2 -- O DISCURSO MÉDICO HERDADO DE FREUD
O discurso psicanalítico contribuiu muito para tornar a mãe o personagem central da família.
Depois de ter descoberto a existência do inconsciente e mostrado que ele se constituía durante a infância, e mesmo da primeira infância, os psicanalistas adquiriram o hábito de interrogar a mãe, e mesmo de questioná-la, à menor perturbação psíquica da criança. Embora a psicanálise jamais tenha afirmado que a mãe era a única responsável pelo inconsciente do filho, não deixa de ser verdade que ela foi logo considerada — e veremos porque — a causa imediata, senão primeira, do equilíbrio psíquico deste. Quer se queira ou não, a psicanálise levou a pensar, durante muito tempo, que uma criança afetivamente infeliz é filho ou filha de uma mãe má, mesmo que o termo má" não tenha aqui nenhuma conotação moral.
De fato, para que uma mulher possa ser a "boa mãe" desejada pela psicanálise, é preferível que ela tenha experimentado, em sua infância, uma evolução sexual e psicológica satisfatória, junto de uma mãe também relativamente equilibrada.
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Mas se uma mulher foi educada por uma mãe perturbada, há grande probabilidade de que sinta dificuldade em assumir sua feminilidade e sua maternidade. Quando for mãe, reproduzirá, diz-se, as atitudes inadequadas que foram as da sua própria mãe.
A mãe má não é mais, portanto, pessoalmente responsável, no sentido moral da palavra, pois uma espécie de maldição psicopatológica pode pesar sobre ela. Será antes uma mãe "inadequada" a assumir seu papel, uma espécie de "doente" hereditária, mesmo que os genes nada tenham a ver com tal situação. Isso é tão verdadeiro que muitos psicanalistas sugerem hoje às mães cujos filhos têm problemas que se submetam elas mesmas a um tratamento analítico. A idéia essencial é a de que não basta tratar a criança, se não se combate, ao mesmo tempo, a raiz do mal, isto é, a má condição da mãe.
Portanto, a psicanálise não só aumentou a importância atribuída à mãe, como "medicalizou" o problema da mãe má, sem conseguir anular as posições moralizadoras do século anterior. Ainda hoje, os dois discursos se superpõem tão bem que a mãe má é confusamente percebida como uma mulher ao mesmo tempo malvada e doente: a angústia e a culpa maternas nunca foram tão grandes como no nosso século, que se pretendia no entanto liberador. É certo que a psicanálise não é culpada desse amálgama, e o mínimo que se pode dizer é que ela não soube convencer da independência do mal psíquico em relação ao mal moral.
Não tentaremos fazer aqui um inventário exaustivo das teorias psicanalíticas sobre a questão materna, nem reconstituir o conjunto das polêmicas surgidas nos últimos decênios. Buscaremos, em primeiro lugar, demarcar a origem de um pensamento novo que se propagou rapidamente (com ou sem traição), graças à vulgarização promovida pelos meios de comunicação de massa, a ponto de ter deixado uma marca, real e pesada, no inconsciente feminino.
Que os leitores informados a respeito nos perdoem por voltarmos mais uma vez aos "textos sagrados", e bem conhecidos,
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de Freud sobre a feminilidade, e que sejam indulgentes quando citarmos aqueles de seus discípulos que passaram de moda. Nem por isso eles deixaram de ter uma grande influência sobre o público quanto à imagem da mulher e da mãe ditas "normais". Sem esse retrocesso, é impossível compreender a problemática atual do amor materno. Impossível também avaliar a que impasses e a que conflitos as mulheres foram impelidas, particularmente desde a última guerra.
Cento e cinqüenta anos depois do Émile, o doutor Freud questiona por sua vez a natureza do "sexo" feminino, mas agora tanto no sentido literal como no figurado. Como seu antecessor, que pretendia falar na qualidade de observador isento de preconceitos, Freud pensa descrever a evolução sexual e psicológica da mulher com base apenas em sua experiência de clínico. Sem dúvida, manifestou suas incertezas sobre esse "continente negro", o enigma que representa para todo homem o problema da feminilidade. Isso não o impediu de propor uma teoria que engendrou, no espírito de seus numerosos leitores, uma imagem determinada da mulher "normal" e, em contrapartida, uma representação da desviante, da anormal, para não dizer da doente. Em seguida, seus discípulos não tiveram muita dificuldade em traçar o retrato da mãe "normal", deduzido logicamente da mulher descrita por Freud. Inútil frisar que são essas mulheres e essas mães conforme a norma definida pela psicanálise que deviam ter as maiores possibilidades de tornar felizes maridos e filhos, e de conhecer elas mesmas uma vida plena.
Antes de lembrar as características da "boa mãe", é necessário buscar as condições que lhe são propícias, e observar a evolução que transforma a criança-menina numa mulher equilibrada. Releremos, portanto, as páginas escritas por Freud, já que são elas a fonte e a origem de todos os discursos ulteriores.
DA MENINA À MULHER NORMAL
Segundo Freud, o processo que muda a criança em mulher compreende dois grandes períodos, marcados eles próprios
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por várias fases importantes. O primeiro desses períodos é caracterizado pela bissexualidade que a menina partilha com o menino; o segundo, relaciona-se com a evolução própria de seu sexo.
A bissexualidade original
A bissexualidade é um tema que Freud desenvolveu em várias ocasiões. Partindo das constatações da ciência anatômica, que mostra que certas partes do aparelho sexual masculino encontram-se também na mulher, e vice-versa, Freud aceitou a idéia de uma dupla sexualidade (bissexualidade), como se "o indivíduo não fosse francamente macho ou fêmea, mas os dois ao mesmo tempo, um dos caracteres prevalecendo sempre sobre o outro".1 Evocou também a existência de uma bissexualidade psíquica que explicava o fato de se encontrar certo componente feminino (a passividade) no homem, e um componente masculino (a atividade) na mulher. Essa bissexualidade é ainda mais notável se compararmos os primeiros anos do menino e da menina. "Os indivíduos dos dois sexos parecem atravessar da mesma maneira as primeiras fases da libido."2 Freud dá a entender que essa "mesma maneira" é essencialmente masculina ao afirmar que, na fase sadicoanal, a menina revela tanta agressividade quanto o menino: "Devemos admitir que a menina é então um pequeno homem."3
Em lugar de evocar, como Freud, a bissexualidade originária, talvez fosse melhor falar de uma "monossexualidade" própria aos dois sexos, de caráter essencialmente masculino. É, de qualquer modo, o que sugerem as palavras de Freud quando ele evoca a semelhança dos comportamentos sexuais feminino e masculino no início da fase fálica: o menino aprende a se proporcionar prazer graças ao seu pênis e a menina se serve do seu clitóris com a mesma finalidade.
Notas de rodapé:
1 Nouvelles conférences sur la psycanalyse, p. 149 (Col. Idées).
2 Id. Ibid., p. 154-155.
3 Id. Ibid., p. 155.
Fim das notas de rodapé..
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Aos olhos de Freud (talvez mais do que aos da menina) o clitóris é "o equivalente do pênis", e nem ela nem o menino teriam ainda descoberto a vagina, "essencialmente feminina".4
Mesmo que se possa falar da bissexualidade no menino, que inveja a feminilidade da mãe e adota certas atitudes passivas qualificadas de femininas, perdura o fato de que, segundo Freud, a bissexualidade é muito mais acentuada na menina do que no menino. Isso porque o homem tem apenas uma zona genital dominante, enquanto a mulher possui duas: o clitóris, análogo ao membro viril, e a vagina, propriamente feminina. Aos olhos de Freud e de numerosos psicanalistas, esse duplo sexo feminino, sinal da bissexualidade, constitui uma dificuldade suplementar ao bom desenvolvimento da mulher. Essa bissexualidade originária deve ser ultrapassada, e mesmo superada. Num dado momento, cada um dos dois sexos deve seguir seu próprio caminho para realizar sua diferença específica. É então que surgem as dificuldades da evolução feminina. Para melhor avaliá-las, detenhamo-nos um instante na evolução masculina que não requer, diz Freud, nenhum dos grandes esforços exigidos da menina para que ela se torne uma mulher normal. Resumindo bastante, diremos que o menino experimenta inicialmente um grande amor pela mãe, que lhe dá o alimento e prodigaliza cuidados e carícias. Ela continuará sendo objeto de amor até o momento em que ele a substitui por um outro que lhe é semelhante: uma outra mulher. Esse amor passional pela mãe logo se fará acompanhar de um sentimento de ciúme e rivalidade em relação ao pai. É a relação triangular, fonte do complexo de Édipo.
A descoberta do órgão feminino provoca então no menino o medo da castração.
Nota de rodapé:
4 Deixaremos de lado a célebre objeção que K. Horney fez a Freud, afirmando que a menina conhecia sensações vaginais precoces, pois foram as palavras de Freud que a posteridade conservou.
Fim da nota de rodapé.
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Constatando que o membro viril, tão precioso aos seus olhos, não faz necessariamente parte do corpo, e lembrando-se das ameaças que lhe fizeram quando o surpreenderam em "flagrante delito" de masturbação, ele começa a temer a execução dessas ameaças. A angústia da castração provoca o desaparecimento do complexo de Édipo e leva à criação do superego. Não podendo eliminar o pai para desposar a mãe, o menino se identifica com aquele que representa a lei e o mundo exterior. É essa interiorização da instância paterna que constitui o superego e encerra uma das- fases essenciais à formação do adulto masculino.
A evolução feminina é infinitamente mais complicada. Isso porque a menina, afirmam Freud e seus discípulos, deverá não só aprender a mudar de órgão de satisfação (do clitóris para a vagina), mas também de objeto de amor, transferindo para o pai a paixão que experimentou inicialmente pela mãe. Sem isso, ela corre o risco de jamais chegar a ser uma mulher verdadeiramente feminina e de ver ameaçado seu destino de esposa e de mãe.
Rumo à feminilidade
Vejamos como o processo de "feminilização" é pleno de ciladas. A menina conhece a princípio uma fase pré-edipiana muito mais importante do que a do menino. Se ela experimenta, como o menino, sentimentos libidinosos pela mãe, que adquirem as características de cada uma das fases que atravessa (oral, sádica, anal e fálica), estes são também mais ambivalentes. São ao mesmo tempo ternos para com a mãe que satisfaz as necessidades, e agressivos, porque ela nunca proporciona o suficiente. Durante essa fase pré-edipiana, o pai não é para ela muito mais do que um rival constrangedor, embora a hostilidade que sente seja menor que a do menino.
Até aí, as diferenças entre a evolução masculina e a feminina parecem imperceptíveis. Os psicanalistas, porém, afirmam que essa fase é bem mais carregada de conseqüências para a menina. Em primeiro lugar, esse período de identificação com
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a mãe constitui a pré-história necessária de toda mulher. A maneira como ela a vive determina seu destino futuro, pois a experiência psicanalítica mostra, ao que parece, que a instauração da feminilidade continua à mercê da perturbação provocada pelas manifestações da "virilidade primeira". Freud afirma que a regressão às fixações dessa fase pré-edipiana é muito mais freqüente do que se pensa, e que encontrou, muitas vezes, entre os traumatismos e fantasias da infância de uma mulher, a sedução pela mãe. Por sua vez, Marie Bonaparte assinala que o maior freio à evolução feminina não é, como muitas vezes se pensa, uma fixação demasiado tenaz ao pai, "mas uma fixação demasiado forte à mãe clitorianamente desejada na infância". Não obstante, continua ela, a menina não pode dispensar esse apego pré-edipiano à mãe, pois "parece patogênica, para a função erótica feminina, a falta de identificação com a mãe..... e a ausência de instinto materno propriamente dito que disso decorre... "5
Quando a menina descobre a "castração", à vista dos órgãos genitais do outro sexo, "ela se dá conta imediatamente da diferença e compreende, é preciso reconhecer, toda a sua importância".6 Em outro texto, Freud diz que a menina "experimenta a sua própria deficiência".7 Não se poderia dizer melhor que a diferença é vivida como um sinal de inferioridade! Isso não deixa de provocar revolta: "Muito sensível à desvantagem que lhe foi imposta, ela gostaria, também, de..ter uma coisa assim'; a inveja do pênis apodera-se dela."8 Quando tem idéia da "generalidade desse caráter negativo",9 é levada a desvalorizar as mulheres e sua mãe. Mesmo quando perde toda a esperança de ter um pênis, esse desejo, diz Freud, persiste por muito tempo em seu inconsciente.
Notas de rodapé:
5 Marie Bonaparte, Sexualité de la femme, 1977, ed. 10/18, p. 82.
6 Freud, Nouvelles conférences, p. 164 (grifo nosso).
7Freud, Sur la sexualité féminine, PUF, 146.
8 Nouvelles conférences, p. 164.
9 Sur la sexualité féminine, p. 146.
Fim das notas de rodapé.
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É um dos motivos capazes de incitar a mulher adulta a se submeter à análise.
"A descoberta da castração marca, na evolução da menina, um momento decisivo."10 Três atitudes se lhe oferecem. A primeira leva à inibição sexual ou à neurose. M. Bonaparte fala das "renunciadoras". A segunda, a uma insistência insolente da menina na sua masculinidade: ela se recusa a abandonar o prazer clitoriano. Freud fala, a seu respeito, do "complexo de virilidade" e M. Bonaparte a chama de a "reivindicadora". Só a terceira atitude conduz à "feminilidade normal",11 que consiste, para a menina, em abandonar o desejo do pênis pelo do filho. M. Bonaparte pensa que esta, a "aceitadora", é a verdadeira mulher por excelência. Continuemos, portanto, a análise desta última.
Após a descoberta da castração, a menina normal conhecerá uma tríplice mudança psicológica e sexual: hostilidade contra a mãe, abandono do clitóris como objeto de satisfação e uma "pulsão de passividade" que se acompanha de um apego maior ao pai. O amor da menina dirigia-se a uma mãe fálica e não a uma mãe castrada. Ao descobrir a castração, torna-se-lhe possível afastar-se da mãe e deixar seus sentimentos hostis,12 há muito acumulados, predominarem. Isso é desejável, pois o distanciamento da mãe é considerado por Freud um passo muito significativo no desenvolvimento da menina.
Ao mesmo tempo, observa-se nela uma forte redução das moções sexuais ativas e um aumento das moções sexuais passivas. A masturbação clitoriana desaparece, pois as tendências ativas foram atingidas pela frustração, mostrando-se irrealizáveis.
Notas de rodapé:
10 N.C., p. 166.
11 Id. Ibid.
12 Freud teria descoberto os motivos dessa hostilidade graças à sua prática analítica. As mulheres analisadas forneceram-lhe uma longa lista de recriminações às suas mães: censura por lhes terem dado pouco leite, nascimento de outro filho, proibição da masturbação, e sobretudo a queixa de não lhes terem dado um pênis. A menina consideraria a mãe responsável por tê-la feito nascer mulher!
Fim das notas de rodapé.
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A passividade, diz Freud, passa então a predominar. Como se o modelo cultural não tivesse nenhuma influência específica sobre o comportamento da menina.
Ao se tornar passiva, ela está finalmente pronta para mudar de objeto de amor. Sua inclinação pelo pai passa a predominar. Freud explica esse novo desejo por aquele, mais antigo, de possuir um falo. Como a mãe lhe recusou essa satisfação, ela espera obtê-la do pai. Mas esse processo só se conclui realmente quando o desejo do pênis é substituído pelo desejo de ter um filho. Essa equivalência observada por Freud entre o filho e o pênis já anuncia uma definição da mulher normal em termos de possível mãe.
Se nos ativermos à análise freudiana, poderemos efetivamente constatar que a situação edipiana feminina é o resultado de uma evolução muito mais longa e penosa do que a do menino. Além disso, a menina se instala nessa situação como num porto. Não tendo o mesmo motivo (medo da castração) que o menino para superar o édipo, ela conserva por mais tempo esse complexo, só o superando tardiamente e de maneira incompleta. Em conseqüência, a formação de seu superego é comprometida, pois não pode chegar à "energia" e à "independência" necessárias a essa formação. Em 1931, Freud chegou à seguinte conclusão, trágica para a condição feminina: "A mulher, é preciso confessá-lo, não tem um alto grau do senso da justiça, o que se deve, sem dúvida, ao predomínio da inveja do pênis em seu psiquismo.. Dizemos também que as mulheres têm menos interesses sociais do que os homens, e que nelas a faculdade de sublimar os instintos permanece fraca.. Não posso silenciar uma impressão que sempre volto a experimentar durante as análises. Um homem de trinta anos é um ser jovem, inacabado, capaz de evoluir ainda.. Uma mulher da mesma idade, ao contrário, nos assusta pelo que encontramos de fixo, de imutável.. Nela, nenhuma esperança de se ver realizar uma evolução qualquer; tudo se passa como se.. a dolorosa
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evolução para a feminilidade tivesse esgotado as possibilidades do indivíduo."13
Não se poderia expressar melhor a maldição própria ao sexo feminino: esgotar-se ao realizar sua feminilidade.. de tal modo que não lhe resta energia alguma para qualquer outra criação.
A TRÍADE FEMININA
Freud empenhou-se particularmente em analisar a evolução que transforma a menina em mulher. Mas sua fiel discípula Helène Deutsch continuou o trabalho iniciado e levou a investigação até o fim. Dedicou dois grandes volumes à psicologia da mulher e da mãe, retomando a seu modo os conceitos e os postulados do mestre. É portanto a ela que vamos agora perguntar que devemos entender por "mulher normal" ou "mulher feminina". H. Deutsch a define essencialmente com três palavras: passividade, masoquismo e narcisismo.
Passividade
Embora mencione numa frase "a influência inibidora da mãe"14 como uma das causas da passividade da menina, Hélène Deutsch apressa-se a referi-la à causa primeira, a passividade constitucional: "A diferença de conformação dos órgãos geni-tais.. se acompanha de diferenças pulsionais."15 Esquecendo sua bissexualidade primeira, a menina se revelaria "menos agressiva, menos obstinada, menos enfatuada e também mais ávida de ternura, mais dócil, mais dependente do que o menino".16
Notas de rodapé:
"N.C., p. 176-177.
14 La psycbologie des femmes, tomo I, p. 213, PUF, "A influência da mãe é muito mais inibidora aqui do que era no menino".
15 N.C, p. 154.
16 Ibid.
Fim das notas de rodapé.
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H. Deutsch vai ainda mais longe, afirmando que "a influência inibidora da mãe deve-se ao fato de que ela sente que a menina é mais fraca, que tem maior necessidade de ajuda que o menino e que não pode se lançar à atividade sem correr riscos".17
Para melhor convencer da passividade própria à natureza feminina, Freud e depois H. Deutsch fizeram algumas analogias. Compararam o que é feminino ao “óvulo imóvel e passivo", em oposição ao espermatozóide "ativo e móvel",18 e observaram que o "comportamento sexual dos indivíduos machos e fêmeas durante o ato sexual é calcado no dos organismos sexuais elementares".19 O macho agarra a fêmea e a penetra. Embora se mencionem casos de fêmeas ativas e agressivas no reino animal (aranha, grilo, certas borboletas), H. Deutsch conclui que "não passam de exceções à regra geral",20 e que a passividade continua sendo a especificidade tanto da fêmea como da mulher. "Ouso dizer que essas equações fundamentais..feminino-passivo' e..masculino-ativo' encontram-se em todas as culturas e todas as raças, sob formas diversas e em diferentes graus."21
Para compreender essa passividade, é preciso voltar ao desenvolvimento dos "instintos sexuais" femininos. Por um lado, a excitabilidade sexual da menina é "menos ativa e intensa" que a do menino; por outro, seu órgão sexual (o clitóris) é "menos apto"22 a alcançar os mesmos fins instintivos. Essa insuficiência orgânica explicaria em parte o abandono da masturbação, quando a atividade inibida aceitaria voltar-se para a passividade. Durante um longo período, o órgão ativo, o clitóris, não seria substituído pelo órgão passivo-receptivo, a vagina. "Assim a menina se vê, pela segunda vez, ante uma carência orgânica:
Notas de rodapé:
17 La psycbologie de la femme, p. 193.
18 SN.C, p. 149, La psycbologie des femmes, p. 193.
19N.C, p. 150. La psycbologie des femmes, p. 194.
20 La psycbologie des femmes, I, p. 191.
21 Id. Ibid., p. 194. H. Deutsch lembra os estudos de M. Mead sobre os Mundugumor, povo em que as mulheres desempenham um papel ativo e agressivo. Mas afirma que essas atitudes não são probatórias.
22 H. Deutsch, op. cit., I, p. 197.
Fim das notas de rodapé.
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da primeira vez, faltava-lhe um órgão ativo, agora lhe falta um órgão passivo."23 O despertar da vagina para a sua plena função sexual não estando em seu poder (depende inteiramente da atividade do homem) "essa ausência de atividade vaginal espontânea constitui o fundamento fisiológico da passividade feminina".24
Masoquismo
Ligado à passividade, o masoquismo é a segunda característica essencial da mulher. Se, de início, menino e menina partilham uma igual agressividade, logo já não a poderão expressar da mesma maneira. Enquanto a agressividade masculina pode facilmente dirigir-se para o exterior, afirma-se que a da menina "deve voltar-se para o interior".25 E é essa agressividade reprimida, voltada contra o próprio ego, que constituiria o masoquismo feminino, o qual, graças a Deus, se transformaria numa necessidade de ser amada.
Para compreender o processo da evolução masoquista, é preciso voltar à fase pubescente da menina. Ao se desligar da mãe, ela assume uma atitude erótico-passiva para com o pai.26 Este surge, inconscientemente, como o sedutor de quem se espera que tome iniciativas. É então, segundo H. Deutsch, que os componentes agressivos da menina se transformam em componentes masoquistas em relação ao pai, e depois em atitude masoquista geral para com todos os homens.27
Notas de rodapé:
23 Id. Ibid., p. 198.
24 Id. Ibid., p. 201.
25 Id. Ibid., p. 207.
26 Id. Ibid., p. 218: "O pai representa o mundo ambiente que exercerá sem cessar, posteriormente, essa influência inibidora sobre a atividade da mulher e a impelirá para o seu papel passivo, constitucionalmente determinado."
27 Como Freud, H. Deutsch recorre à sua experiência analítica para confirmar suas palavras. Afirma que a análise da vida imaginativa das meninas púberes revela o conteúdo masoquista de seus desejos. Seriam numerosas as que sonham com estupro, perseguidores armados de faca, ou ladrões que furtam um objeto precioso. Seus fantasmas eróticos conscientes estariam igualmente ligados às imagens da violação. Ao se masturbarem, as meninas gostariam de se imaginar espancadas, humilhadas, mas também amadas e desejadas.
Fim das notas de rodapé.
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