Lembra-se invariavelmente da primeira vez em que tais acordes circulantes tomaram seu ouvido, no encerramento do filme Retratos da vida, de Claude Lelouch, e da emoção que sentiu ao contemplar os passos flutuantes do bailarino argentino Jorge Donn, na Torre Eiffel, em Paris.
Naquele Primeiro de Maio, porém, o sono de Mussalém era profundo. Mesmo de bermuda e camisa xadrez de viscose, suava um pouco. A roupa estava limpa. Ele é um dos poucos internos que se dão ao luxo de pagar a outros pacientes para lavar suas trouxas

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