CAPÍTULO 32
Na manhã seguinte, regressaram a Santomera. A primeira coisa que fizeram foi perguntar às pessoas do povoado pela empregada que trabalhava ocasionalmente na propriedade do arquiteto. Em uma cafeteria do centro foram aconselhados a ir até o escritório da Cáritas, situado atrás da velha igreja e que perguntassem por uma tal Casilda, a filha do Barrica. Segundo lhes informaram, era uma cigana sem recursos que ganhava a vida limpando escritórios, edifícios públicos e agências bancárias. Sua integridade de caráter no trabalho era atestada por várias cartas de recomendação escritas pelo pároco do vilarejo. Um de seus compromissos era ir todas as quintas-feiras à casa de Salvador Riera, dia em que se dedicava única e exclusivamente a limpar a casa, já que eram necessárias umas sete ou oito horas para tirar todo o pó dos móveis dos diferentes cômodos, além de varrer e esfregar os mais de seiscentos metros quadrados de chão.
Sem perder tempo, foram ao lugar que lhes haviam indicado. Ali, uma senhora de aspecto agradável os recebeu com cortesia paroquial. Ao perceber a urgência de Leonardo em encontrar a mulher da limpeza, pois ele parecia estar muito perturbado pelo desaparecimento de sua companheira, apressou-se em ajudá-los, informando o endereço onde poderiam encontrá-la à uma hora e meia da tarde, pois era quando ela voltava à casa para almoçar. Faltavam poucos minutos; assim, agradeceram a ajuda e foram embora rapidamente, com a finalidade de abordar a faxineira antes que entrasse em sua residência.
Casilda vivia em um casebre que havia no final da Rua Virgen de los Desamparados, em uma área de periferia com reputação mal afamada, devido ao fato de ser freqüentada por drogados e delinqüentes. Trata¬va-se de uma triste cabana, cujo teto, visivelmente, se desintegrava aos poucos, à medida que as vigas de sustentação de madeira apodreciam por causa da umidade, fazendo com que não resistissem ao peso das telhas. Tinha os vidros das janelas exteriores quebrados a pedradas. Quanto à fachada, as paredes estavam rachadas de um extremo a outro, fazendo com que as diversas camadas de cal aplicadas ao longo dos anos descascassem na mesma proporção. Tão logo chegaram, trataram de comprovar se ela já estava em casa. Bateram várias vezes na porta de madeira, sem obter nenhuma resposta. Então, resolveram esperar o tempo que fosse preciso ali mesmo, junto à entrada.
Poucos minutos se passaram até que viram que se aproximava uma mulher cigana, vestida com um moletom cor de rosa; tinha o rosto excessivamente maquilado. Franziu a testa ao ver que os desconhecidos aguardavam com visível impaciência o seu regresso. Tirou as chaves da bolsa, na esperança de que não a detivessem por muito tempo. Seus filhos estavam com sua mãe, como todos os dias, e ainda faltava fazer a comida antes que algum de seus irmãos viesse trazê-los de carro.
—Bom dia! — Colmenares, por ser o mais indicado, aproximou-se para um primeiro contato, esboçando o mais sincero de seus sorrisos. —Você é Casilda, a senhora que faz faxina na casa do arquiteto?
A mulher gostou do tom cortês daquele cavalheiro maduro e atraente. De imediato, percebeu que não eram nem policiais nem fiscais do trabalho.
—Eu mesma — respondeu com idêntica cordialidade. — Posso saber o que você deseja? — O bibliotecário, então, adiantou-se para se apresentar.
—Eu me chamo Leonardo Cárdenas e estou procurando uma amiga que há alguns dias veio visitar seu tio... Salvador Riera, o dono da propriedade que há nos arredores do povoado.
—Não sabia que meu patrão tinha uma sobrinha — retrucou a cigana, com expressão de estranheza. — Na realidade, ele nunca fala de sua família.
—O certo é que ela passou este fim de semana com ele.
—E...? — acrescentou, na defensiva. Ignorava onde aquele homem queria chegar.
—Bem, você verá... — Leonardo titubeou, antes de continuar. — Nós viemos de Madri com o objetivo de fazer uma visita a eles, mas qual não foi nossa surpresa ao descobrir que não há ninguém em casa!
—E o que é que vocês querem saber?
Casilda começou a desconfiar de todos eles, intuindo que bem poderia tratar-se de um bando de ladrões, bem organizado, com a intenção de obter informação dela.
—Nosso único objetivo é encontrá-los, nada mais — acrescentou o advogado, ao dar-se conta de que o receio daquela mulher, cuja etnia era dada a silenciar se não obtivesse benefícios substanciais, poderia influir negativamente na conversa.
—Caso você possa nos dizer, ao menos, se existe uma maneira de nos comunicarmos com Salvador Riera, nossa viagem não terá sido em vão. Além disso, estamos dispostos a assumir os ônus financeiros do tempo que você está perdendo conosco.
Era a primeira frase de Cristina e também foi a decisiva, graças à nota de vinte euros que ela introduziu dissimuladamente no bolso do moletom da mulher, que baixou a guarda depois do interrogatório, e graças, à naturalidade espontânea da ruiva, a quem mentalmente qualificou como a mais inteligente do grupo.
—O patrão não voltará durante toda a atual temporada.
—O que você quer dizer com isso?
Por um instante, Leonardo aventou a possibilidade de que a cigana fosse cúmplice do grupo Os Filhos da Viúva. Por esse motivo, sua pergunta foi feita em um tom bastante ríspido. A mulher não pareceu dar importância a isso, mas respondeu no mesmo estilo.
—O patrão cansou-se de viver em Múrcia e regressou a Barcelona! — disse, provocando seu inquisidor.
—Isso não é possível! Como é que você pode saber? — insistiu o bibliotecário.
Farta de perder seu tempo, a cigana lhes disse o que queriam saber, para ver se assim a deixavam em paz.
—Ele mesmo me disse, ontem, por telefone... você está me escutando...? — seu rosto se contraiu em uma careta irônica. — Ligou do aeroporto. Não mencionou se estava indo embora em companhia de alguém...
—Mas isso não tem sentido! — exclamou Cárdenas, atônito, quando regressaram ao carro. — É ridículo pensar que se comunicou com a faxineira e não comigo!
—Pode ser que o obrigassem a fazê-lo, para não levantar suspeitas... — foi a opinião de Colmenares, manifestada enquanto ele girava a chave no contato. — Penso que assim conseguiria evitar que alguém fosse denunciar seu desaparecimento à polícia, já que foi ele mesmo que entrou em contato com Casilda. É um plano de mestre. Na realidade, eu diria que é mesmo perfeito.
O automóvel foi colocado em marcha, dirigindo-se à rua principal.
—Isso vem confirmar nossa teoria de ontem — argumentou Cristina, dirigindo-se ao bibliotecário.
—A que teoria você está se referindo? — perguntou o advogado.
—À de uma troca de reféns pelo DVD... — respondeu Leonardo, em voz baixa. — É possível que Os Filhos da Viúva precisem saber, tanto quanto nós, que tipo de informação Iacobus deixou inscrita sob a capela dos Velez.
—Já devem ter percebido que o DVD existente na câmera que levaram estava em branco — acrescentou a criptógrafa —, mas não se arriscariam a descer novamente. A polícia poderia estar esperando por eles e eu acredito que são muito previdentes ao agir.
—Então... para que voltar à propriedade? — insistiu Nicolas.
—Você pode me chamar de cabeça-dura, se quiser, mas antes de ir embora eu preciso comprovar que não há ninguém na casa de Riera.
—Você pretende saltar a grade e violar a residência de um cidadão honrado? — Colmenares estava absolutamente surpreso, de maneira que acrescentou, com expressão fechada — ...Se for isso, não conte comigo!
—Não se preocupe... eu estou pretendendo dar uma olhada nos arredores e tocar, de novo, a campainha da propriedade. Não vamos perder nada ao tentar.
O advogado olhou para Cristina, esperando sua resposta. Ela encolheu os ombros e sussurrou:
—Já que estamos aqui...
Satisfeito, Leonardo relaxou na parte traseira do automóvel. Sabia que era inútil procurá-los ali, mas tinha de comprovar por si mesmo que a cigana não estava mentindo para eles. Era, como havia dito Cristina, a negação do indivíduo que não aceita a perda da pessoa que ama, algo que, por outro lado, era simplesmente inevitável.
O localizador indicava claramente que estavam em Santomera.
Lilith, que os havia seguido de longe, na estrada, acabou por perdê-los de vista ao desviar-se para o centro do vilarejo, quando um enorme trator se colocou na sua frente, impedindo-a de fazer ultrapassagem durante um trajeto de curvas. Não se importava, porém, pois sabia que cedo ou tarde novamente os encontraria. Era apenas uma questão de tempo, para que se aproximassem da propriedade do arquiteto. Era outro de seus pressentimentos.
Segura de si, decidiu aguardar a chegada deles montando guarda diante da surpreendente casa de Salvador Riera.
Depois de dez minutos, eles viram as copas mais altas das árvores plantadas em fileira na frente da cerca que circundava a propriedade. Quando alcançaram a última curva, viram o carro esportivo, com chapa estrangeira, estacionado diante do portão de ferro. Uma jovem, vestida com um jaquetão de couro negro comprido até os joelhos, observava o interior da propriedade, segurando as barras da cerca com as duas mãos. Quando os ouviu chegar, voltou-se, assustada, tirando os óculos de sol para esquadrinhar as pessoas que estacionavam junto de seu carro.
Pelo que Cárdenas pôde perceber, tratava-se de uma jovem muito atraente, que não teria mais de vinte e cinco anos de idade, de cabelo muito ruivo e cortado à antiga moda punk. A expressão de seus olhos era avessa e arrogante. Esbanjava uma forte personalidade.
Cristina foi a primeira a descer do automóvel. Depois, saíram seus acompanhantes.
—Olá! — a criptógrafa se aproximou cautelosamente, levantando a mão em sinal de saudação fria. — Procura alguém? Talvez Salvador?
A jovem os observou com um olhar demasiado altivo para sua idade.
—Posso saber quem são vocês? — perguntou, por sua vez, com um sotaque alemão.
—Meu nome é Nicolas e sou o advogado do senhor Riera, dono da propriedade — respondeu Colmenares, fazendo uso de sua autoridade profissional. — E você... pode nos dizer quem é e o que estava olhando ali dentro?
—Hei... veja bem... — Lilith se colocou na defensiva —... não estou fazendo nada que esteja fora da lei, apenas observo o jardim. Além disso, tenho meus próprios motivos para estar aqui. Motivos profissionais.
—Perdoe... — interveio Leonardo, sempre diplomático. — Como disse que se chama?
—Lilith.
—Veja, Lilith... não queremos aborrecê-la e, muito menos, nos intrometer em seus assuntos pessoais, mas precisamos que nos diga o motivo de sua presença na propriedade ou tiraremos nossas próprias conclusões.
A jovem apoiou as mãos na cintura, esboçando um sorriso bem sarcástico.
—Para você eu vou dizer... por acaso, é da polícia?
—Pode ser que eles se interessem em saber que você estava espionando através da grade — falou, novamente, Nicolas.
Ela pareceu nem se importar com a ameaça.
—Faça o que quiser — disse, secamente. — Eu pretendo ficar aqui até que o dono da casa regresse.
—De acordo com o que apuramos, Salvador viajou para Barcelona há alguns dias. Não creio que vá voltar nas próximas semanas.
As palavras de Cristina surtiram efeito. Lilith desabou ao escutadas, inclusive a cor de suas faces, rosadas apenas graças à maquiagem, se alterou.
—Mein Gotti — exclamou, desencantada, em seu idioma original. — Não pode ser... agora não! — levantou os braços. — Não depois de tê-lo encontrado!
Começou a chorar, desconsolada, para fazer com que seu papel parecesse o mais verídico possível.
—Você está bem? — Leonardo aproximou-se dela, surpreso por sua repentina mudança de atitude.
—Por favor! — ela suplicou. — Sabem onde eu poderia encontrá-lo, em Barcelona? É muito importante para mim, entrar em contato com ele. Eu o estou procurando faz muito tempo.
Cristina sentiu pena da jovem, razão pela qual se aproximou, rodeando seus ombros com os braços. Tentou transmitir-lhe confiança e cumplicidade, pelo fato de serem mulheres.
—Será melhor que você me conte a verdade. Se é algo íntimo, você pode me contar. Prometo ajudá-la em tudo o que seja possível.
Lilith suspirou, abatida. Observou-os por alguns segundos, um a um, em silêncio, esforçando-se ao máximo para que sua confissão novelesca calasse profundamente nos sentimentos deles. Tratava-se de representar o último ato. E tinha de fazê-lo com firmeza.
—Esse homem... Salvador Riera... — olhou tristemente para Cristina, enquanto falava —... é meu pai.
Aquela não era, precisamente, a resposta que todos esperavam.
—Quando eu era criança, minha mãe me disse que papai tinha morrido, mas eu sempre soube que ela me ocultava a verdade... —Lilith improvisou uma história que parecesse convincente. —Uma vez eu a escutei falar ao telefone. Discutia acaloradamente com um homem... e o assunto da conversa era eu.
Sentados na varanda de um bar, no centro de Santomera, eles ouviam com atenção as palavras da jovem.
—Depois daquilo, ela jamais voltou a me falar dele — continuou seu relato. — Em nossa casa não havia nem uma fotografia sequer que atestasse a existência dele, nem mesmo uma carta provando uma relação entre eles. Não sei onde se conheceram nem que tipo de sentimentos pode tê-los unido, no passado. Se foi amor não correspondido ou uma louca noite de prazer, é algo que permaneceu entre os dois. Nem sequer reconheceu que ele nos tivesse abandonado e isso quer dizer que talvez tenha sido minha mãe que decidiu esconder dele a sua gravidez... — nesse momento, começou a chorar. — Eu só queria saber os motivos.
—Deve ter sido muito difícil para você. — Cristina colocou sua mão sobre a de Lilith, um gesto fraternal que a alemã aceitou com evidente satisfação.
—Foi, sim, durante anos — aspirou profundamente e tratou de recompor-se, limpando as lágrimas com um lenço.
Leonardo, que ficara observando a jovem para ver se encontrava nela alguma semelhança física com Cláudia — afinal de contas, eram primas —, ainda que sem nenhum resultado, resolveu esclarecer a razão da viagem dela à Espanha.
—Então, se você não o conhecia nem tinha idéia de onde encontrá-lo... como é que estava em frente da casa dele?
—Há alguns meses, durante o período de Natal, recebi um presente muito especial: uma carta com um remetente da Espanha. Era de meu pai. Ele me dizia que tínhamos de falar sobre muitas coisas, entre elas o verdadeiro motivo pelo qual jamais pôde ir à Alemanha para me conhecer... — por um instante, fechou os olhos. — O pior veio no final da carta, quando disse que desejava me ver antes de morrer. Pelo visto, ele acabara de receber o diagnóstico de uma doença terminal. Restava-lhe apenas um ano de vida.
Assim que terminou de falar, começou a chorar de novo. Olharam-se, uns aos outros. Cárdenas se sentiu atraiçoado pelo próprio Riera, que em nenhum momento lhes disse algo a respeito... ao menos para ele. Se Cláudia soubesse da doença, jamais se atreveria a contar, talvez por respeito ao tio.
—Sinto muito, não sabíamos disso — murmurou, comovido. Quis, dessa forma, dar a entender a seus amigos que ele acabava de inteirar-se do assunto.
—Como vocês podem perceber, não penso desistir, agora que estou tão perto... — sua voz soava entrecortada e melancólica. — Vocês, que são amigos dele, deveriam tentar localizá-lo em Barcelona. Suponho que deve haver alguma forma de entrar em contato com ele. Não sei como! Quem sabe descobrir um endereço ou um número de telefone...
Cristina suspirou, sem saber o que dizer. O advogado percebeu que eles tinham levado a própria encenação longe demais e que reconhecer o equívoco, agora, seria muito embaraçoso. Leonardo também se deu conta de que não poderiam continuar mentindo. Não eram amigos íntimos do arquiteto nem Colmenares o representava juridicamente, como havia dito à jovem. Eram, como ela, três estranhos que tentavam localizá-lo, ainda sem saber como, antes que terminasse por entregar sua alma a Deus. Para sua maior tristeza, Riera tinha agora dois inimigos contra os quais lutar.
—Veja você... — o bibliotecário vacilou, antes de continuar falando — ... há algo que precisamos lhe dizer, porque...
—Não creio que nossos assuntos sejam do interesse dela — Colmenares o interrompeu asperamente, impedindo-o de falar além da conta.. E mais: já deveríamos estar a caminho de Madri.
—Então... — Lilith balbuciou —... vocês não pretendem me ajudar? Foi tão realista a atuação, que ela mesma chegou a acreditar em sua dor. Cristina, como mulher, voltou a sentir pena dela.
—O certo é que nós também estamos procurando por ele — reconheceu, com um gesto de honradez. A única informação que temos é a que lhe contamos.
—Há algo, porém, que vocês ainda não me disseram... o motivo pelo qual o estão procurando — mudou de atitude, demonstrando certa desconfiança de seus interlocutores. Sinto muito, mas não creio que alguém saiba onde ele está. Meu único recurso é ir à polícia.
A reação foi a que esperava. Os três empalideceram ao ouvir sua decisão de implicar as autoridades no assunto.
—Será melhor que conversemos antes — aconselhou, gravemente, o advogado. — Se nos precipitarmos, podemos adiantar o fim de Riera.
A jovem alemã olhou para ele, nervosa. Sua boca se mexia, num tique nervoso.
—O que querem dizer com isso...? — revolveu-se, inquieta, na cadeira. — Onde é que está, realmente, meu pai? — perguntou, com voz angustiada. — Preciso saber o que aconteceu com ele! — exigiu, histérica.
—Nós não sabemos — admitiu o advogado.
Lilith teve um pressentimento. Era bem possível que os mesmos fanáticos que a haviam contratado para assassinar um pobre paleógrafo e a diretora viciada em soníferos tivessem o arquiteto em seu poder, talvez porque ele e Leonardo meteram seus narizes nos assun¬tos da loja. Se assim fosse, melhor seria pronunciar a palavra mágica.
—Digam-me a verdade! — exclamou. — Por acaso ele foi seqüestrado?
—Se for mesmo sincera com você, devo admitir que é o que imagino — afirmou Cristina, sem rodeios. — Eu aviso que é impossível dizer-lhe algo mais do que isso.
—Perdoe, mas, em minha situação, eu não estou disposta a aceitar seus motivos... — a jovem alemã dirigiu-se a ela com amabilidade, tal como havia sido tratada por Cristina. — No que me diz respeito, os meus são mais importantes. Está claro que vocês tratam este assunto com discrição e que não estão dispostos a pedir ajuda à polícia. Mas eu não penso da mesma forma. Por isso, tratem de me dar uma explicação melhor, antes que eu decida levantar-me para ir em direção ao primeiro guarda que encontrar em serviço.
Parecia uma ameaça, ou assim os três interlocutores da jovem entenderam sua manifestação.
—Isto não é um jogo — advertiu Leonardo, com voz suave. — Sua vida pode correr perigo, a partir do mesmo instante em que lhe contarmos nossa história.
—É verdade — acrescentou Colmenares. — Lamentaríamos demais, caso lhe acontecesse algo.
—Parece que você não consegue entender — suspirou, irritada, dirigindo-se ao advogado: — ... meu pai é a única coisa que me importa. Estou disposta a assumir o risco se assim puder conhecê-lo pessoalmente... Meu deus!... — murmurou, angustiada — ...você sabe o que é viver com a esperança de ver o pai que lhe foi negado? Prefiro mil vezes a morte a me esquecer dele.
—Você conhece mais alguém em Múrcia? — lhe perguntou Cristina, assumindo a responsabilidade pela situação da moça.
Lilith negou com um gesto de cabeça.
—Vamos cominar uma coisa... — continuou a criptógrafa — ...venha comigo a Madri; fique em minha casa. Enquanto isso, deixe-nos livres para procurar seu pai. Confie em nós, mas não se intrometa de jeito nenhum em nossos planos. Eu lhe prometo que, se assim retroceder, conseguiremos fazer com que os que o seqüestraram o libertem.
Ela pareceu pensar durante alguns segundos. Finalmente, cedeu à proposta da ruiva encantadora.
—Eu lhe dou a minha palavra de honra — disse, agradecida. Cristina segurou carinhosamente as mãos de Lilith, em um gesto solidário.
Aquela mulher lhe caía bem. Seria a última a ser assassinada.
CAPÍTULO 33
Para a viagem de regresso, eles se dividiram em dois grupos. Cristina, por sua própria decisão, decidiu acompanhar Lilith, para que ela não se sentisse sozinha e também querendo sentir pouco a pouco seu caráter, na esperança de compreender até onde podia chegar a confiança que havia depositado nela. Colmenares não gostou nada de ter de se separar de Cristina, não somente porque a presença da criptógrafa bastava para deixado de bom humor, mas também porque acreditava ser mais prudente que os três seguissem juntos, criando um plano antes de chegar a Madri. Apesar de tudo, Cristina insistiu que não podia deixar a jovem sozinha. Achava que ela poderia cometer alguma loucura, como entrar em contato com a polícia por acreditar que eles estivessem tentando enganada. Para evitar surpresas e problemas desnecessários, finalmente aceitaram a sugestão de viajar em duplas.
Para Cardenas tanto fazia. Seu único desejo era recuperar Cláudia o quanto antes, o resto não tinha importância. Não obstante, viajar sozinho com o advogado lhe permitiria questionar um pouco mais sobre a vida de Cristina e averiguar qual era, na realidade, sua participação naquela história. O fato de Mercedes ter decidido isso não era motivo suficiente para colocá-la à frente da investigação; não, porque, na realidade, haviam sido eles — Cláudia, Riera e ele mesmo — as pessoas que decifraram o enigma do manuscrito e encontraram a câmara secreta embaixo da capela dos Vélez. Eram, talvez, os únicos prejudicados até o momento, sem contar, claro, os mortos.
O mérito era deles. Não permitiria que ninguém arrebatasse seu momento de glória, tão logo conseguissem desmascarar Os Filhos da Viúva e levá-los diante do juiz.
Talvez por isso, tão logo se puseram em marcha, ele sentiu necessidade de se mostrar comunicativo com quem ia ser seu companheiro de viagem durante tantas horas.
—Diga-me, Nicolas... quem é, na verdade, Cristina Hiepes e por que Mercedes escondeu de mim que pensava contratar uma criptógrafa enquanto eu arriscava minha pele para resguardar a reputação de Balboa?
Foi direto, sem rodeios. Sua melhor arma era o fator surpresa, pois sabia bem que o advogado gostava de reagir às perguntas-relâmpago. Não conseguia mentir quando não lhe deixavam tempo para pensar na resposta.
—O que? Ah, sim... — vacilou uns segundos — ...vejo que já se deu conta.
—Não sou tão estúpido.
—Bem, na realidade, a culpa é minha — reconheceu com voz baixa. — Quando soube da confusão em que se meteram, você e Melele, decidi chamar um amigo que trabalha no Ministério do Interior e pedir-lhe um pequeno favor. Tratava-se de me pôr em contato com uma sumidade no mundo da criptografia medieval e das irmandades secretas, aproveitando o bom relacionamento que ela mantém com a ministra da Cultura. Ela me indicou Cristina, que é uma grande amiga sua, autora de vários livros sobre a história da maçonaria e da alquimia, e participante de importantes debates e conferências em várias cidades do mundo. Seu currículo é invejável, eu lhe asseguro... — estalou a língua —... Mercedes já havia pedido o favor a Hijarrubia horas entes que eu, por isso não objetei quando ela propôs que fosse sua substituta aos olhos dos seus companheiros na...
—O trabalho dela na casa de leilões era, na realidade, uma fachada? — interrompeu-o para esclarecer esse ponto.
—Em parte... — respondeu Colmenares — ...a intenção era que ela ocupasse o seu posto até o dia do leilão, e, por outro lado, iria analisar profissionalmente o manuscrito de Toledo. Não que desconfiasse do método utilizado por Balboa, ou do que você fez, que no final das contas, devia ser o mesmo. Só quis procurar um sentido coerente nas enigmáticas frases do texto. Nem Cristina nem eu tivemos tempo de lê-lo. Porém, como nos contou Mercedes, tratava-se de um códice absurdo que não tinha pé nem cabeça. Ela queria mostrá-lo para nós, mas a assassinaram antes que tivesse a oportunidade de fazê-lo.
O bibliotecário continuava sem compreender.
—Então, se suas intenções eram outras... por que permitiu que eu levasse a cabo meu plano de procurar embaixo da capela dos Velez?
—Ela precisava levar em consideração todas as possibilidades — respondeu seu interlocutor, sem desviar os olhos da estrada. —Por assim dizer, pensava que não seria demais abrir outra linha de investigação. Cristina teria de analisar todas as provas que você mandasse, para fazer uma avaliação científica com credibilidade. Não quero que você a julgue mal, muito menos agora, que está morta. Ela jamais duvidou de sua interpretação do texto, mas precisava de alguém capaz de explicar-lhe o significado daquelas palavras... — ele, então, virou a cabeça para olhá-lo rapidamente nos olhos — ...o que Mercedes jamais chegou a saber é que você estava no caminho certo.
Leonardo foi incapaz de fazer alguma recriminação, embora tenha se sentido um tanto decepcionado. Em todo caso, tratou de absorver o golpe, minimizando sua importância.
—De nada adiantou tanta estratégia. Esses bastardos têm sido mais espertos do que nós.
Dito isto, guardou silêncio, enquanto observava à frente as imediações do campus universitário de Espinardo. Colmenares respirou aliviado. Se houvesse continuado com o interrogatório, Cárdenas
Poderia ter extraído a verdade: que Cristina trabalhava para o Centro Nacional de Inteligência. E isso teria sido um desastre.
Umas horas mais tarde, depois de comer numa cafeteria situada num posto de serviço que havia nos arredores de Taracón, onde pararam para reabastecer, chegaram a Madri sem mais contratempos, exceto uma chuva fina açoitando monotamente os vidros. Eram quase onze horas e Cristina decidiu que cada um deveria regressar para sua própria casa, descansando até o dia seguinte. Ela e a jovem Lilith despediram-se dos homens na Avenida Castellana, combinando encontrar-se novamente no escritório da Hiperión, depois de comer, aproveitando que parte dos funcionários estava de licença por tempo indeterminado.
Colmenares levou Leonardo até a casa dele. Sem muito entusiasmo — já que estavam cansados devido às várias horas de viagem —, despediram-se, depois de fazer um novo pacto de silêncio: manter a alemã o menos informada possível. Para isso, teriam de falar reservadamente com Cristina, que parecia ter encontrado na jovem uma irmã caçula em apuros para cuidar.
Cárdenas chegou à porta do edifício sem poder tirar da cabeça o que tinha vivido nas últimas quarenta e oito horas. Tudo havia transcorrido muito depressa. Ainda pensava em Cláudia e também em Salvador quando apertou o interruptor do vestíbulo e as luzes das escadas se acenderam. Subiu alguns degraus, antes de parar na frente do elevador. Distraído, apertou o botão. Enquanto esperava sua chegada, decidiu ir até a caixa do correio e recolher suas correspondências. Estava abarrotada de cartas e panfletos publicitários; não titubeou em levar tudo sem prestar muita atenção. Teria tempo de dar uma olhada naquilo quando estivesse lá em cima, depois de um bom banho e de beber um gim-tônica.
Minutos mais tarde chegava ao seu apartamento. Encontrou-o tal como o havia deixado, quer dizer, bagunçado. Os livros que falavam de maçonaria continuavam abertos sobre a mesa de seu escritório, tal como as anotações que foi fazendo depois de consultar diversas páginas na Internet. Na cozinha, se amontoavam os copos e os pratos que esqueceu de lavar antes de sair de viagem. Havia um odor desagradável de ambiente fechado. A casa precisava de ventilação; por isso, abriu um par de janelas para arejar os cômodos. Logo deixou o bolo de cartas sobre a mesa da sala e foi direto para o banheiro, onde abriu a torneira do chuveiro.
A água quente lhe devolveu a vida e fez sua mente recobrar o dinamismo que havia perdido, desde que abandonaram a cidade de Múrcia. Absteve-se, olimpicamente, de se barbear, ainda que não tenha titubeado em colocar o pijama, calçar os chinelos, andar pela casa e servir-se de um generoso trago. Foi até a sala com a intenção de se jogar no sofá e descansar. Então se resignou a fazer o que tanto odiava: ligar a televisão. Lutou para não dormir, enquanto assistia a um programa para crianças que pareciam mais práticas e inteligentes do que os adultos. Embora aquilo fosse divertido, preferiu dar uma olhada na correspondência. As contas e faturas trariam-no de volta ao mundo real.
Separou as que não tinham o menor interesse, cartas que iam para o lixo sem abrir porque eram apenas chateação, a maioria propaganda ou publicidade comercial. Não demorou a descobrir, entre as outras, um envelope com linhas vermelhas descontínuas arrematando as bordas. Olhou o verso. Não tinha remetente, somente alguns números: (29-58-45) (31-08-03).
Assim, de imediato, aquelas cifras não lhe diziam nada. Fixou-se, então, nos carimbos. Tinha impressas letras árabes, mas ele tampouco soube distinguir o país de origem. Apalpou o envelope, como medida de segurança, já que depois dos atentados de março em Madri todas as precauções eram poucas, quando se tratava de islâmicos. Depois de assegurar-se de que estava tudo bem, decidiu abrir com delicadeza. Dentro, encontrou um papel dobrado. Esticou-o cuidadosamente e começou a ler.
Lilith estava no banho, assim, Cristina aproveitou para sentar-se na mesa de seu escritório, com a finalidade de passar a limpo várias frases que estavam inscritas nas paredes da cripta e que viu graças ao DVD de Leonardo. Em latim, algo muito próprio da época, mas seu significado não parecia coerente. Ao contrário, eram muito ambíguas, e, também, inquietantes. Podia-se dizer que faziam parte de uma adivinhação inicial, como faziam os antigos alquimistas. Copiou as três primeiras frases:
"Hic est lapis, qui reprobatus est a vobis aedificantibus, qui factus est in caput anguli... Delictum oris eorum, sermonem labiorum ipsorum: et comprehendantur in supervia sua... Existimabant ut cognoscerem hoc, labor est ante me, donec intrem in Sanctuarium Dei."
Escreveu, abaixo, a tradução: "Esta é a pedra que vós descartastes ao edificar, a qual veio a ser a pedra angular... Pelo delito de sua boca e pelas palavras de seus lábios, sejam vítimas de sua própria soberba... Reflita para penetrar neste mistério: mas a dificuldade foi grande para mim, até que entrei no Santuário de Deus."
Em seguida, fez o mesmo com as outras duas novas frases:
"Sanctum et terribilie nomen ejus, initium sapientiae Timor Domini... In excelso throno vidi sedere virum."
Que corresponde a: "Santo e terrível é o Seu Nome, o temor do Senhor é o princípio da sabedoria... No excelso trono vi sentar um homem."
Foi repassando o que havia escrito, para ver se encontrava algum significado nas palavras. Precisaria de uma cópia do DVD, se quisesse comparar as diferentes frases com as marcas dos companheiros, os glifos astronômicos e as figuras geométricas. Estas últimas eram muitas e contraditórias. Por um lado, havia triângulos dentro de círculos, os quais, por sua vez, acabavam em quadrados perfeitos. Depois havia círculos unidos formando uma cadeia, pentágonos com cruzes em seu interior, e triângulos-retângulos que, às vezes, se sobrepunham, formando a estrela de Davi. Ficou observando este último caractere, o da reintegração, conhecido na índia pelo nome de Shîyantra. O ângulo voltado para cima representava o céu primordial e o que ia em sentido contrário simbolizava o caos, o inferno terreno.
Os princípios contrários se equiparavam no centro, onde se podia ver desenhado o olho de Deus. E ainda que fossem apenas esboços que teve tempo de rascunhar, estava certa de que ao ver novamente as imagens e analisá-las uma a uma, em profundidade, poderia chegar a novos dados para comparar com os que já estavam em seu poder. Nesse momento, tocou o telefone móvel que estava em sua mesa. Atendeu imediatamente.
—Sim?
—Perdão se a acordei, mas é importante. — Cárdenas parecia agitado.
—Não se preocupe, não nos deitamos ainda — pluralizou. — Lilith está tomando banho e eu estava passando a limpo umas anotações. Diga-me... o que está acontecendo?
—Aí vai uma charada: "Se desejas conhecer a verdade, terás de encontrar primeiro a chave onde se guarda o segredo de nossa loja, a qual se acha escondida cuidadosamente no interior de uma caixa de marfim coberta de pelos". Conhece a resposta?
—Isso é uma brincadeira? — respondeu, perplexa, sem entender nada do que ele estava dizendo.
Houve uns segundos de incômodo silêncio.
—Pode ser que você tenha razão... — raciocinou o bibliotecário — ...é muito tarde para lutar contra o talento. Boa noite, Cristina. Durma bem.
Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, ele desligou sem dar mais explicações.
A criptógrafa não sabia o que pensar. Leonardo havia perdido a razão ou estava escondendo algo realmente transcendental.
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