Revisão e Editoração Eletrônica João Carlos de Pinho



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— Tenho a sensação de conhecê-lo.

Sentaram-se. O coração de Daniel batia descompassado. O que es­tava acontecendo com ele? Por que o destino colocara a seu lado aquela mulher que era igual à de seu sonho? Ela dissera odiá-lo. E se fosse verda­de a história de vidas passadas? E se a Lídia de seus sonhos existisse mes­mo e tivesse reencarnado?

Tentou dissimular sua inquietação e conversar normalmente, embo­ra as perguntas continuassem em sua mente sem encontrar resposta. Ha­viam se sentado, e, depois de pedirem bebidas, Rubinho e Marilda foram dançar. Daniel ficou sozinho com Lídia.

Sentia-se emocionado. Ele era um homem de sociedade, habituado ao convívio com moças bonitas e educadas. Ficava muito à vontade com elas e tinha completo domínio de si. Entretanto, diante dessa, não sabia o que dizer nem fazer.

Ela estava linda em seu vestido cor de prata deixando ver as formas perfeitas de seu corpo, e usava um perfume delicado e tão agradável que Daniel aspirou deliciado. Tentou reagir. Ele estava exagerando. Era ape­nas uma coincidência. Tentou conversar:

— Quantos anos você morou no exterior?

— Saímos do Brasil quando eu tinha sete anos e estou voltando ago­ra. Ficamos quinze anos fora. Meu pai é diplomata e tem servido no Itamarati. Agora conseguiu transferência para o Brasil. Minha mãe queria mui­to voltar. Temos família aqui.

— Fica difícil depois de tantos anos. Você deixou amigos e talvez até algum apaixonado lá.

— Deixei amigos, sim. Mas quando a saudade bater vou até lá. No momento preciso me ambientar aqui. Depois de tanto tempo fora, nin­guém me conhece mais.

— Marilda conservou a amizade.

— É. Nossas famílias são muito amigas. Eles nos visitavam e Maril­da passava férias em minha casa.

Eles continuaram conversando e Daniel chegou a esquecer os dois ca­sais que dançavam olhando-os surpreendidos quando se sentaram à mesa novamente e a conversa generalizou-se. Rubinho só tinha olhos para Ma­rilda, enquanto Alberto e Lanira dançavam com animação.

— Para quem foi educado na Inglaterra você dança samba muito bem — comentou ela.

Alberto sorriu.

— Acho que está no sangue. Apesar de viver longe, sempre me in­teressei por tudo que se refere ao Brasil. Adoro nossa música.

— O que pretende fazer quando esse seu caso acabar?

— Quando eu ganhar e tiver em mãos os bens de meu avô, preten­do cuidar de tudo como ele gostaria que eu fizesse.

— Você fala nele como se sempre tivesse estado com ele.

— Gosto muito dele. Depois, ele sempre esteve comigo, mesmo quando eu não sabia nada sobre o passado.

— Você fala isso com tanta certeza!

— É difícil explicar. Mas eu sei que ele continua me ajudando, pro­tegendo, amando, e isso me comove.

— Não será sua necessidade de afeto que o faz criar essa ilusão para fugir de sua solidão?

— Não. Eu o vi várias vezes e sei que ele está comigo. Ilusão é pen­sar que quem morre acaba. A vida continua e eu tenho provas disso.

— É um assunto delicado. Poucas pessoas acreditam nisso.

— Engana-se. Muitos crêem, mas não falam por medo dos precon­ceitos sociais.

— Pode ser mesmo. Nossa sociedade é muito preconceituosa. As aparências é que importam. A verdade é sonegada, encoberta, a tal pon­to que chega uma hora em que ninguém mais sabe distinguir o falso do verdadeiro.

— Quando resolvi reclamar meus direitos, pensei nisso e achei que a minha verdade seria também uma contribuição para desmascarar essa hipocrisia.

— É, você já balançou a vida de muita gente. Até eu acabei entran­do na berlinda.

— Você? Por causa de seu irmão haver saído de casa?

— Não. Por causa de Gabriel. O filho de D. Maria Júlia. Éramos

muito amigos. Depois do escândalo ele cortou relações comigo.

— Você estava namorando-o?

— Não. Mas apreciava sua amizade. É um rapaz inteligente, culto, muito diferente dos almofadinhas que andam por aí.

— Está apaixonada por ele?

— Não. Mas prezo sua amizade.

— Um escândalo desses atinge a família inteira. Os filhos não são culpados pelo que os pais fizeram. Acho mesmo que não sabiam de nada. Quando decidi mover a ação, sabia que isso seria inevitável. Ele falou com você sobre o assunto?

— Não. Simplesmente afastou-se, sem dizer nada. Quando telefono, nunca está. Gostaria de ter conversado com ele, dizer que continuo pre­zando sua amizade. Esperava que ele soubesse separar as coisas.

— Ele pode estar chocado, envergonhado.

— É. Daniel disse a mesma coisa.

Rubinho conversava com Marilda enquanto dançavam:

— Muito bonita sua amiga. Daniel ficou em estado de choque. Marilda sorriu:

— Ela não é só bonita. Tem outros atributos. Tenho certeza de que sua presença marcará época em todo o Rio de Janeiro. Estou até vendo. Dentro de pouco tempo os admiradores não vão dar-lhe sossego.

— Daniel terá que ser rápido.

— Ele está apenas sendo gentil. Aliás, ele tem fama de ser sempre amável, mas de escapar de todas sem se envolver.

Quando voltaram à mesa, Rubinho não se conteve:

— Vocês não dançam?

Daniel estremeceu e olhou o amigo admirado. Ele havia se esque­cido completamente do lugar onde estavam. Estava sendo deselegante com a moça.

— Estávamos conversando. — Virando-se para ela: — Você gosta de dançar?

— Gosto de conversar também — respondeu ela sorrindo. — Não se preocupe. Se eu quisesse dançar, teria dito.

Daniel perdeu o jeito. As moças que conhecia jamais teriam dito isso. Marilda sorriu com um brilho malicioso no olhar.

— Em Nova York os costumes são diferentes. As mulheres são mais naturais. Dizem o que querem sem rodeios.

— Daniel desejou cumprir o protocolo social. Comigo não precisa. Meu conceito de respeito é outro, vai além do formalismo de salão. Não estávamos com vontade de dançar, por que haveríamos de fazer isso?

— E sempre franca desse jeito? — perguntou Daniel.

— Sou. Sempre faço as coisas do meu jeito, como eu gosto. Lanira chegou com Alberto e a conversa generalizou-se. Passava das três quando eles resolveram ir embora. No carro com Lanira, Daniel es­tava pensativo. Ela se admirou:

— Você está tão calado... não gostou do jantar?

— Ao contrário. Foi uma noite muito agradável.

— Pois não parece. Está com uma cara esquisita...

— A vida está brincando comigo. Ainda não voltei a mim da sur­presa. Parece que não aconteceu. Lídia é a mulher que tem me aparecido em sonhos.

— O quê? Estou toda arrepiada! Meu Deus, isso é coisa do outro mundo!

— Só pode ser coincidência. Quando olhei para ela, não sabia o que dizer. Até o nome é o mesmo. No sonho ela se chamava Lídia.

— Coisas estranhas estão se passando conosco. Alberto jura que vê a alma do avô perto dele. Você sonha com a moça antes de conhecê-la. Isso só pode ter uma explicação sobrenatural. Amanhã mesmo falarei com tia Josefa.

— Não sei se devemos...

— Claro que sim. E coincidência demais, você não acha?

— Bom, não nego que é intrigante.

— No outro dia conversei com ela e pedi para nos deixar assistir a uma sessão espírita. Mas ela desconversou, alegando que mamãe pode não gostar.

— Nisso ela tem razão. Ela nunca vai concordar.

— Ela não precisa saber. Somos adultos para decidir o que queremos ou não fazer. Depois, em casa de tia Josefa, o que pode nos acontecer?

— Está certo. Trate de convencê-la e iremos.

— Vamos convidar Alberto e Rubinho.

— Para quê?

— Eles estão interessados nesses assuntos. Depois, se o avô de Al­berto está mesmo com ele, vai ter uma chance de se comunicar. Estou curiosa para ver como é isso.

— Converse com tia Josefa. Diga-lhe que estamos muito interessados em estudar esse assunto. Tenho certeza que ela concordará.

Despediram-se. Daniel foi para casa, deitou-se, mas o sono não vinha. Não conseguia esquecer o rosto expressivo de Lídia. E ao recordar-se dela, seu coração batia descompassado. Ela o atraía intensamente. Estaria im­pressionado pelo sonho? Não era possível estar apaixonado por alguém que acabara de conhecer. Mas apesar de lutar contra, sentia que desejava es­tar com ela, abraçá-la e tê-la junto de si. Era madrugada quando, venci­do pelo cansaço, finalmente adormeceu.

No dia seguinte no escritório, Rubinho não se conteve:

— Confesse, você ficou sem fôlego ao conhecer Lídia. Nunca o vi tão emocionado.

— Pudera, ela é a moça que me apareceu em sonhos! Rubinho olhou-o assustado:

— Tem certeza? Ela acabou de chegar ao Brasil.

— Eu sei. Isso está me intrigando muito. Tenho certeza de que era ela. Até o nome é o mesmo!

— Vamos falar com Julinho.

— Resolvi ir a uma sessão espírita em casa de tia Josefa.

— Gostaria de ir.

— Se ela concordar, tudo bem. Lanira quer convidar Alberto tam­bém, por causa do avô dele.

O telefone tocou e Rubinho atendeu. Era Jonas, que havia chegado de viagem e queria passar no escritório logo após o almoço.

Passava das duas quando ele entrou na sala em que Daniel e Rubi­nho conversavam.

— E então? — indagou Rubinho.

— Boas notícias. Marilena está trabalhando bem. Gravou uma con­versa interessante entre Eleutéria e João.

Animados, os dois dispuseram-se a ouvir.

— "Ele não pode fazer isso comigo" — dizia ela.

— "Estamos tendo paciência demais."

— "Ele alega que não pode despertar suspeitas. Que, se alguém sou­ber do dinheiro que ele me manda, vai desconfiar. Que no momento é tam­bém de meu interesse ficar calada. Fez questão de dizer para eu não esque­cer que também estou atolada até o pescoço nessa história. Que se eu fa­lar vou me arrepender."

— "O cachorro pode dizer que você fez tudo e que ele não sabia de nada! Sabe como é, ele tem o dinheiro, tem poder. É a palavra dele con­tra a sua. Acho mie estamos de mãos amarradas mesmo."

— "Isso não vai ficar assim. Não tenho medo dele. As coisas que eu sei sobre ele valem muito dinheiro. Pola me contou uma porção delas."

— "O que Pola sabe?"

— "Conversas que ela ouviu entre Bóris e algumas pessoas. Se ele quiser me azarar, vai ver só uma coisa."

— "O que você sabe que eu não sei?"

— "O que ele fez com o neto do Dr. Camargo foi pouco perto do que ele fez depois."

Ruído de uma campainha. Jonas desligou a fita.

— Acabou aí. Foi bastante revelador, não acham?

— O que será que ela queria dizer? — indagou Daniel pensativo.

— Eu tenho minhas suspeitas — tornou Jonas. — Tenho experiên­cia. Um criminoso, quando tem um objetivo, afasta todos os obstáculos do caminho. Ele queria a herança. Havia pessoas entre ele e seu objetivo. Ele as eliminou.

— Acha que ele poderia ter matado os pais de Marcelo? — indagou Rubinho.

— É provável. Quando ele decidiu fazer aquela farsa com o meni­no, sabia que precisava fazer mais para conseguir o que queria. E ele fez. É a isso que Eleutéria se refere.

— Por mais incrível que possa parecer, Jonas tem razão — concor­dou Daniel.

Nesse caso, não se trata apenas da usurpação da herança, mas de assassinato — tornou Rubinho.

— Temos que investigar mais. Se as provas aparecerem, tomaremos providências. A situação pode ser pior do que pensávamos. Em todo caso, Marilena está trabalhando bem — disse Daniel.

— Minha intuição não falha. Eu disse que ela era inteligente. Ela vai continuar investigando. Também conversei com um amigo meu da polí­cia internacional. Ele tem conhecidos e ficou de investigar o acidente que matou os pais de Marcelo.

— Isso será ótimo. Sabe que agora não temos dinheiro para gran­des pesquisas — esclareceu Rubinho. — Quando vencermos, todos se­rão gratificados.

— Meu amigo está investigando outro caso e a pista que tem levou-o até Bóris. Quando lhe contei que o estávamos vigiando, prontificou-se em nos ajudar em troca das informações que temos sobre Bóris.

— Esse caso teria alguma coisa a ver com o nosso? — perguntou Daniel.

— Parece que não. Trata-se de algo que ele fez na Europa, antes de vir para o Brasil. Meu amigo é agente internacional.

— Nosso homem é perigoso — tornou Rubinho.

— Percebi isso desde que o vi. Precisamos ter cautela — disse Jonas. — Marcelo tem que ser protegido. Eles tiraram do caminho todos os obs­táculos à fortuna que desejavam. Marcelo agora é o único que falta.

— Acha que ele pode tentar alguma coisa contra Alberto? — per­guntou Daniel.

— Acho. Seria prudente ter alguém protegendo-o.

— Não temos dinheiro para isso. E muito caro — disse Rubinho.

— Converse com ele. Não deve sair à noite e andar por lugares er­mos. Verei se posso fazer alguma coisa — disse Jonas. — Quanto à fita, guarde-a no cofre. Vamos ver se conseguimos algo mais.

Quando Jonas saiu, Daniel comentou:

— Jonas pode estar certo. Bóris pode ter causado o acidente que vi­timou os pais de Marcelo. Ele entendia de barcos, trabalhou em um.

Rubinho ficou pensativo durante alguns instantes, depois disse:

— Estou pensando no que Jonas disse. Se eles causaram o acidente do barco, teriam provocado a morte do Dr. Camargo? Ele também era um obstáculo.

— Dessa forma todas as peças do quebra-cabeças se completam. Só assim o que eles fizeram com o menino poderia ter sentido. Ao substituir o corpo, eles já tinham decidido assassinar os demais.

— Que horror, Daniel! Mas o que você diz tem lógica. Só assim iriam obter os resultados desejados. O que de fato aconteceu.

— Como é que vamos encontrar provas para botar esse pessoal na cadeia?

— Essa é a parte que nos cabe.

— Vamos investigar a morte do Dr. Camargo.

— Jonas disse que iria fazer isso. Podemos recorrer aos jornais da época.

Lanira bateu levemente, abriu a porta, enfiou a cabeça e indagou:

— Posso entrar?

— Entre. Chegou em boa hora — disse Rubinho. Ela entrou e depois de abraçá-los foi dizendo:

— Vim para dizer que tia Josefa concordou. A sessão é amanhã às oito.

— Posso ir também? — indagou Rubinho.

— Você e Alberto.

Colocada a par das novidades, ela não se conteve:

— Puxa! A coisa pode ser pior do que pensávamos. Acham mesmo que ele poderia ter assassinado toda a família?

— A lógica aponta essa suspeita. Precisamos de provas — respon­deu Rubinho.

— Já se passaram muitos anos. Como pensam consegui-las?

— Vamos tentar — esclareceu Daniel. — Se nossas suspeitas se con­firmarem e conseguirmos provas, iremos apresentá-las na justiça.

Lanira ficou pensativa, depois perguntou:

— Uma coisa me intriga nesta história. Se eles mataram todo mun­do, por que não acabaram com Marcelo?

— Já me fiz essa pergunta — respondeu Daniel. — O fato é que D. Maria Júlia levou o menino para o colégio e sustentou-o durante anos, per­manecendo no anonimato.

— Ela disse à diretora do colégio que a vida do menino corria peri­go — lembrou Rubinho.

— Teria ela feito isso para salvá-lo? Nesse caso, nem o marido nem Bóris sabiam. Ela fez isso por conta própria — disse Lanira.

— E quando eles desconfiaram por causa do dinheiro que ela man­dava todos os meses, ela parou de mandar. Faz sentido, Lanira — disse Da­niel. — Por que não pensamos nisso antes?

— Sempre tive de D. Maria Júlia uma boa impressão. Foi um cho­que descobrir que ela era cúmplice do marido nessa história. Pensando bem, se ela salvou a vida de Alberto, começo a me perguntar: teria ela sido cúmplice mesmo ou uma vítima? — disse Rubinho.

— Ela estava com eles naquela noite em que tudo começou — lem­brou Daniel. — Se ela fosse honesta, não teria permitido. Ficou calada, ajudou. Não, Rubinho, ela é cúmplice.

— Seja como for, ela levou Marcelo para longe e isso impediu que eles o matassem.

— Puxa! Não vejo a hora em que tudo se esclareça. É uma histó­ria e tanto.

Lanira despediu-se combinando com Daniel para apanhá-la em casa na noite do dia seguinte.
Na noite seguinte, quando Lanira desceu arrumada para sair, Maria Alice perguntou:

— Onde vai, Lanira?

— Sair com Daniel. Ele ficou de passar aqui às sete meia.

— Aonde vão?

— A casa de alguns amigos.

— Antes vocês nunca saíam juntos. Depois que ele se mudou, vo­cês estão sempre juntos. Você está namorando Rubinho?

Lanira riu gostosamente:

— Rubinho? Que idéia, mamãe. Não estou namorando ninguém.

— Pensei que estivesse namorando Gabriel.

— Pensou errado. Éramos apenas bons amigos.

— Ele não telefonou mais. Deve estar sentido por causa de Daniel. Por falar nisso, como está a situação do Dr. José Luís?

— Não sei, mamãe. Não me envolvo no trabalho de Daniel. Saio com eles porque gosto da companhia. Ouvi um carro parar, acho que eles chegaram.

Ela apanhou a bolsa que estava sobre a cadeira e foi saindo. Maria Ali­ce tornou:

— Não volte tarde. Amanhã você tem aula cedo. Diga a Daniel que eu ainda estou viva. Ele pode entrar quando passar por aqui.

Lanira não respondeu. Quando entrou no carro, Daniel perguntou:

— O que você disse a mamãe?

— Que iríamos visitar alguns amigos. Ela está intrigada com o fato de estarmos saindo juntos. Perguntou sobre o caso de Alberto. Claro que eu despistei.

— É melhor ser discreta — concordou Rubinho. — Por enquanto, temos que ser cautelosos para não prejudicar as investigações.

— Não vejo a hora de poder gritar a verdade aos quatro ventos — disse Alberto.

— Calma — aconselhou Rubinho. — Sua hora chegará, se Deus quiser.

— É que durante tantos anos me senti um enjeitado, sem família, sem origem, e me emociona muito assumir o lugar que é meu na sociedade.

— Infelizmente, mesmo vencendo a causa, você continuará sem fa­mília — tornou Daniel.

— E verdade — ajuntou Lanira. — Os mais chegados morreram, e os que ficaram são seus inimigos. Mesmo vencendo, você estará só.

— Um dia ainda terei minha própria família. Garanto que saberei valorizá-la.

— Jonas está preocupado com você. Acha que nossos inimigos são muito perigosos e farão qualquer coisa para tirá-lo do caminho. Pediu que tenha cuidado, não ande por lugares ermos à noite.

— Sei que se eles pudessem acabariam comigo — respondeu Alber­to. — Mas tenho confiança na proteção espiritual que recebo. Meu avô me protege e nada de mal vai me acontecer.

— Sei — objetou Rubinho —, mas apesar disso nunca é demais to­mar cuidado.

A casa de tia Josefa era um sobradão antigo, sem jardim, com altas janelas dando para a calçada, com caixilho de vidro por fora e portas de madeira abrindo para dentro. Uma entrada lateral para garagem e o por­tão social, alguns degraus de mármore branco e o pequeno terraço onde havia a porta principal.

Foram recebidos carinhosamente por tia Josefa, uma mulher elegan­te, de cabelos castanhos cortados curtos e naturalmente ondulados, boni­ta, desembaraçada, cheia de classe. Beijou os sobrinhos, foi apresentada aos outros dois e conduziu-os a uma sala onde já havia algumas pessoas às quais foram apresentados.

Conversaram durante alguns minutos, chegou mais uma pessoa e por fim Josefa levantou-se dizendo:

— Passemos para a outra sala. Está na hora.

Ela os conduziu a uma sala onde havia uma mesa grande, coberta por uma toalha bordada e sobre ela uma rica bandeja de prata com alguns co­pos, uma jarra de água e alguns livros.

Além dos rapazes e Lanira, havia mais seis pessoas. Todos sentaram-se ao redor da mesa com Josefa na cabeceira.

— Antes de começarmos, devo esclarecer a vocês que vêm pela pri­meira vez que permaneçam em silêncio e nos ajudem com suas orações. Os espíritos que virão conversar conosco são pessoas como nós, já vive­ram aqui e agora estão morando em outro lugar, em um mundo diferente do nosso. Por isso, vamos recebê-los com naturalidade e respeito. Eles po­dem ler nossos pensamentos, enxergar dentro de nossos corpos, perceber coisas que não vemos. Algumas pessoas têm sensibilidade e conseguem vê-los, perceber sua presença, conversar com eles. São os médiuns. Os bons espíritos vêm até nós para nos esclarecer e ajudar. Vamos recebê-los com alegria e serenidade.

Ela apagou a luz e deixou acesa apenas uma pequena luz vermelha em um abajur. Josefa explicou:

— A luz vermelha favorece a que eles se aproximem e possam ma­nipular o ectoplasma, que é a energia que possibilita que eles obtenham efeitos físicos. A luz branca queima grande quantidade de energia e difi­culta a comunicação.

Ela proferiu uma prece, solicitando a presença dos espíritos amigos. De repente, Daniel sentiu-se dominado por uma sensação muito agradá­vel. Apesar da sala fechada, ele se sentiu envolvido por uma brisa leve, suave. Ao mesmo tempo foi dominado pelo sono. Ele nem notou que sua cabeça pendeu e ele adormeceu.

Lanira olhava-o preocupada, mas Josefa, imperturbável, disse:

— Continuemos orando.

Daniel viu-se em uma sala muito espaçosa, mobiliada com gosto, e um homem de meia-idade, sentado atrás de uma escrivaninha, lia uma car­ta com atenção. De onde o conhecia? Vendo-o entrar, o homem levan­tou-se dizendo:

— Há muito o esperava. Ainda bem que veio. Sente-se, precisamos conversar.

Daniel obedeceu, fixando seus olhos nos dele, perguntando-se o que estava acontecendo. Ele se sentou por sua vez e continuou:

— Você não vai lembrar-se do passado agora. Chamei-o aqui por­que preciso de sua ajuda. Há muitos anos demos ouvidos a uma intriga que nos trouxe muita infelicidade. Você expulsou de sua casa seu filho adoti­vo, e eu tirei-lhe todos os bens. Mais tarde arrependemo-nos e o remorso é a maior tortura que nosso espírito pode sofrer. Querendo nos libertar dele, resolvemos juntar nossas forças para tentar refazer nossas vidas e reaver todo o bem que atiramos fora. Você, a mulher amada, eu, a família e o res­peito próprio. Está entendendo o que estou falando?

Daniel queria responder mas não conseguia articular palavra. O ou­tro continuou:

— Quero que preste muita atenção para se lembrar de tudo quando voltar ao corpo. Muitas coisas vão acontecer. Você já reencontrou Lídia, e os outros já estão todos à sua volta. É preciso que não se deixe levar pe­las emoções e que desta vez consiga bom senso para fazer o que combina­mos. Foi muito penoso para mim ter suportado o que suportei tendo que acreditar que meu neto querido estava morto, e depois, quando cheguei aqui, descobrir que havia sido enganado cruelmente pela mesma pessoa que eu havia perdoado e desejado ajudar. Devo dizer que fracassei em meus propósitos de reajustar o passado. Você não pode querer fazer com que os outros mudem só porque você se dispôs a perdoar seus erros e pretendeu esquecer. Eu confiei em quem ainda não estava maduro para uma vida digna e acabei aqui, lamentando minha ingenuidade. Além disso, fui obrigado a presenciar os crimes que eles cometeram sem que eu pudesse intervir. Confesso que não esperava isso. Pensei que minha boa intenção, meus propósitos do bem, seriam suficientes para fazê-los mudar, mas não consegui. Por causa disso, hoje a situação tornou-se ainda mais complica­da. Quando tudo acontecer, eu queria que você se lembrasse de que, seja o que for que houver, deve ajudar Maria Júlia e Gabriel. Eles precisam mui­to de nosso apoio.

Daniel, surpreendido, queria falar, mas não conseguiu.

— Você não está conseguindo responder, mas eu posso ler seus pensamentos. Quer saber por que estou lhe pedindo isso. Porque eles con­tinuam vitimados por José Luís e já têm condições de se libertar. Se quer levar a bom termo esse caso de Marcelo, tem que procurar pelos dois e conversar.

Daniel pensou que nunca faria isso. Eles não iriam confiar. O Dr. Ca­margo continuou:

— Não julgue pelas aparências. Eles estão em dificuldade. Você é a porta da libertação deles. Chamei-o aqui para pedir-lhe que os ajude. Só você pode fazer isso. Não se esqueça: só você pode fazer isso. Essa é sua parte. Não se esqueça.

Daniel sentiu como se estivesse caindo. Seu corpo ficou pesado. A luz da sala se acendeu e ele abriu os olhos. A sessão havia terminado e as pessoas olhavam-no. Ele endireitou o corpo e tentou recordar-se de onde estava. As últimas palavras do homem ainda ecoavam em seus ouvidos.


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