Sam bourne o código dos justos



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Droga.

  • Não, eu fui a primeira a encontrar. Fui eu quem chamou a polí­cia. Ninguém mais. Fui a primeira a informar sobre o caso.

  • Mas o corpo já estava coberto?

  • Correto.

  • Parece que a polícia acha que foi você quem estendeu o cober­tor, Rosa.

— Bem, estão enganados. Onde eu ia arranjar um cobertor no meio da noite? Ou você acha que os negros carregam cobertores por aí, por via das dúvidas? Sei que as coisas são terríveis por aqui, mas não pre­cisa exagerar.

Nada disso foi dito com ressentimento.



  • Certo. — Will fez uma pausa sem saber como continuar. — En­tão quem deixou aquele cobertor ali?

  • Estou lhe dizendo a mesma coisa que disse àquela policial. Foi assim que o encontrei. Belo cobertor, também. Meio macio. Talvez de caxemira. Uma coisa classuda, de qualquer jeito.

  • Lamento voltar a isto, mas existe alguma chance de não ter sido a primeira pessoa a chegar ali?

  • Não vejo como. Com certeza a polícia lhe contou. Quando ergui o cobertor, o corpo ainda estava quente. Não era sequer um cadáver, ainda era um homem. Entende o que quero dizer? Ainda estava quente. Como se tivesse acabado de acontecer. O sangue continuava saindo. Meio borbulhando, como água vazando de um cano. Terrível, simples­mente terrível. E sabe o que é mais estranho? Ele tinha os olhos fecha­dos, como se alguém os tivesse fechado.

  • Não me diga que não foi você?

  • Não fui eu. Eu jamais disse que fui eu.

  • Quem você acha que fez isso... que fechou os olhos dele, quero dizer?

  • Você na certa vai achar que sou louca, imagine, do jeito que aquele homem foi esfaqueado até morrer, mas era como... Não, você vai achar que sou louca...

— Por favor, continue. Não acho de modo algum que é louca.

Will curvava-se então, um gesto instintivo. Ser alto em geral era uma qualidade positiva: ele podia intimidar. Mas naquele momento não queria se impor àquela mulher. Queria fazê-la sentir-se à vontade. Curvou os ombros para baixo, para poder encontrar os olhos dela sem obrigá-la a erguer a cabeça.

— Prossiga.

— Sei que aquele homem foi assassinado de uma forma terrível. Mas o corpo parecia... era como se de algum modo estivesse... sabe... deitado para descansar.

Will nada disse, apenas mordeu a tampa da caneta.

— Está vendo? Eu avisei. Você acha que sou louca. Talvez eu seja!

Will agradeceu à mulher e seguiu em frente pelo conjunto habita­cional. Teve de percorrer apenas algumas quadras para chegar à parte realmente sórdida. Sabia que aqueles prédios serviam como pontos de venda de crack; os olhares duvidosos de rapazes entregando pacotes pardos uns aos outros enquanto olhavam para o outro lado. Eram aque­las as pessoas a quem devia perguntar sobre Howard Macrae.

A essa altura Will retirara o paletó — uma medida necessária na­quele ensolarado dia de setembro —, mas continuava encontrando gran­de resistência. Tinha o rosto branco demais, o sotaque diferente demais. Quase todo mundo achava que ele era um tira à paisana, da divisão de narcóticos, na certa. Para os que o observavam, o carro que seguia algu­mas quadras atrás não ajudava. A maioria das pessoas se afastava no momento em que via seu livrinho de anotações.

A primeira informação chegou da maneira como sempre chega — de apenas uma pessoa.

Will encontrou um homem que conhecera Macrae. Ele parecia um pouco evasivo, mas, acima de tudo, entediado, sem nada melhor para fa­zer que passar algumas horas do dia conversando com um repórter. Di­vagou sem parar, detalhando disputas e controvérsias locais ocorridas há tempos, como se o New York Times estivesse realmente interessado.

— Vai querer pôr isto no seu jornal, meu amigo! — disse repetidas vezes, com uma risada bronquial de fumante.

Caras metidos a engraçados como esse, concluiu Will, eram um ris­co ocupacional.

— Então, e quanto a esse tal de Howard Macrae? — perguntou Will, quando o novo conhecido fez uma pausa durante uma análise do defi­ciente sistema de semáforos na Rua Fulton.

Acabou que ele não conhecia Macrae tão bem, mas conhecia outros que o tinham conhecido. Ofereceu-se para levá-lo até eles, apresentan­do o repórter cada vez com a inestimável referência de caráter:

— Ele é gente boa.

Logo Will formava uma imagem de Macrae. Ele era um sujeito escolado do submundo, de carteirinha. Não havia a menor dúvida quanto a isso. Dirigia um bordel havia anos. A sofrida comunidade parecia tê-lo em alta consideração: parece que era bom como gigolô. Administrava um prostíbulo funcional, mantinha-o asseado — até levava as roupas das garotas para a lavanderia. Will entrou para ver os quartos por conta própria. O melhor que poderia dizer era que estava longe de ser tão repugnante quanto imaginara. Lembrava uma clínica de bairro pobre. Não se viam agulhas pelo chão. Ele até notou um bebedouro com água gelada.

As prostitutas contaram-lhe a mesma história.

— Senhor, não tenho mais nada a dizer além do que a dama já lhe disse: ele vendia nossos corpos. Era isso o que fazia. Coletava o dinhei­ro, dava algum pra nós e guardava o resto pra ele.

Howard parecia haver sido uma espécie de gigolô satisfeito com a vida. O bordel era seu domínio, e ele, obviamente, um ótimo anfitrião. À noite, descobriu Will, ele punha música alta e dançava.

Era já de tardinha quando encontrou o que estivera procurando o dia todo: alguém que genuinamente sofria com a morte de Howard Macrae. Will entrara em contato com o pessoal da funerária, que aguar­davam o corpo ser transferido para eles pelo serviço de necrotério da polícia. Mandou o motorista de táxi conduzi-lo até a casa funerária, um lugar caindo aos pedaços, decrépito até para os padrões do resto do bairro. Will perguntou-se quantos desses "assassinatos comuns na ter­ra das gangues" eles tinham de cuidar.

Somente a recepcionista parecia estar no local, uma jovem negra com as unhas mais longas e extravagantemente pintadas que Will já vira. Eram o único ponto brilhante em todo o lugar.

Ele perguntou se alguém os procurara a fim de organizar o enterro de Howard Macrae. Algum parente? Não, nenhum. A recepcionista achava que Macrae não tinha família. Will desanimou: precisava de mais detalhes pessoais, mais cor, se quisesse que a matéria desse certo.

Insistiu com mais veemência. Ninguém entrara em contato a res­peito do Sr. Macrae, ninguém mesmo?

— Oh, agora que você falou nisso —- disse a Garota das Unhas. Até que enfim, pensou Will. — Teve uma mulher, ela telefonou por volta da hora do almoço. Perguntou quando íamos fazer o enterro. Queria pres­tar suas condolências.

Ela achou um Post-it com as informações sobre a mulher. Will dis­cou os números ali mesmo. Quando uma mulher respondeu, ele disse que telefonava da casa funerária: queria conversar sobre Howard Macrae.

— Venha direto para cá — disse ela.

No táxi, ele instantaneamente pegou o BlackBerry e digitou um e-mail para Beth. Havia um ritmo em toda essa comunicação eletrôni­ca: passava e-mail de dia, quando sabia que a mulher ficava perto de um terminal de computador, mensagem de texto de celular à noite, quando sabia que ela não estaria.
Rápida aula de psicologia. Preciso obter entrevista com mulher que conheceu a vítima. Levei-a a acreditar que trabalho para a empresa funerária. Will agora tem de revelar a verdade. Como faço isso sem que ela fique tão furiosa que me atire para fora da casa? Preciso de sua opinião o mais rápido possível, tô a poucos quilômetros da casa dela. Bjs W
Esperou, mas não veio resposta alguma.
Já anoitecia quando bateu à porta de tela. Uma mulher colocou a cabeça pela janela do andar de cima. Quarenta e poucos anos, dedu­ziu; negra, atraente. Cabelos alisados, com um matiz castanho-avermelhado.

— Já vou descer.

Ela se apresentou como Letitia. Não quis dar o sobrenome.

— Escute, meu nome é Will Monroe e peço desculpas. Começou a balbuciar que era sua primeira grande matéria, que só

mentira porque estava desesperado para não decepcionar os chefes, quando percebeu que ela não fazia nem dizia coisa alguma. Não o ex­pulsara, apenas o ouvia com uma expressão levemente perplexa. Com a voz agora já se extinguindo, deu-lhe uma deixa:

— Escute, Letitia. Talvez esta seja a única maneira de a verdade sobre Howard Macrae chegar a ser publicada.

Mas viu que não era necessário. Ao contrário, Letitia parecia muito satisfeita por ter a oportunidade de falar.

Ela o conduziu até uma sala de visitas entulhada de brinquedos infantis.

— Howard era seu parente? — ele começou.

— Não — sorriu Letitia. — Não, só encontrei esse homem uma vez. — Esse homem. Aqui vamos nós, pensou Will. Agora conseguiremos a ver­dadeira sujeira sobre esse Macrae. — Mas uma só vez bastou.

Will sentiu uma ponta de esperança. Talvez Letitia saiba de algum segredo sobre Macrae, um segredo sombrio o suficiente para explicar seu as­sassinato. Cheguei na frente da polícia.

— Quando foi isso?

— Há quase dez anos. Meu marido... ele vai voltar logo... estava na prisão. — Ela viu a expressão de Will. — Não! Ele não fez nada. Era inocente. Mas não podíamos pagar a fiança para tirá-lo de lá. Passava noite após noite naquela cela de prisão. Eu não suportava isso. Fiquei desesperada. — Ergueu os olhos para Will, na esperança de que ele en­tendesse o resto. Que ela não tivesse de explicar os detalhes. — Todo mundo sabe que só há duas maneiras de ganhar dinheiro rápido aqui. Vendendo drogas ou...

Então Will sacou.



  • Ou você vende drogas... ou vai procurar Howard.

  • Certo. Eu me odiava por até mesmo pensar nisso. Fui criada cantando no coro da Igreja Episcopal Metodista Africana, Sr. Monroe.

  • Pode me chamar de Will. Eu entendo.

  • Fui criada com decência. Mas tinha de tirar meu marido daque­la cadeia. Então fui... à casa de Howard.

Sem baixar os olhos, Will escreveu no livrinho. Olhos marejados.

— Ia vender a única coisa que eu possuía. — Agora as lágrimas rolavam. — Não conseguia nem entrar, me escondi nas sombras, hesi­tante. Howard Macrae me viu ali. Acho que tinha uma vassoura na mão. Ele me perguntou o que eu queria. Mais ou menos isto: "Posso ajudá-la?" Eu disse o que queria. Porque precisava do dinheiro. Não queria que ele pensasse... você sabe... E então esse homem, que nunca tinha me visto antes, fez uma coisa estranhíssima.

Will curvou-se para a frente.


  • Na mesma hora ele foi para o que imaginei que fosse seu quarto naquele... lugar. Destrancou-o e imediatamente começou a desfazer a cama.

  • Desfazer a cama?

  • Sim. Fiquei assustada a princípio; não sabia o que ele ia fazer comigo. Pôs os lençóis numa pilha e depois foi mexer na mesa-de-cabeceira. Começou a enchê-la. Desligou o aparelho de CD, tirou o reló­gio, pôs tudo numa grande pilha. E então começou a empurrar tudo isso, me enxotando da frente. Pois bem, a cama era uma daquelas real­mente boas, enorme, com um colchão resistente, de primeiríssima qua­lidade. Era pesada, mas ele a arrastou e empurrou-a até retirá-la do quarto. Abriu a caminhonete, uma daquelas antigas, bem surradas, e carregou-a com a cama, os travesseiros e tudo mais na parte de trás. E então pôs o resto das coisas. Juro, eu não tinha a menor idéia, em nome de Deus, do que o sujeito estava fazendo. Depois ele baixou a janela e me mandou esperar logo ali na quadra adiante, na esquina da Rua Fulton. "Vejo você em cinco minutos", disse.

"Bem, àquela altura eu estava perplexa. Então fiz exatamente o que o homem mandou. E vi a caminhonete parada diante de uma loja de penhor. E lá estava Howard Macrae com todas as suas coisas, os homens saindo da loja para descarregar, e o dono entregando o di­nheiro a Macrae. Quando eu menos esperava, Macrae entregou o dinheiro para mim.

— Para você?

— Sim. Isso mesmo. Para mim. Foi uma coisa estranhíssima. Eu me perguntei por que ele simplesmente não me deu algum dinheiro, se era o que queria fazer, mas não, insistiu em fazer todo esse sacrifício, como se vendesse todos os seus bens materiais ou coisa que o valha. E eu ja­mais esquecerei o que me disse quando fez isso. "Aqui tem algum di­nheiro. Agora vá pagar a fiança de seu marido... e não vire prostituta." Ouvi o que aquele homem disse, paguei a fiança do meu marido e nunca vendi meu corpo, jamais. Graças àquele homem.

Ouviu-se um ruído na porta da frente. Will olhou em volta. Ouviu várias vozes: três ou quatro crianças e um homem.

— Olá, meu bem.

— Will, este é meu marido, Martin. E estas são minhas filhas, Davinia e Brandi, e este é meu filho, Howard. — Ela lançou a Will um olhar firme, silenciando-o. — Martin, este homem é do jornal. Já estava se despedindo.

Quando chegaram à porta da frente, Will sussurrou.

— Seu marido não sabe?

— Não, e não quero que ele saiba agora. Nenhum homem deve saber uma coisa dessas da mulher.

Will ia dizer que achava o contrário, que a maioria dos homens se sentiria muito honrada em saber que suas mulheres estavam dispostas a fazer tão extremo sacrifício, mas refletiu melhor.



  • Mas o filho dele chama-se Howard.

  • Eu disse a ele que sempre gostei do nome. Mas eu sei o verda­deiro motivo, e isso já é mais que suficiente. Howard é um nome que meu filho pode usar com orgulho. Eu lhe digo uma coisa, Sr. Monroe: o homem que mataram ontem à noite talvez tenha pecado todos os dias da vida que Deus lhe deu, mas foi o homem mais justo que já conheci.



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