Sam bourne o código dos justos


E os dois homens se entreolharam



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E os dois homens se entreolharam.

A porta abriu-se. TC ficou ali parada, agarrada ao celular, sem cor alguma no rosto; tinha os olhos vidrados, como um animal aturdido para o abate.

Ela se abaixou e sussurrou no ouvido de Will.

— A polícia está atrás de mim. Sou procurada por assassinato.


QUARENTA E SEIS
SEGUNDA-FEIRA, 2H20, DARWIN, NORTE DA AUSTRÁLIA
A música tinha parado, e por isso ele entrara. Mantinha essa rotina durante todo o seu turno, fosse dia ou noite — entrando na sala nas pontas dos pés para retirar o CD terminado e substituí-lo por um novo. O armário lateral estava cheio deles, principalmente Schubert, ali deixados pela filha do velho. A família não pedira a Djalu que fizesse isso, mas ele sabia que era o que queriam.

Pôs o disco. Ouviu gemidos vindos do quarto ao lado; estaria lá num segundo. Mas quis ficar um pouco com seu paciente, o Sr. Clark, o ho­mem que amava música. Djalu só o via acordado durante uma ou duas horas por dia; os sedativos faziam-no dormir o resto do tempo. Mas naqueles minutos consciente, o Sr. Clark parecia curado pelos sons dos violinos e violoncelos que saíam como em espiral do CD e transportavam-se para o quarto como tecidos de fino fio. Os lábios idosos abriam-se como que para saborear as melodias; a boca às vezes fazia o mesmo pequeno movimento, inclusive quando caía em sono profundo.

Djalu aproveitava esses momentos para pegar a pequena esponja, presa numa vareta, mergulhá-la no copo d'água sobre a mesa-de-cabe-ceira e roçá-la na boca do Sr. Clark. O homem idoso, de quase 85 anos, não podia mais comer nem beber sem vomitar. Portanto, essa era a única forma de alimentá-lo. Ele agonizava, como tantas pessoas naquele lugar, não da doença que o atacara havia meses, mas de fome e eventual desidratação. Assim que ficasse claro que o paciente jamais seria cura­do, seus órgãos parariam, um por um, até a morte enfim chegar.

Parecia uma cruel maneira de deixar uma pessoa morrer. O pai de Djalu denunciou-a como típica da medicina do "branco", só ciência e nenhum espírito. Às vezes Djalu achava que ele tinha razão; afinal, vira coisas terríveis naquele lugar. Senhoras idosas morrendo em poças da própria urina; homens chorando durante horas para ser ajudados no banheiro. Algumas das enfermeiras logo perdiam a paciência, gritavam com os pacientes, mandavam-nos calar a boca. Ou os tratavam pelo primeiro nome, como se fossem bebês.

Nos primeiros meses, Djalu nada fizera. Não queria chamar a aten­ção para si, um dos dois assistentes de enfermagem aborígines na casa geriátrica. O cargo não era garantido, com um currículo que incluía duas passagens pela prisão — uma por arrombamento, outra por furto. Por isso nada dizia quando a chefe de pessoal ouvia gemidos ou gritos vin­dos do corredor — e aumentava a TV para abafar o barulho.

Mesmo agora, nada dizia. Não fazia queixas à enfermeira-chefe nem ao gerente; não queria confusão nem discussão. Às vezes até se juntava às gozações sobre "os velhos carcomidos". Mas fazia o que podia.

Assim, quando ouvia um paciente gritar, corria. Fazia parte do que a casa de repouso chamava de Equipe Vermelha, responsável por cerca de 20 leitos. Mas se via uma luz piscando para um paciente das equi­pes Azul ou Verde, ia até o local — sempre na surdina, esperando que ninguém da equipe o visse. Certificava-se de que o Sr. Martyn tomasse um pouco d'água ou que a Srta. Anderson fosse virada na cama. E se eles houvessem se sujado, limpava-os, enxugando-os delicadamente, depois acariciava-lhes os cabelos, tentando acalmá-los para que não sen­tissem vergonha.

Ouviu alguns dos pacientes referirem-se a ele.

Enfermeira, não quero que esse gorila me toque — disse um deles quando Djalu apareceu pela primeira vez ao lado da cama. — Está er­rado.



Mas ele relevava as ofensas por conta da idade. Não conheciam nada melhor.

O Sr. Clark também não fora muito mais amistoso.

  • Qual deles é você? — perguntara.

  • Qual deles, Sr. Clark?

  • Sim, tinha aquele outro aborígine, como se chamava? Qual de­les é você?

Mas Djalu não podia se zangar com um homem que estava nos úl­timos dias de sua vida. Assim, trazia chá e biscoitos quando a Sra. Clark visitava o marido; trazia-lhe um lenço de papel quando a encontrava chorando baixinho; e quando ela adormecia na cadeira ao lado da cama, cobria-a com uma manta.

Talvez o pai tivesse razão quanto à medicina ocidental ser fria, me­tálica. Portanto, ele, Djalu, queria dar-lhe uma face afetuosa, huma­na — embora essa face parecesse assustar tanto aqueles conterrâneos brancos agonizantes.

Aquele era seu horário preferido para trabalhar, tarde da noite, quando tinha todo o corredor para si mesmo. Não precisava explicar sua presença nos quartos, nem inventar desculpas por estar lendo o jornal em voz alta para uma mulher no segundo andar, que não fazia parte da lista da Equipe Vermelha, ou simplesmente segurando a mão de um homem que ansiava pelo toque de outro ser humano.

Assim, ele deu um salto na cadeira quando ouviu um rangido e a porta do quarto do Sr. Clark abriu-se. A mulher que entrou tinha um dedo nos lábios, mandando Djalu fazer silêncio. Sorria com os olhos, como se planejasse fazer uma surpresa ao Sr. Clark e não quisesse que Djalu a estragasse.

  • Boa noite, Djalu.

  • Você me deu um susto. Não sabia que estava trabalhando hoje à noite.

  • Bem, você conhece a morte. Ela nunca dorme.

Djalu levantou-se assustado.

  • Morreu alguém esta noite?

  • Ainda não. Mas espero a qualquer hora.

  • Quem? Talvez eu deva...

  • Djalu, não fique nervoso, certo?

Calmamente, a mulher curvou-se e puxou vários dos CDs no ar­mário que ficava à cabeceira da cama, deixando-os cair no chão.

  • Ei, moça. É a música do Sr. Clark. Eu cuido disso...

  • Aqui está.

Enfiara a mão atrás dos discos e pegara o que parecia uma atadura. Agora a punha na cama, no quadrado do colchão junto ao peito do Sr. Clark, que subia e descia, dormindo profundamente.

Ela abriu a atadura, afastando uma aba de material para a esquer­da, a outra para a direita, e expondo uma agulha hipodérmica ao lado de um frasco de soro.

  • O médico vem? Ninguém me avisou.

  • Não, o médico não vem.

Ela enfiou nas mãos um par de luvas de látex.

  • Você vai dar uma injeção no Sr. Clark? O que está fazendo?

  • Eu lhe mostro, se quiser. Chegue mais perto.

  • Não o machuque.

— Relaxe, Djalu. Agora venha até aqui para poder ver. Um pouco mais perto. — A mulher ergueu a agulha, que formou uma silhueta contra o luar. — Agora, Djalu, se puder pôr as mãos nos ombros do Sr. Clark. Isso mesmo, apenas se curve um pouco mais.

Com perícia, a mulher espetou a agulha no pescoço de Djalu, o polegar empurrando o êmbolo com força e fazendo a droga penetrar suas veias num instante. Djalu teve um segundo para dar meia-volta, o rosto imóvel de estupefação. Um segundo depois, caiu para a frente, tombando pesadamente sobre o peito do Sr. Clark.


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