— Tenho a sensação de conhecê-lo.
Sentaram-se. O coração de Daniel batia descompassado. O que estava acontecendo com ele? Por que o destino colocara a seu lado aquela mulher que era igual à de seu sonho? Ela dissera odiá-lo. E se fosse verdade a história de vidas passadas? E se a Lídia de seus sonhos existisse mesmo e tivesse reencarnado?
Tentou dissimular sua inquietação e conversar normalmente, embora as perguntas continuassem em sua mente sem encontrar resposta. Haviam se sentado, e, depois de pedirem bebidas, Rubinho e Marilda foram dançar. Daniel ficou sozinho com Lídia.
Sentia-se emocionado. Ele era um homem de sociedade, habituado ao convívio com moças bonitas e educadas. Ficava muito à vontade com elas e tinha completo domínio de si. Entretanto, diante dessa, não sabia o que dizer nem fazer.
Ela estava linda em seu vestido cor de prata deixando ver as formas perfeitas de seu corpo, e usava um perfume delicado e tão agradável que Daniel aspirou deliciado. Tentou reagir. Ele estava exagerando. Era apenas uma coincidência. Tentou conversar:
— Quantos anos você morou no exterior?
— Saímos do Brasil quando eu tinha sete anos e estou voltando agora. Ficamos quinze anos fora. Meu pai é diplomata e tem servido no Itamarati. Agora conseguiu transferência para o Brasil. Minha mãe queria muito voltar. Temos família aqui.
— Fica difícil depois de tantos anos. Você deixou amigos e talvez até algum apaixonado lá.
— Deixei amigos, sim. Mas quando a saudade bater vou até lá. No momento preciso me ambientar aqui. Depois de tanto tempo fora, ninguém me conhece mais.
— Marilda conservou a amizade.
— É. Nossas famílias são muito amigas. Eles nos visitavam e Marilda passava férias em minha casa.
Eles continuaram conversando e Daniel chegou a esquecer os dois casais que dançavam olhando-os surpreendidos quando se sentaram à mesa novamente e a conversa generalizou-se. Rubinho só tinha olhos para Marilda, enquanto Alberto e Lanira dançavam com animação.
— Para quem foi educado na Inglaterra você dança samba muito bem — comentou ela.
Alberto sorriu.
— Acho que está no sangue. Apesar de viver longe, sempre me interessei por tudo que se refere ao Brasil. Adoro nossa música.
— O que pretende fazer quando esse seu caso acabar?
— Quando eu ganhar e tiver em mãos os bens de meu avô, pretendo cuidar de tudo como ele gostaria que eu fizesse.
— Você fala nele como se sempre tivesse estado com ele.
— Gosto muito dele. Depois, ele sempre esteve comigo, mesmo quando eu não sabia nada sobre o passado.
— Você fala isso com tanta certeza!
— É difícil explicar. Mas eu sei que ele continua me ajudando, protegendo, amando, e isso me comove.
— Não será sua necessidade de afeto que o faz criar essa ilusão para fugir de sua solidão?
— Não. Eu o vi várias vezes e sei que ele está comigo. Ilusão é pensar que quem morre acaba. A vida continua e eu tenho provas disso.
— É um assunto delicado. Poucas pessoas acreditam nisso.
— Engana-se. Muitos crêem, mas não falam por medo dos preconceitos sociais.
— Pode ser mesmo. Nossa sociedade é muito preconceituosa. As aparências é que importam. A verdade é sonegada, encoberta, a tal ponto que chega uma hora em que ninguém mais sabe distinguir o falso do verdadeiro.
— Quando resolvi reclamar meus direitos, pensei nisso e achei que a minha verdade seria também uma contribuição para desmascarar essa hipocrisia.
— É, você já balançou a vida de muita gente. Até eu acabei entrando na berlinda.
— Você? Por causa de seu irmão haver saído de casa?
— Não. Por causa de Gabriel. O filho de D. Maria Júlia. Éramos
muito amigos. Depois do escândalo ele cortou relações comigo.
— Você estava namorando-o?
— Não. Mas apreciava sua amizade. É um rapaz inteligente, culto, muito diferente dos almofadinhas que andam por aí.
— Está apaixonada por ele?
— Não. Mas prezo sua amizade.
— Um escândalo desses atinge a família inteira. Os filhos não são culpados pelo que os pais fizeram. Acho mesmo que não sabiam de nada. Quando decidi mover a ação, sabia que isso seria inevitável. Ele falou com você sobre o assunto?
— Não. Simplesmente afastou-se, sem dizer nada. Quando telefono, nunca está. Gostaria de ter conversado com ele, dizer que continuo prezando sua amizade. Esperava que ele soubesse separar as coisas.
— Ele pode estar chocado, envergonhado.
— É. Daniel disse a mesma coisa.
Rubinho conversava com Marilda enquanto dançavam:
— Muito bonita sua amiga. Daniel ficou em estado de choque. Marilda sorriu:
— Ela não é só bonita. Tem outros atributos. Tenho certeza de que sua presença marcará época em todo o Rio de Janeiro. Estou até vendo. Dentro de pouco tempo os admiradores não vão dar-lhe sossego.
— Daniel terá que ser rápido.
— Ele está apenas sendo gentil. Aliás, ele tem fama de ser sempre amável, mas de escapar de todas sem se envolver.
Quando voltaram à mesa, Rubinho não se conteve:
— Vocês não dançam?
Daniel estremeceu e olhou o amigo admirado. Ele havia se esquecido completamente do lugar onde estavam. Estava sendo deselegante com a moça.
— Estávamos conversando. — Virando-se para ela: — Você gosta de dançar?
— Gosto de conversar também — respondeu ela sorrindo. — Não se preocupe. Se eu quisesse dançar, teria dito.
Daniel perdeu o jeito. As moças que conhecia jamais teriam dito isso. Marilda sorriu com um brilho malicioso no olhar.
— Em Nova York os costumes são diferentes. As mulheres são mais naturais. Dizem o que querem sem rodeios.
— Daniel desejou cumprir o protocolo social. Comigo não precisa. Meu conceito de respeito é outro, vai além do formalismo de salão. Não estávamos com vontade de dançar, por que haveríamos de fazer isso?
— E sempre franca desse jeito? — perguntou Daniel.
— Sou. Sempre faço as coisas do meu jeito, como eu gosto. Lanira chegou com Alberto e a conversa generalizou-se. Passava das três quando eles resolveram ir embora. No carro com Lanira, Daniel estava pensativo. Ela se admirou:
— Você está tão calado... não gostou do jantar?
— Ao contrário. Foi uma noite muito agradável.
— Pois não parece. Está com uma cara esquisita...
— A vida está brincando comigo. Ainda não voltei a mim da surpresa. Parece que não aconteceu. Lídia é a mulher que tem me aparecido em sonhos.
— O quê? Estou toda arrepiada! Meu Deus, isso é coisa do outro mundo!
— Só pode ser coincidência. Quando olhei para ela, não sabia o que dizer. Até o nome é o mesmo. No sonho ela se chamava Lídia.
— Coisas estranhas estão se passando conosco. Alberto jura que vê a alma do avô perto dele. Você sonha com a moça antes de conhecê-la. Isso só pode ter uma explicação sobrenatural. Amanhã mesmo falarei com tia Josefa.
— Não sei se devemos...
— Claro que sim. E coincidência demais, você não acha?
— Bom, não nego que é intrigante.
— No outro dia conversei com ela e pedi para nos deixar assistir a uma sessão espírita. Mas ela desconversou, alegando que mamãe pode não gostar.
— Nisso ela tem razão. Ela nunca vai concordar.
— Ela não precisa saber. Somos adultos para decidir o que queremos ou não fazer. Depois, em casa de tia Josefa, o que pode nos acontecer?
— Está certo. Trate de convencê-la e iremos.
— Vamos convidar Alberto e Rubinho.
— Para quê?
— Eles estão interessados nesses assuntos. Depois, se o avô de Alberto está mesmo com ele, vai ter uma chance de se comunicar. Estou curiosa para ver como é isso.
— Converse com tia Josefa. Diga-lhe que estamos muito interessados em estudar esse assunto. Tenho certeza que ela concordará.
Despediram-se. Daniel foi para casa, deitou-se, mas o sono não vinha. Não conseguia esquecer o rosto expressivo de Lídia. E ao recordar-se dela, seu coração batia descompassado. Ela o atraía intensamente. Estaria impressionado pelo sonho? Não era possível estar apaixonado por alguém que acabara de conhecer. Mas apesar de lutar contra, sentia que desejava estar com ela, abraçá-la e tê-la junto de si. Era madrugada quando, vencido pelo cansaço, finalmente adormeceu.
No dia seguinte no escritório, Rubinho não se conteve:
— Confesse, você ficou sem fôlego ao conhecer Lídia. Nunca o vi tão emocionado.
— Pudera, ela é a moça que me apareceu em sonhos! Rubinho olhou-o assustado:
— Tem certeza? Ela acabou de chegar ao Brasil.
— Eu sei. Isso está me intrigando muito. Tenho certeza de que era ela. Até o nome é o mesmo!
— Vamos falar com Julinho.
— Resolvi ir a uma sessão espírita em casa de tia Josefa.
— Gostaria de ir.
— Se ela concordar, tudo bem. Lanira quer convidar Alberto também, por causa do avô dele.
O telefone tocou e Rubinho atendeu. Era Jonas, que havia chegado de viagem e queria passar no escritório logo após o almoço.
Passava das duas quando ele entrou na sala em que Daniel e Rubinho conversavam.
— E então? — indagou Rubinho.
— Boas notícias. Marilena está trabalhando bem. Gravou uma conversa interessante entre Eleutéria e João.
Animados, os dois dispuseram-se a ouvir.
— "Ele não pode fazer isso comigo" — dizia ela.
— "Estamos tendo paciência demais."
— "Ele alega que não pode despertar suspeitas. Que, se alguém souber do dinheiro que ele me manda, vai desconfiar. Que no momento é também de meu interesse ficar calada. Fez questão de dizer para eu não esquecer que também estou atolada até o pescoço nessa história. Que se eu falar vou me arrepender."
— "O cachorro pode dizer que você fez tudo e que ele não sabia de nada! Sabe como é, ele tem o dinheiro, tem poder. É a palavra dele contra a sua. Acho mie estamos de mãos amarradas mesmo."
— "Isso não vai ficar assim. Não tenho medo dele. As coisas que eu sei sobre ele valem muito dinheiro. Pola me contou uma porção delas."
— "O que Pola sabe?"
— "Conversas que ela ouviu entre Bóris e algumas pessoas. Se ele quiser me azarar, vai ver só uma coisa."
— "O que você sabe que eu não sei?"
— "O que ele fez com o neto do Dr. Camargo foi pouco perto do que ele fez depois."
Ruído de uma campainha. Jonas desligou a fita.
— Acabou aí. Foi bastante revelador, não acham?
— O que será que ela queria dizer? — indagou Daniel pensativo.
— Eu tenho minhas suspeitas — tornou Jonas. — Tenho experiência. Um criminoso, quando tem um objetivo, afasta todos os obstáculos do caminho. Ele queria a herança. Havia pessoas entre ele e seu objetivo. Ele as eliminou.
— Acha que ele poderia ter matado os pais de Marcelo? — indagou Rubinho.
— É provável. Quando ele decidiu fazer aquela farsa com o menino, sabia que precisava fazer mais para conseguir o que queria. E ele fez. É a isso que Eleutéria se refere.
— Por mais incrível que possa parecer, Jonas tem razão — concordou Daniel.
— Nesse caso, não se trata apenas da usurpação da herança, mas de assassinato — tornou Rubinho.
— Temos que investigar mais. Se as provas aparecerem, tomaremos providências. A situação pode ser pior do que pensávamos. Em todo caso, Marilena está trabalhando bem — disse Daniel.
— Minha intuição não falha. Eu disse que ela era inteligente. Ela vai continuar investigando. Também conversei com um amigo meu da polícia internacional. Ele tem conhecidos e ficou de investigar o acidente que matou os pais de Marcelo.
— Isso será ótimo. Sabe que agora não temos dinheiro para grandes pesquisas — esclareceu Rubinho. — Quando vencermos, todos serão gratificados.
— Meu amigo está investigando outro caso e a pista que tem levou-o até Bóris. Quando lhe contei que o estávamos vigiando, prontificou-se em nos ajudar em troca das informações que temos sobre Bóris.
— Esse caso teria alguma coisa a ver com o nosso? — perguntou Daniel.
— Parece que não. Trata-se de algo que ele fez na Europa, antes de vir para o Brasil. Meu amigo é agente internacional.
— Nosso homem é perigoso — tornou Rubinho.
— Percebi isso desde que o vi. Precisamos ter cautela — disse Jonas. — Marcelo tem que ser protegido. Eles tiraram do caminho todos os obstáculos à fortuna que desejavam. Marcelo agora é o único que falta.
— Acha que ele pode tentar alguma coisa contra Alberto? — perguntou Daniel.
— Acho. Seria prudente ter alguém protegendo-o.
— Não temos dinheiro para isso. E muito caro — disse Rubinho.
— Converse com ele. Não deve sair à noite e andar por lugares ermos. Verei se posso fazer alguma coisa — disse Jonas. — Quanto à fita, guarde-a no cofre. Vamos ver se conseguimos algo mais.
Quando Jonas saiu, Daniel comentou:
— Jonas pode estar certo. Bóris pode ter causado o acidente que vitimou os pais de Marcelo. Ele entendia de barcos, trabalhou em um.
Rubinho ficou pensativo durante alguns instantes, depois disse:
— Estou pensando no que Jonas disse. Se eles causaram o acidente do barco, teriam provocado a morte do Dr. Camargo? Ele também era um obstáculo.
— Dessa forma todas as peças do quebra-cabeças se completam. Só assim o que eles fizeram com o menino poderia ter sentido. Ao substituir o corpo, eles já tinham decidido assassinar os demais.
— Que horror, Daniel! Mas o que você diz tem lógica. Só assim iriam obter os resultados desejados. O que de fato aconteceu.
— Como é que vamos encontrar provas para botar esse pessoal na cadeia?
— Essa é a parte que nos cabe.
— Vamos investigar a morte do Dr. Camargo.
— Jonas disse que iria fazer isso. Podemos recorrer aos jornais da época.
Lanira bateu levemente, abriu a porta, enfiou a cabeça e indagou:
— Posso entrar?
— Entre. Chegou em boa hora — disse Rubinho. Ela entrou e depois de abraçá-los foi dizendo:
— Vim para dizer que tia Josefa concordou. A sessão é amanhã às oito.
— Posso ir também? — indagou Rubinho.
— Você e Alberto.
Colocada a par das novidades, ela não se conteve:
— Puxa! A coisa pode ser pior do que pensávamos. Acham mesmo que ele poderia ter assassinado toda a família?
— A lógica aponta essa suspeita. Precisamos de provas — respondeu Rubinho.
— Já se passaram muitos anos. Como pensam consegui-las?
— Vamos tentar — esclareceu Daniel. — Se nossas suspeitas se confirmarem e conseguirmos provas, iremos apresentá-las na justiça.
Lanira ficou pensativa, depois perguntou:
— Uma coisa me intriga nesta história. Se eles mataram todo mundo, por que não acabaram com Marcelo?
— Já me fiz essa pergunta — respondeu Daniel. — O fato é que D. Maria Júlia levou o menino para o colégio e sustentou-o durante anos, permanecendo no anonimato.
— Ela disse à diretora do colégio que a vida do menino corria perigo — lembrou Rubinho.
— Teria ela feito isso para salvá-lo? Nesse caso, nem o marido nem Bóris sabiam. Ela fez isso por conta própria — disse Lanira.
— E quando eles desconfiaram por causa do dinheiro que ela mandava todos os meses, ela parou de mandar. Faz sentido, Lanira — disse Daniel. — Por que não pensamos nisso antes?
— Sempre tive de D. Maria Júlia uma boa impressão. Foi um choque descobrir que ela era cúmplice do marido nessa história. Pensando bem, se ela salvou a vida de Alberto, começo a me perguntar: teria ela sido cúmplice mesmo ou uma vítima? — disse Rubinho.
— Ela estava com eles naquela noite em que tudo começou — lembrou Daniel. — Se ela fosse honesta, não teria permitido. Ficou calada, ajudou. Não, Rubinho, ela é cúmplice.
— Seja como for, ela levou Marcelo para longe e isso impediu que eles o matassem.
— Puxa! Não vejo a hora em que tudo se esclareça. É uma história e tanto.
Lanira despediu-se combinando com Daniel para apanhá-la em casa na noite do dia seguinte.
Na noite seguinte, quando Lanira desceu arrumada para sair, Maria Alice perguntou:
— Onde vai, Lanira?
— Sair com Daniel. Ele ficou de passar aqui às sete meia.
— Aonde vão?
— A casa de alguns amigos.
— Antes vocês nunca saíam juntos. Depois que ele se mudou, vocês estão sempre juntos. Você está namorando Rubinho?
Lanira riu gostosamente:
— Rubinho? Que idéia, mamãe. Não estou namorando ninguém.
— Pensei que estivesse namorando Gabriel.
— Pensou errado. Éramos apenas bons amigos.
— Ele não telefonou mais. Deve estar sentido por causa de Daniel. Por falar nisso, como está a situação do Dr. José Luís?
— Não sei, mamãe. Não me envolvo no trabalho de Daniel. Saio com eles porque gosto da companhia. Ouvi um carro parar, acho que eles chegaram.
Ela apanhou a bolsa que estava sobre a cadeira e foi saindo. Maria Alice tornou:
— Não volte tarde. Amanhã você tem aula cedo. Diga a Daniel que eu ainda estou viva. Ele pode entrar quando passar por aqui.
Lanira não respondeu. Quando entrou no carro, Daniel perguntou:
— O que você disse a mamãe?
— Que iríamos visitar alguns amigos. Ela está intrigada com o fato de estarmos saindo juntos. Perguntou sobre o caso de Alberto. Claro que eu despistei.
— É melhor ser discreta — concordou Rubinho. — Por enquanto, temos que ser cautelosos para não prejudicar as investigações.
— Não vejo a hora de poder gritar a verdade aos quatro ventos — disse Alberto.
— Calma — aconselhou Rubinho. — Sua hora chegará, se Deus quiser.
— É que durante tantos anos me senti um enjeitado, sem família, sem origem, e me emociona muito assumir o lugar que é meu na sociedade.
— Infelizmente, mesmo vencendo a causa, você continuará sem família — tornou Daniel.
— E verdade — ajuntou Lanira. — Os mais chegados morreram, e os que ficaram são seus inimigos. Mesmo vencendo, você estará só.
— Um dia ainda terei minha própria família. Garanto que saberei valorizá-la.
— Jonas está preocupado com você. Acha que nossos inimigos são muito perigosos e farão qualquer coisa para tirá-lo do caminho. Pediu que tenha cuidado, não ande por lugares ermos à noite.
— Sei que se eles pudessem acabariam comigo — respondeu Alberto. — Mas tenho confiança na proteção espiritual que recebo. Meu avô me protege e nada de mal vai me acontecer.
— Sei — objetou Rubinho —, mas apesar disso nunca é demais tomar cuidado.
A casa de tia Josefa era um sobradão antigo, sem jardim, com altas janelas dando para a calçada, com caixilho de vidro por fora e portas de madeira abrindo para dentro. Uma entrada lateral para garagem e o portão social, alguns degraus de mármore branco e o pequeno terraço onde havia a porta principal.
Foram recebidos carinhosamente por tia Josefa, uma mulher elegante, de cabelos castanhos cortados curtos e naturalmente ondulados, bonita, desembaraçada, cheia de classe. Beijou os sobrinhos, foi apresentada aos outros dois e conduziu-os a uma sala onde já havia algumas pessoas às quais foram apresentados.
Conversaram durante alguns minutos, chegou mais uma pessoa e por fim Josefa levantou-se dizendo:
— Passemos para a outra sala. Está na hora.
Ela os conduziu a uma sala onde havia uma mesa grande, coberta por uma toalha bordada e sobre ela uma rica bandeja de prata com alguns copos, uma jarra de água e alguns livros.
Além dos rapazes e Lanira, havia mais seis pessoas. Todos sentaram-se ao redor da mesa com Josefa na cabeceira.
— Antes de começarmos, devo esclarecer a vocês que vêm pela primeira vez que permaneçam em silêncio e nos ajudem com suas orações. Os espíritos que virão conversar conosco são pessoas como nós, já viveram aqui e agora estão morando em outro lugar, em um mundo diferente do nosso. Por isso, vamos recebê-los com naturalidade e respeito. Eles podem ler nossos pensamentos, enxergar dentro de nossos corpos, perceber coisas que não vemos. Algumas pessoas têm sensibilidade e conseguem vê-los, perceber sua presença, conversar com eles. São os médiuns. Os bons espíritos vêm até nós para nos esclarecer e ajudar. Vamos recebê-los com alegria e serenidade.
Ela apagou a luz e deixou acesa apenas uma pequena luz vermelha em um abajur. Josefa explicou:
— A luz vermelha favorece a que eles se aproximem e possam manipular o ectoplasma, que é a energia que possibilita que eles obtenham efeitos físicos. A luz branca queima grande quantidade de energia e dificulta a comunicação.
Ela proferiu uma prece, solicitando a presença dos espíritos amigos. De repente, Daniel sentiu-se dominado por uma sensação muito agradável. Apesar da sala fechada, ele se sentiu envolvido por uma brisa leve, suave. Ao mesmo tempo foi dominado pelo sono. Ele nem notou que sua cabeça pendeu e ele adormeceu.
Lanira olhava-o preocupada, mas Josefa, imperturbável, disse:
— Continuemos orando.
Daniel viu-se em uma sala muito espaçosa, mobiliada com gosto, e um homem de meia-idade, sentado atrás de uma escrivaninha, lia uma carta com atenção. De onde o conhecia? Vendo-o entrar, o homem levantou-se dizendo:
— Há muito o esperava. Ainda bem que veio. Sente-se, precisamos conversar.
Daniel obedeceu, fixando seus olhos nos dele, perguntando-se o que estava acontecendo. Ele se sentou por sua vez e continuou:
— Você não vai lembrar-se do passado agora. Chamei-o aqui porque preciso de sua ajuda. Há muitos anos demos ouvidos a uma intriga que nos trouxe muita infelicidade. Você expulsou de sua casa seu filho adotivo, e eu tirei-lhe todos os bens. Mais tarde arrependemo-nos e o remorso é a maior tortura que nosso espírito pode sofrer. Querendo nos libertar dele, resolvemos juntar nossas forças para tentar refazer nossas vidas e reaver todo o bem que atiramos fora. Você, a mulher amada, eu, a família e o respeito próprio. Está entendendo o que estou falando?
Daniel queria responder mas não conseguia articular palavra. O outro continuou:
— Quero que preste muita atenção para se lembrar de tudo quando voltar ao corpo. Muitas coisas vão acontecer. Você já reencontrou Lídia, e os outros já estão todos à sua volta. É preciso que não se deixe levar pelas emoções e que desta vez consiga bom senso para fazer o que combinamos. Foi muito penoso para mim ter suportado o que suportei tendo que acreditar que meu neto querido estava morto, e depois, quando cheguei aqui, descobrir que havia sido enganado cruelmente pela mesma pessoa que eu havia perdoado e desejado ajudar. Devo dizer que fracassei em meus propósitos de reajustar o passado. Você não pode querer fazer com que os outros mudem só porque você se dispôs a perdoar seus erros e pretendeu esquecer. Eu confiei em quem ainda não estava maduro para uma vida digna e acabei aqui, lamentando minha ingenuidade. Além disso, fui obrigado a presenciar os crimes que eles cometeram sem que eu pudesse intervir. Confesso que não esperava isso. Pensei que minha boa intenção, meus propósitos do bem, seriam suficientes para fazê-los mudar, mas não consegui. Por causa disso, hoje a situação tornou-se ainda mais complicada. Quando tudo acontecer, eu queria que você se lembrasse de que, seja o que for que houver, deve ajudar Maria Júlia e Gabriel. Eles precisam muito de nosso apoio.
Daniel, surpreendido, queria falar, mas não conseguiu.
— Você não está conseguindo responder, mas eu posso ler seus pensamentos. Quer saber por que estou lhe pedindo isso. Porque eles continuam vitimados por José Luís e já têm condições de se libertar. Se quer levar a bom termo esse caso de Marcelo, tem que procurar pelos dois e conversar.
Daniel pensou que nunca faria isso. Eles não iriam confiar. O Dr. Camargo continuou:
— Não julgue pelas aparências. Eles estão em dificuldade. Você é a porta da libertação deles. Chamei-o aqui para pedir-lhe que os ajude. Só você pode fazer isso. Não se esqueça: só você pode fazer isso. Essa é sua parte. Não se esqueça.
Daniel sentiu como se estivesse caindo. Seu corpo ficou pesado. A luz da sala se acendeu e ele abriu os olhos. A sessão havia terminado e as pessoas olhavam-no. Ele endireitou o corpo e tentou recordar-se de onde estava. As últimas palavras do homem ainda ecoavam em seus ouvidos.
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