Sam bourne o código dos justos



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SESSENTA E QUATRO
SEGUNDA-FEIRA, 19H33, CROWN HEIGHTS, BROOKLYN
— Olá, William.

Will sentia a cabeça martelar. A sala parecia rodopiar. Beth, enco-lhendo-se de medo atrás dele, agarrou-lhe o pulso e deu um grito sufo­cado. O rabino Freilich, a mulher — todo mundo ficou imóvel.

— Como? O que você está... eu não entendo.


  • Eu não te culpo, William. Como poderia entender? Nunca ex­pliquei nada disso a você. Tampouco à sua mãe. De forma alguma ela poderia entender.

  • Mas eu não, eu não... — Will gaguejava. Num lance de puro nonsense, disse: — Mas você é meu pai.

  • Sou, Will. Mas também sou o líder desse movimento. Eu sou o Apóstolo. E você acabou de nos prestar o maior de todos os serviços possíveis, como eu sabia que faria. Trouxe-nos ao último dos justos. Só por isso, mereceu seu lugar no mundo que virá.

Will piscava os olhos, como um fugitivo ofuscado por faróis altos. Não conseguia entender o que via nem o que ouvia.

Seu pai. Como podia seu pai, um homem da lei e da justiça, ser o arquiteto de tantas mortes cruéis e desnecessárias? Rigoroso, racionalista, acreditava realmente em toda aquela teologia da substituição, toda aquela história de tornar-se o povo escolhido de Deus, do fim do mun­do? Claro que devia acreditar: mas como escondera isso todos aqueles anos, convencendo o mundo de que era um homem que tinha como único Deus o código de leis e a Constituição dos Estados Unidos? Elabo­rara de fato um plano para estrangular e eliminar três dúzias de ho­mens bons, a última grande esperança da humanidade?

Durante menos de um segundo, uma imagem formou-se em sua mente. Era o rosto de alguém que ele não via fazia anos. O da avó, ser­vindo chá no jardim de sua casa na Inglaterra. O sol brilhava, mas ele só conseguia concentrar-se na boca, quando proferiu as palavras que o haviam intrigado na época e desde então. A outra grande paixão de seu pai. Então foi isso. A força que se interpôs entre seu pai e sua mãe, os dois tão jovens. Não fora outra mulher, nem sequer a dedicação do pai à lei. Mas sua fé. Seu fanatismo.

Will tinha muitas perguntas, mas só conseguiu fazer uma.


  • Então você sempre soube, esse tempo todo, sobre Beth? — En­quanto falava, lançou os braços para trás, protegendo a mulher.

  • Oh, eu não tive nada a ver com isso, William. Isso foi iniciativa de seus amigos judeus, apenas deles. — O Sr. Monroe fez um gesto em direção ao rabino Freilich. — Mas assim que você me disse que Beth havia sido seqüestrada, tive minhas suspeitas. Assim que refez os pas­sos dos seqüestradores até Crown Heights, tive certeza. Levei algum tempo para entender. A princípio, imaginei se de algum modo se des­tinava a fazê-lo parar de trabalhar na matéria. Você vinha se saindo tão bem... primeiro Howard Macrae, depois Pat Baxter... parecia prestes a descobrir tudo. Mas depois compreendi que os hassídicos não levaram Beth para detê-lo. Isso não faria sentido. Eles a haviam levado para me deter. E isso só podia ter uma explicação. Precisavam abrigá-la porque ela era o abrigo... o abrigo do trigésimo sexto justo.

— Você sabia o que estava acontecendo, mas não me ajudou, não...

— Não, William. Eu queria que você me ajudasse. Sabia que não ia descansar enquanto não tivesse encontrado Beth e, ao fazer isso, a tra­ria para nós. E eu tinha razão.

Will lutava para manter-se de pé. A sala começava a girar. Não conseguia respirar. Só conseguiu dizer poucas palavras.


  • Isso é loucura.

  • Acha que é loucura? Tem ao menos a mínima idéia do que se passa aqui?

  • Acho que você tem assassinado os homens identificados como os justos da Terra.

  • Bem, eu não usaria essas palavras, William, com certeza, não. Mas gostaria que você considerasse tudo mais amplamente, que visse o quadro completo.

Era um tom de voz que ele jamais ouvira antes — ou pelos menos até uma hora atrás. A voz de um rigoroso professor que esperava ser obedecido. Qualquer que tenha sido a distorção eletrônica de voz em­pregada na capela do centro de convenção, não escondera esse tom: a autoridade do Apóstolo.

  • Veja bem, o cristianismo compreende o que o judaísmo jamais conseguiu compreender; o que os judeus obstinadamente se recusaram a compreender. Eles não viram o que se achava bem diante de seus olhos! Acreditaram que, desde que houvesse 36 almas justas no mun­do, tudo ficaria bem. Consolaram-se com esta idéia. Não perceberam seu verdadeiro poder.

  • E qual é o verdadeiro poder? — perguntou o rabino Freilich.

  • Que se esses 36 homens sustentavam o mundo, o oposto devia ser verdade! Assim que os 36 se forem, o mundo acaba.—O Sr. Monroe virou-se para olhar o filho. — Veja bem, isso não interessava aos ju­deus. Achavam que se o mundo acabasse, seria apenas isso. Tudo aca­baria: morte, destruição, o fim da história. O cristianismo, contudo, nos ensina mais alguma coisa, não, William? Uma coisa gloriosa e infinita!

Pois nós, cristãos, somos abençoados com um conhecimento sagrado: sabemos que o fim do mundo significa o acerto de contas final. E agora descobrimos que tudo de que precisamos fazer para isso acontecer... para ter absoluta certeza de que aconteça... é acabar com a vida de 36 pessoas.

"Se conseguirmos isso antes que se encerrem os Dez Dias de Peni­tência, o verdadeiro Dia do Juízo Final estará sobre nós. É muito sim­ples e belo assim.

Will não podia acreditar que essas palavras saíam da boca de seu próprio pai. Era uma combinação disparatada, como se ele se hou­vesse tornado o boneco de um ventríloquo idiota, de um louco. Com pavor, compreendeu que talvez aquele fosse o verdadeiro William Monroe. Talvez o pai que conhecera fosse um simulacro. Forçou-se a falar.


  • E por que você iria querer causar "o verdadeiro Dia do Juízo Final"? Por que iria querer esse acerto de contas final?

  • Oh, por favor, William. Não se faça de bobo. Toda criança na escola de catecismo dominical da cristandade sabe a resposta para essa pergunta. Está no Livro do Apocalipse. O fim do mundo trará o retor­no do Cristo redentor.

Will girou nos calcanhares, como se as próprias palavras fossem uma força física.

  • Então está tentando trazer Cristo de volta ao mundo matando 36 pessoas inocentes? — Tinha consciência da arma apontada direto para ele. — E esses homens não são apenas inocentes. São homens de admirável bondade. Sei disto porque é um fato.

  • Não me olhe como se eu fosse um assassino comum, William. Você precisa ver a genialidade desse plano. Apenas 36. Apenas 36 ho­mens precisam morrer. Devia ler as Escrituras, meu filho. Supunha-se que milhões teriam de perder a vida na batalha de Armagedom, a con­flagração final que apressaria o Segundo Advento. Mortos empilhados sobre mortos, oceanos de sangue. Todas as ilhas submersas, e os mon­tes destruídos. Mas esse plano evita tudo isso. Encontra um novo aces­so ao paraíso, por um caminho sem ossos e nem encharcado de lágrimas.

— O pai fechava os olhos. — É um meio justo e pacífico de fazer descer o Céu à Terra. Pense nisso, William: sem mais sofrimento, nem mais derramamento de sangue. Os dias messiânicos com o sacrifício de ape­nas 36 almas. É um número inferior aos que morrem a cada minuto nas estradas; inferior aos que morrem desnecessariamente em incêndios ou desastres de trem. E são mortes que para nada servem. Mas essas... essas vidas são dadas para que outras, o resto da humanidade, possam viver para sempre. No paraíso. Não é isso que esses justos teriam querido?

"E também não são assassinatos brutais, William. Cada um foi exe­cutado com amor e respeito pela alma abençoada que possuíam. De­mos a eles anestésicos para que não sentissem dor. Claro, às vezes tínhamos de disfarçar o que estávamos fazendo. Às vezes isso signifi­cou um fim mais violento do que gostaríamos.

Will pensou em Howard Macrae, apunhalado repetidas vezes, para que sua morte pudesse parecer um assassinato de gangue.

— Mas tentamos compensar transmitindo-lhes alguma dignidade.

Will lembrou-se do cobertor estendido sobre o cadáver de Macrae. A mulher que ele entrevistara milhares de anos atrás em Brownsville — Rosa — insistira em que a única pessoa que poderia ter feito aquilo era o pró­prio assassino, e constatava agora que ela tinha razão.

O pai continuava falando, a voz mais baixa agora.

— Imagine, William. Permita-se imaginar. Um mundo sem guer­ra. Um mundo de paz e tranqüilidade não apenas para hoje ou na se­mana que vem, mas para todo o sempre. E você poderia tornar tudo isso uma realidade não pelo sacrifício de milhões, mas pelo sacrifício de três dúzias de almas justas. Se pudesse fazer isso, William, você fa­ria, não faria? Não teria de fazê-lo?

O Apóstolo parou de pregar e deixou as palavras pairando no ar por alguns momentos. Will sentia a cabeça doendo. Toda aquela conver­sa sobre o fim dos tempos, o segundo advento, a redenção e o Armagedom foi demais. Pareceu engoli-lo. Do nada, uma imagem do passado flu­tuou diante de seus olhos. Ele tinha seis anos, pulava ondas numa praia em Hampton, agarrado à mão do pai. Mas agora não tinha mão algu­ma para segurar.

O lado racional em Will dizia que o pai mergulhara numa forma de insanidade. Há quanto tempo achava-se nesse estado, ele não fa­zia a mínima idéia. Talvez desde que começara a seguir Jim Johnson em Yale. Mas insanidade era do que se tratava. Uma orgia de assassi­natos internacionais para trazer Jesus de volta? Com certeza era insa­nidade.

Mas outra voz o puxava com força. Sem dúvida parecia loucura, mas a prova era difícil de negar. Os hassídicos de Crown Heights ansia­vam pelo Messias; assim como os cristãos no mundo todo. Poderiam todas aquelas centenas de milhares de pessoas estar enganadas? Um mundo sem violência, sem doença, um mundo de paz e vida eterna. O pai era um homem sério, inteligente — tinha um intelecto mais formidável do que qualquer um que ele já conhecera. Se acreditava na vera­cidade dessa profecia, que traria o Céu à Terra, não era simples arrogância de Will insistir em que sabia mais?

Além disso, era tarde demais para salvar os próprios justos. Pelo menos 35 deles estavam mortos; esse dano já fora feito. E a decodificação dos textos antigos — encontrar esses homens transformando letras em números e depois números em coordenadas no mapa — tudo parecia louco, mas fora confirmado. Aqueles homens eram de fato justos. Will vira por si mesmo. Como poderia ter certeza de que ele estava certo e o pai errado?

De repente, Olhos-de-Laser gesticulou para o relógio, induzindo o Sr. Monroe a se apressar.

— Sim, sim. Meu amigo tem razão. Temos tão pouco tempo. Mas Will, é importante que você saiba uma coisa. Como descobri, como entendi que Beth é a mãe de um tzaddik.

Will encolheu-se. A palavra soava estranha, artificial na boca do pai.

— Porque vi a beleza da coisa. O padrão. Não percebe, Will? Nada disso é coincidência, nada. Nem as matérias que você escreveu para o jornal, nem isso. — Gesticulou em direção a Beth. — Nem você, nem eu. Não é de modo algum uma coincidência. O rabino aqui pode nos falar sobre isso. O senhor chamaria isso de beshert, não é mesmo, rabi­no? "O que tinha de ser." Destino.

"O tempo corre, William. E chegou a hora de você enfrentar seu destino. Foi escolhido para o mais santo de todos os papéis. Não vê como é perfeito? Como Deus quer terminar tudo da forma como tudo come­çou? Tudo começou com Abraão e o pedido que Deus lhe fez. Sabe o que Deus queria que Abraão fizesse, não sabe, William?

Will engoliu com força. A fria compreensão gelou suas veias. A lín­gua parecia colada no céu da boca.


  • Sacrificar o filho.

  • Exatamente. Sacrificar o filho que ele e sua mulher haviam es­perado por tanto tempo.

O Sr. Monroe virou-se para o homem de olhos azuis, que de repen­te lhe estendeu uma longa e brilhante faca. O pai pegou-a cautelosa­mente. Com respeito.

— Por isso é que tem de ser você, William. Abraão aceitou de bom grado matar o bem-amado filho Isaac apenas para provar sua fé. Mas peço a você que faça isso em nome de cada ser humano que já viveu, inclusive todos os que agora estão mortos há muito tempo. Deixe que eles ressuscitem, William! Deixe que o Reino do Céu reine na Terra!

O sistema nervoso de Will pareceu encher-se de raiva.

E você faria isso, pai? Você mataria seu próprio filho? Você me mataria para causar o fim do mundo?

— Sim, eu faria, William. Faria isso num piscar de olhos. Will precisou sentar-se, fechar os olhos. Sentiu-se tonto.

De repente, bem no limite do seu campo de visão, viu um movi­mento. Era a dona da casa lançando-se para Olhos-de-Laser com um pedaço de pau; percebeu que era de uma trave de madeira solta, reti­rada do corrimão da escada. Quase sem se virar, o homem apontou a arma diretamente no rosto da mulher. Disparou duas vezes, fazendo esguichar uma cascata de sangue e osso pela sala. O corpo desabou no chão. Houve um ou dois segundos de silêncio. E então Will ouviu e sentiu Beth atrás de si, lastimando-se. As mãos dele tremiam.

— Precisamos agir rápido, William. Não podemos tolerar mais atra­sos. O Todo-Poderoso designou uma hora e até uma pessoa para dar esse último passo. A hora é esta e a pessoa é você.

Will imaginou que só poderiam restar poucos minutos. Lá de fora, vinha um coro de vozes, agora se avolumando.




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