CAPÍTULO 40
Tão logo chegou ao hotel, Leonardo refletiu, em quietude, sobre as palavras da Viúva.
Pelo visto, aquele conciliábulo de homens livres, embora realmente prisioneiros de sua consciência, estava disposto a oferecer-lhe uma oportunidade em troca do silêncio. Se rejeitasse suas exigências, entre elas a de um futuro esplêndido ao lado de Cláudia — coisa que não lhe importava —, corria o risco de que o assassinassem, tal como fizeram com seus companheiros de trabalho. Na verdade, não estava disposto a arriscar sua vida apenas para contrariá-los. Por outro lado, sentia curiosidade — queria saber que segredo ancestral se escondia atrás das pedras dos tempos, Deus e as Artes Liberais. Quanto aos membros que havia conhecido na loja, até agora não eram terríveis e sanguinários como imaginara, mas havia alguns detalhes obscuros em seus métodos que ainda lhe despertavam desassossego, como a primitiva prática de cortar a língua de suas vítimas, bem como a grafitagem condenatória escrita nas paredes.
Tinha a esperança, porém, de encontrar uma luz no final daquela charada que representava a maçonaria, uma solução dos problemas morais da alma. Esperava aprender algo de bom com tudo aquilo e sabia estar à altura das circunstâncias, mesmo que fosse apenas para demonstrar a Balkis que podia confiar nele, tanto ou mais que no camaleônico Salvador Riera. Estava convencido de que poderia supe¬rar a prova de fogo e, assim, integrar-se à associação de construtores. Porque a oportunidade de ter acesso aos mistérios divinos, à autêntica magia, não à que praticavam dissimuladamente os magos de salão dedicados à fraude e a enganar os outros, era algo com que todo homem ou mulher sonha ao menos uma vez na vida. Conhecer o segredo da alquimia fazia parte da aprendizagem do iniciado, mas ao mesmo tempo aumentava seu temor ao desconhecido.
Jamais tentou enganar-se: o preço, essa ignorada oferenda ou tributo que teria de pagar para beber da fonte da Sabedoria, seria tão alto que haveria de sacudir os alicerces de sua fé.
Levantou-se da cama para ir até o armário onde guardava a gravação e a obra de Fulcanelli. Tirou do cofre o monte de papéis sem encadernação e sentou-se na cadeira diante da mesa. Como já tinha lido o livro havia uns seis anos e, recentemente, no avião, deu uma olhada por alto para ver se encontrava algo naquelas páginas que fosse de seu interesse. Descobriu alguns parágrafos que lhe chamaram a atenção, entre os quais uma frase que falava da Virgem Maria:
"... despojada de seu véu simbólico, não é mais que a personificação da substância primitiva que empregou, para realizar seus desígnios, o Princípio Criador de tudo o que existe." O Mistério das Catedrais, Fulcanelli.
Analisou, também, a singular epístola que se costumava ler na catedral de Notre-Dame de Paris, na missa celebrada no dia da Imaculada Conceição, um texto extraído do Livro dos Provérbios, em que se diz que a Sabedoria permanecia junto a Deus muito antes da criação do Universo. Desses parágrafos ele deduziu que a Virgem Maria, para os alquimistas, representava a essência primordial do conhecimento divino. Era como dar um rosto à consciência do saber.
Diante de seus olhos foram se sucedendo passagens filosóficas impregnadas de metáforas, descrições artísticas e ontológicas não isentas de certo sabor e heresia. Atrás de cada história ocultava-se uma metáfora; atrás de cada frase, um motivo de reflexão. Fulcanelli se expressava em uma linguagem hermética que só os alquimistas sabiam decifrar: o idioma dos anjos. Apesar do esforço a que se via submetido, seu cérebro encontrou certa coerência entre as palavras do escritor e os rígidos costumes da loja, sobretudo na conclusão de O Mistério das Catedrais, em que o metafísico francês explicava detalhada e fielmente os passos do iniciado, estimulando-o a subir os degraus que conduzem ao saber, um lugar onde, graças às faculdades de escrutínio, racionalidade e introspecção, poderia assumir a inquebrantável vontade que haveria de necessitar se quisesse resistir à última e mais difícil das tarefas: desprezar as vaidades do mundo e aproximar-se dos que sofrem.
Então, leu em voz alta os últimos parágrafos do livro:
"O discípulo anônimo e mudo da Natureza Eterna, apóstolo da eterna Caridade, permanecerá fiel a seu voto de silêncio. Na Ciência, no Bem, o neófito, para sempre, deve ... CALAR."
Analisou a frase, refletindo sobre ela durante todo o tempo em que permaneceu acordado. Finalmente, vencido pelo sono, deixou que seu espírito se precipitasse nas profundezas. A sensação era de liberdade.
Naquela mesma noite, se instalaram no Hotel Mena House, situado no extremo oeste do Cairo, um lugar paradisíaco cercado de belos jardins e único no mundo, onde os turistas mais exigentes podiam jogar golfe enquanto tinham como cenário de fundo as pirâmides, mergulhadas em um tempo que praticamente se perdia na memória. Cristina resolveu fazer algumas compras na boutique do hotel, aproveitando que Lilith decidira permanecer no quarto, desfazendo as malas.
Voltou cerca de meia hora depois, com várias sacolas penduradas nos braços. Ela ficava constrangida de ter de ir a lugares de prestígio ao lado de uma jovem vestida de maneira sinistra e que não cansava de olhar de cima as pessoas que eram melhores que ela. Por isso, havia se dignado a adquirir uma indumentária mais de acordo com a juventude de sua protegida, algo mais alegre.
Lilith aceitou a mudança de imagem, embora, nem por isso, tenha deixado de insistir no que vinha sendo uma cortina de fumaça convertida em cantilena: libertar seu pai das garras de seus seqüestradores. A criptógrafa, cansada de escutar suas queixas, reprimiu o desejo de matá-la ali mesmo, mordendo os lábios.
E, pela décima vez, teve de lhe dizer a mesma coisa: "você tem de ter um pouco mais de paciência". Em seguida, insistiu para que experimentasse a calça e a blusa que havia comprado para ela e também para que estivesse pronta em dez minutos. Iriam jantar na Torre do Cairo.
Era uma construção moderna, situada muito próxima da Ópera, na metade de uma ilha que dividia o Rio Nilo em dois. Sua altura superava os cento e oitenta metros, razão pela qual era fácil ter uma excepcional visão periférica da cidade, mais ainda se o turista completasse a visita, indo comer no restaurante giratório situado no alto. A descrição do lugar entusiasmou Lilith; por isso, fez o que Cristina lhe havia pedido amavelmente, trocando de roupa.
Depois de pagar quarenta dólares americanos cada uma pela visita, uma hora depois elas entravam na Torre do Cairo junto com um grupo de turistas. Sem mais demora, foram até os elevadores, enquanto admiravam a beleza ornamental do vestíbulo.
—Convidei um velho amigo — disse Cristina, quando as portas automáticas se fecharam. — jantará conosco. Espero que você não se importe.
Lilith sentiu que o círculo estava se fechando, pois naquele momento acreditou que devia tratar-se de um dos agentes que as haviam seguido até o Egito, a quem, por certo, não voltara a ver desde que se instalaram no Mena House.
—É alguém que conhece meu pai? — quis esclarecer as dúvidas. A ruiva negou com um gesto de cabeça.
—Não, mas conhece a fundo a história das pirâmides — respondeu em seguida. — Cooperou com o grupo do doutor Rudolf Gantenbrick, em 98, embora, na realidade, trabalhe para a National Geographie.
—Gantenbrick...? — interrogou, pois conhecia o nome de ouvido — ... Por acaso não é o engenheiro alemão, especialista em robótica e análises computadorizadas, que introduziu um pequeno robô por um dos canais de ventilação da Grande Pirâmide?
A criptógrafa se surpreendeu com os conhecimentos arqueológicos daquela jovem alemã.
—Nossa...! E eu que acreditava estar falando com uma leiga na matéria!
—Não é para tanto... — Lilith ficou ruborizada, no mesmo instante. — Lembre-se que ele é de meu país. Além disso, gosto de his¬tória. Vejo sempre o Discovery Channel.
—Então você vai simpatizar com o doutor Said Cohen. É um fanático por seu trabalho.
As portas se abriram antes que Lilith pudesse fazer perguntas sobre o tal Said. Entraram diretamente no restaurante, onde foram recebidas pelo maître em pessoa. Este se dirigiu a Cristina, conduzindo-a até a mesa que havia reservado, com antecedência, pelo telefone. O lugar era muito sofisticado e a decoração, realmente sensacional. Amplas janelas, com arabescos entalhados, ficavam à beira do abismo urbano, com o Rio Nilo à seus pés. A noite cairota esbanjava luminosidade e elas, sem se mover de suas cadeiras, podiam observar suas maravilhas e segredos graças ao sistema giratório da torre. Dali viram como as pirâmides e a Esfinge pareciam navegar, muito lentamente, sobre um oceano de areia líquida, envoltas em uma auréola de luz e cor.
O doutor Cohen chegou pontualmente ao encontro. Tão logo o viu, Cristina se levantou para receber, com dois beijos nas bochechas, o homem que uma vez lhe explicara sua particular teoria sobre a construção das pirâmides de Gizé. Em seguida, os apresentou formalmente.
—Said... lhe apresento Lilith.
A jovem imitou a atitude de Cristina, saudando o arqueólogo cortesmente.
—É um prazer — sussurrou, timidamente.
—O mesmo digo eu, senhorita.
Voltaram a sentar-se, agora os três. O empertigado maître lhes trouxe o cardápio. Em seguida, foi embora, avisando um dos garçons que os clientes mereciam um belo aperitivo, denominado Cocktail Suprême, como gentileza da casa.
Durante os primeiros minutos, a dupla de amigos recordou os meses que havia passado junto nas escavações realizadas no Vale dos Reis. Mas, ao perceber que entediavam Lilith com suas conjecturas arqueológicas, resolveram incluí-la na conversa.
—É a primeira vez que você visita o Egito? — perguntou Said, usando um tratamento informal, enquanto observava a jovem por cima de seus óculos minúsculos.
—Ah, sim! — afirmou a alemã, ligeiramente embaraçada, não sabendo bem o que dizer.
—O pai dela a deixou sob minha responsabilidade há um mês — interveio Cristina, mentindo deliberadamente para ganhar tempo, ao calcular que não era prudente ter de contar a ele toda a história. — Na verdade, ela estuda Arqueologia na Espanha.
Said concordou, com um gesto de cabeça, dando a entender que compreendia o motivo pelo qual ela acompanhara a doutora Hiepes.
—Você se surpreenderia ao conhecer os mistérios que esconde a civilização egípcia... — dirigiu-se, de novo, a Lilith. — Já somos inúmeros os profissionais que acreditam que a história deveria ser reescrita... — disse, pigarreando, para concluir com orgulho: — ...eu digo isso porque as datas ainda não estão muito claras.
—Refere-se à construção das pirâmides?
—Exato... — respondeu o doutor Cohen — ...e não apenas das pirâmides, mas também da Esfinge. Você sabia que, há quinze anos, o geólogo Robert Schoch, da Universidade de Boston, e o egiptólogo John West, descobriram que as enormes fissuras que podemos observar ao redor da formação rochosa não são fruto da erosão provocada pelo vento e pela areia, mas, sim, foram feitas por águas torrenciais, que remontam há mais de dez mil anos de antiguidade?
Lilith não soube o que responder. Mas aquilo começava a interessá-la demais.
—Conte a ela sobre a câmara secreta — incentivou-o Cristina, que exibia um sorriso cúmplice. — Diga o que descobriram, no ano seguinte, o geofísico Dobecki e o próprio Schoch.
—Sim, claro — disse o arqueólogo. — Foram realizados vários testes de sondagem acústica ao redor da Esfinge, experiências que acabaram corroborando a idéia de que sob o solo existem várias salas ocultas desde tempos remotos. Alguns cientistas, como nós, pensam que poderia tratar-se de uma série de bibliotecas ou mesmo arquivos, os quais datariam da época em que a Atlântida submergiu.
Lilith continuava espantada com aquele relato.
—E isso é verdade? — perguntou, fascinada.
—Digamos que existem provas irrefutáveis, mas que uma parte da comunidade científica prefere ignorar.
—Por exemplo... — insistiu a jovem de origem germânica.
—Como eu já comentei, Dobecki descobriu, sob a pata direita da Esfinge, o que parecia ser uma sala retangular de mais de cem metros quadrados de superfície, por cinco de altura. Seis anos depois, por meio de um sofisticado scanner, seria confirmada a existência da tal sala, mais um sem-fim de galerias subterrâneas e túneis de conexão, que iriam parar nas mesmíssimas pirâmides. Para desilusão de todos nós, o governo de meu país proibiu tacitamente as permissões de escavação.
—Mas... isso é inacreditável!
Lilith continuava interpretando seu papel, embora as palavras do arqueólogo, de maneira alguma, lhe fossem indiferentes. Seus olhos demonstravam isso.
—Ouça... que ainda há mais... — desta vez foi Cristina que decidiu intervir, mantendo o apaixonante relato ainda mais vivo. — Os japoneses empregaram técnicas microgravimétricas no interior da Sala da Rainha, ou seja, algo que se poderia chamar de uma radiografia das paredes. Os resultados foram realmente impactantes, uma vez que indicavam claramente a presença de corredores e de espaços vazios, atrás dos blocos de granito.
—Na realidade, não somos os primeiros a ter informações sobre isso — continuou dizendo Said. — Já no século IV, o historiador romano Amiano Marcelino afirmava conhecer a existência de túneis subterrâneos sob as pirâmides, salas de iniciação às quais os antigos faraós desciam, por galerias secretas, para comunicar-se com os deuses subterrâneos Set e Osíris.
—Se isso é correto e se vocês estão seguros de que existem essas passagens subterrâneas de que falam... — Lilith limpou a voz, para perguntar — ...por que ninguém se atreveu a investigá-las?
O arqueólogo começou a rir. Ele também achava ilógico ocultar a maior descoberta da história.
—Por culpa do oportunismo deste país atrasado... — admitiu, com pesar, abaixando o tom da voz. — Interessa ao governo manter o segredo. Dessa forma, pode escavar o que quiser, sem que ninguém venha meter o nariz em seus assuntos. Por que você acha que proibiram o acesso dos turistas em Quéops durante mais de três anos...? Acredita, mesmo, que a medida foi tomada, como alegaram, para poder limpar o interior da pirâmide? Limpar o quê...? As areias do deserto, por acaso...? Ora bolas...! — exclamou, mordaz, para acrescentar: — O que querem mesmo é só fazer o trabalho fácil e ganhar todos os louros, quando fomos nós, os arqueólogos, que durante anos e anos nos esforçamos para descobrir a verdade.
A mente da jovem alemã, sempre na expectativa, começava a vislumbrar o autêntico propósito de Cristina. No interior de uma daquelas salas devia estar a Arca da Aliança, por isso a criptógrafa tinha tanto interesse em manter em segredo o seqüestro de Riera: pensava usar aquele idiota rechonchudo que tinham diante de si, com cara de peixe cozido, para conseguir acesso ao interior da Grande Pirâmide. O que ouviu em seguida confirmou sua suspeita.
—Mas isso pode mudar — comentou Cristina, com um ar de mistério.
—Por acaso você pensa em pedir a eles uma permissão especial que nos abra a possibilidade de recomeçar as escavações de 1998? —Said olhou desconcertado para a sua velha amiga. — Se for isso, eu a aconselho a, primeiro, conquistar a confiança do diretor geral do Museu Arqueológico. Esse bastardo nega, reiteradamente, nossas investigações.
—Quem dirige o museu, agora? — quis saber a ruiva.
—Khalib Ibn Allal... é o filho do antigo diretor e mão direita de Mansour Barik, inspetor chefe das pirâmides de Gizé — respondeu. — Não creio que ele a agrade. É um homem frio, hermético, obscuro. Jamais fala sem que, antes, lhe perguntem algo.
—Gostaria de conhecê-lo.
—Está bem... — ele encolheu os ombros. — Depois não diga que não avisei.
—Preciso falar com ele amanhã mesmo... — o tom que ela usou parecia uma exigência, razão pela qual, ao perceber a expressão alterada de Said, acrescentou com um pouco menos de soberba — ...é de vital importância!
O arqueólogo a observou com muito interesse. Achava que conhecia bastante bem a doutora Hiepes. Quando ela dizia que algo era importante é porque sabia exatamente do que estava falando.
—Diga-me... para que você veio, realmente? — perguntou, curioso.
As bochechas de Said Cohen se tornaram ainda mais rosadas do que seu tom habitual. Era evidente que esperava, com ansiedade, uma resposta que o satisfizesse, um novo mistério a resolver, como nos velhos tempos.
—Você se lembra o que me disse, uma vez, a respeito das medidas do sarcófago vazio, situado na Sala do Rei? — perguntou Cristina, por sua vez.
—Sim, claro... sem dúvida — ele respondeu, com calma. — Que coincidiam exatamente com as da Arca da Aliança.
—Justamente!
Said esperava que ela fosse mais explícita. Ao perceber que não tinha a menor intenção de ser mais clara, perdeu as estribeiras.
—A que você se refere? — perguntou, agora com ansiedade.
—Ao fato de que você tinha razão... A Arca de Moisés esteve, uma vez, no interior da Grande Pirâmide. E se o governo egípcio me permitir, existe a possibilidade de que eu possa demonstrar.
Lilith, em silêncio sepulcral, acompanhava a conversa dos dois com interesse. Devia ter cuidado para não demonstrar exagerada curiosidade.
—E há quem diga que eu estou louco! — o arqueólogo começou a rir. — Você veio até aqui só para me dizer isso?
—Estou convencida de que ela continua ali, encerrada em uma dessas salas das quais acabamos de falar.
Said deixou escapar uma risadinha nervosa. Na verdade, ele também havia pensado nisso, no passado. E agora, depois de tanto tempo, alguém vinha confirmar que suas teorias poderiam ser verdadeiras e não fantasias de um lunático.
—Gostaria de acreditar em você — sussurrou, tristemente.
—Eu já lhe menti, alguma vez?
O arqueólogo desviou o olhar para Lilith.
—Não me olhe desse jeito — reagiu a jovem alemã, com um ar de surpresa. — Tudo isso é novo para mim.
—Ela não sabe de nada — acrescentou Cristina, séria. — Este é um assunto entre nós.
—Escute... se o que deseja é uma audiência com Khalib, não há nenhum problema — assegurou. — Amanhã mesmo iremos vê-lo. Mas eu lhe aconselho a não contar a ele nada do que falamos. Se pensar que você está maluca, será ruim, mas se acreditar, pior ainda. Em todo o caso, jamais permitirá sua entrada no interior das pirâmides, muito menos agora, que estão pensando em fechá-las de novo. Até montaram várias guaritas com soldados ao longo de toda a estrada de acesso! — exclamou, irritado. — Há uns seis meses, ninguém con¬segue avançar além dos oitocentos metros de distância das tumbas. Segundo me asseguraram, essas medidas foram tomadas como represália a diversos atos de vandalismo praticados no interior das pirâmides por um grupo de descontrolados, atos que realizavam à noite, com total impunidade... — sorriu novamente, levantando os pequenos óculos que escorregavam à todo momento por seu nariz — ...ainda que, se quer saber minha opinião, acho que é uma nova armação do governo. Seu único propósito é desencorajar as pessoas que, como você, têm a intenção de fuçar na verdadeira história dos antigos egípcios.
—Basta, para mim, que você consiga essa audiência — a criptografia deslizou a mão no braço de seu amigo.
Said Cohen piscou um olho para ela, levantando sua taça.
—Pela sua tenacidade!
—Que história é essa que você contou ao doutor Said, referente à Arca de Moisés? Tem algo a ver com o seqüestro?
Lilith, sentada junto a Cristina, na parte traseira do táxi que as levava de volta ao hotel, procurou ser convincente, fazendo-se de ingênua.
—Era a única forma de conseguir um encontro com o diretor do Museu Arqueológico — disse-lhe a criptógrafa. — Tive de lançar mão de um artifício para que Said prestasse atenção em mim. Sei que é horrível mentir para um amigo, mas precisamos entrar em Quéops a qualquer preço... — comentou, para acrescentar, em seguida, com uma expressão séria — ...lá dentro encontraremos a pista que nos conduzirá até seu pai.
—Não sei por que, mas tenho a impressão de que você me oculta algo — arriscou-se a dizer a alemã.
—O fato de que eu não possa lhe dizer nada mais não prova que eu esteja mentindo — argumentou, para tentar fazê-la compreender.
—Eu só lhe peço que tenha confiança em mim.
A assassina aceitou a contragosto, cedendo ao pedido de Cristina com resignação.
—Está bem, eu tentarei... — garantiu, para, em seguida, cheia de si, fazer uma crítica aberta à atitude da outra — ..., mas quero que você saiba que não me parece uma boa idéia enganar os demais, aproveitando-se de suas fraquezas.
Cristina fez um gesto com a mão, dando a entender que não se importava com algo tão insignificante como usar o bom Said.
—Não se preocupe. Saberei recompensá-lo.
—De que maneira?
—Eu o convidarei a ir conosco. Isso, se tiver a sorte de conseguir que esse tal Khalib nos dê permissão para entrar na Grande Pirâmide.
—Escute... — Lilith disse-lhe, incisiva — ...não sei o que você pretende encontrar lá dentro, mas continuo pensando que deveria me contar. Eu mereço.
Cristina, pensativa, demorou um pouco antes de responder, olhando-a fixa e friamente.
—Tudo a seu tempo — afirmou, misteriosa.
Dito isso, não voltaram a conversar até que chegaram ao hotel. Então, o tema da conversa havia deixado de ter interesse. Cada uma delas se dirigiu a seu respectivo quarto, mergulhadas em seus próprios pensamentos.
CAPÍTULO 41
Chegaram para a entrevista no primeiro horário da manhã. Said Cohen se vestia como um explorador, com calças curtas, devido à sufocante temperatura da cidade. Estava tão entusiasmado, que as veias capilares de suas bochechas pareciam exsudar sangue, devido à pressão arterial a que estavam submetidos. Esfregava suas mãos calosas, de dedos curtos e rechonchudos, como um sinal de ansiedade semelhante ao de uma mosca diante de um monte de esterco. A conversa que Said estava tendo com Cristina era tão entediante, que a criptógrafa ficava balançando a cabeça, em sinal de aprovação, com uma expressão paralisada de dar dó. Esperava, inutilmente, que ele resolvesse ficar quieto, ainda que fosse apenas para respirar. Lilith, por sua vez, estava ao lado de Cristina sem dizer uma só palavra. Porém, prestava atenção a tudo que era dito, para ver se encontrava na conversa uma pista que pudesse conduzi-la à Arca.
Depois de atravessar o Museu Arqueológico e evitar os grupos de turistas que perambulavam de um lado para outro, admirando as relíquias expostas nas vitrines, entraram na área reservada aos funcionários, onde os aguardava o secretário pessoal de Khalib Ibn Allal. Era um homem de tez morena e bochechas pronunciadas, delgado e ereto como um broto de videira, mas de uma vitalidade invejável, e cumprimentou-as de maneira muito cortês, antes de conduzi-las ao longo do corredor arábico que terminava em uma bela fonte de pórfiro. Bateu na porta, tão logo chegaram ao gabinete do diretor geral, abrindo-a decididamente, sem esperar resposta, convidando-os a entrar com o braço estendido.
—Por favor, entrem... eu os estava esperando — Khalib levantou--se para recebê-los, com certa solenidade.
Ramdame — esse era o nome do secretário — foi embora, fechando a porta atrás de si. O grupo de três pessoas sentou-se diante do gesto hospitaleiro de seu anfitrião, que, antes de tudo, lhes ofereceu uma xícara de chá. Aceitaram o convite depois de agradecer, um tanto intimidados pela personalidade majestática que irradiavam os gestos lentos e o olhar indiferente dele. Sua grande e incomum túnica contribuiu, de alguma forma, para que se sentissem desconfortáveis em sua presença, uma sensação que se fortalecia com a visão de seu nariz aquilino, da barba e do bigode eriçados, e do fogo sobrenatural que irradiavam seus olhos amendoados.
Esse conjunto trouxe à memória de Cristina a imagem lendária de Imothep, arquiteto e médico da III Dinastia, a quem se atribui a construção da pirâmide escalonada de Saquara.
—Meu secretário informou, nesta manhã, que desejam falar comigo sobre um assunto que diz respeito às pirâmides — disse Khalib, antes de sentar-se novamente na cadeira giratória. — Espero, para o bem do Egito, que não se trate de solicitar novas permissões para experiências inúteis, que perturbam o conceito da história de nosso país... — suspirou, de maneira bastante significativa. — Já sabem o que pensamos a respeito.
O comentário era dirigido a Cristina.
—Meu objetivo não é de especular sobre as possibilidades que abririam novos reconhecimentos por meio de ultrassom na área, embora eu esteja certa de que ainda existem muitos mistérios sob a areia — replicou a criptógrafa.
—Quanto a isso, não resta dúvida — acrescentou Khalib. — Por isso foram construídos novos edifícios na entrada do planalto. Dessa maneira, a pirâmide ficará protegida da confusão dos tratadores de dromedários e dos turistas. Somente nossos arqueólogos trabalharão nela.
—Eu sou egípcio — Said se queixou — e, sem dúvida, várias vezes me negaram permissão.
O diretor não se abalou. Estava acostumado às reprimendas do tenaz professor.
—Você, se bem me lembro, trabalha para a revista National Geographic há muitos anos.
—Isso é porque Adel Hussein negou todas as minhas solicitações de trabalho para o governo egípcio — contestou, irritado, Cohen.
Adel Hussein era o diretor geral da área do planalto, onde ficavam as pirâmides.
Cristina havia colocado o dedo na ferida com aquela pergunta, algo que importunou Khalib. Mesmo assim, tratou de ser cortês com seus convidados.
—Gostaria de poder ajudá-los, mas se o que desejam é que lhes seja concedida uma permissão para escavar, me parece que perdem seu tempo. Como já devem saber, isso é da competência de Adel Hussein.
—Mas ele é sua mão direita... — lembrou o arqueólogo — ...estou certo de que poderia convencê-lo, se quisesse.
—Lamento — desculpou-se o diretor geral do Museu Arqueológico. — Devemos ser cuidadosos. Se fizermos uma exceção para vocês, todos os arqueólogos do mundo cairiam em cima de nós. Compreendam, não é nada pessoal.
—Só o que desejamos é fotografar o interior da Grande Pirâmide, incluindo o conjunto hieroglífico de Jnum-Jufuy" e o sarcófago — argumentou Cristina, esperando, assim, que ele mudasse de opinião. — E talvez visitar, também, a Câmara do Caos.
Khalib achou estranha tanta urgência por algo que eles poderiam ter feito meses atrás, antes da proibição, como ainda lhe parecia perda de tempo fotografar o que haviam estudado dezenas de vezes. Uma coisa era solicitar permissão para escavar no Vale dos Reis, ou até mesmo o oásis de Bahariya, e, outra, muito diferente, procurar onde todos sabiam que não havia mais nada para encontrar. Além disso, o fato de ter sido mencionada a Câmara do Caos o colocou em alerta. Sua intuição lhe disse para ir com o máximo cuidado.
—Posso saber que motivos a levam a isso, senhorita...?
—...Hiepes... Cristina Hiepes — ela respondeu, levantando o queixo. — Meu único interesse se resume em averiguar até onde chegava a tecnologia do Antigo Egito em matéria de construção.
Hiram pestanejou ligeiramente ao ouvir o nome de sua convidada, embora não pudesse evitar que o coração desse um salto, nem que seus olhos se desviassem no mesmo instante para a mais jovem dos três, Lilith.
Ali, diante dele, estavam duas das pessoas que conheciam a história do pedreiro. E uma delas era a assassina contratada por Sholomo.
—E...? — perguntou, muito pensativo.
—Como todos sabemos — continuou a criptógrafa —, nos anos quarenta foram encontrados certos manuscritos de grande relevância, que falavam dos primeiros cristãos que se fixaram no sul do Egito.
Neles se diz, de forma explícita, que uma misteriosa sociedade de construtores lutou, no passado, para combater a ignorância, construindo templos prodigiosos em lugares especialmente místicos, monumentos erigidos conforme parâmetros ancestrais que haviam permanecido ocultos durante milhares de anos para a humanidade. Falamos de uma sociedade construtora denominada Os Companheiros de Horus.
—Vou fazer algo por vocês — disse, antes de perder completamente a calma. — Venham me ver domingo e eu mesmo os levarei até Gizé... — e logo acrescentou —...suponho que Adel Hussein não se importará que eu acompanhe três membros da National Geographic para uma visita às pirâmides.
—Na realidade... — começou a dizer Said, mas um oportuno pontapé no tornozelo, dado por Cristina, o impediu de continuar.
—Não poderia ser nesta mesma tarde? — insistiu a criptógrafa, procurando dissimular sua insistência.
—Impossível. Tenho assuntos a resolver.
—Está bem! — exclamou Said Cohen, esboçando um gesto de resignação. — Suponho que não nos resta outra coisa senão esperar.
—Isso mesmo — respondeu, laconicamente, Khalib Ibn Allal.
O arqueólogo se levantou e os demais fizeram o mesmo, tão logo a conversa terminou. Cada um apertou a mão do diretor geral do Museu Arqueológico. Quando chegou a vez de Lilith, Khalib sentiu o desejo de perguntar qual era seu nível de participação naquele assunto. Antes de tudo, tinha de saber qual era a identidade dela. Por isso, a interrogou com gentileza.
—Você é muito jovem para ter doutorado... possui algum título que a credencie?
Por um instante, a alemã não soube o que dizer, já que não esperava ser alvo de atenção. Cristina se viu obrigada a justificar a presença de sua protegida naquele gabinete.
—É Lilith, a filha de um bom amigo — lhe explicou, rapidamente —, além de ser minha aluna mais destacada. Eu mesma lhe pedi que me acompanhasse nesta viagem.
Khalib concordou, em silêncio. Era tudo o que precisava saber.
Já estavam indo embora, pois o gesto impassível do diretor geral indicava claramente o final da conversa, quando Cristina se virou para lhe fazer uma última pergunta. Foi algo instintivo, como se por um segundo pudesse ter lido o pensamento daquele homem naturalmente esquivo e enigmático.
—Será que... veio procurá-lo um homem chamado Leonardo Cárdenas? — perguntou à queima-roupa.
—Como disse?
O diretor segurou o queixo em um gesto hesitante, dando a entender que não sabia do que ela estava falando.
—Nada, esqueça... — a criptógrafa voltou a sorrir e acrescentou — ...muito bem! Até domingo, então.
Despediram-se, novamente. Said Cohen agradeceu pelo tempo que lhes havia dedicado e também pelo chá. Khalib mostrou-se igualmente amável, aproximando-se da porta. Em seguida, chamou Ramdame, para que acompanhasse seus convidados pelo Museu Arqueológico.
Minutos depois, sozinho, Hiram se aproximou da mesa do escritório, para fazer um telefonema. Era a primeira vez em sua vida que sentia necessidade de falar com alguém, como também era a primeira vez que se sentia realmente ameaçado. Balkis saberia o que fazer.
Naquela mesma manhã, Leonardo se deixou levar por seu espírito de aventura, penetrando no coração do velho Cairo. O inefável encanto do passado pairava, como um mistério, sobre as ruas infectas de pobreza, onde um amálgama de cheiros acres se consolidava em uma só essência, única e indescritível, um aroma sedutor que provinha de todas as partes e a todos envolvia com sua espessa doçura, uma fragrância arrebatadora em que estavam implicados os vendedores de haxixe, os comerciantes de óleos perfumados, as bancas de ambulantes de plantas medicinais, o fumo do tabaco frutado das shishas, a henna dos cabelos femininos e o amoníaco de quem, sem nenhum pudor, urinava nas esquinas menos transitadas do bairro Al Ghourieh. Espreitado pelos olhares oblíquos das mulheres que espiavam através das janelas de suas casas, o bibliotecário chegou até a Rua Al Hakim Bi Amr Illah submerso em uma sensação que era uma mistura de pavor e serenidade e que o embriagava ao ponto de fazer com que se sentisse a criatura mais feliz da face da Terra.
Algo nele estava mudando. Seu espírito havia alterado a proteção da consciência e agora transparecia, vencido interiormente, no espelho de seus excessos e defeitos. O caminho iniciático empreendido não tinha retorno.
Sem se dar conta, chegou ao café Al Fishawi, também chamado de Os Espelhos, célebre por ser visita obrigatória para os viajantes que pretendiam submergir no mundo obscuro das misérias cairotas.
Sentou-se diante de uma das mesas que havia ao longo do beco estreito. Um jovem, com turbante e galabiya de cor púrpura, aproximou-se para lhe oferecer uma chaleira de latão envelhecido, antes que mudasse de opinião e fosse embora, em busca de um lugar mais sofisticado e elegante. Agradeceu e o rapaz fez repetidos gestos de anuência, ao mesmo tempo que sorria com certa satisfação. No interior do café, alguns anciãos fumavam, cada um à sua vez, uma shisha de longos tentáculos, enquanto observavam, com expectativa, a chegada de novos ônibus com turistas que haveriam de trazer benefícios à sua economia descamisada. De fato, tão logo desciam as escadas do veículo, eram abordados por diversos vendedores ambulantes, mendigos e engraxates, dispostos a lhes oferecer serviços e orações em troca de esmolas. Os que conseguiam se livrar do assédio dos mais desfavorecidos eram subjugados pelos magníficos produtos dos artesãos — verdadeiras obras de arte manufaturadas em ouro, seda, vidro, madeira, cobre e marfim.
E foi ao observar os vários tipos de lojas de comércio alinhadas ao longo do mercado Khan Al Khalili que Cárdenas descobriu, do outro lado extremo daquele centro de compras, a figura de Balkis, que discutia com um vendedor o preço de uns pequenos obeliscos talhados em pedra. Aquela era uma das lembranças mais procuradas por europeus, ao lado dos tradicionais papiros e cartuchos hieroglíficos dourados. Ela se virou, impulsionada por uma súbita intuição.
Levantou a mão, em sinal de cumprimento. Leonardo imitou o gesto dela, de maneira cortês, sem deixar, por isso, de sentir um estranho formigamento no estômago. Finalmente, Balkis cedeu diante das razões do comerciante, entregando-lhe a quantia estipulada. Pegou um obelisco em cada mão e, depois de receber o troco, aproximou-se do lugar onde estava o espanhol. Sentou-se ao lado dele, deixando ambos os monólitos sobre a mesa.
—Espero que minha presença não o incomode — disse, sorridente.
—Na verdade eu não esperava voltar a vê-la até a tarde — reconheceu o bibliotecário. — Embora reconheça que tenha sido uma grata surpresa e, ao mesmo tempo, um alívio comprovar que uma pessoa que fala com Deus seja capaz de regatear o preço de um objeto com um simples comerciante. É um detalhe que a torna mais humana.
A Viúva se pôs a rir.
—Vejo que você tem senso de humor, e isso é algo que nem todos possuem hoje em dia.
—Pelo menos eu tento — observou o bibliotecário, com certo encanto. — Não obstante, é difícil segurar a barra quando se descobre que a namorada é integrante de uma sociedade maçônica que sai por aí assassinando as pessoas.
Balkis manteve um silêncio eloqüente. Um vendedor de tapetes se aproximou deles com o objetivo de ganhar umas libras egípcias. Leonardo recusou a oferta, levantando a mão e o homem foi embora, em direção a outra mesa, onde conversavam amigavelmente três indivíduos de origem anglo-saxônica.
—Sholomo cometeu um erro e só compete a Deus julgá-lo — disse a anciã.
—Diga-me... a que se deve sua visita? — perguntou Leonardo, desviando o rumo da conversa. — Eu suponho que o fato de ter-me encontrado não é fruto da casualidade.
Balkis gostava daquele rapaz. Sabia, por experiência própria, que não costumava se enganar com as pessoas. E, apesar de sua natural vaidade, ele era um homem inteligente. Compreendia a importância de guardar o segredo dos templos.
—Há menos de uma hora, Hiram recebeu um grupo de arqueólogos que pretendiam ter acesso à pirâmide de Quéops — disse-lhe, esperando ver qual seria sua reação.
—E então...?
Ignorava por completo o que ela queria lhe dizer.
—Um deles é o professor Said Cohen, um arqueólogo obcecado pelos mistérios egípcios e que trabalha para a National Geographic.
Estava acompanhado pela doutora Hiepes e por uma jovem que todos conhecemos como Lilith.
Na mesma hora, ele compreendeu a gravidade do problema. Se eles estavam ali é porque o haviam seguido desde a Espanha, com a finalidade de encontrá-lo.
—E o advogado? — quis saber.
Balkis encolheu os ombros.
—Isso é irrelevante. O que realmente importa é averiguar o motivo que as levou a vir até aqui. Na verdade, eu tenho uma ligeira suspeita de que pretendem apoderar-se do Trono de Deus.
O bibliotecário não compartilhava da mesma opinião, ao menos em relação à Cristina. Quanto a Lilith, ainda tinha suas dúvidas.
—Essa jovem alemã, que, segundo vocês, é responsável pelos assassinatos de Jorge e Mercedes... para que iria arriscar-se a vir, se já cumpriu sua tarefa?
Por um momento, pensou que a missão dela era justamente acabar com ele — e seria uma idéia correta se, como acreditava, as ordens de Riera consistissem em calar as vozes de quem estava à par do segredo.
—Talvez porque tenha interpretado corretamente o manuscrito do pedreiro.
—Isso significa que o leu.
—Muito pior, eu temo — admitiu a mulher. — Na realidade, ela jamais chegou a destruí-lo.
—Você quer dizer que o manuscrito de Toledo esteve, durante todo o tempo, em poder de uma assassina...? — perguntou, atônito, para, em seguida, exclamar com profunda ironia — ...perfeito!
Balkis começava a se sentir desconfortável com a mudança de humor do espanhol. Não teve outro remédio senão tentar desculpar a falta de precaução do mestre e o fez desviando a atenção para outros rumos.
—Falemos de você — afirmou de maneira ríspida. — Acredita estar preparado para enfrentar o Grande Arquiteto do Universo?
Cárdenas não pôde evitar: deixou escapar uma risadinha incrédula. Ainda não aceitava o fato de poder falar com Deus.
Era algo inadmissível, fora do alcance dos seres vivos, isso, se era verdade que existia mesmo.
—Eu lamento — desculpou sua atitude. — É que suas palavras vêm confirmar meu primeiro pensamento: vocês todos estão loucos.
—O Donum Dei não é uma loucura, mas sim um sonho passível de ser realizado, pelos que desejam se aprofundar na verdade — provocou, com mais energia. — É a Graça de Deus que se oferece aos homens que esquecem o que são. Eu já o fiz: deixei minha família e mudei de nome. Sem dúvida, perco meu tempo falando com você, mas se insisto é porque ainda nos une o que chamamos de consciência. O certo é que a vida social, para um Guardião, é um retrocesso no conhecimento, algo assim como um catedrático ter de estudar em uma classe de crianças pré-escolares.
—Isso significa que a humanidade é idiota?
—Eu diria que cega — ela respondeu, cuidadosa. — Ouça... o que você responderia se eu lhe perguntasse o que vê nestes obeliscos que acabo de comprar?
—Se eu fosse um psicólogo, lhe diria que representam o poder fálico do homem — brincou. — Mas como eu estudei Biblioteconomia, penso que são excelentes para apoiar livros.
A anciã não parecia estar se divertindo com a brincadeira de Leonardo. Ao contrário, olhou para ele com uma expressão austera e um tanto solene.
—Você tem algo que fazer agora? — perguntou a ele, esquecendo o sarcasmo daquele pedante que logo se converteria em um Guardião da Arca.
—Pensava fazer turismo, embora esteja aberto a qualquer proposta.
—Preciso que você me acompanhe até o planalto de Gizé. Mas peço que permaneça calado até que cheguemos.
—Eu lhe dou minha palavra.
—De acordo... — Balkis se levantou, pegando os obeliscos com firmeza. — Vamos pegar um táxi na Praça Ramsés II.
O bibliotecário deixou um par de libras egípcias junto à chaleira. Seguiu os passos da senhora.
Na mesa ao lado, os três turistas, que pouco antes haviam sido abordados pelo vendedor de tapetes, abandonaram suas cadeiras para segui-los de perto.
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