CAPÍTULO 16
Regressaram à parte posterior da capela dos Velez e, de novo, se aventuraram pelo corredor de andaimes metálicos que a empresa construtora havia colocado entre a catedral e o imóvel em restauração. Trataram de evitar as várias barras de alumínio que se cruzavam em diagonal, com cuidado para não se machucar. Do outro lado encontraram as marcas de pedra que haviam observado pouco antes, entre as quais estavam as iniciais do pedreiro. Os três olharam para baixo. Mas ali não havia nada, apenas o revestimento do solo. Entretanto, um pouco mais à esquerda descobriram um gradeado de ferro, talvez por onde escoasse a água, em tempos de chuva.
Aproximaram-se com cuidado para não tropeçar nas pontas que suportavam a plataforma do andaime. Cláudia decidiu agachar-se para dar uma olhada, mas não conseguiu divisar mais do que uns poucos centímetros. A luz exterior, aliada à tênue obscuridade daquele poço, dificultava a tarefa de observar o que existia abaixo do solo.
—Espere... — disse Leonardo. — Tenho uma idéia. Pediu a máquina fotográfica de sua companheira emprestada. Depois de receber explicações de como funcionava o zoom e o flash, ajoelhou-se diante de todos, inclusive das pessoas que passavam por ali e observavam, atônitas, um comportamento tão extravagante.
Depois, começou a disparar várias vezes, com a objetiva metida entre as barras de ferro.
—Você tem idéia de onde isso conduz? — perguntou Riera, inclinando-se também para observar de perto, através das barras.
—Talvez se trate de um fosso — respondeu Cláudia. — Se for assim, talvez existam catacumbas sob a capela.
—É possível... — Salvador se colocou em pé, para ficar no mesmo nível de sua sobrinha. A grande maioria das catedrais tem galerias subterrâneas, criptas mortuárias onde antigamente eram cavadas as várias sepulturas dos principais clérigos.
Leonardo fez o mesmo, tão logo terminou o seu trabalho, devolvendo a máquina à Cláudia.
—Deveríamos revelar o filme antes de voltar a Santomera — sugeriu. — É o único que temos.
—Você acredita, mesmo, que aí embaixo está o diário que procura?
—A pergunta de Salvador, apesar de tudo, tinha como base o senso comum. Porque, se fosse correto, o papel teria se desintegrado devido à umidade e aos parasitas, depois de ficar oculto sob a terra durante quase quinhentos anos. Era cientificamente impossível encontrar o texto em condições favoráveis de leitura.
—Não estou certo... — em dúvida ele encolheu os ombros, mas segundo as anotações de Iacobus, o inferno a que temos que descer está por aqui, sob as correntes e as pedras que levam seu nome.
Cláudia apoiou a teoria de seu companheiro.
—Leo tem razão. Os manuscritos dele devem estar muito perto daqui. E que melhor esconderijo que a soberba obscuridade de um templo, como ele mesmo disse?
Riera teve que admitir que as palavras do pedreiro eram explícitas. E que, se assim fosse, baixar aos infernos não seria uma tarefa fácil.
—Vocês pensaram como vão entrar nas catacumbas da catedral? Quem sabe pedindo permissão ao diácono?
A jovem aproveitou a ironia de seu tio para seguir no mesmo raciocínio.
—Agora que você diz isso...
— A primeira coisa que deveríamos fazer é nos informar se existe unia maneira de entrar nessa parte de baixo... — Leo apontou para as barras de ferro e acrescentou — e é possível que na secretaria da catedral possam nos ajudar.
—Não creio que alguém vá facilitar essa informação para nós sem um bom motivo — insistiu o arquiteto.
—A vocês não, mas... que homem resiste à curiosidade de uma mulher interessada em arquitetura? — Cláudia arqueou as sobrancelhas, adotando uma pose decididamente provocante.
Leonardo sentiu uma pontada de ciúme. Apesar de tratar-se de uma estratégia feminina, com o objetivo de obter informação de forma sorrateira, ele não gostou nada da idéia. Imaginou o cicerone bajulando Cláudia e isso o irritou muito.
—Não acredito que possa funcionar — disse, finalmente, apesar de até concordar, a princípio.
—Nunca se sabe — pontuou Riera. — A história nos diz que até o homem mais sábio e casto em algum momento já se enroscou nas redes de confabulação de uma mulher. É uma questão de fraqueza masculina falar demais, quando quem escuta possui um belo rosto, como o de minha sobrinha.
—Ora, vamos! — exclamou Cláudia. — Viemos de tão longe para nos determos agora em algo tão elementar?
Sentindo-se vencido, Cardenas não teve outro remédio senão capitular. Entretanto, continuava a discordar da idéia de ver sua garota usando seus óbvios encantos diante de outro homem, senão ele.
—Façamos uma coisa... — sugeriu, sério. —Voltaremos amanhã, domingo, quando a catedral for aberta... — olhou fixamente para sua companheira. — Primeiro você falará com o sacristão, ou qualquer outra pessoa responsável pela capela dos Velez, para que nos diga o que precisamos saber. Em seguida, trataremos de encontrar uma forma de arrombar as barras de ferro do esgoto, para poder descer às catacumbas.
—Isso vai ser arriscado. Se nos pegarem, pensarão que somos ladrões de arte.
A opinião negativa de Riera não interferiu na decisão tomada por sua sobrinha nem na disparatada estratégia de seu parceiro. Ambos precisavam encontrar respostas para suas perguntas.
—Ali embaixo há um mistério que está oculto há vários séculos, um segredo defendido por um juramento de sangue, que, desgraçadamente, nos diz respeito... — Leo expressou seus temores sem rodeios. — Se nos esquecermos dele, talvez no futuro recebamos a inesperada visita de um irmão maçom, disposto a abrir nossa garganta. Mas se encontrarmos o diário, antes, e conseguirmos decifrar o enigma que suas páginas escondem, talvez tenhamos uma possibilidade de nos adiantarmos a eles, descobrindo onde se escondem. A polícia pode fazer o resto.
—Pelo menos deveríamos tentar — acrescentou Cláudia, contrapondo-se aos temores de seu tio.
—Está bem, podem contar com minha ajuda — prometeu o arquiteto. — Mas antes quero ver as fotografias de Leo e certificar-me de que existe uma maneira segura de descer.
Uma vez de acordo, foram diretamente a uma loja de revelação fotográfica instantânea, localizada do outro lado da Gran Via, na Rua San Pedro. Depois de uns vinte minutos de espera, a balconista lhes entregou as cópias e mais um filme de presente. Leonardo pagou a conta, pegando imediatamente o envelope com as fotografias. Foram embora rapidamente, muito curiosos para saber o que iriam encontrar ali.
Chegaram à Glorieta de Espana para sentar-se em um dos bancos de pedra, ao redor do qual se concentravam as pombas e também rastros de seus excrementos. Sem mais demora, Leonardo Cardenas pegou o envelope e dali tirou os instantâneos. Depois de separar alguns em que se via os contrafortes da capela dos Velez, incluindo as correntes e os pilares, encontrou as que procurava.
A imagem não estava muito nítida, pois, embora a objetiva tivesse sido introduzida no buraco, ainda apareciam as barras de forma nebulosa. Mas houve algo que eles perceberam imediatamente — vários contrafortes, encravados no muro descendente, que se precipitavam na obscuridade de um inferno impenetrável. O que mais chamou a atenção, porém, foi ver as iniciais do pedreiro gravadas na pedra, cerca de um metro abaixo da base. Mais uma vez, Iacobus de Cartago os guiava até o lugar onde se escondia o segredo mais bem guardado da Terra.
- Boa tarde, senhorita... Eu poderia falar com o tabelião?
—A jovem que estava atrás do balcão observou o recém-chegado. Era um homem de uns sessenta anos de idade, atraente, asseado e muito bem vestido. Apesar de seu impecável aspecto, ela era obrigada a seguir o protocolo; portanto fez a pergunta cabível nestes casos:
—O senhor tem encontro agendado com Dom Severo? Ou falou antes, por telefone, com alguns dos escreventes?
Sholomo negou com a cabeça, quase se sentindo culpado por não poder oferecer a ela outro tipo de resposta.
—O motivo de minha visita é pessoal. Somos velhos amigos, e há anos não o vejo.
Esperou que a moça resolvesse a situação, mas o rosto dela continuava sem expressão. Na verdade, a jovem estava de mau humor, por estar trabalhando num sábado à tarde.
—Por favor, a senhorita poderia ser tão amável a ponto de avisado que Sholomo está aqui... — insistiu com tamanha doçura na voz, que ela não conseguiu negar.
—Está bem... espere um momento.
Pegou o telefone e, sussurrando, trocou algumas palavras com seu chefe. Depois de alguns segundos, onde antes havia receio, agora floresciam as atenções. Ela pediu desculpas, antes de levantar de sua cadeira para acompanhá-lo pessoalmente ao escritório do tabelião, o qual teve de protelar a assinatura da compra e venda de uns terrenos urbanísticos só para atendê-lo.
Depois de se despedir com uma cordialidade melosa, a jovem regressou a seu posto de trabalho. Sholomo entrou no escritório apertando a mão de seu velho amigo de uma forma bastante incomum, em que os gestos se sucediam como se fossem parte de um código telegráfico.
—Pressinto que você tem algo importante para me dizer. Do contrário, não me teria feito vir tão rápido.
Dito isto, Sholomo sentou-se diante da mesa daquele que ele chamava de Fídias, irmão franco-maçom de primeiro nível, embora não integrante do Conselho dos Sete.
—E é isso mesmo, e eu não creio que isso vá agradá-lo... — o tabelião parecia tenso. — Nossa assassina de aluguel trapaceou.
Desde que havia se encontrado com ela na Praça Cardeal Belluga, dias atrás, o Mestre dos Mestres resolvera enviar vários de seus homens para seguir os passos de Lilith, averiguando se ela cumpria corretamente as exigências do contrato. O certo é que, depois de conhecê-la pessoalmente, houve algo em seu caráter que não o convenceu plenamente. Depois disso, acreditou que melhor seria mantê-la sob vigilância até que finalizasse o trabalho.
—Explique-se — Sholomo demonstrou certo interesse pelo que acabava de ouvir.
—Na manhã seguinte, ela foi a uma copiadora madrilenha, situada nas cercanias do complexo universitário — disse em voz baixa.
—Os que a seguiram, irmãos de toda confiança, asseguram que ela levava consigo um pergaminho de vários séculos de antiguidade. Fez uma cópia, que, em seguida a enviou por fax. Quando foi embora, nossos homens interrogaram a balconista, fazendo-se passar por agentes da polícia. A moça, sem desconfiar, aceitou ajudá-los, dizendo-lhes que havia enviado a mensagem para um número de Berlim...
—Sholomo sentiu que o chão se abria debaixo de seus pés. Se era o que imaginava, podia chegar a ser catastrófico. Notou um estranho formigar em seus lábios, apertados.
—Sei como você se sente — acrescentou Fídias diante do silêncio do Mestre dos Mestres. — Eu também pensei nas conseqüências que podem advir do oportunismo desta moleca... — franziu o nariz. — Agora, o importante é recuperar o manuscrito, antes que caia em mãos alheias, e averiguar a pessoa para a qual foi enviado, de maneira a corrigir o problema rapidamente.
—Deus do céu! Como pudemos ser tão burros? — recriminou-se Sholomo, recordando-se das palavras de Balkis depois da reunião realizada na fortaleza dos Velez-Blanco. Nós mesmos atiçamos sua curiosidade, ao converter o manuscrito de Iacobus em uma arma de poder.
—Qualquer pessoa perceberia quão importante devia ser aquilo, a ponto de condenar um homem à morte... Fídias fez uma careta. Como todos nós, porém, eu imaginei que profissionais desse porte só se importariam em fazer bem o trabalho e cobrar seus honorários.
O Mestre dos Mestres concordou duas vezes.
—Esse foi o nosso erro. Abaixamos a guarda — acrescentou pesaroso, com o rosto contraído pela cólera que o invadia.
—Não há nada que não possamos corrigir.
—Você tem razão, e é isso que faremos, tão logo ela termine seu trabalho em Madri... — reconheceu, internamente, que eles eram suficientemente capacitados para solucionar qualquer intercorrência. — Porém, como você bem observou, precisamos saber o nome da pessoa que é sua cúmplice. É melhor que você se encarregue pessoalmente de averiguar. Telefone para nossos irmãos de lá, para que nos dêem mais detalhes a respeito.
—E o que fazemos com Lilith?
—Deixe por minha conta. Penso que vou fazer pressão contra essa bastarda.
O tabelião limitou-se a concordar. Não quis ser indiscreto fazendo mais perguntas.
Depois, eles se despediram com um novo aperto de mãos. Sholomo saiu do escritório e foi até a recepção. Agradeceu à jovem secretária pelo incômodo, ao que ela respondeu com uma dessas frases de cortesia que convidam você a voltar quando quiser. Cabisbaixo e pensativo, ele procurou o anonimato, saindo à rua para misturar-se aos transeuntes que circulavam por ali.
Depois de um curto passeio, chegou até o lugar onde tinha estacionado o carro. Ao entrar, pegou o computador portátil do interior do porta-luvas. Abriu-o cuidadosamente, sem deixar de pensar nas palavras do irmão Fídias. Em segundos estava conectado à Internet.
Entrou na página da Corpsson. Imediatamente apareceu na tela o espaço virtual da empresa de segurança e escoltas, com sede em São Paulo, que era chamada de "A Cidade que não pode parar". Apertou o ícone de contato. Tinha de enviar suas queixas à Agência. Eles se encarregariam de resolver aquele incidente tão desagradável.
CAPÍTULO 17
Mercedes entrou em seu apartamento, depois de acender as luzes do vestíbulo. Com um gesto preguiçoso, tirou o casaco, pendurando-o no cabide junto à porta. Em seguida, foi até a sala, abrindo o zíper da bolsa para pegar um cigarro. Acendeu-o, tão logo sentou no sofá. Suas mãos delgadas alcançaram um cinzeiro sobre a mesa. De maneira instintiva, procurou o controle remoto entre as almofadas que adornavam a chase longue. Ligou o interruptor e o espírito da televisão ingressou em seu lar, como no de milhões de espectadores, naquela hora da noite, apoderando-se de seus pensamentos.
Apesar da invasão das imagens na tela, usada justamente para distanciá-la de seus problemas, Melele não pôde evitar a lembrança de Colmenares e dos pragmáticos conselhos que lhe deu, novamente, naquela mesma tarde. O advogado, que estivera repassando com ela os últimos detalhes para a realização do leilão da próxima segunda-feira, não abdicou de sua obrigação: voltou a adverti-la de que estava violando a lei e que poderia ter problemas, caso mais alguém morresse durante a investigação que ela solicitara, de maneira clandestina. Podia ser até mesmo o caso de Leonardo Cardenas. Ela, no entanto, nem prestou atenção às palavras dele, porque tinha plena confiança em seu cúmplice e também na forma como ele estava cuidando do assunto. Mais ainda: apostou quinhentos euros, certa de que em menos de uma semana teria sobre sua mesa os nomes dos assassinos de Jorge. Era um pressentimento.
Tratou de esquecer tudo, acompanhando uma reportagem sobre a prostituição e os bandos de proxenetas que se multiplicavam por toda a Espanha, graças à pobreza e à imigração.
Depois, aproveitando um intervalo comercial, foi até o banheiro e abriu a torneira de água quente da ducha. Tirou as calças compridas e a blusa, livrando-se, em seguida, da roupa íntima. Com uma timidez típica de colegial, abriu a porta do box de vidro para receber aquela chuva tépida, que escorria placidamente sobre sua pele, suscetível ao primeiro contato.
Esfregou o corpo coberto de espuma, até que, pouco a pouco, foi se livrando do cansaço e do estresse que, como sempre, lhe provocavam os eventos preliminares a um leilão. Precisava esquecer de tudo, estacionar aquela vida atribulada e entregar-se à rotina de uns dias de ócio, com direito à preguiça mental. Pensou em tirar umas férias, tal como Nicolas havia sugerido na tarde do funeral. Iria a Paris, visitar seus irmãos e amigos. Passaria uma semana inesquecível, distanciada dos problemas que tanto lhe pesavam atualmente. Era sua única saída e talvez a melhor forma de escapar da presença anônima que, a todo momento, parecia acompanhá-la, como uma sombra implacável.
Encharcada, saiu do banho procurando, às cegas, uma toalha para se enxugar. Enrolou-a, depois, na cabeça, mantendo os cabelos presos. Vestiu o roupão e, assim que colocou as pantufas, regressou ao sofá. Começava a se sentir confortável.
O programa acabara e agora retransmitiam uma partida de futebol, de Budapeste. Mudou de canal. Dois atraentes apresentadores entrevistavam a ex-mulher de um toureiro famoso, um pertencente à imprensa rosada e, outro, ao mundo dos deslumbrados. Aquilo prometia ser tão chato que, talvez, com um pouco de sorte, ela até poderia economizar os soníferos. Bastava ouvi-los contar como vendiam sua vida por dinheiro, para adormecer. Como sempre.
Para evitar que isso acontecesse, preparou um uísque com gelo e acendeu outro cigarro. Então, colocou os óculos para ver de perto e folheou uma revista de conteúdo estritamente feminino. Receitas, culinária, moda, horóscopo, conselhos sentimentais e uma infinidade de temas inúteis passaram diante de seus olhos, sem que prestasse muita atenção. O certo é que estava cansada e precisava dormir. Apagou o televisor e largou a revista. Esvaziou de um só gole o conteúdo do copo, que levou à cozinha, para deixar na pia.
Voltou ao banheiro para pegar suas pílulas. Postou-se à frente do espelho, abrindo a porta do móvel onde costumava guardar os soníferos. Depois de deixar de lado a pasta de dentes e a loção demaquilante, tirou duas enormes drágeas de um jarro de cristal e as colocou na boca. Sem demora, encheu um copo de água e bebeu um pouco, flexionando a cabeça para trás decididamente, num gesto que ajudava a tragar o remédio. Concluindo o ritual de todas as noites, fechou o móvel. Foi quando descobriu, atrás dela e refletida no espelho, a figura de uma jovem inteiramente vestida de preto, que a fitava.
— Guten abend, liebe! — disse a intrusa, com certa ironia.
Não teve tempo de gritar. Mãos fortes a renderam, segurando sua boca e pescoço, ao mesmo tempo em que sentiu o cheiro penetrante do clorofórmio queimando sua língua e garganta. A última coisa que pensou, antes de desmaiar, foi que despertaria no inferno. Seu regresso à consciência, porém, foi tão desagradável, que quase preferiu estar morta.
Primeiro, sentiu náuseas e vertigem, devido aos efeitos secundários do clorofórmio, mal-estar a que se somou uma incipiente dor de cabeça, mais intensa nas têmporas. Quando seus olhos se adaptaram à realidade, ela descobriu que estava amarrada a uma cadeira, com as mãos para trás e as pernas muito juntas. Havia um lenço em sua boca, grudada por uma larga fita adesiva, que tomava grande parte do seu rosto. Mal podia respirar. Mais ainda: estava quase vomitando e temia por sua vida, caso começasse a golfar, porque não havia por onde expelir o conteúdo do estômago. Assim, provavelmente acabaria se afogando ao regurgitar.
Tratou de dominar-se, de pôr em ordem seus erráticos pensamentos e avaliar a situação. Estava no quarto de hóspedes de seu luxuoso apartamento, em frente à janela aberta que dava para a Gran Via madrilenha. Fez um tremendo esforço para olhar para ambos os lados, a fim de saber quem era aquela jovem que quase a matara de susto, mas não encontrou ninguém no aposento. De onde estava, podia ver as luzes dos edifícios em frente e parte da ampla avenida. Escutou o murmúrio das pessoas e o ruído dos automóveis que se esforçavam por safar-se dos freqüentes congestionamentos que se sucediam no centro da cidade. Então, sentiu um calafrio mortal percorrendo sua espinha: se fosse torturada, ninguém escutaria seus desesperados gritos de socorro. Imaginou o pior, certa de que a assaltante pertencia ao grupo de assassinos da instituição Os Filhos da Viúva. Se fosse isso mesmo, qualquer súplica seria inútil. Nada do que dissesse a salvaria de acabar com a língua na latrina. Imaginou-a navegando pelo encanamento de descarga.
Começou a forçar as cordas, tentando livrar-se — faria qualquer coisa, menos permanecer sentada esperando que fossem sacrificá-la —, mas só conseguiu mesmo esfolar a pele ao redor dos pulsos. Parou o que estava fazendo quando, de soslaio, viu a jovem entrar no quarto. Reprimiu seu desejo de escapar por medo de represálias.
A desconhecida postou-se diante dela, observando-a em silêncio. Então, aproximou-se para arrancar a fita adesiva de seu rosto com um violento puxão. Mercedes engoliu um grito de dor sob o lenço amarrado que imobilizava sua boca, mas se sentiu melhor quando a agressora dignou-se a tirá-lo para que pudesse respirar sem tanta dificuldade.
Lilith apoiou o pé esquerdo sobre as coxas finas da refém, tirando uma faca de caça que estava sob sua calça jeans. Aproximou-se do pescoço da diretora da Hiperión, que ofegava, vítima do nervosismo.
—Se você está pensando em gritar ou me trapacear, eu lhe atravesso a garganta — não duvidou de que a moça falasse sério. — A única coisa que eu quero de você é informação. Depois irei embora deixando que você continue viva... Fui clara?
Mercedes concordou com a cabeça, incapaz de pronunciar uma só palavra por causa do terror que sentia naquele instante.
—Quantas pessoas sabem da existência do manuscrito? — perguntou a jovem.
Melele pensou muito bem antes de responder. Se mentisse e a moça soubesse a verdade, a degolaria sem pensar duas vezes. Provavelmente era uma pergunta ardilosa. Estava certa de que ela sabia da existência dos e-mails e de que um companheiro de trabalho também recebera uma cópia do criptograma. Caso contrário, não estaria ali em sua casa. Entretanto, era bastante improvável que soubesse a conversa que tivera com Nicolas. Decidiu arriscar-se em benefício dele.
—Somente duas... — respondeu, sem medo das conseqüências. — Somos dois, eu e um de meus empregados, amigo da pessoa que você assassinou.
Teve um acesso de raiva ao recordar a trágica morte de seu amante. Lilith mal prestou atenção no tom soberbo da contestação.
—Preciso do nome dessa pessoa e, claro, saber onde mora. Lilith aproximou seu rosto ao da diretora, até que seus lábios roçassem o lóbulo de sua orelha. Aquela situação a excitou tanto, que, sem perceber, sua mão foi apertando cada vez mais o pescoço da vítima. Mercedes teve de responder diante de tal exigência. Se tardasse a falar poderia ter sérios problemas.
—Chama-se Leonardo Cárdenas... e vive em um apartamento na Rua Conde Romanones... — tremia ao falar. — Eu não sei o número do edifício nem o andar. De qualquer forma, agora ele não se encontra em Madri.
—Onde ele está? — perguntou a agressora, puxando os cabelos dela para trás com força, para levantar o pescoço. A faca começou a romper a carne e um fiozinho de sangue escorreu pela garganta de Mercedes.
A executiva sentiu que a angústia oprimia sua voz, fazendo com que as palavras surgissem de forma aleatória e contida. Estava tão assustada, que mal podia articular a voz, mas se esforçou para satisfazer aquela louca. Precisava ganhar tempo para pensar, para continuar viva.
—Está em Múrcia... — sussurrou. — Passará uns dias de folga com sua família.
—Mentira! — esbravejou a assassina. — Quero que me diga a verdade! — Exigiu furiosa.
Melele não pôde evitar a pressão e sentiu o esfíncter abrir: empapou de urina o roupão e as coxas. Era a primeira vez, desde o fim de sua infância, que lhe acontecia algo semelhante.
A confusão, de princípio, deu lugar ao terror. Compreendeu, então, que teria de ser sincera contando o que sabia sobre o manuscrito. Caso contrário, acabaria degolada nas mãos de uma histérica, cujo principal interesse parecia estar concentrado em seu funcionário. Melhor ainda, pensou, se o envolvesse no assunto além da conta, a mulher se esqueceria dela e iria seguir os passos do bibliotecário. Se assim fosse, ainda teria uma oportunidade de sair com vida daquele inferno.
—Escute! — eu não sei nada do que aqueles dois tinham nas mãos — mentiu deliberadamente, movida pelo medo. — Jorge e ele analisavam um códice medieval criptografado que compraram em Toledo, mas nunca me disseram do que se tratava. Leo está em Múrcia procurando um tal livro nas cercanias da catedral. É a única coisa que eu sei, juro!
Então começou a chorar, dominada pela tensão a que estava submetida.
—E o que tem de tão especial esse livro?
Lilith parou de pressioná-la. Mudou de tática, ao perceber que ela estava disposta a colaborar. Precisava transmitir confiança, se quisesse obter dela mais alguma informação.
—Segundo me contaram, explicava como viajar até um país longínquo, onde teriam de procurar umas colunas... — uma vez que Lilith havia afastado a faca que rasgava sua garganta, ela pôde respirar com tranqüilidade e dizer o que a jovem queria ouvir. — Ali, em algum tipo de gruta ou subterrâneo, Os Filhos da Viúva ocultam um grande segredo... parece ser a maneira de estabelecer contato direto com Deus... — murmurou, nervosa. — Eu lhes disse que estavam loucos, mas eles nem levaram em conta minha opinião.
—E esse tal Leonardo... — pronunciou o nome com certo desdém, mas não acabou a frase. — Diga-me... Ele conta com a ajuda de outra pessoa?
—Em absoluto — apressou-se em desmentir a proprietária do apartamento. — Somente nós três estávamos inteirados do que dizia o manuscrito. E Jorge está morto.
—Você sabe onde está hospedado em Múrcia?
—Não me disse, porém, tenho um número de telefone. Ele me deu, para o caso de precisar entrar em contato com ele. Creio que é de um amigo dele, alguém que vive num povoado nas vizinhanças.
—Onde está anotado?
—Em minha bolsa — respondeu, sem vacilar.
Lilith foi buscá-la. Tão logo a alcançou, esvaziou o conteúdo sobre a cama. Além de algumas moedas e de vários recibos de caixa automático, encontrou um cartão da Hiperión, em cujo dorso estava escrito um número de telefone e o nome de Leonardo Cardenas. Era tudo o que precisava saber.
—Você o encontrou? — perguntou Mercedes, ansiosa, esperando, assim, que ela se fosse de uma vez e a deixasse em paz.
—Sim, aqui está.
E mostrou a ela, para que pudesse confirmar se era aquele mesmo.
—Exatamente... agora você pode ir! — instou para que a intrusa fosse embora do apartamento. — Você já tem o que veio buscar.
Mas a assassina voltou a colocar a faca sob seu queixo. Sorria como se estivesse entoando um hino à crueldade. Estava se divertindo como poucas vezes tivera a oportunidade ao longo de sua carreira letal. Aquela estúpida ainda não sabia com quem estava falando. Pensou que já era tempo de agradecer pela informação e, de passagem, fazer seu trabalho. Chegara o momento de silenciar as vozes.
Sem lhe dar tempo de raciocinar, levantou o cabo da faca até que o fio da lâmina penetrasse no interior da boca de sua vítima, sob o queixo. Mercedes, com os olhos esbugalhados pela surpresa, chacoalhou violentamente o corpo em um ato reflexo que se prolongou durante vários segundos. O sangue fluiu aos borbotões por seu pescoço e sua boca, escorrendo livremente pela garganta. Tentou respirar, mas a única coisa que saiu de seus lábios foi um agonizante suspiro, que indicava claramente a falta de ar. Então, para aliviar sua angústia, Lilith rasgou a base inferior de sua boca, para poder arrancar a língua. As pupilas da horrorizada vítima se dilataram em um desesperado sinal de dor, ao mesmo tempo em que seus músculos cediam irremediavelmente à flacidez da morte.
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