CAPÍTULO 38
- Maldição...! É impossível localizá-lo. Está desligado.
Cristina deixou o telefone celular sobre a mesa. Nicolas, que andava de um lado para outro no escritório, surpreso pelo desaparecimento de Cárdenas, teve o pressentimento de que ele havia se convertido na terceira vítima de Os Filhos da Viúva, tal como imaginava que haveria mesmo de acontecer, finalmente.
—Eles o encontraram, tenho certeza... — parou no meio da sala para expor sua teoria, em tom fúnebre. — E nós deveríamos ter muito cuidado, se não quisermos ser os próximos.
—Não diga bobagens — ela o recriminou, com amargura. — Se o Leo não está aqui é porque nos deixou para trás na investigação. Estou certa de que ontem à noite ele encontrou um indício confiável de como chegar até a Arca... — olhou seu interlocutor com frieza, esperando que fosse capaz de entender o motivo de sua repentina irritação — ...você não percebe...? Foi mais rápido que nós e tratou de ir embora com a resposta.
—Mas... — objetou o advogado, sem concluir a frase que estava pensando, para encolher os ombros e perguntar — ...tem alguma idéia para onde ele pode ter ido?
— Vamos necessitar de ajuda, se quisermos averiguar isso.
A criptógrafa voltou a pegar o telefone móvel, indo até a janela e, dessa forma, afastando-se de Nicolas. Procurava privacidade para falar, supostamente, com seu elo do CNI .
Enquanto Cristina conversava com alguém do alto escalão da espionagem espanhola, Colmenares tratou de recordar os motivos que o levaram a envolver-se com aquele assunto escuso. Depois da conversa que manteve com Mercedes, no restaurante, não teve outro remédio senão colocar-se em contato com seu amigo Hijarrubia, para lhe contar o que sabia com relação ao assassinato de Balboa e do códice medieval, já que este conhecia pessoalmente o ministro do Interior e poderia lhe dar uma ajuda no delicado assunto da ocultação de provas, por parte de Mercedes. Horas depois, veio vê-lo um homem que dizia trabalhar para o Centro Nacional de Inteligência. Teve de responder a uma série de perguntas sobre a morte de Jorge e sua possível vinculação com algum tipo de irmandade de caráter esotérico.
Em seguida, envolveu-o no caso, dizendo que se tratava de um assunto de segurança nacional, e lhe confiou uma de suas melhores agentes, Cristina Hiepes, para que se infiltrasse na casa de leilões, aproveitando que a diretora precisava de alguém qualificado para substituir Cárdenas por uns dias. Assim, essa mulher destacada para o trabalho estaria em contato direto com os implicados. Sua missão consistiria em familiarizar-se com o manuscrito de Toledo e averiguar até que ponto eram corretas as afirmações do pedreiro e o fanatismo dos que pretendiam ocultar, ao mundo, os conhecimentos dele. Mas a morte de sua velha amiga alterou drasticamente os planos. Decidiram, então, que tanto ele como a criptógrafa deveriam colocar-se em contato com a única pessoa que sabia o que estava acontecendo: Leonardo Cárdenas.
Agora, porém, depois de investigar o que procuravam com tanto empenho, tinha suas dúvidas. Será que o CNI sabia da existência da Arca desde o princípio? Seria essa a razão pela qual haviam deixado do lado a investigação criminal para concentrar-se no criptograma? O que pensa fazer o pessoal da Inteligência com uma relíquia tão valiosa como a Arca do Testemunho?
—Pegue as fotografias da cripta e as anotações — propôs Cristina, que regressava, guardando o telefone na bolsa. — Vamos até a casa de Leo fazer-lhe uma visita.
Colmenares apressou-se a cumprir as indicações dela, introduzindo as fotos em uma pasta com o logotipo da empresa.
—Que faremos se, por acaso, ele estiver no apartamento dele, com ressaca? — perguntou o advogado, enquanto se dirigiam até a porta. — Sim, porque se acaso você ainda não notou, saiba que esse homem tem um problema com o álcool.
—Não creio que vamos encontrá-lo ali — ela respondeu, com segurança. — E mais: espero que não haja ninguém na casa. A Central vai mandar uma unidade de reconhecimento... — pestanejou, pensativa, para acrescentar — ...vamos fuçar um pouco nas coisas dele.
Minutos depois, dirigiram-se à residência do bibliotecário. Durante o trajeto, Nicolas não deixou de pensar no que iriam fazer. Entrar em uma casa alheia sem ordem judicial implicava invasão de domicílio. Estar envolvido em algo dessa natureza poderia lançar por terra sua carreira, caso viessem a saber os integrantes do Colégio de Advogados de Madri. Por outro lado, aventou a possibilidade de que os agentes do CNI talvez tivessem autorização para atuar, com o consentimento tácito de um juiz. Nesse caso, a ocorrência seria dentro da legalidade.
Mesmo assim, observou algo estranho no comportamento de Cristina depois do sumiço de Leonardo, e era algo que não o convencia, de jeito nenhum. Aquela manhã, por exemplo, ela parecia diferente. Achou que a melhor maneira de conseguir informação dela seria iniciando uma conversa estritamente inquisitiva e pessoal.
—O que houve ontem à noite, depois que eu saí do escritório? — virou a cabeça em direção a ela, ao fazer a pergunta. — Deve ter acontecido algo, para que ele tenha ido embora sem antes nos consultar.
—Eu disse a ele que não engolia a história de que Riera e sua sobrinha tivessem sido seqüestrados — ela respondeu, secamente.
—O quê...? — não conseguia acreditar nas palavras da criptógrafa — ...é o que você realmente pensa?
—Ainda não estou segura. O pessoal do Centro está investigando... — disse, movendo a cabeça para o lado, chateada —..., mas o certo é que me parece muito estranho que seqüestrassem Riera e Cláudia e, em seguida, deixassem vivo nosso amigo Leo. Não seguiram o mesmo padrão com os outros, algo inconcebível em se tratando de indivíduos tão metódicos e implacáveis. Além disso, o fato de que lhe permitissem falar com sua faxineira, do aeroporto, é um dado bastante significativo... Não lhe parece?
—Reconhece que não tem certeza e, mesmo assim, lançou na cara de Leo essas conjecturas meio pesadas — reprovou-a. — Na verdade, agora entendo porque ele foi embora. Deve estar ofendido.
Cristina argumentou, sentindo-se desconfortável.
—Eu lhe repito que o motivo não é esse — insistiu. — Encontrou o lugar onde escondem a Arca e, neste momento, está à procura dela.
Depois de alguns segundos de introversão, Colmenares voltou a retomar o diálogo exatamente onde havia parado.
—Explique-me uma coisa... se você está tão certa de que Cláudia e seu tio estão vinculados de alguma forma a Os Filhos da Viúva... qual é a razão de sua atitude maternal com a filha de Riera?
A criptógrafa esboçou um amplo sorriso, orgulhosa de si mesma.
—Ela é meu curinga nesta difícil partida.
Quando chegaram ao apartamento de Cárdenas, encontraram a porta aberta e a fechadura arrombada. Entraram sem perda de tempo ao perceberem ruídos no interior.
—Os Vigilantes já estão aqui — confirmou Cristina, que, assim, costumava chamar os agentes do serviço secreto encarregados de controlar a vida e os hábitos de todo aquele indivíduo que estivesse sob suspeita de ser um profissional do crime ou terrorista.
De fato. Três homens vestidos de negro, com aspecto de sicários, abriam e fechavam gavetas dos vários móveis, enquanto tratavam de recolher tudo o que pudesse conter alguma informação. Cristina os saudou em inglês:
—Hi, boys!
Nicolas se colocou na defensiva ao descobrir que aqueles três gorilas se entreolhavam com transparente lucidez, como se estivessem surpresos ao ver Cristina em companhia de um homem. O fato de nenhum deles ser o agente do CNI, que fora enviado por Hijarrubia, fez com que o advogado se sentisse incomodado. Não obstante, decidiu guar¬dar silêncio e ver como os acontecimentos iriam se desenrolar.
A criptógrafa se aproximou do mais forte dos três, um indivíduo com uma enorme cicatriz sob a pálpebra direita. Trocou com ele um par de frases em voz baixa e, em seguida, dirigiu-se ao dormitório de Leonardo, em companhia dos outros dois agentes. Cristina voltou a ficar ao lado do advogado.
—Não há nada de interesse aqui, apenas algumas anotações que pouco vão nos ajudar — lamentou. — Foi uma jogada muito hábil de nosso amigo.
—Continuo acreditando que Leo está em apuros. Isso, se já não estiver morto... — Colmenares fez uma pausa de efeito retórico. — Por acaso você já aventou essa possibilidade?
A ruiva soltou um grunhido perspicaz, negando-se a responder.
Não estava disposta a continuar suportando a falta de perspectiva dele; então, se concentrou na mesa do escritório do bibliotecário. Estava bagunçada, pois foi justamente onde os Vigilantes haviam investigado primeiro. Sentou-se na cadeira, tratando de reconstruir os últimos passos de Leonardo em sua casa, na noite anterior. Imaginou que ele estivesse diante do computador procurando informação na Internet, tal como prometeu que faria, tão logo chegasse ao apartamento. Foi quando ela percebeu que aqueles inúteis do serviço secreto haviam esquecido de registrar o mais importante, nesse caso: a memória do disco rígido do computador.
Sem mais tardar, ligou o computador. Nicolas, intuindo que Cristina pudesse ter encontrado algo, talvez uma pista que lhes servisse de ponto de partida, aproximou-se por trás com a intenção de averiguar do que se tratava.
—Posso saber o que você está fazendo? — perguntou, interessado.
—Se Leo andou examinando páginas da Internet à procura de alguma informação que pudesse nos ajudar a encontrar a Arca, esse movimento deve estar registrado nas últimas consultas — respondeu, enquanto deslizava o mouse sobre o mousepad. Alguns segundos depois, conseguiu encontrar o que buscava. Era um localizador geográfico.
—Aqui está — disse, com alívio, clicando no ícone do programa Google Earth.
A direita do visor, viu a imagem de um globo terrestre sobre um fundo escuro, salpicado de estrelas: à esquerda, um sofisticado painel, encabeçado por outro buscador. Nele estavam escritas algumas coordenadas que lhe pareceram familiares.
—Não são os números que vimos no remetente da carta que Leo recebeu? — perguntou Nicolas, de novo.
—Sabia que ele nos escondia algo, mas eu lhe juro por minha vida que ele não escapará com a dele — sentenciou Cristina, num surto de exasperação.
Clicou na "busca". Logo depois viram na tela a reprodução virtual do planeta Terra, com uma aproximação lenta, até que o programa se deteve na zona noroeste do continente africano, sobre a esplanada de Gizé e exatamente em cima da Grande Pirâmide.
—Como é que eu não havia pensado nisso antes? — Cristina se questionou, para, em seguida, levantar-se, afastando o advogado com um empurrão.
Sem pedir sequer desculpa, chamou os homens que continuavam procurando no dormitório. Colmenares foi atrás dela, docilmente, como se fosse um cachorro pequinês.
—Você acha que Leo viajou para o Egito? — perguntou, embora ele mesmo tivesse dúvidas a respeito. — Se for isso mesmo, deveríamos primeiro informar seus superiores... com certeza... a que departamento você disse que seus amigos pertencem?
Cristina olhou para ele com expressiva virulência, demorando para responder, até que os Vigilantes tivessem retornado à sala. Somente aí esclareceu:
—Esses homens — começou dizendo — fazem parte de um grupo especial, dedicado à busca e localização de armas de destruição em massa, capazes de colocar nossa civilização em perigo. Se estão aqui é porque a CIA suspeita que uma ordem esotérica, mais oculta, poderosa e influente até mesmo que o Club Bilderberg, guarda uma relíquia capaz de dominar os povos da Terra graças a uma força que poderia superar em muito a bomba de nêutrons... — então, sorriu de forma impressionantemente cáustica. — Mas claro, esqueci de lhe dizer que seu amigo Hijarrubia não trabalha para o governo espanhol... nem eu, tampouco.
Antes que o advogado pudesse digerir suas palavras, ela disse ao mais alto dos sicários:
—Take you charge of him... It must seem like an accident.
(Encarregue-se dele... e que pareça um acidente!)
O boquiaberto Colmenares não conseguiu reagir. O tipo da cicatriz o pegou por trás, impedindo-o de esboçar qualquer movimento, enquanto outro de seus companheiros lhe aplicava uma seringa no pescoço, injetando um potentíssimo sedativo. O lugar começou a dar voltas na confusa mente do advogado, até que, finalmente, a escuridão tomou conta de tudo. Aquele haveria de ser seu último sonho.
—Será melhor que você se arrume um pouco, se quer mesmo me acompanhar — disse Cristina assim que entrou em seu apartamento.
—Nosso avião parte dentro de uma hora.
Lilith, que estava assistindo a um programa de televisão deitada no sofá, apagou o cigarro no cinzeiro. Pareceu bastante interessada ao suspeitar que deveriam deixar o país para ir em busca da Arca.
—Isso quer dizer que vocês encontraram meu pai? — perguntou, depois de ouvir as explicações da criptógrafa.
—Falaremos a respeito no caminho. Agora, não tenho tempo. Cristina foi direto a seu quarto. A alemã se levantou, para ir ter
com ela.
—Há dois dias estou fechada entre quatro paredes sem saber nada dele! Compreenda que preciso saber se você vai fazer todo o possível para tentar libertá-lo de seus seqüestradores — suplicou a jovem, em uma atitude de fingido desespero. — Por favor! É só o que preciso ouvir!
A proprietária do apartamento voltou-se para prestar atenção na garota. Decidiu agir com cautela, levando a farsa ao extremo.
—Está bem, eu prometo — disse-lhe, com voz de tom amigável.
—Mas agora temos de ir embora ou perderemos o avião. Não há outro vôo até amanhã.
Abriu a porta do armário, para tirar uma mala de viagem, onde introduziu parte de seu guarda-roupa de verão e peças íntimas.
—Eu estou falando sério. Será melhor que você se apresse com sua bagagem... — largou o que estava fazendo para insistir, novamente: —eu não queria que esse bastardo do Leo tomasse a dianteira!
—O que você quer dizer?
—Que temos de fazer isso sozinhas — respondeu, repentinamente séria. — Nicolas está tendo que cuidar da herança de uma antiga amiga e Leo decidiu procurar Riera por sua própria conta.
—Isso significa que vocês sabem onde ele está preso... não é isso? —insistiu Lilith, de novo.
Esperou que a outra falasse, que confiasse nela. Para sua maior decepção, porém, Cristina se mostrou muito cuidadosa nesse aspecto.
—Eu lhe contarei tudo quando estivermos no avião.
CAPÍTULO 39
Leonardo dispensou o camareiro, depois de lhe dar uma bela gorjeta. Fechou a porta à chave, deixou a bagagem sobre a cama e foi até a janela para abri-la de par em par, já que havia um odor corrosivo e áspero no ambiente e que lhe sufocava a garganta. Ficou ali, com parte do corpo ligeiramente inclinada ao exterior, para tomar ar e admirar, a distância, a incrível paisagem de casas centenárias, cujos telhados se aglomeravam da Avenida Port Said até Ramesses.
Por um instante, sentiu-se transportado no tempo até o velho Cairo de finais do século XIX. Mas, apesar da beleza daquele mundo estranho e misterioso que alimentava suas fantasias mais voluptuosas, distanciando-o do misticismo alheio, não deixava de pensar de que forma iria encontrar Cláudia se não conhecia ninguém na cidade. Nem sequer sabia se ela e Salvador continuavam juntos ou se, ao contrário, Cristina teria razão e o arquiteto era um membro da loja. Não queria pensar em algo assim. Ficava mortificado só de imaginar isso.
Tirou os sapatos para ficar mais confortável. Depois guardou a mala de viagem no armário e se estendeu na cama, tomando todo o espaço disponível, decidido a descansar. Precisava dormir um pouco e esquecer, durante algumas horas, tudo aquilo que poderia confundido ainda mais.
Mal fechara os olhos, tocou o telefone que estava à seu lado, sobre o criado-mudo. O coração saltou dentro de seu peito, devido ao sobressalto. Em um ato reflexo, inclinou o corpo para a frente até sentar-se. Sua mão tremia quando fez o gesto de pegar o bocal.
Não fazia nem dez minutos que havia se hospedado no Nile Hilton e já tinha sido localizado. Isso queria dizer que Os Filhos da Viúva seguiam de perto seus passos.
—Sim...? Quem é? — perguntou, de maneira contundente.
—Boa tarde, senhor Cárdenas — disse uma voz com forte sotaque árabe, mas em espanhol muito aceitável. — Lamento perturbá-lo, mas acabam de deixar uma carta para o senhor na recepção. Deseja que mandemos entregá-la em seu quarto?
Respirou, profundamente aliviado. Era o gerente do hotel.
—Sim, por favor... — balbuciou, para pigarrear ligeiramente e acrescentar: — ...e grato por ter o cuidado de me avisar.
—Não há de quê, senhor.
Calçou novamente os sapatos, pronto para esperar a chegada do mensageiro de plantão. Enquanto aguardava, foi outra vez até a janela com o propósito de arejar seus pensamentos. Não saía de sua cabeça o comentário de Cristina em relação a Salvador e a sua possível ligação com a loja. Era verdade que ele conhecia a fundo os rituais secretos da fraternidade e muitas histórias que falavam de ciências divinas, alquimistas e templários.
Podia compreender seu afã por conhecimentos como um remédio lúdico à sua deprimente solidão, mas havia algo, um detalhe, que lhe custava digerir e era o fato de que seu automóvel houvesse desaparecido na manhã em que foram seqüestrados. Isso o levou a pensar que talvez estivesse equivocado e que Cristina tivesse razão. O pior de tudo era não saber se Cláudia também fazia parte do engano.
Bateram à porta. Voltou a entrar no quarto para dar entrada ao mensageiro. Um jovem muito delgado lhe entregou um envelope fechado. Em troca recebeu uma generosa gorjeta, que guardou rapidamente no bolso da calça. Depois de agradecer ao hóspede, foi embora pelo corredor, assobiando uma estranha canção.
Tão logo ficou a sós, Leonardo abriu cuidadosamente o envelope, pela parte superior. Extraiu uma folha dobrada. Nela, havia uma mensagem bastante explícita:
"Se chegou até aqui é porque conhece a solução da charada, embora neste momento seja incapaz de reconhecer o verdadeiro sentido de seu poder. Se deseja aprender até onde é capaz de chegar o homem, se na realidade quer saber qual é o caminho que conduz à Sabedoria, ou simplesmente necessita se comunicar com Deus, basta que atravesse a rua e entre no Museu Arqueológico. Ali haverá uma pessoa esperando por você. Ouça o que ela tem a dizer. Abra seu coração ao sentimento que emanará de suas palavras. Nada do que você está pensando, agora, está correto. Engana-se, caso acredite que eu estou usando você. Não espero convencê-lo. Você é quem deve estar seguro de querer enfrentar a verdade. Somente você pode subir os degraus da escada. Só precisa ter vontade de fazê-lo. Mas, sobretudo, não esqueça a importância de utilizar adequadamente a chave da loja. Ela é seu maior tesouro... e seu escudo protetor. Balkis"
Guardou a carta no envelope, para depois deixá-la sobre a cadeira que havia junto à janela. Foi até ela. Fora, em frente ao hotel, pôde ver a fachada do emblemático edifício, onde estavam guardadas as relíquias mais enigmáticas e valiosas do Antigo Egito. Segundo a mensagem, alguém o aguardava lá dentro. Perguntou-se se seria prudente ir a um encontro às cegas com criminosos reincidentes. Depois de refletir alguns segundos, compreendeu, resignado, que não tinha alternativa.
Indeciso, foi até a mala de viagem para tirar o DVD e as anotações, com o objetivo de colocá-los em lugar seguro, da mesma forma que a coleção de páginas que compunham O Mistério das Catedrais. Se o propósito dos assassinos era recuperar a informação que ele tinha em seu poder, fazê-lo ir ao Museu Arqueológico bem que poderia se tratar de uma armadilha para distrair sua atenção e se apoderar do que havia registrado no interior da cripta.
Deixou tudo guardado no cofre do armário. Não é que fosse um lugar absolutamente seguro, mas, tampouco, poderia levar consigo os documentos. Assim que terminou sua tarefa de ocultados, junto com a gravação, foi direto para a porta, com a firme intenção de ir ao encontro do desconhecido.
— Você vai me contar, agora, onde está meu pai ou terei de esperar até que termine de ler as notícias?
Lilith olhou sua acompanhante com atrevimento. Cristina teve de deixar o jornal de lado, para enfrentar a autoritária reivindicação de sua protegida. Ambas ocupavam as poltronas da parte frontal do avião. Viajavam de primeira classe.
—Eu já lhe disse que nosso destino é o Cairo... — disse, fitando-a fixamente nos olhos por alguns segundos — ...o que mais precisa saber?
—O motivo pelo qual ele foi seqüestrado.
A resposta da jovem foi taxativa. Sua paciência estava no limite extremo. Era tão explícito o seu olhar, que Cristina não teve outro remédio senão a reticência.
—Ouça... só posso lhe dizer que vamos libertar seu pai. Não estou autorizada a falar do assunto e isso deveria lhe bastar, no momento.
—Você tem de compreender minha obstinação... — respirou fundo e olhou o teto do jato comercial. — Eles o mantêm preso, contra sua vontade, e só o que posso fazer para ajudado é deixar-me levar pelo impulso de uma pessoa que até poucos dias atrás era uma completa estranha para mim.
—Por acaso você não confia em mim?
—A confiança é recíproca — provocou a alemã, voltando a cabeça para olhar a janela que havia a seu lado.
A criptógrafa percebeu que devia conquistá-la, se não quisesse acentuar suas suspeitas.
—Está bem... — rendeu-se, finalmente — ...pelo visto não tenho outra escolha... — fez uma careta furtiva. — Mas antes você tem de me prometer que não falará com ninguém a respeito do que vou lhe contar.
—Não sei com quem poderia fazê-lo... — retrucou sua interlocutora, ao mesmo tempo em que girava a cabeça 180 graus. De qualquer forma, tem minha palavra de honra.
Lilith ofereceu a ela sua expressão facial mais convincente, em termos de sinceridade, mas talvez também a mais profissional. Estava mergulhada em seu papel de filha angustiada.
—Até onde eu sei, seu pai e a sobrinha dele, Cláudia, foram seqüestrados por uma ordem esotérica denominada Os Filhos da Viúva — confessou Cristina, em voz baixa. — Pelo visto, alguns dias antes eles haviam decifrado um antigo documento codificado, no qual se indicava claramente a forma de se chegar a um dos tesouros mais caros da maçonaria. E Leo foi o único dos três que conseguiu escapar na noite do seqüestro.
—E o que você e o advogado de meu pai têm a ver com tudo isso?
—Quem contratou Nicolas foi Riera, e este, por sua vez, me chamou para que lhe desse uma mão com o manuscrito, no mínimo para observar se era uma falsificação... — ela sentiu o gosto amargo da hipocrisia. — Mas quando chegamos a Santomera para ter um encontro com eles e analisar o texto, soubemos que haviam desaparecido. Foi quando vimos você na porta da propriedade dele.
A alemã concordou, em silêncio, percebendo que a história estava incompleta. Sabia muito bem que a outra lhe ocultava sua relação com a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, bem como os assassinatos do paleógrafo e da diretora da Hiperión, talvez, no final das contas, para não ferir sua sensibilidade. Que tonta! — pensou. — Jamais suspeitaria que estava falando justamente com a responsável pelas mortes.
—Vejamos... — virou o corpo para Cristina — ...segundo sua versão, os seqüestradores de meu pai o mantêm escondido em algum lugar do Cairo... — enrugou a testa — ...e pode me dizer em que se baseia para chegar a essa conclusão?
—Nas averiguações de Leo. Nesta mesma tarde encontramos em seu apartamento certas anotações que indicam isso.
—Vocês entraram na casa dele sem a sua permissão? — fingiu que aquilo lhe parecia estranho.
A criptógrafa compreendeu que havia falado muito mais do que devia, por isso tentou corrigir seu erro, inventando uma nova história.
—Ele entregou uma cópia de sua chave a Nicolas. Creio que ambos pensavam compartilhar o apartamento por alguns dias, até que tivéssemos uma pista confiável.
—E o que se passou com Leo? — inquiriu Lilith, de novo. — Deve ter algum motivo para se deslocar daqui sem nos dizer nada.
—É um homem e, como tal, necessita reafirmar sua masculinidade... Sente-se culpado pelo desaparecimento de seu pai. Seu desejo de manter a liderança é tamanho, que preferiu ocultar de nós o lugar onde acredita que estejam mantendo os prisioneiros, em vez de pedir nossa ajuda.
—Ele sabe onde é, na realidade?
—Sinceramente, não tenho certeza... — Cristina levantou as mãos. — Mas, tão logo cheguemos ao Cairo, a primeira coisa que faremos será procurá-lo, para lhe pedir explicações.
Lilith calculou que já era o bastante. Poderia levantar suspeitas se continuasse indagando. Cada coisa a seu tempo.
Pediu licença, um instante, para ir ao banheiro. Começou a andar no corredor do avião, na tentativa de manter o equilíbrio. Chamou sua atenção, entre os passageiros, certo indivíduo que lia uma revista esportiva três poltronas atrás da de Cristina. Ela já o havia visto antes — estava segura disso — junto a outros dois sujeitos, dentro de um carro estacionado diante da porta do edifício onde ela estivera dormindo nos últimos dias. Ela o reconheceu pela extensa cicatriz sob a pálpebra. Descobriu, então, que o rapaz que estava à seu lado era outro dos ocupantes daquele veículo. Olhou ao redor, até encontrar o terceiro, que ocupava uma poltrona mais adiante, no corredor.
Imediatamente suspeitou que deviam pertencer ao departamento mais obscuro do serviço secreto norte-americano, e que sua missão não era outra senão oferecer apoio a Cristina em sua tarefa de localizar a Arca, assegurando-se de que ninguém haveria de perturbá-la. Não achou a menor graça saber que teria de se confrontar com tipos de sua mesma laia, gente treinada para matar sem nenhum tipo de escrúpulo. Mas, como sempre, Lilith contava com o fator surpresa. Ninguém sabia quem ela era, na realidade, e isso lhe dava certa vantagem.
Foi até o banheiro e fechou a porta por dentro. Em seguida, baixou a tampa do vaso para poder sentar-se. Precisava pensar em solidão.
Leonardo caminhava a esmo pelas distintas galerias, esperando que alguém entrasse em contato com ele. Faltavam apenas alguns minutos para as oito — hora em que as portas do museu eram fechadas até o dia seguinte —, razão pela qual fez um esforço para localizar a pessoa com a qual deveria se encontrar, antes que os guardas de segurança tratassem de pedir às pessoas que deixassem o recinto. O lugar estava abarrotado de turistas ávidos por cultura e conhecimento. Iam de um lado para outro, observando as diferentes figuras e adornos expostos atrás das enormes vitrines de cristal blindado. Seguia com o olhar a maior parte das pessoas que perambulavam por ali, mas nenhuma delas manifestou intenção de se aproximar.
Naquele mesmo instante, ouviu uma voz que vinha de um ponto atrás dele.
— Nos tesouros da sabedoria estão as máximas da ciência.
Voltou-se, com rapidez. Diante dele havia um árabe vestido segundo a antiga tradição do país. Sua túnica de gaze com debruns dourados nas mangas parecia elegante, apesar do enorme medalhão de ouro que pendia de seu pescoço, um estranho talismã circular com um quadrado em seu interior e, dentro desse quadrado, viu um triângulo com o símbolo do Tetragrámaton: o nome de Javé.
Parecia paradoxal que um árabe ostentasse esse adorno que invocava o poder do deus judaico, quando qualquer islâmico preferia ter sua pele arrancada antes de deixar que alguém lhe colocasse uma relíquia daquelas. Javé e Alá andavam em guerra há séculos, mas aquele sujeito não parecia saber disso.
—Terei de interpretar o significado da frase? — perguntou, finalmente, depois de ter examinado, de cima abaixo, a estranha criatura.
O homem sorriu, com delicadeza.
—É apenas um comentário que se deve levar em conta — reconheceu, com suavidade. — Pertence ao livro denominado Eclesiástico. Você não é obrigado a compreender sua mensagem, mas sou de opinião de que tais palavras deveriam ser ouvidas por todos os homens... — então estendeu seu braço para apresentar-se — ...eu me chamo Khalib Ibn Allal e sou o diretor-geral do museu.
Cardenas aceitou a saudação, apertando a mão dele.
—Eu sou Leonardo Cárdenas, mas não sei se...
—Não se preocupe, senhor Cardenas — o outro o interrompeu, de maneira cortês. — Sei perfeitamente quem é ...e também o que veio procurar.
O bibliotecário reagiu retesando o corpo, ao descobrir que ele era seu contato.
—Engana-se caso pense que estou interessado em descobrir os mistérios da loja. Só o que me interessa é saber se Cláudia está bem.
O fato de que eram eles que controlavam a situação lhe provocava certo desassossego. Mas sabia agir com firmeza, para não demonstrar publicamente a insegurança que lhe provocava sentir-se vigiado.
—Azogue está muito bem — lhe disse seu interlocutor, adotando uma atitude muito mais cerimoniosa.
—Como você a chamou? — perguntou, perplexo.
—Azogue — o outro repetiu. — É uma palavra utilizada na alquimia. É composta pela primeira e última letra dos alfabetos latino, grego e hebraico. É o nome maçônico de Cláudia.
—Não acredito! — exclamou, em voz alta. — Está tentando me confundir...! — engoliu com muita dificuldade e levantou a voz. — Sei que Salvador está atrás de tudo isso, mas não permitirei que imiscuam Cláudia em algo tão sórdido.
Muitos turistas começaram a murmurar ao ouvi-los discutir. Hiram não teve outro remédio senão tratar de acalmá-lo. Não era prudente chamar a atenção.
—Será melhor que o senhor me acompanhe... — fez um movimento com a cabeça, convidando-o a caminhar. — Compreenderá tudo, depois que falarmos em meu gabinete.
Seguiu por um corredor à direita, no qual havia um cartaz com um aviso que proibia — em inglês, francês e árabe — a entrada de pessoas estranhas ao museu. Depois caminhou por outro acesso, cujas paredes eram forradas de cedro e, finalmente, chegaram a uma sala circular com uma fonte de pórfiro rosa ao centro. Do outro lado havia uma porta. Era a sala do diretor.
Hiram abriu com chave, cedendo a passagem a seu convidado. Este observou, tão logo entrou, que se tratava de um pequeno gabinete, com uma mesa velha ao centro. As paredes estavam repletas de estantes, com livros antigos. Em uma urna de cristal, encostada à parede, pôde ver que estavam guardados vários amuletos egípcios, tais como escaravelhos, cruzes ansatas e figuras mortuárias esculpidas em lápis-lazúli .
—Por favor, sente-se... — com a mão esquerda, indicou uma cadeira vazia, situada em frente à mesa — ...posso chamá-lo de você?
—Por favor... — respondeu Leonardo, sem saber onde seu interlocutor queria chegar com tanta familiaridade.
Hiram, circunspecto, ocupou seu lugar do outro lado da mesa.
—Você deve estar se perguntando quem somos e qual é, na realidade, nosso propósito... — começou dizendo —, e também talvez por que fomos capazes de calar as vozes de quem colocou em perigo o segredo mais bem guardado de nossa loja.
—Não é preciso conhecer suas obras para saber que são pessoas sem escrúpulos — afirmou, sem rodeios.
—Você também pensa assim de Cláudia?
Havia colocado o dedo na ferida. Reconhecer a culpa dela, supunha implicada. E ele não estava disposto a acreditar em algo semelhante.
—Se lhe serve de consolo, Cláudia não teve nada a ver com os assassinatos — adiantou-se a dizer o bom Hiram, antes que o outro retrucasse, alterado.
—Isso eu já sabia — replicou o bibliotecário, sentindo-se mais tranqüilo ao certificar-se de que sua companheira estava à margem dos crimes.
—Escute... — disse o árabe — ...não espero que você confie em mim, mas pode fingir que acredita — fitou-o nos olhos, esperando que cooperasse no que fosse possível. — Sei que foi um erro imperdoável acabar com a vida do paleógrafo, mas a decisão ficou sob a responsabilidade do Mestre dos Mestres e de alguns dos membros mais conservadores do Conselho. Balkis e eu só nos inteiramos depois do primeiro assassinato. Não conseguimos, tampouco, evitar a morte da diretora, mas em nenhum momento participamos dessa aberração, nem sequer Azogue... — sorriu, debilmente — ...ela conheceu você muito antes que Balboa trouxesse com ele o desafortunado manuscrito. Ainda que eu reconheça que a obrigamos a vigiar você e que a utilizamos para que entrasse consigo na cripta... — fez uma breve pausa, para, então, acrescentar — ...o golpe em sua cabeça doeu mais a ela do que em você.
—Foi Cláudia que...? — quis saber, temendo a resposta. Hiram voltou a sorrir.
—Em absoluto. Não teria sido capaz de fazer uma coisa dessas... — achou engraçado ver a cara do bibliotecário ao imaginar Cláudia com um objeto contundente na mão. Naquela vez foi Sholomo, ou melhor dizendo, Salvador, quem bateu em você.
Cárdenas revirou os olhos.
—Riera foi capaz de descer pelo buraco do esgoto e introduzir-se no estreito corredor sem quebrar nenhum osso? — custava-lhe muito esforço aceitar algo assim.
—As aparências enganam.
—Não é possível.
—Para sua informação, eu lhe direi que Sholomo não é apenas o Mestre dos Mestres da loja, mas também, na juventude, foi um dos melhores espeleólogos de seu país. Desceu a cavernas tão profundas, que dá vertigem só de pensar. Ele ensinou Cláudia, quando ela era criança, a amar esse tipo de atividade. O certo é que continuam praticando com freqüência, embora não tanto desde que ela o conheceu.
Leonardo recordou o momento em que Cláudia despencou pelo buraco, estando a ponto de cair em cima dele. A descarada estava zombando dele. O que não o surpreendeu muito foi saber, de fonte fidedigna, que o veterano arquiteto era o líder daquele grupo de malucos.
—E agora que sei a verdade sobre quem é quem... você vai me dizer qual é o terrível segredo que vocês escondem e pelo qual são capazes de assassinar pessoas inocentes?
—Creio que você já sabe.
—Quer dizer que aquilo da Arca da Aliança é verdade?
O rosto de Hiram permaneceu impassível. Vacilava entre responder ou guardar silêncio. Finalmente, cedeu à curiosidade de Cárdenas, porque foi isso que lhe recomendaram.
—Esse foi o nome que lhe deu Moisés, embora nós o chamemos de Trono de Deus. Mas não creio que devemos falar nisso, senão de seu grande poder libertador e de como pode afetar seu futuro e o de Cláudia. Vocês dois foram eleitos para ser os novos Guardiões do segredo, desde que estejam de acordo com isso.
O espanhol estava completamente surpreso.
—Isso é um convite para que eu me engaje em sua loja...? Porque se for isso mesmo, vou pensar que você está zombando de mim.
Os olhos de Hiram continuavam a olhar fixamente para ele. Nem de longe o afetou sua arrogância. Mais ainda: ele esperava por essa reação.
—O que estou lhe propondo é que desfrute o privilégio de renunciar à miragem enganosa que o mantém escravo da ignorância, para ingressar plenamente nos conhecimentos da Sabedoria, onde poderá beber de uma fonte que saciará todas as suas exigências.
Cárdenas, contrariado, fechou a cara.
—Minha única exigência é ver Cláudia, para levada comigo de volta a Madri... — mostrou-se inflexível, ao deixar bem claro quais eram suas intenções.
—Você a verá quando for a hora certa, mas antes escute o que tenho a lhe dizer.
—Está bem, fale! — exigiu, irritado. — Eu o advirto, porém, que não estou disposto a negociar nosso regresso juntos.
Hiram suspirou ao perceber nele certo orgulho mal reprimido. Sabia que, como acontecia a todos, o último degrau da escada haveria de lhe proporcionar momentos difíceis.
—Antes de mais nada, quero que você saiba que os membros do Conselho haviam decretado a sua morte ... — Hiram lançou o corpo para a frente e a luminária que pendia do teto criou sombras em torno de seu rosto, fazendo com que fosse ainda mais impenetrável — ...entretanto, Balkis decidiu conceder-lhe a oportunidade de decifrar a charada de iniciação, para que possa fazer parte da loja. E esse é um oferecimento que você não pode declinar sem refletir previamente a respeito... Se, como imaginamos, você conseguir e realmente souber o significado de guardar as chaves do segredo, o mais razoável seria que se juntasse a nós e aceitasse o indulto que oferecemos. Como qualquer negociação entre duas partes, tem suas vantagens e seus inconvenientes, mas isso é algo a respeito de que aos poucos você irá se dando conta, com o passar do tempo.
—Fale-me das vantagens — solicitou o bibliotecário, antes de mais nada porque sentia a comichão da curiosidade.
—Estaria unido a Cláudia durante o resto de sua vida... isso o agradaria?
Aquilo lhe pareceu muito divertido. Pelo visto, pensavam obrigado a contrair matrimônio com Cláudia ou algo parecido.
—Não sei o que lhe dizer... — esboçou um sorriso cínico. — A vida em comum pode chegar a ser insuportável. Você não imagina o trabalho que dá enfrentar essa garota quando está irritada.
—Não haverá desavenças nem tampouco mal-entendidos. Isso é algo que não tem cabimento entre duas pessoas a preservar o Trono de Deus.
—Um momento... você quer dizer com isso que ambos seríamos os Guardiões da Arca?
—Muito mais que tudo isso — respondeu Hiram, solene. — Teriam o dever de comunicar-se diariamente com o Grande Arquiteto do Universo.
Quando chegaram a esse ponto, Leonardo pensou que aquele pessoal era louco de camisa-de-força. Acreditavam, de verdade, que semelhante proeza era possível?
—E o que pensa Cláudia de tudo isso?
—Ela está de acordo — o diretor-geral do Museu Arqueológico foi sucinto na resposta.
—Preciso refletir a respeito.
—Se você não aceitar, será executado como todos os outros e Cláudia compartilhará o reinado com outro homem — disse Hiram, com certo desânimo.
—Defina reinado — Leonardo pediu, com um tom de voz que denotava preocupação. — Não consigo compreender o conceito ou, pelo menos, sua aplicação prática.
—Cláudia é a candidata ideal para substituir Balkis como rainha de Sabá. Ela vai conduzir Os Filhos da Viúva a partir daí.
—E qual seria o meu papel?
—Você encarnaria o espírito de Hiram Abif, cujo cargo eu mantenho até o dia de hoje — respondeu com a simplicidade de quem usava esse nome. — Um trabalho extremamente edificante, acredite em mim.
—Por um momento pensei que iria substituir Salvador em seu cargo de Mestre dos Mestres da loja. Você já deve saber, por sua doença.
Hiram olhou para ele com profunda surpresa. Até onde ele sabia, qualquer pessoa que tivesse sentado no Trono de Deus ficava imunizada por toda a vida. Nenhum mal poderia afetá-lo, apenas a velhice.
—Sholomo tem uma saúde de ferro — assegurou, com voz grave, o diretor. — Não teve um resfriado, sequer, ao longo de mais de quarenta anos... — pegou um ovo de alabastro, que servia de peso de papel, dando-lhe voltas entre as mãos — ...posso saber a que se deve esse comentário?
—Se você o conhece, como afirma, deveria saber que lhe resta pouco tempo de vida. Segundo entendi, padece de uma doença terminal.
Surpreendido diante da resposta, Hiram virou instintivamente a cabeça para o lado direito, por trás de seu ombro. Durante alguns segundos permaneceu em silêncio, observando uma porta fechada que havia entre as estantes de livros. Foi apenas um momento de reflexão. Logo voltou a fitar o interlocutor com extraordinária firmeza, direto nos olhos.
—Quem lhe disse isso? — quis saber e seu rosto denotava certa preocupação.
—Sua filha, Lilith... quem, senão ela?
As mãos de Hiram apertaram, com força, o peso de papéis que estava acariciando, surpreso pela notícia. Então, e antes que pudesse responder, abriu-se a porta que estava às suas costas e dela surgiu Salvador Riera, em companhia de uma mulher de cabelos brancos, vestida com uma túnica de cor púrpura e um manto azul, que ostentava uma série de enfeites de caráter esotérico. Mas a autêntica surpresa, para Cárdenas, foi descobrir que Cláudia estava com eles e se vestia da mesma forma que a desconhecida.
O encontro foi muito embaraçoso. Leonardo olhou fixamente para Cláudia, esperando que pudesse explicar-lhe o que estava acontecendo, mas ela não soube como enfrentar a situação e seus olhos evitaram a penetrante curiosidade de seu companheiro, de maneira que inclinou a cabeça para o chão. Salvador foi o único a ter forças para falar em primeiro lugar.
—Sei como você se sente Leo... Agora, porém, não é o melhor momento para julgar nossa atitude... — ele parecia agitado, da mesma forma que os demais. — É muito importante que você me responda com sinceridade: Lilith está com você?
A pergunta o surpreendeu, tanto que não conseguiu imaginar que transcendência teria o fato de haver citado sua filha, para que Riera e seus companheiros tivessem saído com tanta rapidez de seu esconderijo.
—Isso é mais importante que os brutais assassinatos cometidos em nome de um conhecimento absurdo?
Leonardo estava furioso. Sentia dores nas têmporas, devido à pressão a que estava sendo submetido.
—Eu vou repetir de novo... Lilith está aqui no Cairo? — insistiu Salvador, agora com um pouco menos de paciência.
—Afortunadamente, não — respondeu, finalmente. — Ela ainda acredita que seu pai é um bom homem que sofre em silêncio de uma doença terminal. O que eu não entendo é por que você fez com que ela viajasse da Alemanha, se pensava em esquivar-se do encontro.
Riera negou duas vezes, com um movimento de cabeça.
—Lilith não é minha filha. Além disso, deveria estar morta — admitiu, friamente.
—Você é tão cínico, que nega quem é de seu próprio sangue a esse ponto? — não podia acreditar; jamais havia visto semelhante ato de crueldade de um pai.
—E você... está tão cego, que não sabe distinguir quando alguém fala sério? — inquiriu o arquiteto, deixando-se levar pelo arrebatamento.
—Já basta! — exclamou Balkis, colocando-se entre ambos. — Será melhor que deixem disso.
—Por favor, Leo! Escute o que ele tem a dizer.
A súplica de Cláudia despertou o bom senso do bibliotecário. Sabia o que tinha de fazer e não era o caso de adiar por mais tempo o inevitável.
—Eu farei isso se você me prometer que volta comigo para Madri — rogou, por sua vez. — Depois de tudo, creio que mereço.
Cláudia se sentiu culpada por tê-lo enganado, mas tinha de fazê-lo ver que o melhor era continuar unidos e enfrentar juntos o fascinante destino que tinham reservado para eles.
—Eu gostaria, lhe asseguro. Mas antes deveríamos conversar a sós para esclare...
Salvador interrompeu sua sobrinha porque ainda aguardava a resposta, que tardava.
—Insisto mais uma vez, Leo... onde está Lilith?
O rapaz, desviando o olhar para seu inquisidor, cedeu diante da reiterada obstinação do Mestre dos Mestres.
—A última vez que a vi, ela estava com Cristina Hiepes, uma criptógrafa contratada por Mercedes para supervisionar o manuscrito e tudo o que fôssemos descobrindo... contente, agora?
—Lilith não é filha dele — disse Hiram, naquele momento, colocando-se em pé. — Essa jovem mentiu a você e também a Sholomo... não é assim, velho amigo?
Riera resmungou, entre dentes.
—Acabo de dizer isso a ele, mas ele não considera argumentos racionais! — explodiu, finalmente. — Por acaso você não consegue enxergar? Está cego pelo preconceito. Para ele somos uns criminosos sem escrúpulos, só isso.
Leonardo deixou passar em branco esse último comentário.
—Espere um instante... — franziu a testa, tentando compreender a verdade — ...se Lilith não é sua filha, quem é a jovem que encontramos na porta de sua propriedade, em Santomera?
—Meu Deus! — lamentou Cláudia, aproximando-se de seu tio.
—Ela sabe quem você é... e onde pode encontrá-lo.
—O que quer dizer que decifrou o manuscrito de Toledo e que sua intenção é chegar até nós — acrescentou Balkis, de forma grave.
—Isso se já não estiver aqui, na cidade.
—Alguém pode me explicar o que vem a ser esse temor visceral por Lilith? — quis saber Leo, pois não entendia muito bem do que estavam falando.
Um silêncio tenso se apoderou do escritório. Só a Viúva teve coragem para responder.
—Essa jovem, chamada Lilith, não é outra senão a assassina contratada pela loja... — disse a ele, devagar, fitando-o nos olhos com certo pesar. — Foi ela quem acabou com a vida de seu amigo Balboa e tam¬bém com a de Mercedes Dussac. E agora vem até aqui. Eu pressinto.
A reação de Leonardo foi negar tal hipótese.
—Não... não é possível... — duvidou alguns segundos — ...como posso saber que você não está mentindo?
—Se Balkis está dizendo, ninguém pode duvidar de sua palavra —foi o duro comentário de Hiram, que parecia ter encontrado um motivo de indignação, depois de tantos anos de temperança.
O bibliotecário ficou surpreso ao descobrir que aquela estrambólica mulher, de olhar agradável, era a rainha de Sabá, a quem Cláudia deveria substituir no cargo, mas sofreu um impacto saber que falava sério. Se fosse verdadeira sua afirmação, tanto ele como Cristina e Colmenares haviam cometido um engano irreparável.
—Então, isso significa... — murmurou, compungido.
—... Que ela estendeu uma armadinha para vocês — Balkis terminou a frase, adiantando-se ao pensamento de Leonardo. E que dois novos inocentes estão sob o atento olhar da morte.
Reprovou-se por ter confiado naquela jovem, mesmo quando sua primeira impressão era de que algo não se encaixava em sua história. Cristina teve culpa, por levá-la consigo. Mas isso agora não importava, se bem que era preciso evitar que ela matasse tanto Colmenares como Cristina. Tinha de avisá-los sobre o letal perigo que corriam.
—Tenho de entrar em contato com eles — afirmou, nervoso, tirando um telefone celular do bolso. — Vou adverti-los antes que seja tarde demais.
—Será melhor que você não lhes diga onde está — foi o conselho glacial de Riera. — É só o que lhe peço.
Leonardo concordou com um movimento de cabeça, enquanto discava os números. Seu único pensamento, naquele instante, era prevenir a criptógrafa, contando-lhe sobre o jogo duplo de sua protegida. Mas depois de alguns segundos ouviu a caixa postal. O aparelho não estava em operação.
—Puxa vida! — protestou, irado, reprimindo uma imprecação. Está desligado!
Seus olhos se detiveram, novamente, nos de Cláudia, como se lhe custasse muito esforço acreditar que tudo aquilo estivesse acontecen¬do de verdade.
—Você e eu temos de conversar... — Balkis se aproximou de Cárdenas para segurar sua mão, e, em seguida, se dirigiu a seus compa¬nheiros — ... é melhor vocês irem embora. Hafid está lá fora, com o carro. Ele me levará para casa.
—Um momento! — replicou o bibliotecário. — O que vai acontecer com Cláudia?
—Não se preocupe, está em boas mãos — assegurou-lhe Riera, pegando a sobrinha pelo braço.
—Amanhã, você poderá vê-la de novo — acrescentou Hiram, dando-lhe as costas para ir embora.
Sem dizer mais nada, foram até a porta que se comunicava com o museu. Cláudia se despediu dele com um beijo na face, aconselhando que tivesse paciência. Em seguida se foram, depois de recordar-lhe que voltariam, todos, a se reunir no mesmo lugar, no dia seguinte.
Leo sentou-se, tão logo ficou a sós com a Viúva, que aproveitou para fazer o mesmo na cadeira que estava desocupada, do outro lado da mesa. Não sabia por que, mas se sentia desconfortável. Talvez fosse por causa do olhar insondável daquela mulher o do fato de sentir-se enganado por todos. O certo é que desejava ir embora o quanto antes, para o hotel, e ver-se rodeado de espuma na banheira.
—Vejo que não me equivoquei com você — disse Balkis, iniciando o diálogo. — Soube captar a mensagem do maçom e veio ao encontro. Agora não pode voltar atrás.
—Em nenhum momento eu disse que iria aceitar — afirmou Leonardo, sublinhando seu desejo de manter-se à margem de tudo.
—Mas você o fará, porque seu destino não é outro senão o de proteger o Trono de Deus... — depois acrescentou com voz inflexível — ...você já conhece o segredo da loja. Deve fazer bom uso dele.
O bibliotecário não compreendia muito bem certos detalhes. Havia decifrado a charada por acaso, graças à perspicácia de uma menina que conheceu no avião. O mistério não era tão impenetrável como o haviam feito acreditar. Portanto... a que se devia tanto segredo?
—A palavra é tão prejudicial? — perguntou, curioso. — Por isso cortam a língua de quem quebra o juramento de silêncio, como fize¬ram no passado com Iacobus de Cartago e, não faz muito tempo, com meus companheiros de trabalho?
Balkis suspirou, entristecida. Era óbvio que não gostava de falar das vítimas da loja.
—É o que está acontecendo agora mesmo. Você caiu nas redes de seu encanto. A voz é daninha, de fato.
—A que se refere?
—Ao fato de você não ter refletido sobre as conseqüências de sua pergunta, antes de formulada, e isso pode ferir a pessoa que está diante de si — respondeu, pragmática. — A língua é caprichosa. Na realidade, é o membro mais volúvel e rebelde do ser humano. Graças à voz, se colocam em marcha as engrenagens do mundo regido pela razão, fazendo-nos cair nas redes do obscurantismo. Quando permanecemos em silêncio, contemplando a beleza de uma paisagem, ou escutando o suave bater das ondas na quietude da noite, ou, inclusive, quando nosso coração está sensível aos sentimentos mais íntimos do ser humano, é precisamente quando percebemos a beleza de Deus.
—Ninguém mais perde tempo com essas coisas — opinou Leonardo, com um travo de amargura. — Tudo vai depressa demais, hoje em dia.
Balkis lhe deu razão. A barbárie que apregoava a sociedade moderna era culpada de tudo.
—Quer saber o que vai acontecer com vocês dois? — perguntou, depois, referindo-se também ao futuro de Cláudia.
—Eu lhe agradeceria muito.
Sentiu que por fim ia compreender o significado de tanto crime e de tanto silêncio. Mas o que não chegou a intuir foi que, com o passar do tempo, chegaria a interpretar os valores da loja e a aceitar que tal percepção deveria manter-se distante do descalabro dos homens.
—Dentro de alguns dias você terá de se confrontar com a escada que conduz à Sabedoria, razão pela qual deve recordar esta conversa enquanto estiver subindo os degraus da redenção — ela começou dizendo. — Meu conselho é que, uma vez estando no Salão do Trono, você se entregue a esse silêncio que nasce do sentimento mais puro de seu coração. Deve, também, calar o constante murmúrio de seu cérebro, o que é igual a dominar sua natureza interior para que você possa vislumbrar plenamente essa outra realidade que transcorre de forma paralela à nossa. Lembre-se que as vivências mais maravilhosas e as mais tristes são impossíveis de descrever com palavras. O que nos acontece quando observamos o soberbo espetáculo da natureza, como pode ser o esplendor do amanhecer ou o mistério do crepúsculo, ou quando a dor e a tristeza caem sobre nós como um jugo de escravidão...? Que nos deixamos dominar pelo silêncio. O discurso parece inconveniente nesse momento de extrema sensibilidade.
—Não consigo compreender a relação que existe entre suas palavras e o fato de que se mantenha em pé uma tradição tão inexorável—foi o raciocínio lógico do bibliotecário.—Viver acorrentado a um segredo e assassinar para preservá-lo não é a atitude mais coerente em uma pessoa que se considera civilizada.
—A morte faz parte da vida. Mas a vida que eu lhe ofereço fará com que você ressurja de suas próprias cinzas.
Aquela resposta o deixou mais confuso do que estava antes.
—O que é, na realidade, o Salão do Trono? — perguntou de novo. —Você saberá na hora certa — respondeu Balkis, mantendo o suspense. — Antes quero que me diga que importância têm para você as Artes Liberais.
—Pessoalmente, nenhuma... — admitiu sem pudor, para acrescentar em seguida — ... suponho que a decepcionei.
A mulher esboçou um leve sorriso.
—Não completamente, embora espere que a partir de amanhã você saiba apreciar a transcendência que tem para o homem.
—Reconheço seu valor intelectual... — confessou com voz baixa.
—Creio mesmo que ficaram obsoletas. Os cientistas de hoje acreditam que é mais conveniente explorar outros campos, tais como a genética, o microcosmo e o princípio da vida no Universo. Se você os analisa em profundidade, perceberá que tais descobertas tiveram de basear-se nas ciências mais primárias, sobretudo na geometria, que existe desde o primeiro dia da Criação. É tão eterna como a Sabedoria e é o mesmo Deus. Sem ela, não se concebe o mundo... — estendeu sua mão, apoiando-a suavemente sobre o braço de Leonardo. — Eu gostaria que você compreendesse tudo isso sem ter de lhe explicar, pois isso significaria que você é um autêntico construtor de catedrais.
—Falando de catedrais... você poderia me dizer que relação proporcional existe entre os templos góticos e a Arca da Aliança e ambas com o nome de Javé? — quis saber. — Você já sabe a que me refiro.
Falava do número áureo.
—Você percebeu... — disse-lhe Balkis, um tanto surpresa. — Nem todos os adeptos são capazes de chegar até onde você chegou. Na realidade, você é o primeiro que, antes do ritual de iniciação, conseguiu descobrir a relação que existe entre Deus e o Kisé do Testemunho.
—Por que sempre o mesmo resultado? — ele desejava ardorosamente descobrir.
Balkis encolheu os ombros. Ela também se fazia a mesma pergunta, às vezes.
—Não estou certa. Talvez a quintessência do demiurgo se sustente graças a uma ciência numérica que trata de equilibrar a perfeição do Universo submetendo-o à arbitrariedade do caos... — procurou em sua memória um dado comparativo, para que ele pudesse entender. — Parece, a nós todos, injusto que um Deus benevolente permita que setenta por cento da humanidade viva abaixo de suas possibilidades. A fome e a miséria são o maior problema que a sociedade enfrenta, atualmente. Mas o mais estranho é que o resultado de dividir a população total do planeta entre os que sobrevivem à pobreza seja idêntica às proporções métricas da Arca. Como é possível...? — deixou escapar uma risadinha ingênua. — Ah! Esse é um dos grandes mistérios. Não obstante e ainda que nos custe a crer, assim deve ser por algum motivo. Deus é sempre justo e não deixa nada ao acaso.
Para Cárdenas continuava sendo uma incógnita, da mesma forma que para o resto dos homens.
—E o que é a escada? — mudou o tema da conversa, pois havia demasiadas perguntas sem resposta.
—É um pedestal escalonado, em cuja base se encontra depositado o Trono de Deus — ela respondeu, solene. — Azogue nos disse que havia um igual na cripta onde Iacobus escreveu seus conhecimentos.
—Sim, é verdade — ele afirmou. — Mas qual é sua função?
—A de elevar-se espiritualmente, como seres divinos. É a porta falsa que conduz ao Paraíso... o atalho mais curto para chegar ao reino dos Céus.
Leonardo tinha dúvidas a respeito. Não obstante, insistiu de novo.
—Responda a uma última pergunta... Onde está escondida a Arca da Aliança?
A Viúva ficou olhando fixamente para ele, em dúvida se respondia ou guardava silêncio. Levantou-se, em seguida.
—A isso responderei amanhã. Agora é melhor que você regresse ao hotel e ponha seus pensamentos em ordem.
O bibliotecário não teve alternativa senão aceitar. Era inútil contrariar uma mulher como Balkis. Por outro lado, estava mesmo cansado e necessitava dormir algumas horas. Em pouco tempo, eles cruzavam em silêncio as salas do museu, agora vazias depois que havia fechado suas portas ao público. Finalmente chegaram ao exterior, onde um jovem árabe aguardava fielmente a chegada de sua ama, junto a um velho Ford Capri, de fabricação norte-americana, com matrícula dos anos oitenta. Balkis entrou nele, para ir embora, mas antes exortou o rapaz a voltar na noite seguinte ao museu, prometendo a ele que levaria Cláudia consigo.
—... E lembre-se... — lhe disse, em tom confidencial. — A voz é nossa maior adversária. Reflita em silêncio sobre você mesmo. Rasgue o espesso véu das idéias preconcebidas para enfrentar esse outro mundo que o espera. Só então você começará a viver. Eu lhe asseguro.
Em seguida, ele viu que ela se distanciava rumo à estação central, enquanto abanava a mão pela janela do carro, despedindo-se dele. Leonardo lhe devolveu a saudação. Atravessou a rua, misturando-se à multidão que ia de um lado a outro, aproveitando a beleza extasiante que destilava da noite cairota.
Horas depois, o avião da Egyptair descia na pista dois do aeroporto internacional do Cairo. Tão logo parou e suas portas se abriram, os passageiros desceram por escadas para, em seguida, subir no micro-ônibus que os levaria ao terminal. Lilith e Cristina foram as primeiras passageiras a fazê-lo. Um pouco mais distantes, ainda que por apenas alguns metros, os sicários se misturaram ao grupo, para segui-las.
Depois de uma longa espera, finalmente recolheram a bagagem. Tão logo saíram do aeroporto, se aproximaram de um dos táxis que aguardavam — estacionados junto à calçada — a chegada de novos clientes. Decidida, a criptógrafa foi direto até a porta traseira do primeiro automóvel que encontrou. Lilith acompanhou sua iniciativa, subindo pelo outro lado. Mas, antes de fechar a porta, olhou para trás. Os indivíduos que as haviam seguido desde Madri se interpuseram entre um jovem turista e o táxi estacionado na seqüência, afastando-o com certa descortesia, com o objetivo de não perder tempo. Era evidente que tinham intenção de segui-las até o hotel.
O veículo público se colocou em marcha enquanto um cheiro acre, penetrante, chegava a elas desde as ruas movimentadas, junto com as vozes dos mercadores noturnos, os cânticos dos religiosos e o ritmo dos pandeiros nas cerimônias Zar, para a conjuração de feitiços de amor, fecundidade e riqueza, afastando os demônios.
O sonho de Cristina Hiepes havia se tornado realidade, depois de tudo. Finalmente, havia chegado a esse lugar que despertara sua curiosidade desde que lera o manuscrito de Toledo, essa região tão distante e misteriosa onde ficava guardado o maior segredo oculto da humanidade.
Sentiu como ficou arrepiada ao descobrir que viajava pelas ruas da cidade mais antiga do mundo: a cidade perdida de Enoque.
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