VINTE
SEXTA-FEIRA, 23H35, BROOKLYN
Tom atendeu ao telefone na primeira chamada. Mandou Will, que andara pelas ruas de Crown Heights à procura do metrô, tomar um táxi e ir direto para o apartamento dele.
Agora ele estava deitado no sofá de Tom, pronto para apagar de cansaço e se mantendo acordado apenas por uma espécie de febre. Não usava nada além de três toalhas grossas. Tom o havia colocado embaixo de um chuveiro quente assim que ele cruzara a porta, decidido a que o amigo não sucumbisse a uma gripe, febre ou até pneumonia. Sabia que não tinham tempo a perder com doenças.
Will esmerou-se em contar o que havia acontecido, mas quase tudo era bizarro demais para alguém compreender. Além disso, Will falava como um homem recém-acordado que tentava lembrar-se de um sonho: novos trechos de informação, novas personagens, novas descrições e frases não paravam de pipocar-lhe à mente. Eram tão poucos os pontos de normalidade para Tom que ele desistiu de compreender o relato após algum tempo. Homens barbados, um quase-afogamento, um aviso mandando as mulheres cobrirem os cotovelos, um inquisidor invisível, um líder venerado como o Messias, uma regra que proibia às pessoas de carregarem até mesmo chaves durante 24 horas. Tom se perguntava se Will tinha de fato estado em Crown Heights em vez do East Village, onde tomara algum ácido particularmente forte e embarcara numa das mais surreais viagens da história recente.
Mais difícil de resistir foi a vontade de dizer: "Eu bem que avisei." Era exatamente esse o desfecho que ele temera: Will invadindo Crown Heights, despreparado e fora de si de tanta angústia, seguindo totalmente despreparado ao encontro dos inimigos.
Will não apenas esperava que o amigo acompanhasse seu relato das últimas horas, mas também queria sua ajuda para tentar decodificá-lo. O que era aquela referência ao seu trabalho? O que queria dizer o rabino com uma história antiga, salvar vidas, ter apenas quatro dias pela frente?
— Will — disse Tom, depois que ele tinha falado por quase 15 minutos ininterruptos, tentando interromper o fluxo. — Will. — Sem sucesso; ele continuou falando. Por fim, Tom perdeu a paciência e elevou a voz. —WILL!
Enfim, ele parou.
— Will, isso é sério demais para ficarmos chutando palpites como amadores. Agora precisamos de ajuda especializada.
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Você quer dizer a polícia?
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Bem, devíamos pensar nisso.
— Claro que eu tenho pensado nisso, porra. Pensei nisso quando mergulharam minha cabeça na água gelada. Mas acho que não posso correr o risco. Eu estive com essas pessoas, Tom. Estavam dispostos a me matar hoje, por conta de algum palpite. Porque eu não levava um grampo e porque tenho prepúcio. Ou algo absurdo assim. Eles iam me afogar. O cara me deu a justificativa teológica completa, toda essa coisa sobre o que manda o "Peking Nuff", ou sei lá o que ele disse. Em suma, você pode tirar a vida de alguém se for para salvar outras, e a vida que pensavam tirar esta noite era a minha. E talvez a de Beth. Portanto, sim, pensei nisso, mas acho que o risco é grande demais. Desde o início eles disseram: se formos à polícia, ela corre perigo de vida. E agora, depois de vê-los... ou não... acho que falavam sério. São pessoas sérias. Não estão brincando.
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Certo, então precisamos de outro tipo de ajuda.
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De que tipo?
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Os judeus.
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Como?
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Precisamos conversar com algum judeu que possa começar a dar algum sentido a tudo que você viu e ouviu. Não sabemos nada. Temos apenas o que você ouviu debaixo d'água e o que tiramos da internet. Não basta.
Will reconheceu a lógica. Era verdade. Ele vinha blefando daquela maneira tipicamente inglesa. Ensinavam-na em todas as melhores escolas. Aprender a conseguir as coisas com inteligência e sabedoria. Nunca ser chato como um especialista qualificado; ser o amador talentoso. Foi isso o que ele fez, forçando a entrada em Crown Heights com aquela maldita calça de algodão e o maldito livrinho de anotações. Como se tudo fosse cair em seu colo inglês encantador. Precisavam de ajuda.
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Quem?
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Que tal Joel?
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Joel Kaufman? — Ele tinha feito o curso de jornalismo com Will em Columbia; agora escrevia para as páginas de esporte do Newsday. — Ele é judeu, mas só em termos técnicos. Dificilmente vai saber algo mais que eu.
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Ethan Greenberg?
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Está em Hong Kong. Para o Journal.
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Que patético! Estamos em Nova York. Temos de conhecer alguns judeus!
— Na verdade eu conheço muitos judeus — disse Will.
Pensara de repente em Schwarz e Woodstein do jornal, o que por sua vez o fez lembrar que não havia feito nenhum contato com a redação o dia todo. Will tinha ignorado o e-mail de Harden. Teria de fazer alguma coisa: não podia simplesmente se ausentar sem licença. Mas era coisa demais para pensar; afastou a idéia, dizendo a si mesmo que cuidaria disso assim que saísse do apartamento de Tom.
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O problema é que não posso começar a falar dessa situação com qualquer pessoa. O risco é alto demais. Tem de ser alguém que não seja judeu, mas esperto o suficiente para conhecer coisas judias, que saque desse mundo — apontou a tela, ainda brilhando com o mapa de Eastern Parkway — e em quem possamos confiar. Não consigo pensar em ninguém que possamos incluir nessa categoria.
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Eu consigo — disse Tom, embora seu semblante não registrasse nenhum prazer com o fato.
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Quem?
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TC.
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Não pode estar falando sério. TC? Para ajudar Beth?
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Quem mais pode fazer isso, Will? Quem mais?
Will deitou-se no sofá, apertando a mandíbula, o músculo do rosto contraindo-se e descontraindo-se como se pulsasse com uma corrente alternada. Mais uma vez, Tom tinha razão. TC se encaixava em tudo. Era judia, esperta e jamais trairia um segredo. Mas como poderia telefonar para ela? Eles não se falavam havia mais de quatro anos.
Durante quase nove meses, desde o início em Columbia até aquele fim de semana do Memorial Day, haviam sido inseparáveis. Ela era uma excelente estudante de arte e Will se apaixonara antes de qualquer dos dois dizer uma palavra. Ele não podia mentir: desejava-a. Era a mulher no campus que todo mundo notava, do brinco de diamante no nariz ao piercing no umbigo; da barriguinha lisa, enxuta e constantemente exposta, à mecha azul entremeada nos cabelos. A maioria das mulheres com mais de 16 anos não se garantiria em exibir aquele visual, mas TC tinha beleza natural suficiente para se sentir bem.
Começaram a namorar logo, tornando-se reclusos virtuais no minúsculo apartamento dele na rua 113 com a Amsterdam. Faziam sexo de dia, comiam comida chinesa, viam filmes e faziam mais sexo até amanhecer outra vez.
As aparências são enganosas. As pessoas viam as mechas azuis e o piercing no umbigo e imaginavam que TC era uma jovem de espírito livre — uma daquelas garotas do cinema que vão para o telhado e dançam ao luar ou fazem passeios até a praia para ver os barcos pesqueiros. Apesar dos piercings e da calça jeans rasgada, TC não era assim. Sob a aparência neo-hippie, ele logo descobriu um cérebro preciso, analítico, às vezes assustador na exigência de exatidão. A conversa com ela era um exercício mental: deixava-o exaurido.
Parecia haver lido tudo — citava frases de Turgueniev num momento, os princípios doutrinários do luteranismo no seguinte... e os conhecia de verdade. Sua única falha, mais uma vez desafiando todas as expectativas, era cultura pop. Saía-se bem em temas mais contemporâneos, mas quando se tratava das lembranças que se esperava que os dois partilhassem, ela nada conhecia. Falava-se em Nos tempos da brilhantina, ela queria saber: "Que tempo?" Em O vale das bonecas, perguntava: "Que vale?" Ele achava esse desconhecimento encantador; além disso, tranqüilizava-o saber que havia uma área na qual o banco de dados humano que ele namorava tinha um defeito. Concluiu que os dois fatos se relacionavam: enquanto os jovens como ele assistiam às bobagens na TV e ouviam música pop descartável, ela lia, lia, lia.
Deve-se notar que tudo isso era uma suposição. TC só falava da infância nos mais vagos termos. (Até seu nome continuou sendo um mistério: um apelido que ganhara quando começara a andar, dizia, que não se lembrava nem o motivo.) Ele nunca conhecera a família dela: isso seria impossível. Apesar de sua vida agressivamente não-religiosa — TC fazia questão de pedir baldes de camarão e porco agridoce —, explicava que sua família era, apesar disso, muito tradicional e não aceitaria um namorado gói.
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Mas a gente não vai se casar! — ele dizia.
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Não faz mal — era a resposta. — Mesmo a possibilidade mais remota de que um dia a gente possa se casar, e até o fato de estarmos juntos, já é ruim demais. Para eles.
Discutiram todos os argumentos. Ele acusava os pais invisíveis dela — e nunca sequer tinha visto uma única fotografia deles — de racismo, algo tão ruim quanto o preconceito de qualquer anti-semita que proibisse a filha de sair com um judeu. Ela então o conduzia pelo longo e sangrento curso da história judia. Enciclopédica como era, dizia que, em todos os continentes e séculos, os judeus haviam sido atormentados, agarrando-se perigosamente às suas vidas e à civilização que tinham criado. A cultura judaica não sobreviveria, acreditavam pessoas como seus pais, se aos poucos se dissolvesse pelo casamento e a assimilação na população geral — como uma gota de tinta azul de cabelos num mar de água clara.
— Então é nisso que seus pais acreditam — dizia Will. — E quanto a você? Em que acredita?
As respostas dela nunca eram muito claras, pelo menos para Will. As brigas passaram a ser cansativas demais. E, embora a proibição do namoro deles fosse emocionante a princípio, tornando-os conspiradores no inverno de Manhattan, lá pela primavera já começara a desandar. Ele não gostava de saber que o destino dos dois vinha sendo decidido por uma imensa e externa força — 5 mil anos de história — da qual conhecia tão pouco e sobre a qual não tinha influência alguma. Quando conheceu Beth, sabia que ele e TC haviam saído dos trilhos.
Terminou muito mal. Ele tinha sido covarde e começara a sair com Beth antes de romper definitivamente com TC: ela havia encontrado uma foto digital da nova namorada no computador dele. Isso já era bastante ruim, mas enfurecia-a saber que o que haviam passado a chamar de "coisa judia" acabasse por ser um fator tão decisivo. Ficara furiosa com Will por deixar que aquilo se tornasse um obstáculo — por rejeitá-la devido a "um fato sobre mim mesma que não posso mudar" —, mas ele sempre tivera a sensação de que a fúria não se dirigia apenas a ele. Via que ela se enfurecia com uma herança, uma cultura, que em grande parte havia abandonado, mas que a separara do homem que amava. A última conversa dos dois tinha sido aos gritos. A última imagem que guardava dela era a de um rosto vermelho cheio de lágrimas. De vez em quando, perguntava-se quem era o vencedor: os pais rigidamente convencionais ou o mundo de arte e aventura todo em azul que tanto arrebatara a garota por quem tinha se apaixonado.
Agora Tom sugeria que ele entrasse em contato com ela. Naquela mesma noite, quase à meia-noite. Will tinha o número do celular dela; mas o que iria dizer? Como explicaria que o único motivo pelo qual estava fazendo contato era porque precisava de um favor — e para a mulher que o roubara dela? Como daria esse telefonema? E por que ela faria algo além de bater o telefone, jurando nunca mais tornar a falar com ele?
E, no entanto, ele estava desesperado e Tom tinha razão. Ela era o mais próximo do especialista que precisavam. Ele teria de fazer isso. Teria de esquecer suas próprias emoções, incluindo a covardia, e discar aquele número. Já.
Andou de um lado para o outro do apartamento por algum tempo, formulando as primeiras palavras, frases. Era como escrever para o jornal: assim que tivesse a primeira frase, ganharia coragem para mergulhar na tarefa, esperando que o instinto cuidasse do resto. Para aumentar suas chances de sucesso, ou pelo menos evitar o fracasso imediato, também usou um truque barato.
Reconheceu que se o número de TC continuava gravado no telefone dele, havia no mínimo uma possibilidade de o dele também estar registrado no dela. Imaginou seu nome piscando no visor do telefone dela. Então ligou da linha de Tom, sabendo que o número do amigo seria inteiramente desconhecido. Era uma chamada de emboscada.
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Alô, TC? É Will. — Barulho alto no fundo. Um clube? Uma festa?
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Oi.
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Will Monroe.
— Eu não conheço outros Wills, Will. Não de antes, nem desde então. O que há?
Ele teve de reconhecer esse mérito dela: uma resposta instantânea, quase sem tempo para refletir, nada mal. E inteiramente típico de TC: a pitada de rispidez, a referência ao passado deles, a formulação à queima-roupa. O único ponto fraco foi o "O que há?" Não era seu tipo de frase, o que demonstrava uma despreocupação forçada demais. Nessas palavras, ele ouviu a tensão de falar com um homem que ela tinha amado e que a rejeitara.
— Preciso ver você imediatamente. Sabe que não a incomodaria assim se não fosse realmente importante. E isso é muito importante. Acho que é uma questão de vida e morte.
Engoliu em seco nesta última palavra e soube que TC o ouvira.
— É algum problema com a sua mãe? Ela está bem?
— É Beth. Eu sei... — Não pôde terminar a frase: não tinha certeza do que vinha em seguida. — Preciso ver você já.
Ela não fez mais perguntas. Apenas deu-lhe seu endereço. Não de casa, mas do trabalho: um complexo de estúdios de artistas plásticos, em Chelsea. Disse que era mais perto, mas ele desconfiou que houvesse outro motivo. Talvez estivesse com alguém; talvez sentisse vergonha de ainda estar sozinha; ou talvez simplesmente não quisesse enfrentar a intimidade de receber Will em seu apartamento.
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