Sumário prólogo capítulo


partamento. Teria tempo de refletir entre uma boa ducha



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à seu apartamento. Teria tempo de refletir entre uma boa ducha e um gim-tônica, como de costume. Ainda lhe restava uma hora e meia, antes de ir ao encontro de Cláudia.

Capítulo 3
Naquela mesma tarde, muito longe de Madri, a pessoa elei­ta para manter oculto o segredo da loja subiu as escadas do estacionamento da Glorieta de Espanha, levando o computador portátil embaixo do braço. Fazia vento lá fora. O ar ti­nha um cheiro de lodo, proveniente do rio, e aquela onda pestilenta parecia incitar as pombas a defecarem sem consideração sobre o solidéu de bronze da estátua do cardeal Belluga. As pessoas, ao seu redor, se apressavam a chegar o quanto antes a seus destinos, alheias à presença daquele homem. Ele aproveitou sua invisibilidade social para misturar-se a elas. Ninguém reparou naquele sujeito de cabelos grisalhos e com ares de letrado, que, a passos lentos, caminhava na direção do beco do Arenal, que, por sua vez, conduzia precisamente à Praça Cardeal Belluga.

Sentou-se em uma das mesas perfiladas na varanda de um café, próximo à catedral. De onde estava podia ver, em detalhes, os enta­lhes barrocos que misturavam a exaltação da Virgem Maria à glorificação da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana. A iconografia da fachada principal pareceu muito laica para o seu gosto. Não por acaso, tratava-se de um estilo posterior ao gótico, quando os construtores de catedrais deixaram de ter esse ofício para, realmente, converter-se em simples artesãos da pedra, em operários do descuido no trabalho, a serviço de reis que valorizavam mais a estética do que a sabedoria arcana dos silhares. Daí, a magia que os templos irradiavam no passado acabou se transformando em uma tosca imitação do primitivo engenho dos grandes mestres.

—Desculpe, senhor... Vai beber algo?

A voz inexpressiva do garçom chamou sua atenção.

—Um café com leite e uma água com gás, por favor — respon­deu, amavelmente.

O rapaz anotou o pedido em seu bloco e foi embora, depois de limpar a mesa.

Novamente sozinho, meditou sobre o que acontecera em Madri. Re­conheceu que seu trabalho não era precisamente agradável, mas fazia parte da cruz que o Conselho lhe havia imposto: e, como previdente do segredo, tinha permissão de atuar sem nenhuma restrição moral ou escrúpulo de consciência. Era uma das regras de ouro da loja: evitar que se propagasse o que permanecera oculto durante tanto tempo, ainda que, para isso, fosse preciso arrancar a língua de todos os que ousaram infringir o juramento de fidelidade absoluta e a rígida conduta.

O compromisso fora marcado para as sete e meia e já haviam se passado cinco minutos da hora, portanto seu contato estava prestes a chegar. Olhou distraidamente ao redor, na esperança de descobrir na multidão a pessoa com quem devia se encontrar. Perambulando pela praça, viu um grupo retardatário de turistas que tiravam fotografias, com um fervor quase religioso, do nicho central da coroação da Virgem, das figuras dos quatro santos de Cartagena e da estátua de Fernando III.

Na parte inferior, junto a uma das portas de entrada, uma jovem tocava violoncelo enquanto seu acompanhante, um rapaz de barba e cabelos longos, esmerava-se em tirar as notas mais delicadas e melo­diosas de seu esplêndido contrabaixo. Alguém se aproximou deles para deixar umas moedas no cestinho de vime que havia no chão. Era uma jovem de cabelos curtos, nariz aquilino e constituição atlé­tica. Vestia um casacão de couro que cobria seu corpo até os joelhos. Depois de fazer aquele gesto público e solidário, virou-se. Seus olhos procuraram na multidão alguém em especial, ao mesmo tempo em que calçava luvas de cor preta.

O homem imediatamente a reconheceu. Sua imagem se ajustava ao perfil que lhe haviam descrito os homens da agência: mulher caucasiana de uns vinte e quatro anos de idade, loira, de aparência gélida, lúgubre e hostil; parecia tirada de um manual da Guerra Fria.

Para chamar a atenção dela, e se arriscando a ser considerado lou­co pelas pessoas que estavam ao seu redor, ele desenhou uma espiral no ar com o dedo indicador, finalizando o gesto com uma linha ver­tical. Era o signo do ábaco, o emblema dos mestres construtores.

A jovem se aproximou, sem deixar de fitá-lo diretamente nos olhos.

Herr Sholomo? — perguntou, quando já estava diante dele, ainda em pé.

O cavalheiro de terno cinza afirmou, com um gesto silencioso, que reconhecia a missão e a identidade da moça, sem chegar a sur­preender-se com o sotaque alemão que seu tom de voz denunciava.

Então, apontou para a cadeira metálica no outro extremo da mesa. A garota sentou-se, aceitando o convite.


  • Pensei que tivesse alguns anos a menos — ela admitiu sem nenhum rodeio. — Na agência me disseram que se dedica à espeleo­logia em suas horas livres.

  • Sim, está correto — afirmou Sholomo, jactancioso —, pois o interior da Terra não deixa de ser fascinante... Mas deixe que eu lhe diga uma coisa. Confidência por confidência, sabe?... Eu também esperava que você fosse um pouco mais velha e, sobretudo, achava que destacariam um homem, não uma menina, para este trabalho.

A jovem não se incomodou muito com a observação. Limitou-se a fazer uma expressão indecifrável.

—Acredita que um homem teria feito melhor?

—Não estou colocando em dúvida a sua competência, até mes­mo porque demonstrou ser impecável. Era apenas um comentário, senhorita....

—Pode me chamar de Lilith.

—Lilith... — repetiu o velho, frisando cada sílaba. — Muito apro­priado, segundo meu entender.

Havia algo naquela jovem que beirava a hostilidade, talvez seus tra­ços disciplinados e isentos de qualquer emoção, evidenciando um pas­sado tortuoso. Os assassinos de aluguel costumavam ter, quase todos, uma aparência semelhante: a marca de um monstro sem sentimentos.

—Muito bem! — exclamou, glacial. — Agora que nos conhece­mos, será mais fácil perguntar se o resto do dinheiro já foi transferido.

— Ela se referia a seus honorários pelo assassinato de Jorge Balboa.

Sholomo abriu o notebook, deixado sobre a mesa, logo esboçando um sorriso tolerante, que dava acesso à segunda parte da negociação. Digitou com desenvoltura, durante alguns segundos. Em seguida, girou o aparelho e o empurrou suavemente na direção de Lilith.


  • Você só tem de introduzir a senha secreta de sua conta na Suíça e apertar o enter. Automaticamente, serão transferidos seus 180 mil euros. Como pode perceber, o dinheiro não é exatamente nosso calcanhar de aquiles.

  • Tão pouco valor vocês dão ao que é material, que pensam me pagar o dobro do que foi combinado? — Perguntou, perplexa. Sabia muito bem que não se tratava de um erro e imediatamente intuiu que iam solicitar um novo trabalho.

  • Há outra pessoa que você tem de eliminar... — as palavras dele confirmaram a suspeita de Lilith. Bom... na realidade, deveriam ser dois. Mas pensei que preciso de um deles com vida.

  • Posso perguntar o motivo?

  • Não.

A rispidez da reação não dava lugar a réplicas.

  • Devo seguir o mesmo procedimento dispensado ao outro?

  • Sim, de fato — ele respondeu, imediatamente. — Você deverá arrancar a língua da pessoa por baixo do queixo, escrever em lugar visível a máxima de advertência e assinar como Os Filhos da Viúva — disse, limpando a voz —, a menos que você prefira seguir o mo­delo antigo de castigo.

—Que é... — a jovem esperou que Sholomo lhe dissesse.

—Arrancar o coração, em vida, cortar a cabeça e lançar o corpo ao mar... Você decide.

Lilith pensou que havia subestimado seu cliente. Aquele maldito pedreiro talvez fosse tão fanático como qualquer mercenário do Es­quadrão da Morte, no Brasil4.

—Suponho que trouxe consigo informação sobre a nova vítima — limitou-se a dizer.

Sholomo tirou um envelope do interior de seu paletó, estendendo sua mão esquerda para oferecê-lo à jovem.



  • Está tudo aí dentro: fotografias, endereços de sua casa e do trabalho, marca, modelo, cor e chapa de seu carro, lugares que costu­ma frequentar... Enfim, sua vida pessoal.

  • E como pode ter certeza de que eu não vou desaparecer depois de transferir o dinheiro adiantado?

  • Porque acreditamos que você é bastante inteligente para não incorrer em semelhante equívoco.

Lilith decidiu não colocar à prova a paciência do cliente. Na agên­cia, poderiam considerar seu sentido de humor como falta de profis­sionalismo. Sem mais perda de tempo, introduziu a senha. E, em seguida, teclou enter.

—Está feito! — fechou o notebook, guardando o envelope em um dos bolsos do casaco. Só me restar dizer-lhe que não voltaremos a nos encontrar. Sairei do país, tão logo termine o trabalho... E outra coisa... não costumo regressar à mesma cidade duas vezes.

Ele sorriu, displicente.

—Agora será preciso fazer isso, querida. Seu trabalho é em Madri — afirmou, friamente.

A jovem refletiu por alguns segundos.

—Como sempre costumo dizer: nunca morda a mão que lhe dá de comer... — piscou o olho e dedicou, a ele, um agradável sorriso de despedida. Trata-se apenas de um detalhe, deixar de cumprir meus princípios em seu benefício.

Dito isso, levantou-se de imediato, justamente quando o gar­çom se aproximava com a intenção de fazer seu trabalho; em con­sequência, ambos colidiram estrepitosamente, sem que nenhum dos dois pudesse evitar o encontrão. O rapaz, educadamente, pediu desculpas, ao que Lilith respondeu com uma imprecação em sua língua, uma expressão de gíria teutónica incompreensível para o outro. O garoto olhou para Sholomo, procurando uma certa cum­plicidade. Este o apoiou com um aforismo bem característico, en­quanto encolhia os ombros:

— Mulheres...! — exclamou, levantando as sobrancelhas.


Capítulo 4
Cláudia era uma pessoa discreta, honesta e inteligente, incapaz de perder seu tempo com assuntos que não lhe proporcionavam nenhum benefício. Por isso, aos trinta e três anos de idade, já acumulara títulos universitários que honravam seu currículo: era licenciada em História e diplomada em Filologia Românica. Costumava trajar-se com sobriedade no trabalho, mas tão logo terminava sua jornada na casa de leilões tratava de mudar de roupa — optando por um modelo mais feminino — com o objetivo de atrair o olhar dos homens. Tinha o rosto ovalado e um grande sorriso, que despertava inquietações nos mais puritanos. Seus cabelos eram lisos, de cor escura, como seus olhos, e o tom acentuado de seus lábios contrastavam com o rosado de sua face. Ela se sentia orgulho­sa de possuir — sem passar por nenhum cirurgião plástico — umas medidas bem em sintonia com o arquétipo da mulher do século XXI: linhas perfeitas que suas calças jeans bem justas e suas blusas de lã, no comprimento exato da cintura, realçavam de maneira notável.

Era aficionada por livros e pela arquitetura medieval, entreteni­mentos que preenchiam seu escasso tempo livre e que, de certa for­ma, enriqueciam ainda mais seu admirável intelecto. Outra de suas diversões prediletas era jantar a sós com Leonardo e terminar, na hora da sobremesa, fazendo amor nos lugares mais inusitados da casa.

Agora estava com ele e, sem dúvida, algo parecia ter mudado na­quela noite. Ele estava taciturno e reservado, características opostas à sua personalidade divertida. Haviam falado sobre Jorge, embora o mais justo fosse dizer que ela se esforçou para manter acesa a conver­sa, pois Leonardo parecia estar do outro lado do Universo, absorto em insondáveis pensamentos. Vendo que ele não prestava atenção no que dizia, e que só se importava em dar voltas ao vinho da taça e em manter os olhos fixos nos entalhes de cristal, decidiu resgatá-lo de seu alheamento, em vez de insistir em um obstinado monólogo.

—Gostaria de saber o que está acontecendo com você... — des­cansou os talheres sobre o prato. — Não disse uma só palavra duran­te todo o jantar.

Ele deu um jeito de recuperar o sorriso, por consideração à sua convidada.


  • Perdoe... — disse-lhe, com voz suave. — A culpa não é sua.

  • É o que espero. Lamentaria descobrir que você fica aborrecido ao meu lado... — apoiou a mão no braço de Leonardo e começou a acariciá-lo, dando a entender, com esse gesto de ternura, o quanto precisava dele naquela noite.

  • É pelo que houve com Jorge... A polícia esteve falando com Mercedes, e o que contou a ela é apavorante.

  • Deveríamos esquecer isso e ir para a cama, você não acha?

  • Seria maravilhoso, mas hoje não posso... — ele suspirou por alguns instantes. Tenho trabalho pendente.

Cláudia tratou de absorver o golpe, comportando-se com natura­lidade e aceitando com um sorriso forçado a deselegância daquele insosso, que, no entanto, despertava sua libido de maneira incomum, e que, em qualquer outro momento de sua vida, haveria de mandar para o inferno, por ser desrespeitoso e insensível.

—Então, é melhor que eu vá embora.

E levantou-se, sentindo-se a mais no apartamento. Leonardo rea­giu de imediato. Havia cometido um deslize imperdoável ao rejeitar a companhia dela.


  • Espere! — implorou. — Não vá, ainda!

  • Dê-me apenas uma razão para que não o faça.

Não parecia zangada, mas sim entediada diante daquele jogo sem sentido.

  • Preciso que você me ajude.

  • Posso saber em que? — perguntou, chateada.

  • É difícil de explicar... — ele respondeu, pausadamente. — An­tes eu teria de lhe contar uma série de detalhes para que possa com­preender o que tenho a dizer, fato que, por outro lado, pode colocar sua vida em perigo... Sei que pode parecer incrível e até ridículo...! Mas é isso mesmo. E lhe asseguro que não se trata de brincadeira, quando afirmo que você pode sofrer um incidente desagradável, se lhe conto a verdade... — limpou a comissura dos lábios com o guar­danapo; e logo se pôs em pé. — Gostaria que refletisse a respeito. Você decide se vale a pena arriscar-se.

Ela estava confusa. Era a primeira vez que o via comportar-se de forma tão estranha. Prontamente, relacionou aquela atitude com o fato de ele ter acompanhado a diretora da casa de leilões. Antes, deixara es­capar algo sobre Mercedes e a polícia. E isso era bastante significativo.

  • Não sei do que você está falando, mas creio que me deve uma explicação — manteve-se firme, sem perder a calma. — Quero saber em que diabos está metido e qual foi o tema de sua conversa com a diretora.

  • Está bem, começarei do princípio. Mas, antes, sente-se... Tenho de lhe fazer uma pergunta.

Ele a acompanhou até o sofá da sala de visitas, onde insistiu que sentasse. Depois foi à cozinha e preparou algo para beber. Regressou com dois gim-tônicas nas mãos. Depois de oferecer um à sua compa­nheira sentimental, permaneceu em pé, fitando-a fixamente, direto nos olhos.

  • E...? — ela interrogou, impaciente.

- Diga-me... — pigarreou ligeiramente. — Você já ouvir falar alguma vez em uma organização chamada Os Filhos da Viúva?
Capítulo 5
Depois de seu breve encontro com Lilith, Sholomo pagou a conta ao jovem garçom e foi embora com o notebook em­baixo do braço. Dirigiu-se à Praça dos Apóstolos, enquanto sua mente navegava por um mar de incertezas, pois uma série de coisas ficava ali, dando voltas em sua mente.

"Deveríamos ter pensado bem, antes de agir de forma precipitada. A inquietação que sentimos, ao saber que a família Fajardo vendera um documento cifrado medieval a um desconhecido, nos tornou incapazes de reprimir nosso desejo de proteção, ao deduzir que o tal manuscrito poderia ser o diário de Iacobus, ou um caminho para chegar a ele, tal como afirmam as crônicas da época. Talvez a solução do problema não fosse matar um inocente, mas sim recuperar o do­cumento. Simples assim! Mas as emoções complicam tudo. Não ser­viu para nada a morte do paleógrafo. E o pior de tudo é que ordenei que o criptograma fosse queimado, quando deveria tê-lo estudado antes, para estar seguro de que realmente era uma ameaça. Agora, são duas pessoas que têm uma cópia do texto. Graças à Azogue, um deles trabalhará para nós sem que sequer suspeite disso. A outra tem de desaparecer, por segurança. Espero, apenas, que o que foi salvo da morte consiga traduzir o manuscrito. Assim, saberemos ao que temos de nos ater, antes que outros cheguem a conhecer o segredo que, com tanto esforço, conseguimos manter durante séculos. Não suportaria ter de autorizar novos crimes. Não somos assassinos."

Comprou uma revista de arte, em uma banca que estava prestes a fechar. Mais tarde, deteve-se a contemplar a obra-prima que adorna­va a parte superior da capela dos Velez. A cadeia envolvia o octógono de pedra — erigido, no passado, por mestres pedreiros —, protegen­do cuidadosamente as maravilhas gótico-flamencas que estavam guardadas em seu interior. Os grossos elos representavam a continui­dade da tradição, algo que Iacobus jamais soubera compreender; por isso fora castigado. Refletiu, de novo, caminhando até os contrafortes localizados atrás da capela.

"Parece incrível que a família Fajardo tenha sido a depositária do segredo durante tantos anos. Nós nunca pensamos em algo parecido, embora sempre tivéssemos dúvidas. Talvez Iacobus, antes de morrer, tivesse tido tempo de introduzir seu manuscrito entre os papéis de Ludovico Fajardo, que foi o segundo marquês dos Velez. Sabemos que De Cartago sobreviveu ao suplício apenas umas poucas semanas e que o filho de dom Pedro se irritou demais por causa do castigo infligido ao pedreiro por seus próprios companheiros; por isso mesmo, foi visitá-lo todos os dias, como se se tratasse de um oficial ferido em combate. Nas cartas do então mestre de obras Justo Bravo, ele relata que tanto os movimentos do aristocrata como os do traidor foram espionados, já que não era possível comunicar-se com este último. Não foi constatado nada de suspeito que os levasse a pensar na possibilidade de existir, entre ambos, algum tipo de cumplicidade ou aliança. Mas houve um detalhe que escapou aos antigos mestres: a ideia de confiscar papéis e documentos do notário de Iacobus, e que, segundo consta, era seu ir­mão ou sobrinho. Nós não cometeremos o mesmo erro; não agora que contamos com a informação proporcionada por Azogue, que milagro­samente soube que havia sido encontrado em Toledo o manuscrito da discórdia e que havia sido enviado por correio eletrônico, há apenas umas horas, à amante do paleógrafo e a um de seus companheiros de trabalho. Deus está conosco. Está do nosso lado. E nós permanecere­mos fiéis a Seu desejo, protegendo a Arca do Testemunho."

Ele se deteve, sob os andaimes metálicos das obras de restauração de um edifício em ruínas que havia na parte posterior da catedral, diante dos escudos das famílias Chacon y Fajardo. Da mesma forma que outros transeuntes, aventurou-se pela passagem metálica, cons­truída pela empresa de reformas, para fazer a comunicação entre as diversas praças que circundavam o templo.

Na metade do caminho parou para observar uns estranhos sinais gravados na pedra, a golpes de cinzel. Reconheceu as diferentes mar­cas de cantaria: um triângulo com a cruz na cúspide... Um quadrado com uma cruz no centro... Uma ampulheta encostada... E, finalmen­te, as iniciais IDC.

—Iacobus de Cartago... — sussurrou friamente, sem se importar com as pessoas que olhavam para ele, ao passar a seu lado. — Inclusive morto, a tua herança convida à confusão. Daria dez anos de minha vida para saber onde escondestes o diário!

Pareceu-lhe que alguém ria dele, das profundezas do inferno.

Horas depois de sua conversa com Leonardo Cardenas, Mercedes se reuniu, em seu gabinete, com Nicolas Colmenares, o advogado da empresa. Comunicou a ele a recente contratação de um novo empre­gado, que substituiria Leonardo por algum tempo, já que o bibliote­cário estava fazendo — em sua própria residência — um trabalho para a casa de leilões e era preciso que alguém continuasse a tarefa habitual dele, ou seja, a catalogação dos livros a leiloar. O profissional aceitou sem pestanejar a mudança, embora tivesse preferido dar uma olhada nas condições trabalhistas e na data de extinção, pois era de sua responsabilidade redigir contratos dessa natureza. Convenceu-se quando Melele lhe garantiu que o suplente fora recomendado por um grande amigo dele: Alfredo Hijarrubia, que trabalhava no Minis­tério do Interior.

Depois, abordaram outros temas pendentes. Dedicaram algumas horas a assuntos relacionados com a casa de leilões, não sem certos rodeios, da parte de Mercedes, quando o advogado tratou de abordar com mais profundidade o desgraçado incidente de Balboa. Nicolas, que depois de exercer sua profissão por mais de trinta anos, presumia conhecer a natureza humana melhor que muitos psicólogos, pres­sentiu que a diretora queria lhe dizer algo que, ao mesmo tempo, desejava ocultar. Melele costumava ser uma pessoa bastante franca, talvez até demais. Por isso, ele estranhou vê-la tão distante em alguns momentos e exaltada demais, em outros. Ele a conhecia havia seis anos, quando se instalou na Rua Velazquez com um grande sonho na cabeça, depois de abandonar a companhia Drouot, em Paris, devido a exigências do empresário. Mas hoje não era a Mercedes de sempre, a dama de ferro capaz de ganhar a batalha contra a adversidade. Es­tava certo de que algo a preocupava demais.

—Eu a convido para jantar — sugeriu, procurando, assim, retomar velhos hábitos. — Há muitos meses não compartilhamos a mesa e isso me faz pensar que você já não me inclui entre seus amigos mais seletos.

Mercedes se pôs a rir. Sempre a agradara o tom cortês daquele maduro Don Juan de pele bronzeada, cabelo grisalho e olhos verdes, que havia alguns anos a cumulara de galanteios bastante apropria­dos, com o propósito de seduzi-la. Não podia negar que ele ainda era um homem atraente e que havia sido muito mais, em sua juventude. Mas nunca existira nenhum clima entre eles, mas sim um grande respeito que deu lugar a uma sólida amizade.



  • Aceito o convite — ela respondeu, enquanto pegava o sobretu­do. — Assim continuaremos a conversar, enquanto comemos. Há algo que preciso saber e você pode me ajudar.

  • Posso perguntar do que se trata?

  • Creio que será melhor explicar enquanto jantamos.

O advogado adiantou-se para abrir a porta e dar passagem a ela. Mercedes agradeceu. Em seguida, dirigiram-se ao vestíbulo.

—Tenho de confessar que você está diferente, desde o funeral... — tocou em seu nariz. — Sei que todos estamos um pouco desconcertados pelo que aconteceu a Jorge e gostaria de pensar que o motivo é esse... e não outro — e então parou em frente aos elevadores, acrescentando gravemente: — Diga-me que a Hiperión não me oculta novas surpresas.

—Tudo depende de sua resposta a minhas perguntas.


  • Que coisa...! — ele exclamou, mordaz. — Esta manhã, você despertou enigmática.

  • Não se preocupe, que até o fim da noite serei a mesma grossa de sempre — assegurou, com um laivo de secura.

Nicolas acusou, de novo, a repentina mudança de humor da parte dela. Era evidente que estava na defensiva. Sua preocupação deveria ser grave, pois a instabilidade a levara a dar uma resposta muito fora do tom. O certo é que conhecia a causa de seus altos e baixos, mas queria que ela mesma confessasse.

Depois de uma breve caminhada, eles entraram em um restau­rante de cozinha basca. Pediram merluza ao estilo tradicional e uma boa garrafa de vinho brando de Navarra. Enquanto lhes traziam umas entradas, Mercedes aproveitou para acender um cigarro. Nico­las, que não suportava a fumaça do tabaco, consolou-se pensando que no próximo ano entraria em vigor a nova lei sobre fumantes.



  • Suponho que a polícia já tenha entrado em contato com você a respeito do assassinato de Jorge — começou dizendo a diretora, jun­tando as palmas das mãos. — Eu mesma lhe dei seu número de telefo­ne, porque acreditei que seria melhor. Qualquer assunto que tenha relação com a vida pessoal de nossos empregados é um problema alheio à empresa. Mas desta vez é diferente; não pude enfrentar sozinha, o fato e lhes sugeri que falassem com você. Sinto ter abusado de sua confiança.

  • Você fez a coisa certa, caso contrário poderia ver-se diante de uma série de perguntas impertinentes, com o objetivo de confundi-la.

—O que quer dizer?

—Ora, tenha paciência...! — levantou as sobrancelhas significa­tivamente. — Pensa que a polícia é idiota? — reprovou-a, com um tom amável. — Por que você foi a única pessoa da empresa a quem eles interrogaram, em vez de um funcionário?

—Bem, porque Jorge não tinha família em Madri e eu sou a úni­ca pessoa a quem podiam dirigir-se, neste caso. De todas as formas, trabalhava para mim.

Um breve sorriso irônico passou pelo rosto do profissional.

—Poupe seus esforços. Eles sabem o que havia entre vocês dois.

Melele sentiu que suas maçãs do rosto enrubesciam: haviam des­coberto. Não é que se sentisse envergonhada pela relação amorosa, mas gostava de manter segredo sobre tudo o que dizia respeito à sua vida privada, mais ainda se isso implicava entrar no terreno sexual. Em todo o caso, a única coisa que lhe ocorreu foi negar o que era inquestionável.



  • Não sei do que você está falando — sussurrou. Depois, olhou para ele com ar de desafio.

  • Encontraram provas de sua relação no apartamento. Você sabe... Fotografias em que estão juntos e felizes, roupas íntimas de mulher nas gavetas do quarto dele, perfume no banheiro... E uma série de coisas mais que lhes fez cogitar na presença esporádica, ali, de uma mulher. Nesse caso, você.

  • O que mais lhe contaram?

  • Que foi uma carnificina — ele respondeu em voz baixa. Parece incrível que algo assim tenha acontecido a Jorge.

  • Só isso? — ela perguntou, de novo. — Nenhum detalhe esca­broso de sua morte?

  • Creio que cortaram a língua dele... Não sei nada mais. A polícia não se estende muito quando está procurando esclarecer o que aconteceu. As explicações que oferece são mínimas, profissionais; você já sabe.

Mercedes assentiu com a cabeça, procurando reprimir sua inquietação.

O garçom lhes trouxe as entradas e o vinho e logo depois serviu a comida. Falaram de negócios, do grande crescimento dos coleciona­dores de papel durante o último ano, graças à qualidade da oferta, do aumento visível da competência no setor e, também, aos amplos co­nhecimentos que demonstravam ter os investidores que frequenta­vam as salas de leilões. O certo é que ambos se empenharam em desperdiçar seu tempo em


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