QUINTA-FEIRA, 10H02, MISSOULA, MONTANA
Na manhã seguinte, Will foi conduzido ao consultório do Dr. Russell. Viu logo um diploma na parede com um emblema que reconheceu: um livro aberto, com palavras em latim, encimado por duas coroas.
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Ah, esteve em Oxford. — disse. — Como eu. Quando esteve lá?
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Vários séculos antes de você, desconfio.
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Não creio, Dr. Russell.
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Pode me chamar de Allan. Afinal, uma abertura.
— Sabe, Allan, não tenho nem certeza se vou escrever sobre isso para o jornal, mas preciso confessar que esse negócio de Pat Baxter de fato me intriga — começou, como se dando início a uma agradável conversa em caráter privilegiado.
Notou que seu sotaque inglês se tornara mais acentuado.
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Deixe-me dar uma olhada aqui — disse Russell, virando-se para o computador. — Ah, sim. "Grave hemorragia interna compatível com o ferimento provocado por projétil; contusões da pele e vísceras. Observações gerais: marca de agulha na coxa direita, sugestiva de anestesia recente."
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Ora, como você define o "recente", Allan?
Will esperava que seu tom dissesse: Sem qualquer interesse acadêmico...
— Provavelmente contemporâneo.
— Veja bem, é isso, preciso dizer, o que me intriga. Por que anestesiariam alguém antes de matá-lo?
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Talvez estivessem tentando reduzir a dor da vítima.
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Os assassinos fazem isso? Não faz sentido. A não ser...
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A não ser que o assassino fosse um médico. Treinado para dar uma injeção antes de qualquer operação. Força do hábito, talvez.
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Ou se quisesse fazer alguma outra coisa antes do assassinato. Realizar alguma outra operação.
— Como o quê?
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Bem, soube que Baxter foi encontrado com um rim a menos. Russell desatou a rir, de um jeito que Will tentou achar engraçado.
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Diga-me, Will. Já viu um cadáver?
Na mesma hora Will lembrou-se do cadáver de Howard Macrae, sob um cobertor naquela rua em Brownsville. O primeiro dele.
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Sim. Na minha profissão é difícil evitar.
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Bem, então não se incomodará de ver outro.
Não era tão frio quanto Will esperava. Imaginava que um necrotério fosse uma gigantesca geladeira, como aqueles frigoríficos nos fundos dos grandes hotéis. Aquele parecia mais uma enfermaria de hospital. Os atendentes empurravam uma maca para uma parte isolada por uma cortina que ele julgou ser a área de exame. Sem um aviso sequer, Russell puxou o lençol.
Will sentiu o estômago contrair-se. O cadáver estava rígido e de um amarelo-esverdeado. O cheiro era rançoso; parecia chegar-lhe em ondas. Por um ou dois segundos, imaginou que passara, ou pelo menos que se acostumara, e então mais uma vez o odor atacou — incitando-o a esvaziar o estômago ali mesmo no chão.
— Às vezes a gente leva algum tempo para se acostumar. Desculpe. Agora dê uma olhada nisto.
Will aproximou-se. Russell gesticulava em direção a algum ponto na área do estômago, mas ele ficou paralisado pelo rosto de Pat Baxter. Os jornais haviam mostrado fotos, mas eram granuladas — sobretudo reproduções da TV. Agora ele via as faces descoradas, o queixo, os olhos e a boca de um homem que teria identificado como branco e pobre de meia-idade. Tinha uma longa barba que, num contexto diferente, poderia parecer elegante, transmitir-lhe um ar de estadista. (O rosto de Charles Darwin surgiu-lhe na cabeça.) Mas a barba dava a Baxter a aparência de um sem-teto, como a dos bêbados encontrados dormindo junto a latas de lixo num parque.
Russell recolhia o lençol que estava em volta do torso de Baxter. Will percebeu que ele tentava esconder uma coisa, na certa os ferimentos a bala, e revelar outra.
— Olhe mais de perto. Está vendo?
Will curvou-se para a frente a fim de ver o dedo do médico desenhando uma linha na carne branca sem vida.
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É uma cicatriz.
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Na região do rim?
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Eu diria que sim.
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E isso não pode ser daquela noite, certo? Quer dizer, leva tempo para se formar uma cicatriz.
Russell tornou a cobrir o cadáver com o lençol, retirou as luvas de látex e dirigiu-se a uma pia no canto da sala. Começou a escovar as mãos, falando com o rosto virado para trás. Divertia-se com aquilo.
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Bem, claro, é difícil ter certeza em relação ao grave trauma na pele e vísceras.
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Mas qual é a sua opinião profissional?
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Minha opinião? Essa cicatriz tem no mínimo um ano. Talvez dois.
Will ficou decepcionado.
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Então não aconteceu naquela noite? Os assassinos não tiraram o rim de Baxter?
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Receio que não. Você parece decepcionado, Will. Espero não ter estragado a sua matéria.
Mas estragou, babaca, foi o primeiro pensamento de Will. Toda aquela busca para nada. Então se lembrou do que Beth dissera ao telefone na noite anterior.
— Há uma última coisa que poderia ajudar. Acha que poderíamos conferir as fichas médicas de Baxter?
Russell deu praticamente uma aula sobre a confidencialidade médico-paciente, mas logo cedeu. De volta ao consultório, pegou a ficha.
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O que estamos procurando?
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A data em que Baxter teve o rim retirado.
Russell fez uma pausa, perscrutando as páginas. Por fim:
— Que estranho. Não tem registro nenhum de uma operação renal. Will animou-se. Lembrou o resumo de Beth ao telefone na noite anterior.
— Alguma coisa sobre um histórico de problemas renais, alguma doença, quaisquer referências a insuficiência renal, diálise, qualquer coisa?
Uma pausa mais longa agora. E então, com uma ponta de perplexidade.
— Não.
Will sentiu que ele e o médico agora tinham alguma coisa em comum. Estavam igualmente surpresos.
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Esse histórico fala ao menos de algum problema médico?
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Um problema com o tornozelo, associado a ferimentos de guerra. No Vietnã, parece. Fora isso, nada. Para mim, ele era um paciente renal que precisou ter o rim removido. Sem dúvida este parece ser um prontuário médico completo. E, no entanto, não há nada sobre rim. Tenho de admitir que isso me deixa perplexo.
Ouviu-se uma leve batida à porta. Uma mulher, apresentada por Russell como a relações-públicas do laboratório criminal, abriu-a.
— Desculpe interromper, Dr. Russell. Mas estamos recebendo milhares de telefonemas sobre o caso Baxter. Parece que um conhecido do falecido ligou para uma estação de rádio hoje dizendo que acredita que o Sr. Baxter foi vítima de uma trama de roubo de órgãos.
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