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Sistemas escolares e reprodução social
A educação é uma ação social ao mesmo tempo conservadora e inovadora: ela
ajusta as gerações à ordem vigente e também dá subsídios para mudanças, ao
adequar padrões de comportamentos à sociedade e fazer novos usos das
inovações tecnológicas e materiais. Como processo responsável pela
socialização - ou seja, pela transmissão constante de valores sociais e padrões
de comportamento -, a educação transmite e reproduz, de forma sistemática,
os valores sociais estabelecidos, ou seja, os princípios de condução da vida
social. Em sintonia com a dinâmica das sociedades, tanto os valores como o
processo educacional se modificam no decorrer do tempo.
Na educação se refletem as mudanças políticas, culturais e sociais, pois ela é
instigada a se adaptar para atender às tradicionais e atuais demandas da
sociedade. Entre as teorias sociológicas que pensaram a educação no século
XX, duas tendências se destacam:
a) a primeira é a corrente de pensamento funcionalista, presente
principalmente nas teorias de Émile Durkheim, que identificou na educação
uma função integradora, transmissora de cultura, de valores e de
conhecimentos vigentes;
b) a segunda é formada pelas interpretações ligadas às teorias do conflito
social, da hegemonia e da dominância de alguns grupos sobre outros.
Destacam-se as análises do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002),
que reconheceu a reprodução de desigualdades de diferentes tipos pelo
sistema escolar.
Os sistemas escolares modernos de diversos países se assemelham pelo fato
de terem um ensino básico nas escolas, destinado à infância e à adolescência,
e um ensino superior para jovens e adultos. No entanto, há uma grande
diversidade de sistemas, em resposta à organização política de cada país.
Atualmente, esses sistemas costumam ser apresentados, sobretudo na
sociedade brasileira, como um caminho para chegar à igualdade social e à
liberdade política e para oferecer oportunidades apropriadas ao talento e à
capacidade dos indivíduos.
De acordo com Durkheim, cada sociedade e época possuem um sistema de
educação que se impõe aos indivíduos, o que ilustra a característica coercitiva
das instituições sociais. Desde o início da modernidade capitalista, a educação
se difunde pelos diversos setores sociais, ao mesmo tempo que comporta e
estimula a competição e cria diferenciações, muitas vezes apoiando
desigualdades. Além disso, a educação favorece a ascensão social, pois é por
meio dela (mas não exclusivamente) que indivíduos e grupos podem obter
acesso a melhores condições financeiras e de cidadania na sociedade.
Inspirada nos preceitos da ideologia liberal - a livre-iniciativa, a igualdade
perante a lei, a proteção das liberdades civis e o individualismo -, a educação
foi estimulada como uma prática social democrática na era contemporânea.
Porém, no contexto da sociedade brasileira de classes, sua expansão se deu
pelo acesso a uma escola culta e letrada para as classes dominantes e a uma
escola mínima com iniciação para o trabalho, destinada às camadas
socioeconômicas menos favorecidas - perpetuando-se, assim, a divisão social
existente. Esta desigualdade é fruto de escolhas políticas feitas ao longo da
História que favoreceram a criação de escolas particulares e reduziram os
investimentos materiais e simbólicos do Estado na educação pública brasileira.
FONTE: Filipe Rocha/Arquivo da editora
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LEGENDA: Cerimônia com formandos do curso de Direito da Universidade de
São Paulo (USP), em 1960. As formas de acesso ao sistema de ensino
superior brasileiro ajudam a manter a divisão social existente.
FONTE: Reginaldo Manente/Agência Estado
LEGENDA: Curso profissionalizante de confecção de roupas no Rio de Janeiro
(RJ). Foto de 2014.
FONTE: G. Evangelista/Opção Brasil Imagens
A educação formal reproduz as próprias contradições da sociedade de classes.
Em sua teoria da reprodução social, baseada em estudos sobre o sistema
educacional francês, Pierre Bourdieu reflete sobre o ideal da igualdade
perseguido, em tese, pela educação. Como uma estrutura que valoriza os
princípios e padrões culturais dominantes, a educação formal reproduz a si
própria e à sociedade, reforçando as desigualdades sociais ainda nos bancos
escolares.
Bourdieu parte da concepção de que as relações de classes geram relações de
poder entre elas. Essas relações de poder são muitas vezes dissimuladas pelo
convívio, no qual a imposição de uma classe ou grupo social sobre outro ganha
dimensões simbólicas, ou seja, não é direta nem acontece pela força física. Em
outras palavras: o sistema educacional está vinculado à cultura dominante, que
é imposta no domínio das letras, das artes, da ciência e de manifestações da
cultura.
Um exemplo são os livros estudados no currículo escolar de literatura, na
disciplina de Língua Portuguesa: quase sempre se trata de obras consideradas
"boas" por autores que, na maioria das vezes, pertencem ao mesmo grupo
social, enquanto obras de autores que produzem literatura tida como alternativa
ou marginal são, muitas vezes, ignoradas. Vejamos um exemplo: o escritor
Mário de Andrade (1893-1945) foi reconhecido como um importante autor de
prosa literária por intelectuais da elite cultural de sua época. Esse
reconhecimento se manteve nas gerações seguintes de críticos literários, e sua
obra é muito estudada atualmente por pesquisadores nas universidades. Com
isso, a leitura de seus livros costuma ser mais recomendada em escolas e nos
meios de comunicação que a das obras de Ferréz (1975-), que tratam da vida
no Capão Redondo, um bairro na periferia da cidade de São Paulo. Como
resultado, os estudantes mais familiarizados com a obra de Mário de Andrade
acabam tendo vantagens sociais. Por exemplo, possivelmente terão maior
facilidade em vestibulares, nos quais as obras de autores com maior prestígio
na sociedade costumam ser consideradas leituras obrigatórias, diferentemente
das de escritores como Ferréz.
Se usarmos os termos criados por Bourdieu, poderíamos dizer que conhecer
bem a obra de determinado escritor prestigiado é um tipo de domínio sobre a
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