Sumário prólogo capítulo



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dentro de uma semana. Permaneceram em silencio, por um momento, fitando-se nos olhos, sem saber o que dizer. A chefe pigarreou e retomou a palavra:

  • Muito bem... em que posso ajudá-la? — concluiu em tom gra­ve, imaginando que a situação poderia se prolongar.

  • Tenho de voltar ao meu apartamento... Meu vizinho de baixo acaba de me telefonar. Disse que está pingando água pelo teto de seu banheiro, que fica justamente sob o meu. Pelo visto, há um vazamen­to na tubulação.

Esboçou um gesto de preocupação, que pareceu muito convincente.

  • Nossa, que contrariedade! — respondeu Mercedes, ao perce­ber que teria de prescindir de sua funcionária durante algumas ho­ras. — Espero que você possa consertá-lo a tempo de estar aqui às quatro e meia.

  • Fique tranquila. Deixarei tudo nas mãos de meu seguro. Eles se encarregarão de mandar um encanador. Mas tenho de deixar a chave do apartamento com o porteiro do edifício, além de fazer uma série de ligações.

Mercedes lhe deu permissão para sair, lembrando que o leilão se­ria realizado dentro de poucos dias e que, por isso, precisava da cola­boração de todos os empregados.

Cláudia deixou a sala da diretora com a satisfação de ter sido ca­paz de mentir sem que suas pernas tremessem. Era a primeira vez que fazia algo semelhante no trabalho. Pôs a culpa de seu comporta­mento no fato de que Leonardo conseguira decifrar o manuscrito. A mesma diretora iria correndo ao encontro dele, se soubesse.

Dirigiu-se ao vestíbulo, mas, antes de abrir a porta para sair, olhou para trás. Colmenares continuava ao telefone, fitando-a de maneira insolente. Era possível dizer que a estava espionando. Diante de tal descaramento, ela virou as costas, carrancuda, e saiu da empresa pensando que talvez aquele pegajoso a estivesse desnudando com o olhar. Esqueceu-se do advogado enquanto descia do elevador, sen­tindo um calor entre as pernas.
Capítulo 10
Reunidos em torno de uma antiga mesa medieval de carvalho, em um dos gélidos salões do castelo dos Velez, os sete membros do Conselho, e a Viúva — encarregada de guardar o segredo da loja —, faziam um balanço do que acontecera na última semana. A assembléia, que teve início quando eles tiveram conheci­mento do manuscrito, concluía, agora, que as duas únicas pessoas que sabiam da existência do documento estavam sob o olhar crítico da irmandade. E, embora tivessem decidido deixar que Leonardo Cardenas continuasse com sua investigação, todos lamentavam o terrível castigo que teria de sofrer Mercedes Dussac, mas que todos concordavam ser muito necessário, em favor de um segredo que pro­tegiam havia vários séculos.

Sholomo era dos que pensavam que as mortes deviam terminar o quanto antes. Reconhecer, a tempo, que haviam agido precipitada­mente lhe permitia consertar uma situação que começava a lhe esca­par das mãos. Gracus, outro dos Mestres Guardiões reunidos na fortaleza de Vélez-Blanco, de natureza prevenida e homem que de­fendia com capa e espada os velhos costumes maçónicos, opinou que melhor seria acabar também com Cardenas e fazer uma cópia do pergaminho, já que não era tão difícil decifrá-lo. Nemrod saiu em defesa do bibliotecário, apoiando a maneira de pensar do Mestre dos Mestres". Sua forte personalidade e o cargo político que ocupava no Ministério da Justiça, de certa forma, justificavam sua imparcialidade, razão pela qual os demais presentes, por deferência, se mantiveram em silêncio para escutar o que ele teria a lhes dizer.

—Não haverá mais mortes. Nós já decidimos isso, por maioria, na última reunião — recordou, com muita seriedade. — Não podemos infringir nossos próprios preceitos e, menos ainda, quando esse homem pode nos conduzir ao lugar onde está escondido o diário de Iacobus.

—Tem tanta certeza de que Azogue está nos dizendo a verdade? — perguntou, de novo, Gracus, referindo-se a Sholomo.



  • Devo recordá-lo de que todos estamos sob juramento, incluin­do os irmãos de primeira e segunda ordem... — ele respondeu, gla­cial, com o intuito de lhe refrescar a memória. — Lembro, também, que graças à sua informação teremos a possibilidade de saber o que diz o manuscrito.

  • A fidelidade de Azogue não deveria estar em julgamento — considerou Hiram, com voz tranquila, revelando seu sotaque árabe.

— Nem deveríamos permitir que o segredo dos templos nos cegue a ponto de assassinar pessoas cujo único crime foi ler um antigo pergaminho.

  • Não se trata de proibir um conhecimento, mas sim de impedir que seja divulgado de maneira indiscriminada — afirmou Hermes, do extremo oposto da mesa escura. — Como o irmão Gracus, não entendo por que temos de permitir que esse homem bisbilhote o direito do pedreiro. Consta das Memórias de Justo Bravo que o mesmo De Cartago lhe confessou, pouco antes de morrer, que em seus escritos revelava o modo de adquirir conhecimento das Artes e o caminho que se deveria seguir até o Salão do Trono.

  • O que é que vocês estão dizendo? — perguntou Sholomo aos dois únicos membros da loja que não haviam participado da conversa.

Shimon, a quem — por ter voado da Escócia, com muita urgên­cia, para chegar a tempo — faltou tempo para formar uma opinião justa sobre o problema, optou por pronunciar-se a favor de Leonar­do Cárdenas... ao menos, naquele momento. Seu conselho foi que ele deveria ser seguido de perto, enquanto fosse útil, e esquecer dele quando conseguissem pegar o diário.

Balkis, a única mulher do grupo, que representava a sabedoria da Viúva, e que estava acima do Conselho, suspirou em silêncio. Os ho­mens aguardavam, ansiosos, sua opinião e ela os olhava com relaxada tolerância. Chegara a sua vez de falar.



  • Creio que ele merece uma oportunidade — começou dizendo, com voz serena. — Se consegue nos levar ao diário, temos de arrebatá-lo antes que possa ler. Mas tem de viver... Depois de uns momentos de reflexão, acrescentou... — ... eu até pensei que poderíamos apresen­tar a ele a charada de iniciação.

  • O que...? — exclamou Sholomo, certo de que Balkis perdera a cabeça. — Você pensa em recrutar um desconhecido somente porque ele vai nos levar ao diário de Iacobus?

O resto do grupo se uniu ao protesto. As vozes discordantes se misturavam, mas a mulher vestida com uma túnica púrpura e um manto azul, que faria inveja à própria rainha de Sabá, saiu em defesa de seu propósito.

  • Devo recordá-lo de que os que penetram nos mistérios da ma­çonaria têm direito a um ensinamento por intermédio da adivinha­ção da chave — disse, de maneira solene. — Devemos lançar a semente e esperar que frutifique no campo do saber. Se for um dos filhos de Deus, vai tirar proveito de seu próprio trabalho interior. Caso contrário, seguirá seu caminho.

  • Isso me parece justo — Shimon inclinou a cabeça e aceitou a proposta —, mas teremos de vigiá-lo de perto.

—Faremos isso com a ajuda de Azogue — prometeu a Sholomo.

Naquele momento, entrou um empregado para lembrar que, termi­nado o tempo da reunião, eles deviam ir embora, conforme haviam combinado com a Comunidade Autônoma da Andaluzia, que concordara em alugar para eles, por algumas horas, aquele espaço no castelo dos Velez, em troca de uma substancial quantidade de dinheiro. Eles haviam declarado que eram uma corporação de artistas interessados nos valores arquitetônicos das linhas e figuras que integravam a soberba fortaleza. A promessa de que suas gárgulas seriam mostradas na capa de uma revista de arte de distribuição nacional animou o secretário de Cultura a permitir a entrada deles em um lugar que permanecia fechado ao público desde a recente aquisição do palácio pelo governo andaluz.

Concluída a reunião, os membros da irmandade abandonaram o castelo para descer até a ladeira que conduzia ao estacionamento, situado diante de uma pequena hospedaria. Despediram-se, uns dos outros, dirigindo-se a seus respectivos automóveis, tão logo cumpri­das suas obrigações de cortesia.

Balkis se aproximou para beijar, na face, o Mestre dos Mestres Sholomo, que fora seu amor platônico em sua juventude. Depois fi­tou profundamente seus olhos. Podia-se dizer que ainda a provocava o olhar daquele homem.

—Há algo que me preocupa — confessou-lhe com certa inquietação.


  • Não há maior problema do que não ter um problema... Não é certo? Você nunca mudará — recriminou Sholomo, acusando-a de ser viciada em ansiedade.

  • Pense o que quiser, mas acho que você deveria vigiar essa tal Lilith. Os assassinos profissionais são pessoas sem escrúpulos e, às vezes, muito curiosos. Se chegasse a se inteirar de...

Não terminou a frase.

—Fique tranquila... — ele passou os braços ao redor dos ombros dela, de forma carinhosa. — Essa mulher vai embora da Espanha tão logo termine seu trabalho. Não representa nenhum perigo.

—Isso espero, para o bem de todos — sussurrou, enigmática.

Ao concluir, Balkis foi embora, com Hiram. Ambos regressariam juntos ao país onde guardavam, cuidadosamente, o Testemunho de Deus. Ali esperariam que o iniciado fosse capaz de resolver a charada. Se conseguisse, Leonardo Cardenas teria a oportunidade de enfrentar os perigos que espreitavam nos degraus do neófito: a escada.


Capítulo 11
Cláudia entrou no apartamento de Leonardo no mesmo instante em que ele saía do banho. Pendurou seu casaco no cabide do vestíbulo, indo ao encontro dele para lhe dar, com muita delicadeza, um beijo nos lábios.

—Fico feliz em vê-la — ele disse, devolvendo o beijo cálido. —Ago­ra que você chegou, poderei contar o que averigüei. Mas, antes de tudo, obrigado pela tabela de frequências. Não sei o que teria feito sem ela.

Então, sem mais demora, convidou-a a sentar-se no sofá. Em poucos minutos, contou-lhe tudo o que obtivera, com suas investiga­ções. Inclusive a história do escultor, a quem haviam arrancado os olhos e cortado a língua, a do italiano que relacionava os versos de Nostradamus com a capela dos Velez e, também, o fato de que talvez houvesse um tesouro nas cercanias de Múrcia.


  • E como é que você ficou sabendo disso...? — Cláudia achou estranho que ele tivesse tanta informação, quando, na noite anterior, só sabiam por onde começar.

  • Ontem à noite, depois que você foi embora, lembrei onde ha­via escutado, antes, a pergunta formulada por Balboa: "Quem é capaz de vislumbrar, de baixo, a fenda do elo da corrente?"

- Você já ouvira, antes, essa frase? — A mulher desconhecia esse detalhe.

  • Sim... bem... acontece que fui jantar com Jorge, no Wellington, uns dias antes de sua morte. Você já sabe... justamente quando ele me contou sobre o manuscrito de Toledo... — tratou de refrescar a me­mória dela. — Antes disso, tínhamos conversado sobre as catedrais espanholas, como atração turística. Eu, que sou de Murcia...

  • Isso você não havia me contado... — ela o interrompeu. — É verdade que você é murciano?

  • Sim! — afirmou, orgulhoso. — Mas deixemos isso para outra hora. Agora, será melhor que eu lhe mostre a tradução...

Dito isso, foi até o escritório e pegou algumas folhas impressas.

—Quero que você leia atentamente e me dê sua opinião — disse, entregando-as.



Cláudia começou a ler o manuscrito de Toledo, sabendo de antemão que ao fazê-lo incorria no antigo preceito que era o castigo com a morte. Não obstante, decidiu arriscar-se.
"Saibam, todos os que lerem este escrito, que eu, Iacobus de Car­tago, decidi por minha própria vontade revelar urbi et orbe o arcano dos templos oculto às gentes e a forma de chegar até a sala onde se esconde a verdadeira face de Deus, Nosso Senhor.

Aquele que receber o conhecimento desta palavra há de procurar poder falar com bondade a todos a respeito disso que eu digo, antes que esta sabedoria se perca no esquecimento, nisso deposito toda minha esperança.

Se acontecer de que sejam desejosos de conhecer, como muitos, a verdade, tereis que baixar aos infernos que se precipitam atrás de uma grande corrente, chacais e colunas barbudas, Jaquim e Boaz. Haveis de ver, de baixo para cima, quando vos encontrardes diante dos pilares que meu nome estará assinado ali. Nesse inferno eu vos serei revelado.

Sou e estou em meu interior.

Todo homem, toda mulher, pode entregar-se a Deus, Nosso Se­nhor, despindo-se de soberba, na obscuridade de um tempo, apesar da estupidez dos seres humanos que corrompe a razão e esconde a magia telúrica da pedra. Tenho orgulho de descender dos ancestrais Os Filhos da Viúva, conhecedores da arte e da técnica das catedrais, já que minhas mãos cinzelaram palavras de pedra que o povo lê e entende, os que procuram ser livres. Amo meu trabalho, mas muitos dirão mais tarde que foram traídos por minha atitude, eles é que traíram, os que enganam e não dizem a verdade, os que não dizem que sabemos como falar com Deus, Nosso Senhor.

Haverás de buscar meu scriptum e descer até a região de Tubalcaim, onde permanecem as colunas que resistiram ao Dilúvio e que agora estão soterradas pelas areias daquelas águas ancestrais. Abaixo da parte onde habitam as trevas e o caos verás o que meus olhos não vêem.

Na muito nobre e muito leal cidade de Múrcia, dez de abril do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de mil quinhentos e vinte e três."

Iacobus de Cartago
Cláudia respirou fundo quando terminou de ler. O texto parecia muito interessante, embora ela não compreendesse muito bem onde teriam de buscar o suposto escrito, que devia estar escondido nos infernos que se precipitavam sob a grande corrente. Aquela frase parecia ter relação com a estrofe de Nostradamus e foi o que ela disse a seu companheiro.

  • Não lhe parece estranho que novamente sejam mencionadas umas correntes? — levantou o olhar e deparou-se com o gesto de apro­vação de seu par. — Ao que tudo indica, elas são o centro da busca.

  • E são mesmo, pode acreditar. Esse é o motivo pelo qual Balboa me enviou o e-mail. Iacobus de Cartago, segundo me confirmou esta madrugada meu amigo Raul, foi o pedreiro que esculpiu a corrente da capela dos Vélez. Espera, ainda há mais... — pegou o mouse para subir até o parágrafo onde se mencionava a obra. — Também se re­fere a chacais e colunas barbudas. E como eu lhe disse, na catedral de Murcia há um nicho, situado na parte exterior da capela dos Vélez, que abriga o escudo dos Chacón y Fajardo. No brasão, podem ser vistos a flor-de-lis e um cachorro, ambos tocados pelas mãos de dois sustentáculos, representados por figuras barbudas, um de frente e outro de lado. Parecem iguais, mas não são... — estalou a língua. — Pelo visto, o escultor lhes deu nomes: Jaquim e Boaz.

  • Espere um pouco! — Cláudia lembrou um detalhe de grande importância. — Não são esses os nomes dados às colunas que havia na entrada do Templo de Salomão?

  • Não sei — reconheceu Leonardo, com voz baixa. — Por vício profissional, a única Bíblia que me interessa é a impressa por Ciutenberg.

  • Ora, não seja bobo! — ela o repreendeu, batendo carinhosa­mente em suas costas. — Mexa-se e traga essa Bíblia que você tem na biblioteca da sala de visitas.

Ele obedeceu a ordem, enquanto Cláudia voltava a ler o texto. Segundo o manuscrito, Iacobus decidira revelar a todo mundo um segredo que tinha a ver com o fato de falar com Deus. Dizia estar orgulhoso de ser um dos herdeiros da instituição Os Filhos da Viúva, razão pela qual supôs que ele fosse vinculado às guildas, onde se reu­niam os primeiros maçons.

Cláudia achou que teria de falar seriamente com Leonardo, tratando de convencê-lo de que seria impossível, para eles, desvendar aquele mistério sem contar com a ajuda de um especialista. Tinha de lhe falar a respeito de Salvador Riera, mas não sabia como começar.



  • Aqui está ela... — Leonardo regressou com um exemplar da Bíblia de Jerusalém do ano 75. — Onde acha que devemos procurar?

  • Se não me engano, no Livro I dos Reis — respondeu, arrebatando a obra das mãos dele.

Andava de um lado para outro, no escritório, procurando entre as páginas o versículo em que era mencionado o nome das colunas. Finalmente, se deteve. Sem tirar o olho do livro, fez um gesto para Leonardo, pedindo que se aproximasse. Ele ficou ao lado dela, lan­çando o corpo para a frente, com a intenção de ver melhor o texto que ela apontava com o indicador.

—Leia!


—"Erigiu as colunas diante do Ulam do Hekal — começou a ler em voz alta —; levantou a coluna da direita, à qual chamou de Yakín; ergueu a coluna da esquerda, denominando-a de Boaz. E terminou o trabalho das colunas."

Ele olhou, novamente, para a companheira.

—Você acha que existe algum vínculo entre o Templo de Salomão e os sustentáculos de Múrcia?

Cláudia encolheu os ombros, tentando encaixar as peças do maldito quebra-cabeças, embora, na realidade, o manuscrito de Iacobus e a sangrenta morte de Jorge não fossem precisamente um jogo.



  • Talvez as esculturas tenham um valor simbólico — atreveu-se a conjecturar, como se falasse sozinha. — O mesmo De Cartago nos diz que suas mãos esculpiram palavras de pedra, que o povo lê e entende.

  • A linguagem dos pássaros — refletiu Leonardo, em voz alta.

  • Certo! Era a isso que se referia o enigmático Fulcanelli, em sua obra O Mistério das Catedrais. E, de certa forma, tinha razão, já que a única maneira que os artistas do passado tinham de chegar ao povo era por meio das imagens.

—E para você, o que são as duas colunas? Cláudia demorou a responder.

  • Não tenho certeza — disse, finalmente. — O pedreiro as situa, de novo, em um lugar do qual jamais ouvi falar em toda a minha vida... — desalentada, arqueou as sobrancelhas. — E isso é bastante significativo, sobretudo quando, para encontrá-las, nos induz a viajar até uma região que foi testemunha do Dilúvio.

  • Também admite descender da organização Os Filhos da Viúva.

  • Isso quer dizer que estamos no bom caminho. Mas penso que precisaremos de ajuda.

Leonardo achou graça na ideia. Se Mercedes chegasse a saber que Cláudia estava metida nisso, seria capaz de esquartejá-lo. Só o que faltava era incluir mais alguém no assunto. Calculou que, se a conversa continuasse, haveriam de ser muitos a perder a língua e algo mais...

  • Você sabe que meu emprego está em jogo — argumentou, ta­citurno. — Não posso sair por aí contando a toda gente uma história que não nos pertence.

  • Você está tão envolvido como eu, queira ou não a diretora — Cláudia jogou na cara dele sua apreensão. — Temos de seguir adiante, se quisermos saber quem são os que colocam nossas vidas em perigo. A mim isso interessa, pessoalmente.

Leonardo Cardenas, cheio de dúvidas, balançou a cabeça, antes de perguntar, sem rodeios:

  • Qual é a sua proposta?

  • Que você conte a Mercedes tudo o que descobrimos — ela sugeriu, com um brilho especial nos olhos. — Assim você conseguirá os recursos necessários para facilitar seu deslocamento até Murcia. Trate de convencê-la de que é necessário encontrar o scriptum men­cionado no manuscrito. Sem dúvida, ele nos conduzirá aos assassi­nos de Balboa.

  • Eu já havia pensado nisso. Por acaso você pensa que eu ficaria em Madri, de braços cruzados, sabendo que há um tesouro oculto nos arredores da catedral de Múrcia?

  • Eu irei com você... — não pensava deixá-lo sozinho. — Eu conheço uma pessoa que vive ali e que poderá nos ajudar muito. É um estudioso do assunto. Conhece muito bem o mundo esotérico dos maçons e seus rituais.

  • Não sei o que dizer a você... Pensativo, ele passou a mão no queixo e refletiu sobre a proposta. — Eu já lhe disse que não pode­mos envolver mais ninguém. Uma coisa dessas poderia colocar em perigo não só as nossas vidas, mas a dessa pessoa, também.

  • Eu respondo por ele — insistiu, teimosa. — É Salvador Riera, meio-irmão de minha mãe. Está aposentado há anos. Vive em um povoado de Múrcia, chamado Santomera. Segundo meu tio, só ele conhece a história que deu origem ao nome do município. Você vai gostar de conhecê-lo, tenho certeza!

Deixou claro que não descartaria a possibilidade de visitá-lo. Leonar­do pensou, com seus botões, que seria melhor não se opor, caso contrário só serviria para iniciar uma discussão que não queria enfrentar.

  • Está bem, vamos consultá-lo. Mas, antes, estou preocupado como o que você vai dizer a Mercedes. O leilão é na próxima segun­da-feira — recordou — e ela vai precisar de todos no evento.

  • Eu não pensava em viajar agora. Encontrarei uma desculpa convincente para me ausentar alguns dias, depois do leilão. É melhor mesmo que você vá primeiro e me espere lá, instalado em algum hotel. Enquanto isso, poderia recolher informação a respeito das cor­rentes da capela dos Velez. Quem sabe seus contatos nos ajudem com algum outro detalhe importante!

  • É o que espero — ele respondeu, absorto, enquanto se sentava de novo diante do computador. — Acho que podemos ter novidades no manifesto de Iacobus...

Cláudia se aproximou, para dar uma olhada na tela do monitor, exa­tamente onde Leonardo assinalava com o dedo indicador da mão direita.

  • O nome Tubalcaim lhe parece conhecido? — perguntou. — Por acaso lembra algum personagem bíblico?

  • Talvez algum descendente de Caim, pela semelhança do sufixo — sugeriu Cláudia, abrindo a Bíblia de novo. — Por alguns instantes, procurou pelo Gênesis. Surpreendeu-se por ter-lhe dado um branco, pois havia uns versículos dedicados, precisamente, à descendência do primeiro fratricida.

Leu em voz alta:

"Caim conheceu sua mulher, que concebeu e deu à luz Enoque. Estava construindo uma cidade e deu a ela o nome de Enoque, igual o de seu filho. De Enoque nasceu Irade e Irade gerou Meujael, que teve Metusael e Metusael gerou Lameque. Lameque teve duas mulhe­res: a primeira chamada Ada, a segunda, Zilá. E Ada deu à luz Jabal, que veio a ser o pai dos que moram em tendas e criam gado. O nome do irmão dele era Tubal, pai de todos os que tocam cítara e flauta. E Zilá, por sua vez, gerou Tubalcaim, pai de todos os forjadores de co­bre e ferro. A irmã de Tubalcaim foi Naamá."

- É impressionante! — exclamou Leo. — Se nos guiarmos pelo manuscrito de Iacobus, teremos de procurar as colunas de Salomão na região de Tubalcaim, ou seja, em Enoque, uma cidade antediluviana... — Pestanejou, concentrado. — Você consegue entender alguma coisa?

Cláudia mexeu os ombros. Ela também estava confusa.



  • Agora, mais do que nunca, acho que deveríamos fazer uma visita a meu tio. Estou certa de que deve haver alguma relação entre OS maçons e os personagens da Bíblia.

  • Ouça o que pensei... — disse-lhe Leonardo. — Amanhã será sexta-feira. Falarei com Mercedes, para dizer que pretendo ir até Murcia. Você passará o fim de semana comigo, para que possa me apresentar a esse familiar de quem falou. No domingo à tarde você pega um avião para Madri, vai ao leilão na segunda-feira, encontra uma boa desculpa para ausentar-se, em seguida, e regressa a Múrcia na terça-feira pela manhã. A partir daí, teremos uma semana para procurar o diário de Iacobus.

  • Que, segundo o pedreiro, está nos infernos... — frisou Cláudia, irônica. — Só espero que não esteja sob a guarda do próprio Lúcifer.

Riu de sua própria expressão, mas Leonardo não achou nenhuma graça, porque estava com a atenção totalmente voltada à tela do mo­nitor. O bibliotecário continuava mergulhado em seus próprios pen­samentos e murmurava:

—Os Filhos da Viúva... Os Filhos da Viúva.


Capítulo 12
Em vez de se hospedar novamente no Santo Mauro, onde os funcionários já a conheciam por ter estado ali uns dias antes, e poderiam estranhar que ela se registrasse com um nome diferente, quando voltou a Madri decidiu instalar-se em um pequeno hotel, situado na Rua Valdemoro.

Antes de mais nada, assim que chegou, tomou um banho e esco­lheu um traje que chamasse menos atenção. Já vestida com uma cal­ça jeans bem desgastada e uma blusa de cor grená, maquiou-se levemente diante do espelho, apenas para dar uma corzinha nas ma­çãs do rosto. Em seguida, guardou sua automática no coldre que es­condia nas costas, além de uma faca de caça, que ocultou em um cinto atado a seu tornozelo. Depois de colocar uma peruca de cabe­los ondulados e castanhos, deixou o quarto sentindo-se outra pessoa.

Conhecia de memória o endereço que Sholomo lhe dera, mas para não correr o risco de se equivocar, anotou as indicações no dor­so da fotografia, que guardou no bolso. Tinha pensado em controlar os movimentos de Mercedes durante alguns dias, especialmente para conhecer seus hábitos e atitudes. Uma das questões fundamentais era investigar se vivia sozinha; outra, perambular pelos arredores do lugar onde ela vivia, para saber que tipo de alarme havia sido instalado em seu andar e encontrar uma forma de neutralizá-lo quando fosse a hora certa.

Pouco depois, o Corvette de Lilith percorria as amplas avenidas da capital, até chegar à Rua Velazquez. Depois de mostrar ao segu­rança um crachá, falsificado pelos homens de Sholomo, desceu a rampa que conduzia aos estacionamentos do edifício onde ficava a sede da empresa de leilões.

Fez todo o caminho lentamente, com o objetivo de encontrar o carro que procurava. Lá estava ele, no final do subsolo, perto dos elevadores. Conferiu os números e letras da matrícula com os que estavam escritos no relatório recebido na noite anterior, e eles coin­cidiam. Estacionou em uma vaga distante. As luzes se apagaram e o lugar ficou novamente tomado pela escuridão.

No interior do automóvel, paciente e relaxada, a predadora aguar­dou a chegada de sua presa.

Mercedes entregou um molho de chaves ao segurança, junto com a contrassenha daquele dia. Mais tarde, guardou em sua maleta uma pasta com documentação da empresa — documentos que teria de levar à administração tão logo chegasse, de manhã — e saiu dos es­critórios depois de fechar a porta de sua sala. Esgotada, por ter de conciliar o trabalho com seus problemas pessoais, foi até o vestíbulo com andar cadenciado e silencioso, enquanto acendia um cigarro. Tudo sem nenhuma pressa de abandonar o edifício e regressar à solidão de seu apartamento. Javier a seguia, dois passos atrás, reprimin­do um bocejo de cansaço, com a palma da mão. Eram os últimos a sair. O relógio marcava nove e dez da noite.

O elevador os levou direto para o estacionamento, situado no subsolo. Uma vez lá, o motorista adiantou-se para abrir a porta de trás do automóvel, tal como exigia seu contrato. Mercedes agradeceu, acomodando-se no interior do veículo. Javier fechou com suavidade. Em seguida, sentou-se à direção e introduziu a chave no contato. Segundos depois saiu com o carro, afastando-se da vaga lenta e elegantemente, uma atitude elogiável que atestava seu impecável profissionalismo. Quando, finalmente, alcançou a Rua Velazquez, agora cheia de vida, luz e cor, virou para o sul, com a intenção de pegar a Rua Alcalá. Em nenhum momento ele e sua patroa percebe­ram que estavam sendo seguidos.

Lilith deixou que alguns veículos passassem à sua frente, por uma questão de segurança. Seu carro era muito chamativo, por isso ela queria se manter fora do alcance do espelho retrovisor daqueles que vigiava e seguiam adiante. Levou um cigarro aos lábios. Às cegas, procurou o isqueiro e o encontrou no assento ao lado, em um dos compartimentos de sua bolsa. Ligou o rádio. Sintonizou uma emis­sora regional de FM onde falavam de temas esotéricos. Um conheci­do investigador de fenômenos paranormais, que apresentava um programa do mesmo tipo na televisão, explicava a seus interlocutores o efeito que teve, para Napoleão, o fato de ter passado uma noite no interior da Grande Pirâmide. Ouviu suas divagações sobre a possibi­lidade de que o general francês tivesse se submetido a um antigo ritual egípcio com o objetivo de alcançar a vida eterna, algo que lhe pareceu absurdo. Apesar de tudo, continuou prestando atenção ao debate, sem deixar de vigiar o carro de Mercedes.

Desligou o rádio quando percebeu que o veículo, que estava se­guindo com determinação, tinha o pisca-pisca aceso. Estacionou do outro lado da rua, em fila dupla, e apagou as luzes. Dali, pôde ver como Mercedes saía do carro e se aproximava da janela do motorista, talvez para lhe recordar que deveria buscá-la no mesmo lugar, na manhã seguinte.

Arrumou o terninho e, seguindo em direção à entrada do prédio, desapareceu atrás das grossas portas de vidro. O Jaguar se reintegrou ao movimento do tráfego, no meio de um sem-fim de carros que circulavam pelo centro da cidade, àquela hora da noite.

Lilith deu a partida, novamente, disposta a encontrar um estacio­namento nas proximidades. Localizou um na Rua Silva, onde ainda restavam algumas vagas livres. Depois de deixar o veículo em uma área menos movimentada, subiu à rua, levando consigo a maleta onde carregava seus instrumentos de trabalho. Regressou caminhando ao edifício onde Mercedes morava. Apoiou-se na porta, como se estivesse tocando uma das campainhas. Na realidade, queria averi­guar se o andar e a letra coincidiam com as que recebera. De fato, o terceiro C pertencia mesmo a Mercedes Dussac. Sem pensar duas vezes, apertou o botão do sexto H, onde se lia os nomes: Manuel Tomelloso Soler-Concepción Navarro Ayora. Foi uma escolha ao acaso. Depois de alguns segundos, ouviu-se uma voz de mulher, no interfone.

—Quem é?

—Serviço noturno dos correios — respondeu Lilith, de forma profissional, tentando dissimular seu sotaque. — Trago uma carta registrada para Dom Manuel Tomelloso... É de tráfego.



  • Uma multa?

  • Não sei, senhora. Mas preciso que assine.

Não quis se estender. Quanto menos falasse, melhor.

Tinha tido bastante sorte com aquela idiota, capaz de acreditar em algo tão disparatado como o aviso de uma multa a essas horas da noite. A maioria das pessoas, segundo seu critério, costuma ser con­fiante por natureza, e é raro que duvidem das palavras de um funci­onário quando os procura em sua residência.

De fato, a porta se abriu segundos depois.

Sem perder tempo, ela subiu as escadas do vestíbulo até chegar ao elevador. Quando entrou, apertou o número 3. Procurou na bolsa um decodificador do tamanho de um celular, equipamento que ha­veria de ajudá-la na difícil tarefa de obter a senha de segurança e, desta maneira, poder falsificar um cartão de acesso.

Chegou ao terceiro andar. Não encontrou ninguém no corredor de entrada e isso facilitava sua tarefa. Seus passos foram amortecidos pelo grosso tapete de cor acinzentada que cobria parcialmente o as­soalho. Em silêncio, aproximou-se da porta com a letra C. Agiu com rapidez, já que de um momento para o outro alguém poderia sair de sua residência e encontrá-la no meio do corredor, em atitude suspeita. Agachou-se para dar uma olhada na fechadura. A princípio, acreditou que poderia se tratar de um dispositivo de acesso por meio de cartão magnético, como nos quartos de alguns hotéis, mas se enganou. Era igual ao das demais portas do edifício. Qualquer profissional, com uma pistola eletromecânica para fechaduras simples, poderia abri-la em questão de segundos. Justamente, em sua maleta de trabalho ela guardava uma ferramenta semelhante, boroscópio, um duplicador de chaves e várias gazuas simples e tubulares de seis e sete pinos. Guardou de novo o decodificador. Então escutou um murmúrio de vozes pelo vão das escadas, alguns andares acima. Era a senhora do sexto e seu marido, que já começavam a pensar terem sido alvos de alguma brincadeira e se perguntavam quem poderia ter entrado no edifício com a desculpa de lhes entregar uma multa de trânsito. Ela olhou ao redor, procurando guardar na memória detalhes do lugar, antes de ir embora, pois aquele cenário teria de servir-lhe de referência no dia em que decidisse agir. Sem perder a calma, Lilith desceu a pé os três andares, desistindo da ideia de pegar o elevador.


Capítulo 13
No dia seguinte, Leonardo compareceu ao encontro que havia marcado previamente com Mercedes. Combinaram encontrar-se em um restaurante situado na Rua Serrano, em frente ao Museu Arqueológico. Ambos foram pontuais. Na verdade, Cardenas esperou alguns minutos até que a diretora aparecesse.

—Eu lamento. Você sabe como anda o tráfego em Madri — ela se desculpou, ao chegar. Forçou um sorriso casual.

Leonardo sabia muito bem as deficiências que acumulava a pre­feitura devido às numerosas obras em curso, tema de conversação habitual quando se esgotavam os assuntos sobre o clima. Além disso, não era um atraso digno de nota.


  • Não se preocupe, acabo de me sentar — disse com suavidade. — O que acha de pedirmos primeiro?

  • Sim, será melhor.

Melele sentou-se, depois de colocar sua bolsa na cadeira ao lado. O garçom se aproximou para deixar, discretamente, o cardápio sobre a mesa. Em seguida levou os copos e os pratos que não seriam utilizados. Pouco depois, veio outro jovem para anotar o pedido.

Quando estavam a sós, Mercedes fez um gesto indicando que ele começasse a falar. Precisava saber como andavam suas investigações.



  • Consegui traduzir o manuscrito... — foi sua frase de entrada. — Posso lhe dizer que se trata da história mais surpreendente que já li em minha vida.

  • Sabia que você conseguiria... — seus lábios esboçaram um leve sorriso de satisfação. — lorge não se equivocou. Somente você pode­ria fazê-lo.

Tantos elogios conseguiram deixar Leonardo embaraçado, pois ele só pretendia dar um toque de mistério ao diálogo.

—Aqui está, eu lhe trouxe uma cópia ... — e estendeu uma folha, que havia tirado da pasta colocada num canto da mesa. — Leia e me diga o que lhe parece. Estou certo de que você o achará fascinante.

A diretora começou a ler em silêncio. Correto. O conteúdo des­pertou seu interesse, embora ela não tenha compreendido o signifi­cado global da narrativa. Além disso, tinha dificuldade de fazer a transcrição mental das expressões antigas, de maneira que corres­pondessem à linguagem atual.


  • O que quer dizer tudo isto? — perguntou perplexa, devolven­do a seu subordinado a folha de papel. — Não estou entendendo nada. Mas me surpreende ver citado de novo a denominação Os Fi­lhos da Viúva — mordeu ligeiramente o lábio superior antes de per­guntar — Você já sabe quem são eles?

  • Talvez... mas pode ser que eu esteja equivocado... — foi a res­posta dele. — Como lhe disse por telefone, na outra noite, o ritual de cortar a língua a quem revelasse o segredo de iniciação faz parte das leis maçônicas.

  • Um maçom é um Filho da Viúva?

  • Volto a repetir que não sei... — deixou-se cair para trás, no encosto da cadeira, levantando os braços num eloquente gesto de incapacidade. — Talvez se trate de uma irmandade paralela. Neste caso, eu me atreveria a dizer que fazem parte da maçonaria operativa, ou seja, uma loja formada por construtores de catedrais.

- Está bem... — Melele, confusa, tinha rugas na testa. — O que não consigo compreender, ainda, é o que têm a ver os maçons com Jorge.

- Balboa sabia onde encontrar o livro de Iacobus, por isso foi assassinado... — ele fez uma breve pausa, antes de continuar. — Ele me enviou um e-mail junto com a transcrição do manuscrito, um texto que me ajudou a encontrar a pista. Estou convencido de que nos arredores da catedral de Múrcia está escondido o diário do pedreiro, algo que os maçons pretendem ocultar das pessoas, ainda que para isso tenham de assassinar todos os que ousem meter o nariz no assunto... — fez uma careta estranha. — Pelo visto, há conhecimentos que eles não desejam ver cair nas mãos de qualquer um.



  • Foi exatamente isso que Jorge me disse, na tarde antes de ler sido assassinado; que o tal manuscrito revelava assombrosos mistérios.

  • É o que se pode deduzir do criptograma — afirmou Leonardo. — Pelo que pude entender, Os Filhos da Viúva nos escondem a for­ma de nos comunicarmos diretamente com Deus.

Sua chefe arregalou os olhos. Aquilo parecia absurdo.

  • Você acredita que seja possível?

  • Não saberei a resposta, senão quando for a Murcia e encontrar o diário.

Mercedes olhou para ele com uma expressão de assombro. Não esperava tamanha temeridade da parte de Cárdenas, que a princípio ia descartando a idéia de realizar um projeto de investigação à revelia da polícia, e agora desejava isso ardentemente. Essa mudança de ati­tude seria proveitosa para ela.

—Se o que espera é minha aprovação, você sempre a terá, desde que me mantenha informada de tudo o que acontece e que aja com prudência. Não gostaria que lhe acontecesse o mesmo que ao Jorge.

Então, acrescentou em tom mais confidencial:

—Espero que em Murcia você se comporte com a mesma discri­ção que o caracterizou aqui. Caso precise de ajuda, posso mandar Cristina Hiepes, sua substituta.

Colmenares insistiu que ela deveria lhe dar uma mão.

—É criptógrafa, e das boas, me parece. Leonardo ficou atônito.

—Um momento...! Nicolas sabe que estou investigando o assassinato de Jorge?

Ela se delatara por falar além da conta. Pedira tanta moderação a ele, mas ela mesma acabara de resvalar, dando um mau exemplo.



  • Ele é meu advogado — foi seu único e elementar motivo — e eu precisava consultá-lo, para ter uma opinião jurídica a respeito. Mas você não precisa se preocupar, pois Colmenares é um homem discreto e honesto, posso assegurar. A maioria de minhas decisões está baseada em seus conselhos profissionais.

  • Você disse a ele que Jorge lhe telefonou na tarde, antes do assassinato, e que ele nos enviou um correio eletrônico?

  • Sim, pois considerei necessário.

  • E o que ele sugeriu que fizesse? — perguntou, irritado.

  • Que contasse tudo à polícia.

  • Posso notar como você aceita os conselhos dele!

  • Isso não é assunto seu — ela o interrompeu, com certa aspereza. — Quando se trata de minha vida pessoal, gosto de tomar minhas próprias decisões.

Houve um incômodo cruzar de olhares. Por sorte, trouxeram o vinho e a comida naquele exato momento. O garçom tirou a rolha da garrafa e derramou um gole na taça de Leonardo, que degustou o líquido com uma dose de solenidade, antes de mostrar sua aprovação, com um frio movimento de cabeça.

Decidiram postergar a conversa para a sobremesa. Mas para Cárdenas, o que acontecera até ali era suficiente. Tinha o consentimento de Mercedes para regressar a Murcia, a seu lar, à terra que o viu nascer. O detalhe do advogado era algo que ele teria de assimilar o quanto antes.

Uma onda de recordações, de sua infância e juventude, ocupou seu pensamento enquanto desfrutava dos prazeres culinários ofere­cidos por aquele restaurante de três estrelas nos guias.
Lilith entrou na loja de cópias com um traje próprio dos anos oitenta. Usava calças jeans bem justas, jaqueta de couro e uma camisa xadrez aberta até onde a decência permitia, sem mostrar o sutiã. Os óculos escuros, fazendo contraste com o vermelho de seus lábios, lhe davam um aspecto singular de enfant terrible, provocante. Sua pre­sença chamou a atenção de uns rapazes que fotocopiavam trabalhos para a universidade. Eles olharam, de soslaio, várias vezes o corpo bem feito da jovem alemã, como se uma irresistível força de atração OS obrigasse a fazê-lo. Ela se desligou do pensamento dissipado e coletivo daquele punhado de hormônios inquietos, observando os postais que estavam dispostos em um pequeno nicho da vitrine. Não valia a pena fixar a atenção em nenhum daqueles garotos. "Muito oceano para naves extremamente frágeis." Foi o que pensou.

Esqueceu-se dos adolescentes ao perceber que também chamava a atenção dos sexagenários que acabavam de entrar. Pelo menos esses, ao perceber que Lilith também os observava, tiveram a decência de dissimular sua admiração por ela dando uma olhada nos jornais que estavam pendurados no expositor. Tanto comedimento da parte dos anciãos lhe pareceu nada natural, pois, na realidade, costumavam babar na presença de uma moça bonita.

Quando finalmente chegou a vez dela, tirou da pasta uma folha de pergaminho, com caracteres góticos escritos em tinta de cor ocre, desbotada pelos anos. A única empregada da loja estranhou ao ver que se tratava de um códice medieval autêntico — reconheceu pela textura do papel —, e não uma reprodução fac-símile, como já vira em muitas ocasiões.

Lilith, ao perceber que a agitada balconista vacilava, fitou-a por cima dos óculos de sol.



  • Preciso de uma fotocópia colorida... algum problema? — per­guntou secamente.

  • É um manuscrito muito antigo — disse-lhe a mulher. — A máquina poderia danificá-lo. Meu conselho é que você o fotografe.

—Entendido... Correrei o risco.

Acreditando que havia feito a coisa certa, avisando-a, a mulher fez seu trabalho com a aquiescência da diente. Segundos depois lhe en­tregou a cópia.



  • Há serviço de fax? — perguntou de novo Lilith.

  • Sim, claro — respondeu a mulher. — Pode me dizer o número para onde quer enviar?

Ela lhe passou uma nota com os dígitos, devolvendo-lhe também a fotocópia do códice. A atendente foi até o outro extremo do balcão, enquanto Lilith guardava o original na pasta. Pouco depois, a moça regressava com a folha, a anotação e o comprovante de envio.

  • Algo mais? — perguntou.

  • Não. Diga-me quanto lhe devo.

  • Dois euros e sessenta.

Deixou as moedas sobre o tecido verde que cobria o balcão, sain­do sem ao menos se despedir.

Lá fora, atravessou a rua disposta a pedir uma enorme caneca de cerveja na hospedaria em frente. Precisava fazer uma chamada tele­fônica e não havia melhor lugar para isso do que uma varanda de uma taverna madrilenha.

Entrou no labirinto de mesas e cadeiras, a maior parte delas ocu­pada, até que encontrou uma vazia, lá no canto. Sentou, antes que perdesse o lugar para um casal de namorados que, como ela, procu­rava acomodar-se na área externa, aproveitando aquele dia ensolara­do de setembro. Logo chamou o garçom para lhe pedir uma jarra de cerveja e umas linguiças na chapa.

Quando ele foi embora, pegou seu telefone celular da bolsa. Depois de comprovar que ninguém poderia ouvir a conversa, digitou o número de Frida Weizsäcker, sua companheira de apartamento.

Logo escutou a voz automatizada da secretária eletrônica, indi­cando que deixasse sua mensagem depois de ouvir o sinal. Lilith não via graça nenhuma em falar com uma máquina, mas teve que fazê-lo para adiantar o trabalho a que se havia proposto. Frida era a única que podia ajudá-la, justamente porque não tinha relação nenhuma com a Agência. Além disso, confiava plenamente nela. Não por acaso, eram amigas íntimas e viviam juntas havia três anos. Era uma questão de pele. E essa era a melhor garantia de confiança.

- Frida, querida... — começou dizendo em alemão —... quando chegar em casa encontrará um fax que acabo de lhe enviar da Espanha. É a cópia de um códice medieval codificado. Preciso que você o tra­duza e me informe o resultado o quanto antes. Se possível, para hoje à noite. Use o programa decodificador que tenho no escritório. Sei que você poderá fazê-lo. Um beijo.

Guardou o celular. E abriu a pasta que deixara sobre a mesa. Seus dedos percorreram os caracteres góticos do manuscrito de Toledo. Apesar da advertência da organização Os Filhos da Viúva, não foi capaz de destruir um pergaminho pelo qual a sociedade maçônica que a contratara se dispôs a assassinar dois inocentes. Precisava saber o que de tão importante se ocultava naquelas palavras. Por isso, pre­teriu queimar um par de folhas enrugadas no lugar do documento.

Teve o pressentimento de que uma vez transcrita a mensagem, estaria diante de uma agradável surpresa.


Capítulo 14
Acasa de Salvador Riera podia ser qualificada como extravagante, mas só se fosse analisada do ponto de vista tradicional. Não tinha fundações nem um terraço ou telhado. Era uma residência baseada no sentido prático: o lar de um indivíduo que procura as raízes ancestrais da moradia primitiva, sem renunciar, porém, à qualidade de vida que a tecnologia moderna oferece.

O tio de Cláudia, depois de abandonar a arquitetura — já fazia tem­po que finalizara sua carreira —, decidiu afastar-se do barulho munda­no e comprou uns terrenos nas cercanias de Santomera, sabendo que na propriedade existia uma área subterrânea dividida em salas enormes, que se interligavam. Foi ver o lugar e sentiu um forte impacto — ficou muito impressionado. Era como um palácio de pedra, com amplos quartos e corredores labirínticos, subindo e descendo de um nível a ou­tro, como nos apartamentos duplex modernos. Sobre uma colina mar­cada pela erosão, havia um buraco de alguns metros de largura, que se comunicava com o teto da cova. Através dele é que a luz entrava, ilumi­nando um espaço central que fazia às vezes de pátio e jardim.

Salvador teve apenas de fazer o projeto e contratar as obras com um construtor de sua confiança. Foi erguida uma fachada gigantesca, de vinte e sete metros de comprimento por dez de altura, com uma dezena de janelas e balcões que davam para o exterior, onde o terreno foi nivelado para dar lugar a um dos bosques mais exuberantes da área verde murciana. Tão logo foram concluídas as obras de sua nova casa, construída na gruta, de acordo com a tradição de alguns povos levantinos, ela reunia onze quartos, cuja área oscilava entre vinte e trinta metros quadrados, um salão enorme, uma cozinha de sonho, três banheiros e um pátio interior octogonal adornado com uma pequena fonte, no centro. A colocação de uma cúpula transparente de metacrilato evitava que a chuva entrasse pela abertura do teto. Ao todo, era uma propriedade registrada com mais de seiscentos metros quadrados de área habitável, com um jardim de um hectare.

Leonardo teve de reconhecer que o tio de Cláudia era um homem prático. Aproveitar a orografia do terreno para construir uma casa foi uma ideia brilhante. A temperatura interior se mantinha em cerca de vinte graus, apesar da mudança das estações, o que permitia econo­mizar muita energia elétrica.

Também era silenciosa e era possível que suas paredes estariam em pé pelos próximos dez mil anos, salvo terremotos, mérito que só um grande arquiteto era capaz de ver. Por isso, quando os apresenta­ram, sentiu que apertava a mão do gênio que havia transformado a cova de Ali Babá no palácio de Scherazade, pois era como viver em um conto das Mil e Uma Noites.


  • É um prazer conhecê-lo — disse Salvador Riera, sem soltar a mão de seu convidado. — Cláudia me telefonou esta tarde para me dizer que vinha passar uns dias com um companheiro de trabalho, por isso, me perdoe se encontrar a casa de pernas para o ar. Tenho que arrumar tudo sozinho, até que venha minha empregada, na semana que vem.

  • Não se preocupe. Reconheço que em meu apartamento tam­bém se vive situações igualmente caóticas.

O arquiteto simpatizou com o acompanhante de sua sobrinha. Tinha senso de humor.

—Suponho que apesar de tudo nos deixará ficar... estou certa? — acrescentou Cláudia, dando dois beijos nas bochechas do tio.



—Espero que não esteja aborrecido comigo por tê-lo esquecido nos últimos três anos.

Salvador soltou um grunhido perspicaz.

—É isso que dá ser velho... esquecem de você — disse com um certo ar de reprovação, ainda que feliz por tê-la de novo em Santonera. — Mas, vamos... entrem logo.

O arquiteto se afastou, dando passagem a eles, que ingressaram diretamente num amplo vestíbulo, onde as linhas rochosas das pare­des se perfilavam com um capricho de projetista. Tanto assim, que em um lado da sala a altura do teto era de quase cinco metros e, no outro, mal chegava a um metro e sessenta. Ali, aproveitando esse canto, que para alguns seria inútil, havia embutido uma estante com gavetas e portas de vidro. Na frente, uma mesa e duas poltronas de vime sobre um tapete persa davam um toque particular de elegância ao lugar. Mais adiante, depois de passar sob um arco natural escavado na própria rocha, entraram na sala de visitas, um espaço bastante am­plo com uma imensa janela de vidro, dando para o jardim externo. O piso era de cerâmica rústica. As rochas delimitavam os diferentes espa­ços; eram pintadas de branco, com a finalidade de manter a tempera­tura e a estética mediterrânea. E para que os móveis se encaixassem nos vãos da cova, foram levantadas — em certas partes daquela casa tão surpreendente — paredes de ladrilho, que serviam de apoio.

Eles se sentaram no sofá, enquanto Salvador foi à cozinha preparar café. Ele regressou poucos minutos depois, com a cafeteira, o açucarei­ro e as xícaras, tudo arrumado cuidadosamente sobre uma bandeja. Depositou-a sobre a mesa, para que cada um se servisse à vontade.

—Bom... agora me diga o que de tão importante você tem a me contar.

Salvador Riera olhou sua sobrinha de maneira complacente, espe­rando que contasse o motivo pelo qual deixara Madri para vê-lo. A única coisa que sabia é que ela e um amigo de trabalho tinham de lhe fazer determinadas perguntas. A natureza da entrevista continuava sendo um mistério.

—Lamento ter de envolvê-lo neste assunto, mas só você pode nos ajudar... — Cláudia lançou o corpo à frente. — Além de um grande arquiteto, também conhece melhor que ninguém a história da maço­naria. A verdade é que estamos metidos em uma boa enrascada!

-Precisamos de informação — acrescentou Leo, sem rodeios.

—Que tipo de informação? — quis saber Riera, surpreso tanto pela solicitude como pela expressão dos rostos que contemplava, com a testa franzida.

Cláudia lhe entregou uma cópia do manuscrito. O arquiteto colo­cou os óculos, para ler. Depois de alguns segundos, tirou as lentes para fitá-los.


  • De onde vocês tiraram isso? — o tom de sua voz era muito grave.

  • Será melhor que eu lhe conte tudo, desde o princípio — disse Cláudia.

—Creio que vocês estão loucos por continuar investigando, quando sabem do que essa gente é capaz — opinou Salvador, depois de ouvir atentamente o relato de sua sobrinha. — Por outro lado, lenho de agradecer sua confiança. Significa que valoriza os conheci­mentos deste pobre velho.

Cláudia se aproximou, para abraçá-lo. Sabia que era injusto apa­recer, depois de três anos, para pedir a ele um favor que poderia en­volvê-lo naquele assunto desagradável. Ela amava seu tio. Se em um momento de sua vida havia esquecido dele, era porque isso fazia par­te do ciclo de gerações. Crescera. Tinha seus próprios problemas, os quais acabaram por afastá-la dos assuntos que antes traziam ao ser redor. Era como se a família estivesse fragmentada em partículas de lembranças. E agora vinha a ele, quando mais precisava.

—Se vim é porque senti sua falta e porque sei que você é a única pessoa que conhece, como ninguém, o enigmático mundo da maço­naria — deu-lhe um beijo na bochecha. — Eu me lembro quando ia nos visitar durante o Natal... recorda? Sempre nos deleitava com uma dessas antigas histórias que falam de cátaros e templários, e das relí­quias que eles foram ocultando em fortalezas inacessíveis, por medo do poder da Igreja de Roma.

O velho afagou os cabelos da sobrinha, beijando-a com carinho. Em seguida, se afastaram.



  • De certa maneira, esse manuscrito de vocês vem confirmar uma de minhas teorias... — comentou, com voz suave. Cláudia e Leo se olha­ram, surpresos. Não tinham a menor ideia do que ele estava falando.

  • Não se preocupem — disse-lhes. — Trata-se de outro mistério, o meu... — aspirou, com dificuldade, pelo nariz. — Estou um pouco resfriado..., mas agora será melhor que nos concentremos no de vo­cês. Para começar, eu lhes direi uma coisa: tem razão, os maçons tra­tam de impedir que um de seus maiores segredos se propale. Mas não sei por que vocês estranham, se tem sido assim há muitos sécu­los... — balançou a cabeça. — Essa máxima que mencionaram e que foi escrita com sangue, na parede, consta do Manuscrito Regius e é um dos deveres prioritários do maçom, mesmo dos recém-iniciados.

  • Você a conhecia? — Cláudia mostrou interesse por saber a procedência do documento.

  • Claro que sim! — ele afirmou categoricamente. — O Manus­crito Regius data do fim do século XIII, mas foi publicado em 1840, por James O. Halliwell... — desviou o olhar para um canto que havia no fundo da gruta. — Devo ter um exemplar em algum ponto da biblioteca, embora não precise consultá-lo para saber o que diz. Eu o memorizei, há anos... — apontou para a própria cabeça, com o indi­cador direito. — É a bíblia dos maçons. Ele cita a fundação da irman­dade, no Egito, por Euclides, e há uma breve introdução das obras atribuídas ao rei Adelstonus. Em seguida, vêm os quinze artigos e os quinze pontos do estatuto, justamente onde está incluída a máxima a que vocês se referiram. Há, ainda, o relato dos chamados Sancti Quattro Coronatti, a história da Torre de Babel, a necessidade das Sete Artes Liberais, e uma exortação sobre como se comportar corre­tamente dentro da igreja, além de um prefácio aos bons costumes.

  • Qual é o sentido do anátema desses criminosos? — perguntou Leonardo, cuja curiosidade ia aumentando à medida que a conversa avançava.

  • O de proteger os mistérios que envolvem a arte da construção e a ciência dos números — respondeu o veterano arquiteto, de forma contundente. — Os primeiros maçons eram mais do que simples artesãos da pedra. Seus métodos de trabalho deviam permanecer em segredo dentro da irmandade, porque seus conhecimentos eram recebidos diretamente do Grande Arquiteto do Universo.

—Você se refere a Deus? — quis saber, novamente, Cardenas.

- Isso mesmo! — respondeu o ancião. — A arte da construção está intimamente relacionada com a da geometria, mãe das Sete Ciências Liberais. O número áureo e outras proporções divinas que regu­laram o Universo fazem parte de um conhecimento que foi utilizado pela maçonaria para erigir as catedrais. Pitágoras dizia que tudo é leito conforme o número de ouro e que Deus geometrizava ao criar. E quando perguntaram a São Bernardo de Claraval, protetor dos templários, "O que é Deus?", ele respondeu de acordo com a epístola de São Paulo aos Efésios: "É longitude, largura, altura e profundida­de." Isso quer dizer que quem conhece os mistérios da geometria se coloca à altura de Deus e pode conversar diretamente com ele.



  • Em que contexto do Manuscrito Regius aparece a máxima de advertência? — quis saber Cláudia, desta vez retomando o fio daquela conversa apaixonante. Talvez esse detalhe possa nos ajudar... não sei...

  • Dentro do terceiro ponto do estatuto, que diz mais ou menos assim: "Aprendiz, sabes muito bem, deves ocultar e guardar, de boa vontade, o conselho de teu mestre, e também o de teus companhei­ros. A ninguém falarás sobre os segredos da câmara e da loja, haja o que houver: mesmo que te pareça que deves fazê-lo, não contes a ninguém onde vais; as palavras proferidas na sala e no bosque guar­de-as bem, por tua honra, do contrário o castigo cairá sobre ti e gran­de vergonha trarás a teu ofício." É assim que eu me lembro...

Deteve-se um instante, para observar o efeito que suas palavras haviam produzido. E prosseguiu com sua alocução:

—A maçonaria é a irmandade mais hermética que se conhece. Seus segredos podem custar a vida a quem quebrar o juramento que consta do Código de Edimburgo, como vocês já sabem muito bem. Porque os Mistérios, que é como os maçons denominam as Artes Liberais, devem ser mantidos em perfeito, inviolável silêncio. Muitos santos foram mártires maçons, que preferiram a morte a desonrar o regulamento da loja. Entre eles se encontram os chamados Sancti Quattro Coronatti, os quais, como lhes disse antes, são mencionados no Manuscrito Regius. Esses escultores foram condenados por Deocle­ciano, pois negavam-se a revelar o segredo da perfeição de suas obras. Foram torturados cruelmente, antes de serem encerrados, ainda vivos, em sarcófagos de chumbo. Depois, os ataúdes foram lançados ao mar.



  • Isso é horrível! — Cláudia estremeceu, só de pensar naquilo.

  • Com sua morte e sacrifício, aqueles homens reafirmaram a conduta da loja em relação à tutela de seus conhecimentos. Preferiam perder a vida a trair a confiança de seus companheiros.

Leonardo teve de admitir que a idéia de visitar o tio de Cláudia prometia ser bastante instrutiva.

  • Observo que você conhece em profundidade a história da ma­çonaria — afirmou, agradecido. — Eu me perguntava, aqui com meus botões, se não se importaria de nos fazer um breve resumo dos costumes e ritos deles, ao longo dos anos... — estalou a língua. — Na realidade, o que queremos averiguar é se existe alguma relação entre a maçonaria e as passagens bíblicas referentes ao Templo de Salomão e à descendência de Caim.

  • Não sei se você percebeu que o manuscrito menciona os no­mes dados às colunas de entrada do templo de Jerusalém e também o de Tubalcaim, pai dos forjadores do ferro e do cobre — acrescentou Cláudia, apoiando assim o comentário de seu companheiro.

O experiente arquiteto confirmou, com um gesto, em silêncio.

  • Sim, claro, tudo isso faz parte das crônicas da maçonaria — disse, finalmente, depois de uma pausa. — Mas leva muito tempo para explicar... — concluiu.

  • Não há pressa, tio... — Cláudia se levantou. — Teremos o fim de semana inteiro. Mas agora será melhor que nos mostre a casa e diga onde podemos nos instalar. É muito tarde, estamos exaustos. Precisamos descansar algumas horas.

  • Estou certo de que ficarão encantados... — Salvador imitou a sobrinha, levantando-se da poltrona. Cada sala expressa um senti­mento novo, diferente... até mesmo ambíguo.

Leonardo aceitou fazer parte do reduzido grupo, disposto a percorrer os diversos aposentos, de caprichosa geometria, integrantes do espantoso lar de um homem que dizia ser feliz vivendo no interior da terra. Estava certo de que seria algo único, uma experiência inigualável.

A programação da tevê pouco a interessava, mas a voz do locutor preenchia a sensação de vazio que sentia naquelas horas da noite, Blando a cidade estava mergulhada em seu sono mais profundo.

Era um desses momentos de serenidade e silêncio, quando seu espírito atormentado conseguia acalmar-se e se entregava à reflexão diária. Lilith, cujo verdadeiro nome era Elke Zeiss — assim ela cons­tava no censo berlinense —, foi abandonada ao nascer. Encaminhada à um abrigo de órfãos, ali jamais conheceu o amor paterno. Aos de­zesseis anos, fugiu do internato onde estudava, graças à ajuda que recebia do governo alemão, e foi viver com um argentino que havia conhecido em uma festa, na casa de uma amiga. Tratava-se de um fracassado traficante de armas, que atuava nos subúrbios de Berlim. Depois de um ano de tortuoso relacionamento, durante o qual foram obrigados a mudar várias vezes de endereço, para despistar a polícia e as máfias rivais que demarcavam territórios, seu amante lhe propôs que participasse de um assalto a banco, na cidade de Potsdam. Ela aceitou, sem reclamar, talvez porque não tivesse alternativa ou, quem sabe, por medo de confrontá-lo. Desgraçadamente, duas pessoas morreram no evento: o agente de segurança, que ficava na porta da instituição, e um empregado que tentara ser esperto, alcançando o alarme. Depois daquilo, não tiveram outro remédio senão abando­nar o país; fugiram para a América do Sul.

Na Argentina, tiveram a oportunidade de começar de novo, mas Oscar — esse era o nome de seu companheiro — tinha velhas dívidas pendentes e que puseram um ponto final em sua vida, depois de um sangrento acerto de contas. A partir de então, Lilith teve de sobreviver graças à única herança que lhe deixara seu parceiro: um coração frio, disposto a fazer qualquer coisa em troca de dinheiro, e um cérebro sem consciência, nenhum padrão moral.

Dois anos depois, com apenas quatro quinquénios de vida, ela ingressou na Corpsson, por influência de um sujeito com quem passara uma só noite e que era membro da organização. Passou um breve período no Brasil, onde aproveitou para ampliar sua prática no lucrativo mundo do crime, e decidiu regressar à Alemanha com um nome falso: Lilith.

Eram 3h17 do sábado, e ela continuava diante do televisor, engo­lindo programas que eram puro luxo. Acendeu um cigarro, antes de mudar de canal. Um velho combatente da Guerra do Iraque, a quem haviam amputado as pernas depois que ele pisara em uma mina ter­restre de fragmentação, criticava publicamente a conduta do presi­dente americano em relação às vítimas. Aquilo a aborreceu tanto, que ela desligou o aparelho e fechou os olhos, com o firme propósito de dormir um pouco. Foi quando se lembrou de Frida e da mensa­gem que lhe enviara na manhã anterior. Melhor seria chamá-la novamente. Além de sentir falta de um papo com ela, precisava saber se havia conseguido traduzir o criptograma.

Foi até a varanda aberta, que mostrava a paisagem montanhosa da serra. Agora submersa nas sombras da noite. Sem mais demora, ligou para Frida. Depois do terceiro sinal, ouviu a voz alegre de sua companheira, no outro lado da linha.

Parecia descontraída e desperta, mas reconheceu que arrastava um pouco as palavras devido ao cansaço provocado, possivelmente, pela transcrição do manuscrito.



  • Eu me alegro que você tenha ligado. Ouvi sua mensagem na secretária eletrônica e tentei me comunicar com você, mas foi impos­sível. Você estava fora do ar.

  • Sinto muito, esqueci de carregar a bateria, antes de sair, de ma­nhã ... — lamentou seu equívoco, com uma careta furtiva. Mas... me diga... o que conseguiu averiguar?

  • É, como você disse, um códice medieval criptografado segun­do as normas de segurança da época. Baseia-se na troca de letras e números pelas do alfabeto em uso, naquele tempo, para formar palavras e frases. Tenho de reconhecer que foi mais difícil reconhecer os Símbolos góticos do abecedário do que decifrar o código.

—Você usou o decodificador?

—Sim... — respondeu imediatamente —, mas surgiu um problema. A mensagem não coincidia com a linguagem corrente. Isso me obrigou a ficar umas cinco horas diante do computador, indagando em sites que tratam de literatura ancestral para identificar expressões habituais daquela época. O certo é que acabei agora mesmo!



  • Você tem o texto? — Perguntou, impaciente.

  • Diante de meus olhos cansados... Quer que leia?

—Espere um momento... — procurou no menu de seu telefone celular, até encontrar o acesso ao gravador, que ligou em seguida, instan­do para que a amiga começasse a leitura. Vá em frente, quando quiser!

Frida cumpriu os desejos da interlocutora, falando lentamente as palavras escritas, um tanto incongruentes, de um pedreiro espanhol do século XVI, que afirmava conhecer a secreta arte da construção e o modo de se comunicar com Deus.

Lilith não sabia o que pensar, a princípio. Aquela história parecia ter sido forjada pela mente febril de algum maluco. O relato, porém, lhe pareceu familiar. Tinha ouvido um dos professores do internato comentar que os antigos judeus diziam saber a maneira de falar dire­tamente com Javé, seu Deus. E ainda que fosse um dos segredos mais bem guardados pelos rabinos, suspeitava-se que chegara aos ouvidos de Hitler, que organizou uma investigação sobre aquele prodígio, enviando agentes da Gestapo a diversos lugares do Oriente Próximo e do Norte da África, com a finalidade de encontrar o que ele pensou que pudesse garantir-lhe a vitória diante de seus inimigos. No entan­to, os enviados jamais encontraram o que foram buscar.

Fosse ou não correto o relato, houve um detalhe que lhe chamou a atenção. O escrito era datado de Murcia. Estranha coincidência. A mesma cidade onde conhecera Sholomo.


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