VINTE E DOIS
SÁBADO, 8H10, PORTO PRÍNCIPE, HAITI
Nos últimos tempos, ele só descia para a inspeção uma vez por semana. A Câmara Secreta agora parecia funcionar sozinha, precisando apenas de uma supervisão mínima. Suas visitas eram menos práticas que sentimentais: dava prazer ver sua invençãozinha trabalhando tão bem.
Planejara coisas antes, claro. Ali nas docas, ele tinha inventado um método rolante de embarque e desembarque para o carregamento de navios que aportavam da América Latina e prosseguiam para os EUA. Não planejara dessa forma, mas dizia-se que seu novo sistema havia revolucionado o tráfico de drogas do país. Vinha tentando apenas melhorar a eficiência da importação-exportação. Mas, graças a ele, a cocaína podia chegar da Colômbia e seguir para Miami sem maior demora. Dali, em questão de horas, os pacotes de pó branco se espalhavam pelas cidades americanas — Chicago, Detroit, Nova York. Os chefões das drogas do Haiti vangloriavam-se de que de cada dez fileiras de cocaína cheiradas por americanos, sem a menor dúvida, no mínimo, uma passava por Porto Príncipe.
No seu círculo social, isso dava prestígio a Jean-Claude Paul. Entre os milionários de Petionville, cada um em suas mansões de cercas reforçadas e muros altos, ninguém dava demasiada importância às origens éticas da riqueza de alguém. Dirigir um Mercedes e mandar a mulher a Paris renovar o guarda-roupa e refazer as luzes nos cabelos era o suficiente. Quando os americanos invadiram o país em 1994, denominaram os moradores das mansão de Petionville de EMRs — elite moralmente repugnantes —, e Jean-Claude estava entre eles.
Talvez por isso houvesse inventado a Câmara Secreta, como um meio de compensar. Não conseguia imaginar de onde mais poderia ter vindo a idéia: pareceu brotar em sua mente já pronta, nada tendo a ver com ele.
Na verdade, a câmara era um prédio de um único andar, pintado de branco. Parecia uma cabana de madeira dedicada a um culto religioso, não era maior que um abrigo de ônibus. Estrategicamente, havia entradas nos quatro lados que ficavam abertas o tempo todo.
O sistema era simples. A qualquer momento, os ricos podiam entrar e deixar dinheiro no aposento. E, também a qualquer momento, os pobres podiam entrar e tirar o que precisavam.
A beleza dela era seu anonimato. As portas funcionavam num sistema de tranca automática, garantindo que apenas uma pessoa pudesse ficar ali dentro de cada vez. Assim se assegurava que doador e receptor nunca se encontrassem. Os ricos não sabiam quem se beneficiaria de sua generosidade; os pobres não sabiam quem os ajudara. Os abastados de Porto Príncipe não tinham a chance de se assenhorear de seus beneficiários nem de julgá-los insuficientemente necessitados. E poupava-se aos pobres a sensação de endividamento que às vezes torna a caridade tão humilhante.
As quatro portas eram o toque final. Significava que jamais poderia ocorrer, nem informalmente, uma entrada de doadores ou de receptores; era aleatória demais para isso. E, assim, se a pessoa visse alguém entrando ou saindo, não tinha a menor idéia de qual era a sua incumbência.
Jean-Claude ainda teve de fazer funcionar mais uma única coisa. Explorar um traço nacional haitiano, que se aplicava tanto aos motoristas de caminhonetes de Petionville quanto aos miseravelmente pobres da Cité Soleil: a superstição.
Falou com os curandeiros e sacerdotes do vudu, cuja influência corria entre as EMRs, molhando com alguns dólares as mãos dos que tinham um modo de disseminar a palavra. Logo, os mais abastados em Porto Príncipe passaram a acreditar que seriam amaldiçoados se não visitassem a Câmara Secreta e fizessem a coisa certa.
Assim, Jean-Claude sorria ali dentro da câmara, olhando um vaso cheio de dólares americanos, além de moeda local e até algumas jóias. Os do lado de fora imaginavam que ele era outro visitante; seu próprio papel de criar a câmara permanecera desconhecido de todos, menos do punhado de religiosos cujos talentos de relações-públicas ele recrutara.
Pegava uma embalagem de comida descartada do chão quando as luzes piscaram e se apagaram. Com todas as quatro portas fechadas, o aposento achava-se agora em total escuridão. Jean-Claude amaldiçoou em silêncio a companhia de energia elétrica.
Mas não ficou escuro por muito tempo. Alguém riscou um fósforo, logo atrás dele. O defeito de energia devia ter causado um curto-circuito nas fechaduras automáticas, permitindo àquele homem entrar.
-
Lamento, senhor. Apenas um de cada vez, é a regra.
-
Eu conheço a regra, monsieur Paul.
A voz era desconhecida; falava francês, não o dialeto creole haitiano.
-
Bem, vou sair para deixar você fazer o que precisa.
-
Para isso necessito do senhor aqui.
— Não, não. É tudo privado e confidencial, meu amigo. Por isso é que a chamamos de Câmara Secreta. É secreta.
O fósforo se apagou então, deixando o aposento na escuridão total novamente.
— Oi? Ainda está aqui?
Não obteve resposta. Nem um ruído, de fato, até o arfar de sua própria respiração quando sentiu duas mãos fortes em seu pescoço. Quis protestar, perguntar o que havia feito de errado, explicar que aquele homem podia levar todo o dinheiro que necessitasse — não havia restrições, nenhum valor máximo. Mas o ar não vinha. Apenas uma respiração seca, raspada e arenosa, que mal parecia humana. A perna tremia, a mão agarrava-se ao antebraço do homem que o estrangulava.
Mas de nada adiantou; escuridão caiu sobre escuridão. Ele tombou ao chão. O estranho acendeu um novo fósforo, agachou-se e fechou os olhos do morto. Murmurou uma breve oração, depois se levantou e sacudiu a poeira das roupas. Dirigiu-se à porta que usara para entrar, tomando o cuidado de religar o circuito que desligara alguns minutos antes. E perdeu-se na noite, anônimo e invisível, como planejara Jean-Claude Paul.
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