Sam bourne o código dos justos



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Eles andaram me seguindo.

— É um homem inteligente. A esta altura já percebeu que o cum­primento do Shabat é uma das nossas regras mais estritas.

Will não disse nada.


  • Sr. Mitchell?

  • Sim, entendo isso.

  • Sabe que somos proibidos de trabalhar no Shabat, não sabe?

  • Sim, Sandy me disse. Shimon Shmuel.

Lamentou ter mencionado o nome hebraico de Sandy: parecia uma tentativa de agradá-los.

— Talvez ele não tenha dito que no Shabat não somos apenas proi­bidos de trabalhar, mas também de usar qualquer tipo de eletricidade. As luzes foram acesas antes de começar o shabbos e continuarão acesas o dia todo até acabar o shabbos na noite de amanhã. São as regras: ne­nhum judeu pode acendê-las nem desligá-las. Além disso, você deve ter notado que não tinha câmeras lá fora. E nunca houve câmeras lá, não no shabbos. O que você acabou de ver agora jamais foi fotografado ou filmado. Jamais, e não por falta de pedidos. Entende aonde quero chegar, Sr. Mitchell?

Agora que ouvira aquela voz por mais tempo, ele começou a for­mar uma imagem do homem. Era americano, mas o sotaque não era o mesmo que o de Sandy. Era mais, o quê, europeu? Por aí. Will não con­seguiu identificar exatamente qual; sem dúvida mais nova-iorquino, quase musical. Demonstrava urna espécie de desdém, um reconheci­mento do absurdo da vida, às vezes cômico, em geral trágico. Em mínimas frações de segundo, viu o rosto de Mel Brooks e ouviu a voz de Leonard Cohen. Continuava não tendo a mínima idéia de como era a aparência do homem que lhe falava.


  • Sr. Mitchell, preciso saber se entende o que estou dizendo.

  • Não, não tenho uma câmera, se é o que está perguntando.

  • Na verdade, eu não pensava nisso. Mais em termos de um dis­positivo de gravação.

Mais uma vez, Will estava limpo. Apesar de sua idade, fazia coisas à moda antiga: livrinho de anotações e caneta. Isso não se devia a al­gum ludismo tecnofóbico de sua parte, mas à pura preguiça. Transcre­ver fitas dava uma trabalheira enorme: fazia-se uma entrevista em meia hora e depois se levava uma hora transcrevendo-a. O gravador era re­servado apenas para entrevistas marcadas, nas quais cada palavra con­tava: prefeitos, chefes de polícia, esse tipo de coisa. Do contrário, optava por papel e tinta.

— Não, eu não gravei nada. Mas por que isso seria um problema...

De repente, sentiu-se empurrado para a frente e depois erguido, o homem mais jovem, moreno, à sua esquerda, visivelmente tomando a frente. A dupla enfiara os braços em suas axilas e o içara, garantindo que ele não se virasse. Em seguida, o moreno deu meia-volta e ficou de frente, evitando seu olhar, enquanto o primeiro estendia os braços dele para cima e para os lados, depois embaixo do paletó, movendo as mãos pela camisa, as costas e sob as axilas. Agia como um zeloso guarda de segurança de aeroporto.

Claro. Dispositivo de gravação. Não procuravam um ditafone de re­pórter, mas um fio. Preocupavam-se com que ele fosse da polícia ou do FBI. Claro que sim: eram seqüestradores e temiam que ele fosse um policial disfarçado. As perguntas que vinha fazendo, a bisbilhotice no lugar sem nenhum aviso anterior.

— Nenhum fio — dizia o moreno, num sotaque que o confirmava como sendo ao menos do Oriente Médio, senão de Israel.

— Mas tem isto.

Era o Barba-ruiva, cuja tarefa durante a revista corporal dos dois homens, que continuara pelas pernas acima e abaixo, quando não con­centrada nas costas, fora examinar cada bolso do homem dominado — incluindo o interno do lado esquerdo do paletó. Seus segredos oferece­ram pouca resistência: o livrinho de anotações de couro formava um nítido volume no bolso esquerdo do peito. Barba-ruiva retirou-o e ofe­receu-o à mão invisível atrás deles. Will, empurrado de volta para sua cadeira, ouvia as páginas serem viradas.

O sangue parecia esvair-se dele. A mente retornou à casa de Sandy, onde o anfitrião o convencera a deixar a bolsa. E ele achou que estava sendo inteligente. Deixara a bolsa, tudo bem, mas só depois que retirara sem ser visto o livrinho de anotações e fechara a carteira com zíper, no que julgava fosse um compartimento oculto. Não quisera que Sara Leah bisbilhotasse. Agora o livro estava nas mãos do rabino. Que imbecil!

Will enrijeceu-se. Quanto mais durava o silêncio, interrompido apenas pelo ruído de páginas viradas, mais pegajosa ficava a umidade nas palmas de suas mãos.

Sua mente disparava, tentando lembrar o que tinha naquele livro que pudesse denunciá-lo. Por sorte, não era organizado o bastante para haver escrito o próprio nome na primeira página nem em qualquer outro lugar. Walton fazia isso, uma bem cuidada inscrição na capa de todo bloco que usava. Alguns repórteres chegavam a usar esdrúxulas etiquetas com endereço. Nesse ponto, pelo menos, Will estava a salvo e protegido por sua própria ineficiência.

Mas e as milhares de palavras ali escritas, inclusive as muitas ano­tações feitas naquele mesmo dia, ali mesmo, em Crown Heights? Tal­vez não fossem problema; pelo menos encobririam a história sobre Tom Mitchell. Mas não tinha ele anotado tudo o que acontecera na casa de Tom? Certamente havia escrito algo sobre o e-mail do seqüestrador.

Os segundos se arrastavam, como uma gravação tocando em baixa rotação. Uma esperança surgiu. Será que sua letra horrível, seus incon­fundíveis e rápidos garranchos, estava prestes a salvá-lo? Criara essa forma híbrida de fazer anotações primeiro em Columbia e depois no Bergen Record. Funcionava para ele, embora sempre temesse o dia que lhe pedissem para redigir notas para o editor, ou pior, um juiz no tribu­nal. Imaginou um julgamento por difamação, recorrendo à exatidão de seu relato escrito de uma conversa. Precisaria de grafólogos para pro­var que não estava mentindo. O lado positivo, pelo menos ali, naquele momento, era que sabia que suas anotações eram quase indecifráveis.

— Você violou nossas regras, Sr. Mitchell. Não me refiro a nós, o povo de Crown Heights. O que de fato importamos para o grande es­quema das coisas? Somos formigas! Mas você violou as regras de HaShem.

Uma frase surgiu na cabeça de Will. Não levantarás falso testemunho. Era, compreendeu, como se ele fosse o mero recipiente, em vez da fon­te, de um dos dez mandamentos. Sabia que judeus e cristãos o tinham em comum — e era certamente isso o que o rabino tinha em mente. O preâmbulo pra uma acusação de mentira. Estava liquidado.

— Acho que sabe que respeitamos muito nossas regras: não se car­rega nada no Shabat. Nada de trabalho. Nada de carteiras, chaves. Nada de livrinhos de anotações.

— Sim.


  • Respeitamos essas regras muito a sério, Tom. Aplicam-se tanto aos nossos convidados quanto a nós. Estou certo de que entende isso. E, no entanto, aí está você, com um livrinho de anotações.

  • Sim, mas é a única coisa que eu trouxe. Deixei o resto do mate­rial... deixei minha bolsa. — Will estava de frente para o livrinho: o interrogador atrás, os seqüestradores ao lado. — Além disso, eu não sou judeu. Não achei que essas regras se aplicassem a mim.

Isso pareceu pouco convincente em voz alta. Pareceu mais a alega­ção de um menino de escola: o cachorro comeu meu dever de casa. Mas era a verdade. Claro, devia ser respeitoso com os outros quando na comunidade deles, mas isso era loucura. Não podiam estar tão furio­sos assim com uma infração do Shabat, podiam? Sentiu-se quase alivia­do: se essa era a acusação, significava que o rabino não encontrara nada mais que o incriminasse no livrinho de anotações.

— Você não é judeu?

— Não, eu já disse a Sandy, isto é, Shimon. Não sou judeu. Sou apenas um repórter.

— Ora, isso me surpreende. Tenho de admitir que não esperava.

Will ficou aturdido, mas também perturbado. Barba-ruiva desapa­recera. O único a vigiá-lo agora era o israelense; parecia jovem. A re­vista Times publicara uma matéria apenas uma semana antes. E lembrou que os homens israelenses aos 21 anos já acumulavam três anos de ser­viço nas Forças de Defesa de Israel. Sabia Deus o que ele aprendera lá: aquele sujeito podia parecer um garoto, mas as chances eram de que tivesse aço nas veias. Por que outra razão o rabino o escolhera para arrancar a verdade de Will? Também lembrava vagamente que a mes­ma matéria dizia que muitos rapazes ultra-ortodoxos de 18 anos rece­biam dispensa do exército para que pudessem dedicar a vida ao estudo da Torá. Mas nem todos: algo lhe dizia que esse era um daqueles que trocara o livro de orações por um fuzil.

— O senhor sabe, Sr. Mitchell... ou devo chamar-lhe de Tom?... Não sei se estamos fazendo muito progresso aqui. Parece estar faltando al­guma coisa.

Ali estava de novo aquela inflexão cansada do mundo, sardónica, como se houvesse humor em cada situação, até mesmo nessa. Will não conseguia entender aquele homem de jeito nenhum: a voz era afetuo­sa, até paternal. Mas a sala úmida parecia ameaçadora, e a ameaça par­tia do homem às suas costas.

— Proponho que mudemos de lugar.

Claramente ele dera algum tipo de comando, pois o israelense logo lhe pôs uma venda; não aquela usada em brincadeiras de criança, que permite que alguma luz sempre atravesse, mas apertada o suficiente para imobilizar as pálpebras, impedindo-o de movimentá-las. Ele sen­tiu-se mais uma vez empurrado para cima e para longe da cadeira. Só que desta vez não foi para outra revista em pé, mas para ser levado embora.

Will decidiu que não ia entrar em pânico. Não ia entregar-se à sen­sação de que, a cada passo, era impelido para um lugar vazio, escuro, mergulhando de um penhasco para um abismo. Mas ia concentrar-se no chão sob seus pés; cada vez que levantava uma perna, lembrava-se de como o chão continuava perto. Deveria arrastar os pés ao longo do caminho, para não perder o contato com o chão? Talvez fosse por isso que sempre se viam prisioneiros algemados arrastando os pés: não por estarem deprimidos, mas porque precisavam ter certeza de que a terra continuava ali, bem embaixo dos sapatos.

Sabia que atravessava outro corredor, afastando-se ainda mais do clamor da sinagoga, que, percebeu, começara a reduzir-se a uma gran­de algazarra pouco antes. Culpou-se por não ter notado exatamente quando isso acontecera; esse detalhe era de suma importância no rastreamento dos movimentos do rabino.

O que era verdadeiramente estranho, contudo, era a sensação de dependência do israelense, que lhe agarrava o braço direito com dolorosa força. Will dependia dele como guia, cônscio de que devia ter agora a aparência de todos os cegos: como Stevie Wonder ou Ray Charles, movendo a cabeça de um modo aleatório, dissociado de ló­gica. Aquele homem era seu captor, pensou, mas também seu pro­tetor.

De repente, sentia frio. Haviam se deslocado para fora, mas apenas alguns passos. Ouviu o ranger de uma porta de vaivém, como o portão de um jardim, e depois a mudança de temperatura. Como se estives­sem num espaço cercado, embora não exatamente ao ar livre. Ouviu um eco.

— Ninguém gosta disso, eu lamento, Sr. Mitchell. Tom. Mas vou dar uma olhada em você.

Nos segundos seguintes Will percebeu que não se tratava de algum terrível incidente que logo se resolveria, mas na verdade era algo mais apavorante. Até então agarrara-se a idéia de que poderia ter sido um erro ou até a irônica encenação de interrogatório igual a milhares de filmes. Vinha esperando que tudo se revelasse um grande engano; ou pelo menos que ele logo conheceria a identidade de seu inquisidor; ou que faria progressos; ou que aquilo simplesmente terminaria. Ago­ra tinha certeza de que aqueles estranhos que haviam roubado sua mu­lher iam torturá-lo e matá-lo, na certa de uma forma sádica de gelar o sangue. Pior ainda, e a idéia revirou suas vísceras, já haviam feito o que tinham de fazer com Beth.

— Não! — gritou, mas era tarde demais.

Sentiu os braços presos atrás, enquanto alguém lhe desafivelava o cinto. Uma mão também lhe tapou a boca. Não podia ser o trabalho de um israelense sozinho. Mas de onde vinham aquelas mãos a mais? De quem eram? Então, sem aviso, sua cueca foi abaixada.

— Pare! — Ele ouviu a palavra e ficou chocado ao descobrir que a voz não era a sua. O rabino falara. — Ele está dizendo a verdade. Não é um judeu.

Will só podia imaginar o que estava acontecendo: o rabino devia estar diante dele, olhando o seu pênis e concluindo, com razão, que ele não era circuncidado.

— Você não é judeu — repetiu o rabino. E depois, para o assisten­te, ou assistentes: — Cubram-no. — Uma pausa. — Bem, esta é a boa notícia, Sr. Mitchell. Agora acredito que não é um agente federal ou uma autoridade policial. Desconfiei que fosse, espreitando por aí com todas as suas perguntas. Mas conheço essas pessoas e, primeiro, elas teriam posto um grampo em você e, segundo, teriam mandado um judeu. Não apenas isso, mas teriam se considerado muito inteligentes por agirem assim. Oh, sim, verdadeiros gênios por darem um telefonema ao Agente Goldberg e dizerem: "Esta é uma missão feita sob medida para você." É assim que eles pensam. Mandar um árabe infiltrar-se num bando terrorista muçulmano, mandar um judeu para nós. Por isso eu acredito em você agora.

Vestiram-lhe a calça, afivelaram o cinto, e ele foi libertado de uma situação difícil, embora não da situação difícil: não era um agente fede­ral disfarçado. A soma de tudo isso reduziu o terror de alguns momen­tos antes. Seu corpo, o coração acelerado, a umidade nas palmas das mãos não estavam mais no código vermelho, onde haviam estado se­gundos antes.

— Você parece aliviado, Sr. Mitchell. Alegro-me. O problema é: se não é um federal, deve estar trabalhando para outra pessoa. E isto, creio eu, é infinitamente mais sério.




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