Revisão e Editoração Eletrônica João Carlos de Pinho



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— Isso mesmo — reforçou Rubinho. — Mesmo que ele agora veja reconhecidos seus direitos e receba sua fortuna de volta, quem poderá de­volver-lhe o carinho da família, o amor do avô que morreu de desgosto, a companhia dos pais que nunca teve?

— Por que vocês não contam logo toda essa história? — disse outro repórter.

— Não podemos fazer isso. É um direito de nosso cliente. Ele só o fará se quiser. Portanto vocês precisam aguardar uma resposta dele — res­pondeu Rubinho.

— Não pode ligar para ele e conseguir que venha aqui agora?

— Terão que esperar até amanhã cedo — disse Daniel.

— Amanhã o jornal já estará na rua.

— É amanhã ou nada — garantiu Rubinho.

— Está bem — disse o repórter que perguntara mais. — Voltaremos amanhã cedo.

Depois de algumas tentativas de descobrirem mais alguma coisa, ven­do a determinação dos dois em não ir além do que haviam dito, final­mente foram embora. Depois que eles saíram, Rubinho ligou para Alber­to contando-lhe tudo. Ele ficou de ir para lá imediatamente a fim de com­binarem o que ele deveria dizer na entrevista do dia seguinte.

Tanto Rubinho quanto Daniel achavam importante criar uma at­mosfera favorável na imprensa. Se a opinião pública ficasse do lado de­les, seria uma pressão a mais para ganhar a causa. Não seria difícil conse­guir isso.

A história de Alberto casava-se bem ao sentimentalismo das pes­soas. Quem ousaria ficar contra o pobre menino que fora impedido de vi­ver com a família, segregado em um colégio distante e lesado em sua for­tuna? Eles contavam com isso para ganhar a causa. Depois, um escânda­lo desses era um prato cheio para a maldade dos que nunca haviam con­seguido sair da mediocridade e se alegravam com a queda de alguém que brilhava na sociedade.

O telefone tocou e Rubinho atendeu:

— É para você. Seu pai. Daniel atendeu:

— Alô.

— Que história é essa que estão comentando? Que loucura você e Rubinho estão fazendo? Perderam o juízo?



— Não, pai. Estamos cuidando dos direitos de nosso cliente.

— Onde você pensa que vai, atacando dessa forma nossos amigos, pessoas de nossa melhor sociedade? José Luís me ligou e eu fiquei de cara no chão. Onde já se viu? Ele sempre foi nosso amigo, apoiou minhas cam­panhas políticas, é pessoa de bem. Como pôde fazer uma coisa dessas?

— Não tenho nada contra o Dr. Camargo como pessoa de nossa amizade, mas nosso cliente foi espoliado e estamos apenas defendendo seus direitos.

— Pois você vai agora mesmo retirar essa queixa da justiça, alegar que estava enganado e que nada há contra José Luís.

— Não vou fazer isso, pai. Sinto muito se ele é seu amigo, mas te­mos provas suficientes para ganhar essa causa e não vamos desistir.

— Você está sendo ingênuo. Provavelmente foi iludido. Eu e sua mãe fomos ao enterro de Marcelo e não acredito que ele possa estar vivo. Vocês estão envolvidos em uma fraude. Saia disso enquanto é tempo. Você vai ser riscado da profissão, terá seu diploma de bacharel cassado com­pactuando com uma leviandade dessas.

— Não vou desistir, pai. A justiça será feita. O Dr. Camargo terá que devolver a Marcelo tudo que lhe tirou. Ainda assim, estará fazendo pouco, uma vez que nunca poderá dar-lhe o carinho da família e tudo quanto ele perdeu quando o levaram embora do Brasil e esconderam-no na Inglaterra.

Apanhado de surpresa, Antônio hesitou um pouco ao responder:

— De onde tirou essa idéia? De algum romance de folhetim?

— Não, pai. Foi o próprio Marcelo quem nos contou tudo quanto fizeram com ele.

— E você acreditou! Que ingenuidade! Pois eu o proíbo de conti­nuar com esse caso que está colocando nosso nome no ridículo. Você vai já retirar essa queixa e dizer aos jornais que estava enganado.

— Não vou fazer isso de forma alguma. Estamos convencidos da veracidade dos fatos e nada nos fará recuar agora. Pensamos muito antes de aceitar essa causa. Tanto eu quanto Rubinho questionamos exaustiva­mente. De um lado uma família da sociedade, com a qual nossas famílias mantêm as melhores relações; de outro a pessoa injustiçada, espoliada, de quem tudo foi roubado. Optamos por defender o fraco, o oprimido, e fazer justiça. Não foi para isso que nos bacharelamos e prestamos nosso juramento?

— O que você diz me assusta. Como pode ser tão inocente? Não vê que José Luís vai contratar o melhor advogado e que vocês serão massa­crados por ele? Acha que dois principiantes como vocês vão poder desa­fiar os mestres do Direito e ganhar?

— Estamos com os fatos. Vamos ganhar porque estamos do lado da verdade!

— Vocês estão enganados. Precisamos conversar. Venha para casa com Rubinho e vamos resolver essa questão de uma vez antes que acon­teça coisa pior.

— Podemos conversar quando quiser. Mas nada nos fará mudar de idéia agora. Estamos determinados. Iremos até o fim.

— Se fizer isso, não vai contar comigo! Corto sua mesada e as nos­sas relações. Não quero compactuar com sua decadência. Quero que fique bem claro para todos que não estou de acordo com suas atitudes. Vou fi­car do lado de José Luís, doa a quem doer.

— É um direito seu. Posso compreender sua atitude, entretanto eu esperava que você, sempre se colocando como um defensor do povo, dos pobres e dos oprimidos, ficasse do nosso lado. Entretanto você prefere o outro lado. Espero que nunca venha a se arrepender dessa atitude.

Antônio irritou-se:

— Pare com esse pieguismo barato! Não admito que fale dessa for­ma comigo e que me desobedeça. Você vai acabar com essa história o quanto antes!

— E se eu não quiser?

— Não mais o terei como filho.

— Sinto muito, papai, que pense assim. Hoje à noite passarei em casa para apanhar minhas coisas.

— Pensou bem no que está fazendo?

— Pensei.

— Pois continue pensando até a noite. Ainda pode mudar de idéia. Estarei esperando.

— Está bem, papai.

Ele desligou e Rubinho considerou:

— A carga já começou. Pelo jeito vamos ter que nos mudar mesmo. Meu pai vai tomar a mesma atitude.

— Já esperava que ele fosse reagir dessa forma. Ele não entende nos­sa postura. Sempre cuidou muito das aparências, preocupa-se em conquis­tar a amizade das pessoas influentes e poderosas. Se eu não desistir, vai cor­tar a mesada e as relações comigo.

— O que vai fazer?

— Se ele continuar fazendo essas exigências, hoje à noite vou apa­nhar todas as minhas coisas e me mudar para um hotel. Amanhã procu­rarei um pequeno apartamento para alugar.

— Algo está me dizendo que terei que fazer o mesmo. Meu pai tam­bém não vai acreditar que possamos vencer essa parada.

— Ele ainda não ligou.

— Vai esperar eu chegar em casa para conversar pessoalmente. Sei como ele age. Vai tentar convencer-me a desistir. Como não vou fazer o que ele quer, vai pressionar da mesma forma que seu pai e terei que sair de casa também.

— Seja como for, estamos jogando tudo e não podemos desistir de forma alguma.

— Isso. A razão e a verdade estão de nosso lado. Vai dar tudo certo.

Antônio desligou o telefone nervoso.

— É verdade mesmo? — perguntou Maria Alice preocupada.

— É. Ele está cego. Imagine você que quer enfrentar José Luís na jus­tiça! Vão fazer picadinho deles, dois ingênuos e inexperientes moleques. O pior é que ele me enfrentou. Chegou até a questionar minha platafor­ma política, cobrando atitudes de campanha. Imagine você como ele está desorientado! Ah, mas eu não deixei por menos. Hoje à noite ele terá que desistir dessa loucura.

— E se ele não quiser?

— Acha que terá como me enfrentar? Corto a mesada, ponho-o na rua por alguns dias e logo verá que toda sua arrogância desaparece. Vai fa­zer tudo que eu quiser!

Maria Alice olhou-o e não escondeu a preocupação. Sabia que Da­niel era dócil e fácil de levar, mas que, quando queria uma coisa, ninguém conseguia demovê-lo.

— Daniel é impulsivo. Sua política está sendo muito radical. Com jeito poderia conseguir mais dele.

— Tive muita paciência. Aliás foi você quem me convenceu a es­perar quando ele começou com essa idéia maluca junto com aquele descabeçado do Rubinho. Se eu tivesse tomado uma atitude drástica logo no início, as coisas não teriam chegado a este ponto. Sinto muito, Maria Ali­ce, mas desta vez vou fazer do meu jeito. Ele terá que me obedecer.

— Ele já é um homem. Não é mais um menino que você pode man­dar e ele terá que obedecer.

— Sou seu pai. Terá que me ouvir. Estou resolvido. Se ele não qui­ser desistir dessa idéia maluca de processar José Luís com essa história in­ventada por algum malandro, vou esquecer que ele é meu filho.

— Você não fará isso!

— Farei, sim. E você não vai impedir-me.

Lanira na outra sala ouvia com interesse. Sabia que isso teria que acontecer, esperava que seu pai reagisse dessa forma e torcia para que Da­niel se mantivesse firme. Apesar disso, pensava em Gabriel e sentia um aperto no coração. Como ele reagiria a essa história? Apegado à família, apaixonado pela mãe, cortaria as relações com ela?

Durante aqueles meses Lanira aprendera a admirar Gabriel. Gosta­va dele. Esforçava-se para não misturar as coisas. Acreditava que Alber­to estivesse falando a verdade e que Daniel e Rubinho estavam certos em defendê-lo, mas não queria magoar Gabriel. Se ficasse provada a culpa de José Luís, seu nome ficaria manchado e essa situação certamente atingi­ria toda a família. Lanira ficava dividida. De um lado queria que Daniel vencesse; de outro não queria que Gabriel sofresse. Teve vontade de te­lefonar para ele, porém conteve-se. Melhor fingir que não sabia de nada e esperar que ele ligasse.

Passava das oito quando Daniel chegou em casa. Maria Alice, preo­cupada, tentou conversar:

— Meu filho! Seu pai está arrasado. Pense bem no que está fazendo!

— Já pensei, mamãe. Minha decisão está tomada. Não voltarei atrás. Sinto muito se vocês não compreendem minha posição. Sou um profis­sional. Aceitei a causa e terei que ir até o fim.

— Logo contra nossos amigos? E se estiver enganado? E se, como seu pai pensa, estiver sendo vítima de um malandro? Vai nos expor ao ridícu­lo e acabar com sua carreira. Por que se arriscar em uma causa tão difícil sem estar preparado suficientemente?

— Não se preocupe, mãe. Sei o que estou fazendo. Já pensei bastan­te. Tenho consciência do que está em jogo. Tenho provas suficientes para ganhar essa musa. Pode ter certeza disso.

— Mas eles são pessoas de nossa amizade! Seu pai deve favores ao Dr. José Luís. Como ficaremos diante dele?

— Sinto muito colocá-los nessa situação, porém dentro da profissão não podemos ser pessoais. Há um cliente espoliado, que confia em nós e com o qual assumimos compromisso de defendê-lo na justiça e o faremos da melhor forma.

Antes que Maria Alice respondesse, Antônio, que entrara na sala sem ser notado, interveio:

— Você não vai fazer isso. Não permitirei. Daniel voltou-se para ele:

— Gostaria que se interessasse pelo caso, esquecesse que se trata de pessoa conhecida, compreendesse minha posição. Marcelo foi roubado, pri­vado do convívio da família, tido como morto. Nada mais justo que de­seje reaver o que lhe pertence por direito.

— Você fala como se essa história fosse verdadeira! Está cego! O que lhe disseram para acreditar nisso? Não posso permitir que continue nessa farsa. José Luís é um homem íntegro, respeitado; sua esposa, uma dama caridosa e estimada na melhor sociedade do Rio de Janeiro. Onde pensa que vai com essa calúnia? Acha que alguém lhe dará ouvidos? Não per­cebe a loucura que está cometendo? Não vê que vai acabar no ridículo e na repulsa de todos os nossos amigos?

— Estou decidido, pai. Nada do que disser vai me demover de levar este caso à frente. Tenho certeza do que estou afirmando e não vou desis­tir até provar tudo na justiça. Eu e Rubinho consideramos minuciosamen­te todos os riscos. Temos consciência do poder do Dr. José Luís, de seu di­nheiro e de sua fama. Resolvemos aceitar essa parada e ir em frente. Nada nos fará mudar de idéia.

Antônio irritou-se:

— Está me enfrentando? Eu ordeno que pare com isso. Amanhã mesmo você vai encerrar o caso.

— E inútil, papai. Não faremos isso. Antônio indignou-se:

— Está me forçando a tomar uma atitude que eu não queria.

— Já sei, papai. Quer que eu saia desta casa.

— Se não me obedecer, não o reconheço mais como filho. Não o que­ro mais em minha casa.

— Lamento que pense assim. Vou lá em cima arrumar minhas coisas.

Pálida, Maria Alice interveio:

— Seu pai não quis dizer isso. Está nervoso. Você o desacatou. Vá para o quarto, pense melhor. Amanhã voltaremos ao assunto.

Daniel foi para o quarto, apanhou uma mala, colocou-a sobre a cama e começou a juntar todas as suas coisas. Sentia-se emocionado, nervoso. Pensara nessa possibilidade. Porém, agora que estava realmente aconte­cendo, sentia-se angustiado.

Apesar disso, reconhecia que seu pai não tinha o direito de decidir o que ele deveria ou não fazer em sua vida profissional. Era sua carreira que estava em jogo. Eram seus princípios, sua dignidade. Ele queria cui­dar da própria vida; se errasse, assumiria as conseqüências. Desejava ser o dono de seu destino. Não queria ser como o pai, levar uma vida de apa­rência, escravo das conveniências, fechando os olhos e aferindo vanta­gens com a desonestidade alheia. Ele queria construir sua própria vida, do seu jeito.

Lanira bateu na porta levemente e entrou. Vendo-o fazer as malas, abraçou-o emocionada:

— Você vai mesmo! Já pensou bem?

— Já, Lanira.

— Sentirei sua falta!

— Nós nos veremos sempre. Nada vai mudar entre nós.

— As coisas deveriam ser diferentes. Acho que papai poderia ser mais compreensivo.

— Ele é como é. Temos que aceitar essa verdade.

— Sinto muito. Por que não deixa para ir amanhã? Pode ser que ele mude de idéia.

— Não espere dele o que ainda não pode dar. Sei cuidar de mim, não se preocupe.

— Para onde vai?

— Um hotel. Amanhã procurarei apartamento para alugar.

— E Rubinho?

— Talvez faça o mesmo.

Lanira ajudou Daniel a arrumar tudo. Quando terminaram, ele a abraçou com carinho.

— Adeus, Lanira. Assim que tiver o endereço, telefono. Abraçaram-se e ela o ajudou com as malas. Desceram as escadas e Ma­ria Alice deixou o marido na sala e aproximou-se aflita:

— Meu filho! Você não pode ir embora!

— Não se preocupe, mãe. Estarei bem.

— Pense melhor! Não se precipite.

Daniel abraçou-a com carinho, dizendo:

— Adeus, mãe. Assim que estiver instalado, mando o endereço.

— Vá falar com seu pai antes de ir. Tente demovê-lo!

— Não vou fazer isso. Ele foi muito claro.

— Vai sair sem lhe dizer nada?

Daniel hesitou, depois foi até a sala onde Antônio lia um jornal e, dirigindo-se a ele, disse:

— Adeus, pai. Embora não me reconheça mais como filho, eu ain­da o reconheço como pai. Quando voltar atrás dessa decisão, estarei es­perando com o carinho de sempre.

Antônio não respondeu. Por seus olhos passou um brilho de emoção. Sentiu vontade de abraçar o filho e impedi-lo de sair. Mas dominou-se. Ele precisava impor-se como pai. Não podia fraquejar. Embora com o co­ração apertado e o peito oprimido, não disse nada enquanto Daniel saía da sala e apanhando as malas deixava a casa paterna.

Vendo seu carro afastar-se, Maria Alice, esforçando-se para dominar a emoção, procurou Antônio dizendo:

— Por que o deixou ir? Por que não o impediu de fazer essa loucura?

— Foi ele quem escolheu. Não posso tolerar em casa um filho que me enfrenta, que não acata minhas ordens. Tenho dignidade. Não posso permitir que ele abuse de minha autoridade.

— Não precisava ser tão radical! Poderia ter esperado um pouco. Pode ser que eles reconheçam o erro e mudem de idéia.

— Daniel é teimoso. Vai quebrar a cara e voltar com o rabo entre as pernas. Você vai ver! E só questão de tempo!

— Ele não vai voltar. Não depois do que você lhe disse.

— Bobagem. A vida lá fora não é esse mar de rosas que ele tinha aqui. Em sociedade temos visto inúmeros casos como esse. Eles sempre voltam para casa quando o dinheiro acaba. Daniel não está acostumado a ficar na miséria.

— Meu Deus! O que será dele sem dinheiro? O que dirão nossos amigos?

— Dirão que estamos dando-lhe uma lição. Quando a ilusão acabar, ele voltará e fará tudo quanto eu disser. Você verá.
Lanira, no quarto, sentia-se, triste. Gabriel não lhe telefonara como havia prometido. E se ele não a procurasse mais? Sentiu um aperto no co­ração. Sobressaltou-se. Estaria apaixonando-se por ele? Claro que não. tia não queria amar ninguém e acabar se transformando em uma dona de casa, com filhos, cheia de obrigações. Não. Ela gostava de Gabriel, mas não era amor. Apenas uma boa companhia.

E se ele cortasse relações com ela? Bem, se ele agisse assim não seria digno de sua amizade. Ela não era Daniel e ele deveria saber separar as coi­sas. O que faria se ele tocasse no assunto? Não seria hipócrita. Diria a ver­dade. Contaria que Daniel acreditava mesmo que Alberto fosse Marcelo.

Sentiu-se mais calma depois de tomar essa decisão. Não se sentia culpada de nada. Não tinha por que temer. Esperaria os acontecimentos serenamente.

Deitado na cama do hotel, Daniel pensava na decisão que fora for­çado a tomar. Não achou oportuno ligar para Rubinho. Preferiu conver­sar na manhã seguinte no escritório.

Deixar a casa paterna não fora tão fácil como havia pensado. A emo­ção que a mãe tentava conter, a tristeza de Lanira, a dureza do pai e prin­cipalmente as lembranças da infância e da adolescência que lhe vieram à mente enquanto fazia as malas fizeram brotar em seu peito um sentimen­to de perda, uma sensação de insegurança. Entretanto, depois que colo­cou as malas no carro e saiu à procura do hotel, começou a sentir uma for­ça interior como antes nunca havia sentido. Um calor no peito, uma agra­dável sensação de liberdade, de confiança no futuro, que lhe devolveram o otimismo, causando extremo bem-estar.

— Amanhã é outro dia — pensou. — Daqui para a frente, só farei as coisas do meu jeito.


No dia seguinte Daniel foi para o escritório bem cedo. Agora mais do que nunca precisava estudar o caso para que nenhum detalhe fosse ne­gligenciado. Às dez horas Alberto daria uma entrevista a alguns repórte­res, conforme o combinado.

Antes das oito, quando Rubinho chegou, já encontrou Daniel estu­dando o caso.

— E então, como foi? — indagou ansioso.

— Como eu previa, tive que me mudar. Ontem mesmo fui para um hotel.

Rubinho sentou-se, ficou alguns segundos pensativo, depois disse:

— É o diabo.

— Conhecendo meu pai, era de se prever.

— Não tentou convencê-lo?

— De que forma? Ele não acredita na veracidade dessa história nem em nossa capacidade para enfrentar na justiça o poder dos Camar­go. Exigiu que retirássemos a queixa. Como recusei, apontou-me o ca­minho da rua.

— Deve ter sido duro para você.

— Eu sabia que poderia acontecer, mas, na hora que aconteceu, não nego que fiquei apreensivo, nervoso, triste. Mamãe, apesar de durona, es­tava pálida, angustiada; Lanira, triste. Apesar de nossas diferenças de pon­tos de vista, não nego que tive uma vida muito boa em família. Saí com o coração apertado. Entretanto, depois que me afastei, uma gostosa sen­sação de liberdade, de auto-suficiência tomou conta de mim. Senti-me mais forte, encorajado, disposto.

— Vamos ver como será comigo.

— Você também?

— Meu pai pensa igualzinho ao seu, mas tem outros métodos de per­suasão. Não impõe. Quando cheguei, chamou-me para conversar. Não criticou nossa atitude. Ele gosta do tom amigável. Aconselha. Quis ouvir toda a história.

— Ele é mais tolerante.

— Está enfurecido, mas finge que compreende. Fez força para con­trolar-se. No fim, disse que tem um amigo que lhe ofereceu sociedade em uma empresa de consultoria jurídica. Um negócio de muito dinheiro. Ele não pode aparecer como sócio, mas queria que eu aceitasse. Eu ficaria mi­lionário, travaria relações com pessoas de alto nível. Mas teria que aban­donar nossa causa para dedicar-me inteiramente ao novo negócio.

— É uma oferta tentadora.

— Se eu estivesse apenas visando dinheiro. Meu pai tentou me cor­romper. Acha que eu aceitaria? Sempre fui contra os conchavos em que ele está sempre metido e nos quais ganhou sua fortuna. Recusei e ele fi­cou vermelho de raiva. Mas dissimulou. Deu-me dois dias para pensar.

— O que pensa fazer?

— Pelo que conheço dele, vamos procurar um apartamento hoje mesmo. No começo não temos muito dinheiro e vamos dividir as despe­sas conforme combinamos.

— Acha que vai precisar fazer isso?

— Acho. Assim que ele tiver certeza de que não vai poder me comprar com essa sociedade, cortará minha mesada, minha mãe terá crises do coração, meu irmão André tentará intervir e me "colocar na linha". O úni­co que vai me apoiar será Betinho. E o mais mimado, mas adora contrariar o resto da família. Minha vida se tornará um inferno e não terei sere­nidade para trabalhar. Por isso, antes que tudo piore, resolvi me mudar o quanto antes.

— Eu comprei o jornal para procurar. Pretendia fazer isso depois da entrevista de Alberto.

— Vamos alugar um com dois quartos. Não deve ser muito caro.

— Podemos encontrar um mobiliado.

— Desde que o preço nos convenha.

Eram nove horas quando Alberto chegou. Juntos eles combinaram os detalhes da entrevista. Quinze minutos antes da hora marcada, já os re­pórteres esperavam. Elza os fez entrar na sala de Rubinho, onde Alberto estava ao lado dos dois advogados. Quando eles se acomodaram, Rubinho apresentou Alberto dizendo:

— Este é Marcelo, o neto do Dr. Antônio Camargo de Melo. Eles o olharam com curiosidade.

— O que querem saber? — perguntou Daniel.

— A história toda desde o começo — disse um deles.

Alberto começou a falar. Contou a mesma história que inicialmen­te contara a seus advogados, omitindo as investigações que estavam pro­cedendo e as provas que estavam juntando.

Eles fizeram várias perguntas, tiraram fotos, pediram para repetir al­guns trechos e saíram impressionados com o que ouviram.

— Será destaque de primeira página — comentou Daniel.

— Eles estavam muito interessados! E uma matéria e tanto, bem a gosto popular. Um escândalo em sociedade é um prato cheio! Vai render comentários por um bom tempo.

— Só espero que não atrapalhem as investigações — comentou Al­berto. — O que me interessa mesmo é reaver o que me pertence por di­reito. Eles se aproveitaram de mim quando eu era pequeno e não tinha como me defender. Agora estou aqui para cobrar. Eles terão que devolver tudo.

— Vamos ganhar! — disse Rubinho.

— Temos que ganhar! — completou Daniel.

Capítulo 9


Na sala de espera do consultório de Júlio, Daniel e Rubinho espera­vam. Estava escurecendo e eles haviam combinado sair para jantar. Ru­binho pretendia conversar com ele sobre os sonhos de Daniel.

A porta do consultório se abriu e o último cliente saiu acompanha­do de Júlio, que, vendo-os, abraçou-os com prazer.

— Desculpe a demora — disse depois dos cumprimentos.

— Atender bem o cliente é sempre o mais importante — conside­rou Rubinho.

— Tem razão. Vamos entrar um pouco. E a primeira vez que Daniel vem aqui. Gostaria de mostrar-lhe o consultório.

Eles entraram na sala em que Júlio atendia. O ambiente era moder­no, alegre, com leve aroma de um anti-séptico que Daniel conhecia sem saber o nome. Havia rosas brancas em um vaso de cristal sobre um apara-dor elegante e confortáveis poltronas ao redor da escrivaninha.

— Na sala ao lado procedo aos exames de rotina. Sentem-se. Ain­da é cedo para jantar, não acham?

— É — concordou Daniel.

— Desejam ir a algum lugar antes? — indagou Júlio atencioso.

— Preferimos conversar. Aliás, eu telefonei porque Daniel anda ten­do alguns sonhos intrigantes. Como estudioso dos assuntos espirituais, talvez você possa nos ajudar a entender o que está acontecendo.


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