3. A sociologia e o exercício da cidadania.
Os debates em torno da escola apontavam para ela como uma
instância capaz de oferecer o conhecimento sistematizado para propiciar
o exercício pleno da cidadania e de ação consciente no novo projeto de
sociedade. Weber (1992, p. 28) já havia atentado que a vinculação da
educação escolar como um projeto de sociedade passa a ser claramente
admitida, como um reconhecimento da educação escolar como ação política.
A cidadania, como um problema social (a falta de cidadania, de interesse
e conhecimento político) a ser resolvido pela escola, é também, assim, um
problema sociológico.
Destarte, em meio à retomada do debate da sociologia no ensino
médio e no contexto brasileiro do final do século XX, os estudos acadêmicos
acerca da sociologia na educação também ganharam fôlego (NEVES, 2002),
ainda que se deva destacar aqui o fato de que os estudos da Sociologia da
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Educação desenvolvidos nas Faculdades de Educação prioritariamente têm
se voltado para a Educação Básica, ao passo que aqueles realizados junto
aos Departamentos e Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais
têm tido como foco o Ensino Superior (MARTINS, WEBER, 2010).
Handfas e Maçaira (2014), investigando o estado da arte da produção
científica sobre o ensino de sociologia na educação básica, identificaram uma
descontinuidade destes estudos, argumentando-se que na década de 1990 o
ensino de sociologia gozava de pouco prestígio nas ciências sociais devido
a diversos fatores, tais como: a) os cientistas sociais não se viam como
educadores, partindo de uma noção de improvisação foram introduzidas
majoritariamente pelos governos; c) a separação e autossuficiência das
Faculdades de Educação frente à rejeição das ciências sociais.
Há de se considerar ainda que, apesar das mudanças propulsionadas
pelos mecanismos legais, ao se pensar na sociologia na escola, a LDB garantiu
o ensino de seu conteúdo, porém não a existência da sociologia enquanto
disciplina nos currículos escolares. Todavia, esta relação cristalizada pela
LDB entre sociologia e formação para o exercício da cidadania, se pouco
auxiliou na compreensão dos sentidos da sociologia na escola, contribuiu
para deixar marcas profundas no imaginário dos professores que lecionam
esta ciência e nos alunos (OLIVEIRA, 2013a, p. 357), além de ter reflexo
nas leituras acerca do papel da disciplina que viam como positiva a relação
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sociologia-cidadania.
De um lado, algumas pesquisas demonstram que o entendimento
de professores acerca do papel da sociologia na escola permanece atrelado
à noção de cidadania (SANTOS, 2002; MOTA, 2003), baseada em
características jurídicas e formais (conhecimento de direitos e deveres),
cabendo à sociologia uma função informativa. Junto deste imaginário,
vê-se na sociologia um horizonte de mudança social (um preparar para o
“depois”), vinculando-a a transformação social e pessoal (MOTA, 2003,
p. 97-98). Entende-se, então, que a relação educação-sociologia-cidadania
como elemento transformador está muito mais alicerçada no senso comum
e nos diferentes projetos educacionais em disputa, do que propriamente no
contexto histórico das ciências sociais. Sem embargo, pesquisas como a de
Santos (2002), apontam que essa concepção mostra-se mais recorrente em
professores que não possuem a formação inicial nas Ciências Sociais, que
representam a maior parte do contingente que atua na Educação Básica.
Todavia, Moraes (2009, p. 08) aponta que em eventos envolvendo o
ensino de sociologia, não eram raros os debates acerca da relação sociologia
e preparação para a sociologia, com alguns sociólogos reforçaram a
positividade desta relação, enquanto outros a percebiam alicerçada
sobretudo no senso comum. Tal disputa também é refletida nas análises
acerca da ausência/presença da sociologia nos currículos da educação
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básica, relacionando-se comumente a retirada da sociologia dos currículos
em razão de contextos políticos autoritários no Brasil (e a permanência da
disciplina em momentos democráticos), alargando-se a discussão acerca
dos sentidos da sociologia como disciplina escolar.
6
É importante ressaltar nesse ponto que no seu percurso histórico,
a sociologia vinha assim justificada duplamente, por seu caráter científico
e pela expectativa cívico-redentorista.
7
Todavia, como bem alerta Oliveira
(2013b, p. 181), a sociologia também pode assumir um caráter conservador
em termos teóricos:
Percebemos que longe de constituir uma discussão
assentada num pensamento crítico, ideologicamente
questionador, a Sociologia pode ser apresentada
também como uma disciplina conservadora, preocupada
em afirmar uma visão harmônica da realidade social,
preocupada ainda com o processo de construção de
determinada concepção de homem (...). (OLIVEIRA,
2013b, p.181)
Percebe-se, portanto, que apesar referência na LDB à sociologia
como uma disciplina voltada para a formação cidadã, houve margem para
diversas interpretações do que seria o papel da sociologia na escola. Os
6
Por exemplo, Santos (2002) defende que a disciplina de sociologia, com o seu propósito
primeiro de crítica social, aterrorizava as autoridades educacionais, dispensando a sua
presença nos regimes autoritários (como a Era Vargas e na Ditadura Militar). Noutro lado,
Silva (2007) tende a compreender estes momentos entrelaçados com o projeto político
e educacional de cada período, e não por uma suposta essência crítica da sociologia,
interpretação também partilhada por Moraes (2011) e Oliveira (2013b).
7
Baseamo-nos conjuntamente nos estudos de Meucci (2000), Santos (2002), Silva (2007,
2010), Moraes (2011) e Oliveira (2013b).
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Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) de
1999, por exemplo, relacionaram o ensino de sociologia à ação política, para
que esta dotasse o aluno do capital político necessário (MORAES, 2009).
Além dos PCNEM, não se pode esquecer foram editados posteriormente
o chamado PCN+ (BRASIL, 2002), como orientações educacionais
complementares, colhendo também a ideia de cidadania como participação
social e política.
Nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCN) de 2006,
por sua vez, trouxe-se proposta diferente ao ensino de sociologia do antes
apresentado nos PCNEM e foi documento importante para fomentar a
discussão em torno da volta da disciplina ao currículo escolar, defendendo-se
a identidade de sociologia através do panorama histórico da constituição da
disciplina no currículo escolar, possuindo um viés político de consolidação
da disciplina de sociologia (CASÃO, QUINTEIRO, 2007, p. 233-234). Ao
apresentar esta abordagem, o documento (que não possui força de lei, mas
sim de orientação aos professores, a nível nacional) questionou o vazio da
expressão “formar o cidadão”, atribuindo a relação mais aos temas tratados
pela área do que a uma natureza ideológica própria.
Pode-se afirmar que os argumentos centrais contidos nas OCNS
repercutiram na campanha pela inclusão da disciplina de sociologia, estando
menos preocupados com um caráter intervencionista sobre a realidade que
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poderia ser esperado da própria sociologia e mais calcados na intenção de
assegurar a formação dos alunos acerca dos princípios epistemológicos
das ciências sociais. A atuação política do cidadão seria, neste viés,
consequência do próprio processo educacional, na visão da escola como
espaço de transição ao mundo político.
Frisa-se ainda que os avanços e retrocessos institucionais para
firmar a sociologia como disciplinar escolar e que foram acompanhados
pela ampla luta por parte de sociólogos organizados especialmente em
lutas não acadêmicas, acabou reforçando uma identidade “politicamente
engajada” da disciplina, popularizando a noção de que a sociologia deveria
formar o cidadão, intervir na realidade e despertar a consciência crítica
(OLIVEIRA, 2013b). Ou seja, ainda que não disposto expressamente no
texto legal, o imaginário ligado à sociologia como interventora da realidade
(uma “sociologia cidadã”, e não pensar sociologicamente a cidadania)
permaneceriam, tal como confirmados pela visão dos professores (MOTA,
2003 e LIMA, 2012) e na visão dos alunos (RESES, 2007). No trabalho
de Leithauser e Weber (2010, p. 92), para os professores de sociologia
brasileiros esta ciência seria “(...) um saber prático capaz de interferir,
de modo diferente da lógica, tecnologia e conhecimentos de línguas, nos
processos político-práticos da sociedade.”
Na discussão mais recente em torno da Base Nacional Comum
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Curricular (BNCC) a relação entre ensino de sociologia e cidadania não
desaparece totalmente, entretanto nela o exercício da cidadania não emerge
como finalidade dessa disciplina, mas sim como conceito a ser explorado.
Segundo o documento atualmente disponível para consulta pública:
Conceitos como fato social; interações; relações sociais;
instituições sociais; classe; status; poder; cidadania;
trabalho; formas de solidariedade, de conflito e de
dominação; estruturas sociais e padrões de mobilidade
social; representações sociais e culturais; identidades
sociais, políticas e culturais; movimentos sociais; formas
de organização do Estado e de regimes de governo são
básicos para o ensino de Sociologia, permitindo que
os/as estudantes ampliem seu vocabulário, adquirindo
novas formas de percepção, de compreensão e de crítica
da sociedade em que vivem. (BRASIL, 2015, p. 292
[grifo nosso]).
Neste documento a cidadania é ainda referida como tema transversal
na Educação Básica, e de forma mais específica como temática que
compõe os conteúdos a serem lecionados no terceiro ano do Ensino Médio,
inserindo-se no eixo “Compreensão das formações políticas, da democracia
e da cidadania e compreensão sociológica do trabalho.”
Podemos supor que esse documento terá um grande impacto na
realidade das escolas, tendo em vista que a ausência de um currículo nacional
comum mínimo muitas vezes é apontada como uma das dificuldades para
a “transmissão” do conhecimento escolar, o que é aprofundado ante a
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ausência de uma formação teórica no campo das ciências sociais, que possibilite
ao docente a produção de uma “ruptura epistemológica” com o senso comum
(HAMLIN, 2010; OLIVEIRA, 2014b). Todavia, a de se enfatizar a complexa
relação existente entre o processo de elaboração dos documentos de referência
curricular e sua circulação e utilização entre os docentes (FERREIRA, 2015).
No entanto, é importante ressaltar que após a divulgação da versão da
BNCC, no atual contexto de disputas políticas intensas e com mudanças de
governo por meios questionáveis frente ao Estado democrático, foi editada
Medida Provisória, nº 746/2016, convertida na Lei nº 13.415/2017, que reformou
o ensino médio e novamente retirou a obrigatória da sociologia dos currículos
(dentre outras disciplinas). Diante da reação da classe e manifestações, passou
a constar na Reforma que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) deva
incluía “estudos e práticas” de sociologia em seu conteúdo, o que, teme-se, leve
novamente à inexistência da sociologia na escola, uma vez que a nova versão da
BNCC para o ensino médio não foi divulgada e não há certeza que a sociologia
seja contemplada como disciplina autônoma.
Portanto, não estando sequer garantida a sociologia como disciplina no
ensino médio, permanecem as disputas pelos seus sentidos, que são também
expressados nos livros didáticos produzidos para a disciplina de Sociologia e
que compõem o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, aos quais nos
deteremos de forma mais incisiva a partir daqui.
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