CAPÍTULO 21
Aalusão não dava lugar a dúvidas: os assassinos de Jorge haviam se proclamado os descendentes do arquiteto de Tiro e da rainha de Sabá, talvez os últimos guardiões de um conhecimento intimamente relacionado com a maçonaria e os antigos construtores de catedrais. Foi o que disse Riera a seus convidados.
—Vocês não podem esquecer que Hiram possuía um conhecimento transmitido de geração a geração, desde a época dos faraós — ele lhes disse. — Onde havia adquirido essa ciência? Esse era um segredo que ele costumava guardar para os mais elevados, na escada, e jamais permitiu que outros lhe fizessem perguntas a respeito.
—Por mais que tento compreender, cada vez mais tudo me parece mais confuso... — foi a sincera opinião de Leo. — Por um lado, temos o criptograma, a quadra de Nostradamus e a corrente da capela dos Velez. Por outro, umas colunas, o Templo de Salomão, o arquiteto de Tiro e Os Filhos da Viúva. Parece um tanto anacrônico comparar ambos os grupos... — respirou fundo. — Não lhes parece que deve existir uma relação que os una no tempo?
Cláudia ia dizer algo, mas seu tio se adiantou, novamente facilitando-lhe a resposta.
—Isso mesmo... entre ambos estão Gracus, as Uniões Comacinas, os templários e os construtores de catedrais.
—Gracus?! — inquiriu sua sobrinha, surpresa.
—Lamento... creio que devia começar pelo princípio...
O arquiteto reconheceu, em silêncio, sua falta de perspectiva.
—Vejamos... como eu poderia explicar isso a vocês? Segundo a obra Polycronicon e as Etimologias, de Santo Isidoro, Tubalcaim foi o pai de todas as artes dos metais. Conhecia como ninguém os mistérios da terra e comungava com as ciências mais obscuras. Sua irmã foi Naamah, que mais tarde tornou-se esposa de Noé. Tinha, também, dois meio-irmãos, Jabal e Jubal, fundadores da Geometria e da Música, respectivamente. Como sabiam que Deus ia acabar com os homens, graças aos comentários que Noé fizera a Naamah, pensaram escrever seus conhecimentos na pedra, com a finalidade de nunca serem esquecidos pelos futuros povoadores da Terra... — pigarreou um pouco, para continuar:
—Intuindo que o castigo lhes viria por meio do fogo e da água, decidiram escrever sua ciência em duas enormes colunas de pedra, para que sobrevivessem à catástrofe anunciada. Uma era revestida de mármore, que resiste ao fogo. A outra foi protegida por pedras-pomes, o único tipo de rocha que flutua na água. E ambas foram levan¬tadas no centro da cidade perdida de Enoque, que...
—... Enoque poderia ser a região de Tubalcaim, a que Iacobus assinala em seu manuscrito, como a cidade para onde devemos nos dirigir? — perguntou Leonardo, interrompendo o relato.
—Eu apostaria o que você quiser nisso — foi a categórica resposta de Riera.
Cláudia fez um gesto impaciente a seu companheiro, para que se mantivesse calado.
—Deixe que ele prossiga! — exclamou, e lhe deu uma amistosa cotovelada.
—Como eu ia dizendo... — continuou Salvador, com sua história antiqüíssima — depois do dilúvio, as colunas ficaram enterradas por causa do lodo que as águas arrastaram. Segundo reza a lenda maçônica, a cúspide de ambas permanece visível aos olhos dos homens, mas ocultas para sua inteligência.
—Não entendo como poderemos encontrar algo em uma cidade que já não existe — Leonardo voltou a opinar, sem considerar que a paciência de Salvador pudesse ter limites.
—Se você me deixar terminar, poderá compreender — recriminou-o o anfitrião, cordialmente. — Anos depois que Noé e seus descendentes voltaram a repovoar o mundo, houve um rei que foi capaz de reconhecer parte das inscrições desenhadas na parte mais alta das colunas. Esse monarca pós-diluviano foi Nemrod, o homem que dirigiu as obras da torre de Babel. Depois daquilo, a arte da construção reapareceu com força no Antigo Egito e na Mesopotâmia. Abraão recebeu de Deus esse maravilhoso conhecimento, que transmite a seu discípulo Euclides, um egípcio de origem grega. No Polycronicon diz-se que Pitágoras encontrou uma das colunas e que Hermes Trimegisto achou a outra, e que os dois ensinaram a seus alunos os mistérios que estavam escritos na rocha. Hiram foi o último guardião secreto das pedras, embora tenha confiado parte de seu saber aos mestres de obras que participaram da construção do Templo de Jerusalém. Um deles foi Gracus, que viajou para Roma levando consigo a ciência de seu mestre. Séculos mais tarde, os herdeiros de sua técnica ergueriam o Coliseu e outras obras de grande envergadura. Daí nasceram os mistérios de Baco, depois, as Uniões Comacinas... E o resto vocês já sabem.
—E sobre os templários? — perguntou Leonardo.
—Bom, eles encontraram a Arca da Aliança na abóbada subterrânea do Templo, onde Hiram lançou o triângulo de ouro com o nome de Deus. Dentro da Arca estavam as Tábuas da Lei ou, o que dá no mesmo, parte dos conhecimentos escritos por Tubalcaim e seus irmãos. Graças a esta ciência, os maçons puderam erguer as catedrais góticas, o que é igual à casa de Deus.
—Duvido que aprender história nos ajude a encontrar esses criminosos — opinou Cárdenas. — Precisamos de provas mais tangíveis, que nos ajudem a encontrar os assassinos de Mercedes e Balboa.
—Sei como deve se sentir, mas não posso fazer nada por vocês.
—Ainda é cedo para jogar a toalha — disse Cláudia, arqueando as sobrancelhas. — Deveríamos nos ater ao manuscrito de Iacobus e seguir suas indicações. Talvez ali esteja a maneira de encontrar o que procuramos.
—É preciso levar em conta que o segredo da construção está ligado à ciência do Grande Arquiteto — insistiu Riera, que cruzou as mãos. — Os maçons estão sujeitos a umas leis ancestrais absolutamente estritas, que os protegem da curiosidade devastadora dos profanos. Assim se manteve, sempre a salvo, o enigmático segredo que existe em torno da magia das pedras.
—Demasiado mistério para um homem que está ameaçado de morte. Depois dessa réplica fúnebre, Leonardo lançou o corpo à frente, para encher, novamente, seu copo de brandy.
—É óbvio que você não vai morrer — recriminou-o Cláudia. — Será impossível para eles nos localizar enquanto estivermos na casa de meu tio. E entrar aqui também não é tão fácil... não é? — seus olhos procuraram os de Riera.
—Não por acaso, o sistema de alarme me custou um dinheirão... — o arquiteto tratou de tranqüilizar seu convidado. — É a última palavra em matéria de segurança.
—Para nós, tem mais valor ainda!
A resposta de Leo, no plural, deixava implícito que não era só ele que corria risco de amanhecer degolado. Os três sabiam demais sobre Os Filhos da Viúva.
Cláudia se pôs em pé com aquela aura de bom humor que um dia enamorou Leonardo.
—Bom! É hora de comer! — exclamou, jovial. — Estou pensando em fazer uma paella que vai fazer vocês chuparem os dedos. Para isso é preciso que saiam lá fora, no jardim. Ali poderão continuar falando de templários e catedrais. Vamos! Fora!
Aquela nota discordante de energia positiva arrancou sorrisos dos homens que, levados pelo conselho, decidiram dar um passeio, aproveitando que fazia uma temperatura invejável no exterior. Seus pés os levaram até o caminho cercado por pedras vulcânicas. E dali, à fonte de mármore rosa, no centro da qual havia uma imagem do deus Mercúrio.
—Talvez pareça estúpido, mas continuo sem entender porque tanto mistério por um conhecimento que hoje em dia deveríamos valorizar como batido e insubstancial — disse Leonardo, cujo cérebro funcionava à velocidade vertiginosa. —Estamos no século XXI. Tudo é factível graças à ciência moderna e ao avanço tecnológico do homem. Dominamos, inclusive, o idioma de Deus, pois somos capazes de modificar a própria espécie, graças ao DNA.
—A engenharia espacial, a genética, a energia nuclear e o restante das últimas descobertas da ciência são o resultado da utilização das Artes Liberais — Riera estava disposto a defender, com capa e espada, os valores ancestrais. — Entretanto, você não conhece a impor¬tância do conhecimento que os maçons defendem.
—Isso é porque ninguém me explicou isso... — ele fez uma careta. — Mas estou certo de que você pensa em fazer isso agora mesmo.
Salvador sorriu, de maneira espontânea.
—Falar das Artes Liberais não vai ajudá-lo em nada, e menos ainda se você não sabe interpretar a relevância que isso tem para a comunicação direta de Deus com o homem.
—Digamos que tenho curiosidade...
—Está bem... mas depois não diga que sou eu que enche sua cabeça de histórias — advertiu, antes de mais nada. — Segundo o Manuscrito Cooke, que está guardado no Museu Britânico de Londres, a primeira das Artes Liberais é a Gramática, que ensina o homem a falar e escrever de forma correta. A segunda é a Retórica, com a qual ele aprende a falar com decoro e elegância. A terceira é a Dialética, que prepara o homem para que saiba distinguir entre o verdadeiro e o falso, e é a mãe da Filosofia. Então, vem a quarta ciência, a Aritmé¬tica, que ensina o homem a calcular e contar os números. A quinta, a mais importante de todas, é a ciência dos Grandes Mestres, a Geometria, capaz de educar o homem no sábio manejo dos limites, medidas e pesos do restante das artes. A sexta é a Música, que ensina ao ho¬mem as sete entonações e como transmiti-las com o canto e os vários instrumentos de corda, ar ou percussão. A última é a Astronomia, que aproxima o homem da ciência mais obscura e primitiva: o movimento do Sol, da Lua e dos demais corpos celestes... Quem dominava as sete ciências era digno de entrar no templo de Deus e preencher suas necessidades espirituais falando diretamente com Ele. A catedral é o símbolo do misticismo universal. Quem procura a proteção dos arcos sente em seu interior a magia que projeta a sabedoria do Grande Arquiteto e se alimenta dela.
—Iacobus fala da magia telúrica da pedra. Falamos da mesma coisa? — quis saber Leonardo.
—Você mesmo disse. A pedra, desde o momento em que é arrancada da terra, passa a ser um elemento divino para os maçons, algo assim como a hóstia consagrada que o sacerdote introduz na boca do cristão... — então, ele se deteve, fitando-o friamente. — Ouça, os pedreiros da era medieval amavam seu ofício acima de tudo e o dignificavam. Naquela época, o pior que podia acontecer a um deles era estragar uma das pedras destinadas a cobrir as paredes da catedral, de maneira que as obras tivessem que parar até que se pudesse cortar uma nova peça para substituí-la. A peça defeituosa era colocada em uma carreta e o pedreiro descuidado era vestido com uma capa de cor preta. Em seguida, o obrigavam a levar a pedra, em procissão, do lugar onde fora danificada até o cemitério ou ossário do templo. Uma vez ali, a pedra era enterrada com todas as honras que um ser humano podia receber, incluindo orações. Na seqüência, todos re¬gressavam à guilda para açoitar o causador daquela perda, diante de seus companheiros. E à noite, enquanto todos dormiam, o envergonhado pedreiro tinha de cortar e desbastar de novo uma pedra, que teria de encaixar perfeitamente no buraco ainda aberto, para que todos esquecessem o que ocorrera... — deteve-se um instante. — Você continua sem compreender até onde chegava a obsessão daqueles homens, para quem as rochas tinham um valor quase divino?
—Já estou começando a ter idéia.
Leonardo Cardenas teve de reconhecer que as normas da loja beiravam o fanatismo. Uma doutrina que amortalhava as pedras não podia condizer com o pensamento racional do homem, por mais que Salvador insistisse nisso. Acreditando saber o que se passava na cabeça dele, Riera lhe deu um conselho:
—Se o comportamento dos construtores de catedrais lhe parece extravagante, eu sugiro que você dê uma repassada no Livro dos Salmos. Os versículos vão surpreendê-lo, eu lhe asseguro.
Então, ouviram a voz de Cláudia chamando-os, da porta. Tinha uma garrafa de vinho na mão e reivindicava a habilidade de um homem para abri-la. Por mútuo acordo, eles decidiram regressar.
E o fizeram em silêncio, cada um deles absorto na profundidade de suas próprias reflexões.
Lilith seguiu para o encontro, depois de pegar um táxi em Espinardo. Chegou às quatro em ponto na porta do centro comercial, onde duas jovens vestidas de acordo com a moda a reconheceram de imediato, aproximando-se para cumprimentá-la. Apresentaram-se como Mônica — a que havia mantido a conversa por telefone — e Arantxa. Elogiaram seu bom gosto pela roupa de marca e de cor preta, antes de convidá-la para tomar um refresco na varanda do Zig-Zag.
Quando sentaram, Lilith as analisou em questão de segundos. Mônica, tal como ela mesma lhe adiantara, era uma incondicional usuária dos piercings. Tinha seis em uma orelha e quatro na outra, um na parte inferior do lábio, outro na língua, outro na narina direita, mais um no umbigo e, segundo testemunho dela mesma, um no bico do seio.
Arantxa, ao contrário, era uma jovem mais comum, talvez um pouco grunge. Sua timidez pareceu posada, razão pela qual ela intuiu que poderia haver uma mudança de características à medida que fosse conhecida mais a fundo.
—Nossa! Gostei demais desse seu paletó. Você lembra Trinity, personagem do filme Matrix. — Mônica ficou literalmente fascinada com o elegante modo de vestir de sua nova companheira de apartamento. — Você deve gastar os tubos para manter essa imagem.
Lilith usava calças de couro de uma famosa marca italiana, além de uma camisa justa, preta e de uma capa de gabardine de poliéster, da mesma cor e que chegava à altura de seus joelhos. A brancura de seu rosto, as pálpebras pintadas de um marrom-escuro e pesado e seu cabelo loiro platinado — cortado à navalha —, faziam da alemã uma criatura de pesadelo, tirada da mente doentia de Lautréamont. Estava disfarçada de sinistra.
—Dinheiro não é problema para mim — lhes disse, sem nenhum tipo de vaidade. — Meu pai é podre de rico. Enquanto eu estiver com vocês, não lhes faltará nada. Vocês têm a minha palavra.
Arantxa olhou sua amiga, alucinada ao ouvir aquela que seria sua fada madrinha de agora em diante. Lilith, muito mais calculista que suas amigas, imaginou que tentariam aproveitar-se daquela estúpida menina rica que acabavam de conhecer. E talvez teria sido assim mesmo, fosse outra a que estivesse sentada diante delas. Mas se tratava de uma jovem com uma grande carreira criminal, alguém para quem as pessoas eram joguetes que podia utilizar e destruir a seu bel-prazer.
Lilith passara os últimos anos assassinando homens importantes em todo o mundo. Levava uma grande, abismal vantagem psicológica sobre as outras duas.
Uma vez rompido o gelo com aquela avassaladora afirmação de solvência, tanto Mônica quanto Arantxa se esfalfaram em agradá-la. Enquanto permaneceram na varanda do bar, convidaram-na a tomar várias cervejas, de maneira que partiram para uma conversa bem menos formal, em que o sexo, a música e as drogas se apresentaram como os passatempos favoritos pelos quais valia a pena viver.
Em pouco mais de uma hora, Lilith ficou sabendo que Mônica era filha de um advogado que tinha relações com as máfias dos países do leste europeu, e que sua mãe, uma neurocirurgia, costumava bancar os caprichos de um jovem gigolô em troca de bons momentos na cama; mas acrescentou que se tratava de um sem-vergonha, cujo único propósito era viver regiamente graças à generosidade de mulheres maduras.
Quanto a Arantxa, não ficava atrás. Pelo visto, era noiva de um jovem cuja família era das mais poderosas e respeitáveis de Múrcia. Não se viam nos dias de semana, já que o pretendente estudava na Universidade Católica San Antonio (UCAM3), e quando o faziam era para irem ao cinema ou à missa aos domingos.
Arantxa trocava sua original indumentária por elegantes vestidos que davam credibilidade a seu papel de uma patricinha. Mas, no fundo, era tudo uma farsa, uma encenação a que se submetia para satisfazer ambas as famílias até o final do curso. Arantxa era muito mais cerebral do que todos eles, de maneira que satisfazia suas necessidades — que eram demasiadas, segundo Mônica — chantageando um dos catedráticos da universidade, com quem havia mantido relações sexuais. No apartamento, guardava provas fidedignas de seus encontros, fotografias e roupas íntimas que a qualquer instante poderia enviar pelo correio à esposa dele, como, por exemplo, umas calcinhas impregnadas de sêmen, que serviriam para demonstrar — judicialmente, se fosse preciso —, que sua história era verdadeira.
A prática daquela extorsão lhe proporcionava uns 300 euros por mês, dinheiro que ela esbanjava assim que caía em suas mãos.
Depois daquelas declarações, Lilith se sentiu mais tranqüila. O descaramento com que se expressavam corroborou suas suspeitas. Na realidade, eram muito mais idiotas do que ela pensara a princípio.
Logo, elas decidiram mostrar o apartamento à sua nova companheira. Pagaram a conta no balcão e se dirigiram à saída passando pelas lojas do centro comercial, onde se detiveram em cada uma das vitrines para ver as ofertas. Uma vez na Avenida Juan Carlos I, Mônica lhes recordou que teriam de ir andando até a próxima parada de ônibus. Lilith disse não estar preparada para o transporte urbano, de maneira que se plantou no meio-fio para fazer sinal a um táxi livre que passava por ali. Não se importou em pagar pela corrida.
Finalmente, chegaram ao apartamento, situado na Avenida de Espinardo. Tinha três quartos, com vistas para o jornal La Opinión de Múrcia e a Biblioteca Regional de Idiomas. Depois que lhe mostraram seu dormitório e o resto da casa, Lilith de desculpou dizendo que precisava arrumar suas coisas no armário antes de tomar banho.
Entregou a Mônica duzentos e quarenta euros adiantados pelo primeiro mês de aluguel, recebeu o recibo e uma cópia das chaves e se fechou no quarto que lhe haviam designado, disposta a organizar a busca por Leonardo Cardenas.
A única coisa de que precisava para encontrá-lo era um guia telefônico e um pouco de paciência.
CAPÍTULO 22
Naquela mesma noite, Leonardo se recolheu para dormir mais cedo. Estava certo de que Cláudia precisava conversar abertamente com seu tio sobre assuntos pessoais, relacionados à família, e não achou conveniente se meter no que não era de seu interesse. Por outro lado, queria dar uma olhada no Livro dos Salmos, como Riera havia aconselhado com tanta insistência. E, para isso, nada melhor do que a tranqüilidade do quarto, onde o silêncio é mais profundo quando se sabe escolher o livro mais adequado, neste caso, a Bíblia.
Sentado na cama, com o travesseiro na parte de cima das costas, para apoiar a cabeça, respirou profundamente antes de abrir, pela metade, o texto mais lido de todos os tempos. Enquanto procurava o Livro dos Salmos, tentou aprofundar-se no sentido das palavras de Salvador. Nem sequer lhe dissera que isso era tão importante, que podia ser encontrado entre os escritos de Salomão. Não tinha, também, um ponto de referência para guiar-se. Reconheceu que não seria fácil, e que provavelmente teria que repassar várias vezes antes de encontrar um nexo com os construtores de catedrais.
Leu por alguns minutos, até que chegou ao Salmo número 5. Um versículo chamou sua atenção, precisamente o 10. Tirou o lápis do bolso da camisa do pijama. Sublinhou a frase:
"Sepulcro aberto em sua garganta, melosa, a sua língua se move."
Pensou que devia tratar-se de uma casualidade, uma metáfora de Salomão, talvez sem maior importância, mas não descartou a possibilidade de ter encontrado a origem da mutilação de Balboa e Mercedes. Pouco depois lhe veio a resposta, quando chegou ao Salmo número 12. Assim dizia o versículo 4:
"Arranque Javé todo lábio trapaceiro, a língua que profere bravatas."
Sublinhou igualmente.
Na esperança de encontrar alguma outra frase conclusiva, decidiu terminar o que havia começado.
Depois de uma hora de intensa leitura, fez uma pausa. Nada mais encontrou que tivesse a ver com línguas arrancadas. No entanto, um detalhe despertou seu interesse, justamente pelo fato de Deus ser comparado, diversas vezes, com uma rocha ou uma fortaleza. Encontrou frases tão reveladoras como: "Seja para mim uma rocha de refúgio, fortaleza que me salve; pois és minha rocha, minha fortaleza... Javé, minha rocha e meu baluarte, meu salvador, meu Deus... Quem é Rocha, senão só nosso Deus...? Viva Javé! Bendita seja minha rocha! Só ele, minha rocha, minha salvação, minha cidadela, meu consolo, não hei de vacilar... Conduza-me à Rocha que se levanta longe de mim; pois tu és meu refúgio...! Venham, cantemos e louvemos a Javé, aclamemos a Rocha de nossa salvação...! Bendito seja Javé, minha Rocha, que adestra minhas mãos para o combate..."
E assim, uma infinidade de expressões semelhantes, que comparavam a sabedoria de Deus à simplicidade de uma pedra, rocha lavrada como as que eram utilizadas para a construção das catedrais. Refletiu a respeito, chegando à conclusão de que esse era o motivo pelo qual Riera havia insistido com ele para ler os Salmos. Ali, entre frases alegóricas e de louvor, se escondia parte das práticas maçônicas atribuídas a Salomão, que pode ter tido contato com a ciência do arquiteto de Tiro, durante os anos em que este permaneceu em
Jerusalém. Sendo assim, era imprescindível continuar lendo o resto dos livros escritos pelo rei dos judeus, ao menos até que o cansaço lhe abrisse as portas do sono. Algo improvável, se levasse em conta que lhe custava superar o assassinato de Mercedes e o fato de que poderia converter-se na próxima vítima.
O livro seguinte era o dos Provérbios. Esteve folheando por alto, detendo-se a analisar somente os versos que acreditou ser de interesse. Pareceu, a ele, bem mais ameno que os Salmos; pelo menos este tinha um apelo ao senso comum e à boa índole do ser humano. Salomão tachava os palermas de malvados, glorificando o homem que, por força da erudição, alcançava a divindade. Era um compêndio de elogios destinados a enaltecer a Sabedoria, esse conhecimento místico que, segundo os próprios teólogos, é, desde o princípio dos tempos, a colaboradora de Deus, uma ciência que existia muito antes que a poeira primordial do Universo.
Continuou com a leitura, inebriado pela graça sutil das palavras. Mas, ao terminar o capítulo 10, leu um versículo que o deixou arrepiado:
"A boca do justo dá frutos de sabedoria, a língua perversa será cortada."
Atento, procurou encontrar novos indícios que lhe permitissem compreender os motivos daquela obstinada determinação. E não foi difícil. Encontrou outro sinal, que indicava o caminho a seguir, nos primeiros versículos do capítulo 15:
"A língua dos sábios é agradável à ciência, a boca dos insensatos dissemina estupidez... Língua suave, árvore de vida, língua perversa rompe a alma."
Seus olhos devoravam as letras, apesar da luz fraca proporcionada pela pequena lâmpada do criado-mudo. Não tardou em achar algo realmente incrível, duas novas frases que dariam o toque final ao bolo:
"Morte e vida estão no poder da língua, o que a ama comerá seu fruto... A casa dos soberbos a destrua Javé, e mantenha em pé os limites da Viúva."
A palavra "Viúva" estava sublinhada. Sentiu calafrios. Fechou a Bíblia, levado pelo temor infundado de estar violando uma das antigas leis de Deus. Pelo visto, o juramento dos maçons estava ligado ao pensamento salomônico de que a Sabedoria era um tesouro a preservar do desatino dos homens. Mas qual era a natureza daquele conhecimento, que obrigava os membros da maçonaria a cometer um ato tão atroz como cortar a língua de um companheiro? A resposta estava nas pedras, no seu entender. Aí estava o motivo de Salomão comparar o poder de Javé com uma simples rocha.
Então, lembrou-se da história que lhes contara Riera a respeito dos templários e da Arca da Aliança. Segundo ele, o Testemunho de Deus não era outra coisa senão uma ciência baseada na geometria e na divina proporção. Conhecia por alto a importância dos números áureos pi e phi, assim como a famosa sucessão de Fibonacci . Aquelas cifras estavam ligadas à lei natural das coisas, à ordem cósmica e à quadratura do círculo. Sabia que tais números haviam sido empregados por aqueles que ergueram a pirâmide de Quéops, o Parternon, as colunas da Catedral de Notre-Dame; também por Leonardo da Vinci, Le Corbusier e mesmo Dali, que estampou essas propriedades mágicas em sua grande obra Leda Cósmica. E todos o utilizaram por ser um gerador de harmonia. Suas conclusões: "Se for certo que Deus governa o Universo graças a um sistema numérico de relações proporcionais e que esse e muitos outros conhecimentos escondem o segredo da vida, oculto cuidadosamente no interior da Arca, a pessoa que conseguir recuperá-la poderia ver através dos olhos do Criador e compreender o significado de Sua obra."
Cárdenas jamais havia sido um católico praticante. Para ele, a Bíblia era um livro dos mais entediantes e só podia ser louco quem conseguisse lê-lo do princípio ao fim. Agora, depois de rastrear os enigmáticos versículos de Salomão, lhe parecia uma obra-prima que todo bibliófilo deveria ler, ainda que fosse por partes.
Riera conhecia bem sua mensagem, talvez até demais... Notava-se que ele a havia estudado a fundo. As investigações dele seguiam um obscuro propósito vinculado à busca da Arca, segundo reconheceu.
De fato, parecia ter memorizado grande parte dos versículos da Bíblia, indicando que levava a sério o que fazia. Um homem que deixara seu brilhante trabalho em Barcelona para encerrar-se no último rincão da Espanha devia ter muita clareza sobre as suas prioridades.
Naquela noite, Leonardo sonhou com uma catedral, cujas portas eram guardadas por um São Pedro que era a própria imagem de Riera. Em sua mão direita, trazia várias línguas de gado, das quais ainda gotejava sangue, e, na esquerda, um enorme compasso utilizado na Idade Média pelos mestres de obra. Uma mulher com um antigo colete de cor púrpura e manto azul-turquesa — a Sabedoria —, que estava sentada nas escadarias da entrada, lia em voz alta uma passagem da Bíblia que falava do Templo de Salomão. Sem importar-se com a presença de ambos, Leonardo cruzou o arco de entrada, penetrando em seu interior. Dentro da catedral, um grupo de encapuzados formava um círculo ao redor de uma escultura da Virgem Maria, de tamanho natural. Murmuravam em voz baixa suas orações. Quando se aproximou, o grupo foi se afastando para deixá-lo passar. Diante da base da imagem, viu Cláudia vestida como uma rainha. Estava sentada num trono dourado, onde se viam desenhos cabalísticos bastante estranhos e uma escritura semelhante à dos hieróglifos coptas do Antigo Egito.
Tinha os braços apoiados no que pareciam ser as asas de anjos, cujas pontas se tocavam, lá no alto. Seus nomes estavam inscritos na frente: Xakim e Boaz. Então, ouviu uma melodia inigualável, cujo eco ressoou em cada um dos cantos do Templo. Era uma música que falava aos sentidos, que ia diretamente ao coração e preenchia com uma deliciosa graça. E foi aí que escutou uma voz metálica, estrondosa, falando em um idioma incompreensível que ele relacionou imediatamente com a linguagem dos anjos.
Estava prestes a compreender o significado daquela mensagem, quando o chão cedeu sob seus pés e ele caiu no vazio. A partir daí, o espírito de Leo desapareceu na escuridão mais absoluta. Seu corpo se desintegrou em mil pequenos pedaços de sensações diferentes. Era um pensamento viajando através da eternidade.
Deixou de observar a gente que ia de um lado ao outro, para se concentrar no computador portátil, que descansava sobre seus joelhos, listava sentado em um dos bancos do aeroporto de Prat, junto com sua bagagem. Acabava de desembarcar em Barcelona, e seu único pensamento era dar um jeito de encontrar o quanto antes sua vítima, executá-la e regressar a Toronto, sua cidade natal. Não lhe parecia complicado. Conhecia o modo de operar de Lilith desde que trabalharam juntos em Brighton, havia uns dois anos. Ambos foram contratados para executar três jornalistas da BBC que investigavam um caso de pederastia, em que supostamente estavam implicados um lorde do Parlamento e outros vários personagens que faziam parte do panorama político britânico.
Para localizar o paradeiro dela, na Espanha, ele contava com equipamentos de alta tecnologia, que a Agência colocava à sua disposição. Altar olhou para ambos os lados, antes de introduzir a chave de busca no GPS, que estava acoplado à seu computador. Em poucos segundos, apareceu na tela uma luz intermitente, que se deslocava por uma das ruas centrais de uma capital de província cujo nome lhe era indiferente: Múrcia. Não pôde evitar o sorriso. Era como espionar uma formiga em seu formigueiro, ou como observar bacilos de um vírus através de um microscópio antes de sofrer os efeitos de uma vacina que haveria de acabar com seu endêmico reinado.
Lilith, tal como todos os assassinos da Agência, ignorava que haviam lhe implantado um chip — do tamanho de uma semente de gergelim — embaixo da pele do couro cabeludo, artifício criado por um antigo engenheiro da NASA, a agência espacial americana, e capaz de burlar as medidas de segurança de qualquer aeroporto. Para levar a cabo esse tipo de operação, que às vezes implicava um grande risco ao receptor, convidava-se o sicário para a uma festa pessoal de boas-vindas, nos escritórios da empresa, em São Paulo. Depois de acolhê-lo com elogios e de lhe oferecer remunerações milionárias, quando a sucessão de brindes fazia com que o novo funcionário se sentisse em casa, o presidente em exercício colocava à sua disposição uma suíte no último andar do edifício, dando-lhe o privilégio de escolher entre passar a noite à sós ou prosseguir em boa companhia. Uma vez que a droga previamente colocada em sua bebida fizesse efeito, o homenageado era conduzido com rapidez a uma pequena sala cirúrgica no sótão, onde um médico experiente procedia ao implante do chip, em tempo recorde. No dia seguinte, se a pessoa sentisse algum mal-estar, naturalmente o atribuía à ressaca posterior a uma noite de excessos.
Altar fechou seu computador e levantou.
Continuava sorrindo, ao deixar o aeroporto. A viagem até Múrcia seria feita de trem, ainda que isso significasse perder algumas horas. Odiava voar, aceitando a provação apenas quando necessário.
Naquele mesmo instante, em Madri, um funcionário da agência dos correios entrava no edifício onde se localizava o apartamento de Leonardo Cárdenas. Procurou a correspondência sem muito afã, enfiando parte de sua cabeça na enorme bolsa de couro bege que pendia de seus ombros. Tirou um pacote de envelopes, presos por um elástico, o qual retirou para, em seguida, enrolar no pulso, como se fosse uma pulseira. Introduziu cada uma das cartas nas caixas de correio adequadas, depois de ler previamente o nome dos destinatários.
Ao chegar ao compartimento de Leonardo, porém, olhou com curiosidade o remetente da carta que tinha na mão. Causou-lhe surpresa encontrar uma que viesse do estrangeiro, e, mais ainda, que procedesse de um país tão misterioso e perigoso como o Egito. Reconheceu pelo selo postal.
Ficou pensando, enquanto saía do prédio, porque não levava sua esposa a um desses países exóticos, cuja propaganda vinha minúscula das agências de viagens, para que tivessem, juntos, uns maravilhosos dias de férias. Depois de vinte e três anos de casamento — pensou — bem que mereciam isso.
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