Verso e reverso I parte a música sem partitura Herculano Alencar



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42-Jorge Cantador

Vejo Rubenio e Jorge, ao seu lado,

como dois versos postos num soneto:

a poesia nua, em branco e preto,

que até Deus ao ver fica calado.

A poesia que eles têm cantado,

pelas cordas vocais do violão,

que une um ao outro, como irmão,

por um diapasão bem afinado.

E vejo o riso, o choro, a poesia...

a solfejar, nos tons da melodia,

a amizade, a arte e o amor.

E eu, dos labirintos da saudade,

levanto os olhos para a eternidade

e vejo a voz de Jorge cantador.

43-Vozes da primavera

Fosse uma flor de um chão primaveril,

ainda que vulgar e sem perfume,

quiçá um beija-flor infante, implume,

à espera de um botão que não abriu.

Fosse o piscar de luz de um vaga-lume

traído pela luz de um sol de abril,

quiçá uma paixão que descobriu

o cheiro inebriante do ciúme.

Fosse uma nota a mais na melodia,

um verso a debutar na poesia

bem antes que o soneto chegue ao fim.

Fosse Bocage à sombra de Camões

teria achado tantos corações

que um deles serviria para mim.


44-Desafinado

Olhos castanhos, qual camaleão;

nariz traquino, qual tamanduá;

voz afinada em dó, ré, mi, fá;

orelhas de quem presta atenção.

Um ar de recatada educação,

andar macio, bem descontraído,

cabelos, alguns anos já vividos,

mantendo corpo e alma em comunhão.

Assim eu era quando a conheci!

Eu era um sorriso ambulante.

Um corpo esguio, algo aconchegante,

cheio de viço, que também perdi.

Hoje, que sou um verso dissonante,

eu desafino em sol, em lá e si.


45-Ao luar de Beethoven

A lua, essa dama peregrina,

que ostenta pelo céu tanta beleza,

hoje veio sentar-se à minha mesa

por uma fenda aberta na cortina.

Enquanto a luz da vela ilumina

e o tempo queima as horas no pavio,

desde meu coração (quintal baldio)

o sangue inunda os vasos da retina.

Lá fora, junto ao pranto da neblina,

a noite, qual insone bailarina,

ensaia uma sonata ao luar.

Cá dentro, eu me calo, embevecido,

e a lua, a sussurrar no meu ouvido,

insiste em sentar-se em meu lugar.

46-Poema para o "Lago dos Cisnes" de Tchaikovsky

Há algo em minha alma de poeta,

quiçá uma lembrança doutra era,

que rosna, qual o brado da pantera

quando procura a caça predileta.

Algo que brame em mim como uma fera,

que se perdeu no meio da caçada

e, que por um segundo, quase nada,

não viu a flor se abrir na primavera.

Há algo em minha alma de humano,

que fala ao meu ouvido: "Herculano,

acorda que Tchaikovsky nasceu.

Algo que sopra em mim como assobio

e faz meu poetar entrar no cio,

como se fosse a lira de Orfeu.

47-Sonho bom

Eu finalmente ouvi uma estrela

depois de anos-luz da sua morte!

Ela falou-me com sotaque forte,

que quase eu não pude entendê-la.

E disse-me assim: —"meu camarada,

eu sou a Pop Star do firmamento!"

Parei e refleti, por um momento,

tentando decifrar sua charada.

Assim, pensei... pensei... pensei... pensei...

até que descobri que eu não sei

ouvir uma estrela quando morta.

Ao despertar do sonho (noite escura)

a voz de Elis Regina, à meia altura,

cantava para mim: "Atrás da porta".
48-Um fio de esperança ao velho Lua.

Vítima da visceral ignorância

que o bicho homem herda de nascença

e que se perpetua pela crença,

que adorna as fantasias de infância,

canta o assum preto em reverência

à asa branca, última esperança

que, no porvir, os tempos de bonança

façam valer a pena a penitência.

Inda que cego, o velho assum preto

pode pousar nos versos de um soneto

e enxergar a alma de Luiz.

E a asa branca, por ordem divina,

há de fazer mudar a velha sina

e, junto ao assum preto, ser feliz.


49-Noturnos (Menção a Frédéric Chopin)

E eis que cada tecla do piano

deflete, enquanto o dedo acaricia,

e emite, em tom febril, a poesia

que teima em lapidar o ser humano.

A música conduz a outro plano

a aura que emana do artista,

como quem segue uma nova pista

ou queda-se, de vez, ao abandono.

Não fosse Deus supremo e soberano

e lhe daria as teclas do piano

em que Chopin poliu a sua arte.

E só então o mundo ouviria

a mais sublime e bela ave-maria

tocada, em seu louvor, por toda parte.


50-Ao "Silêncio" de Beethoven.

Quando o piano cala ao fim da tarde

e Deus recolhe o sol por mais um dia,

a música abraça a poesia

e juntas confabulam sem alarde!

Nem mesmo o medo infame de um covarde

ou a coragem burra de um herói,

ou o cantar dos velhos rouxinóis,

conseguem ser ouvidos de verdade.

O silêncio é um sonho sem destino,

que perdeu-se entre a voz e o violino

quando Deus ensaiou seu recital.

Ele é o som que o homem imagina

ser a luz que lhe foge da retina

quando a vida anuncia o seu final.

51-O verso, a nota musical e o poeta.

A música, tal qual a poesia,

ensaia a criação como um solfejo,

que vai ao céu nos ombros do desejo

e volta ao chão nas mãos da melodia.

O verso afina o tom da sinfonia,

como se fosse a nota musical,

que se resguarda para o grã final,

como um artista, presa na coxia.

A nota escala estrofes, verso a verso,

a explorar os sons do universo

em busca do acorde mais perfeito:

o fecho de um poema, tão bonito,

capaz de acomodar o infinito

no restrito espaço do meu peito.

II Parte

Um poeta sob a sombra de grandes árvores

Herculano Alencar
1-Sob a sombra da poesia

Hei! Você tá lendo este poema, não?

Saiba que fiz pra que você soubesse

o quanto um poeta agradece

alguém ter lido a sua inspiração.

Este poema é a constatação

de que um poeta é um parasita,

que sobrevive porque acredita

tenha um lugar na imaginação.

Hei! Você aí, que lê com atenção.

Se encontrar um verso sem sentido,

não liga não... se faça de entendido...

ponha outro verso e uma exclamação.

Leia em voz alta, com encenação...

Declame como o verso fosse seu.

Não interessa a mão que escreveu

se ninguém leu com a voz do coração.

2-Sob a sombra de Friedrich Nietzsche

Deus morto

—Mataram deus, poeta! E agora?

O que será da tua poesia!?

—Que mãe há de parir a agonia,

que a mente do poeta põe pra fora!?

—O que será da vã filosofia,

que a verve do poeta evapora!?

—Mataram deus, poeta! E agora?

O que há de parir a poesia!?

—Escuta-me filósofo, eu te digo

que deus ainda vive no castigo,

no medo irracional, na dor secreta...

E seja por crendice ou fingimento

há sempre algum deus no pensamento

que engravida a mente do poeta.
Sobre os ombros do poeta

Quando subi nos ombros do poeta

a terra pareceu-me uma aldeia:

insignificante grão de areia

no meio de uma abóbada deserta.

Ouvi, qual o cantar de uma sereia,

o murmurar febril da poesia

planger, na mais perfeita sintonia,

o verso que correu em minha veia.

E eu voei tão alto aquele dia,

que meu olhar humano já não via,

pois me tornei menor que o grão de areia.

Quando desci dos ombros do poeta,

a terra estava ainda mais deserta

mas minha alma, enfim, estava cheia.

Philosophus

O dom do pensamento está latente

e pronto pra explodir a qualquer hora,

enquanto a mente, em transe, elabora

um plano pra chegar à outra mente.

O mundo das ideias, simplesmente,

incuba mil fagulhas por segundo,

que acendem outras tantas, pelo mundo,

de forma aleatória e permanente.

Filósofos, poetas e outros loucos

são tantos e, no entanto, são tão poucos

que cabem em uma página da história.

E ainda que remonte ao tempo antigo

a obra desses loucos, eu vos digo:

decalca a inteligência na memória.

Lapso de memória

O último soneto que eu fiz,

(há cerca de uma hora ou pouco mais)

falava do meu tempo de rapaz,

de como eu vivi e fui feliz.

Falava de um antigo chafariz,

que quando eu voltava da escola,

(depois de estudar e jogar bola)

bebia até vazar pelo nariz.

Falava de algo mais que já não lembro:

quiçá de um vinte e cinco de dezembro

dalguma dessas noites de natal.

Ai como é bom não ter boa memória!

Viver e reviver a mesma história

e nunca antecipar o seu final.


O ferrão da verdade

Saber mentir é mais do que uma arte,

é quase um dom divino de nascença.

Vez que a mentira é a mãe da crença,

e pare uma verdade em toda parte.

Seja no Sol, na lua, seja em Marte,

seja em Saturno, Júpiter ou Plutão,

há sempre, da mentira, uma porção

servida em bufê ou à la carte.

Saber mentir é ter desenvoltura

para tirar proveito na leitura

da fábula do sapo e o escorpião

e ver que, no contexto da verdade,

mentir é dividir pela metade

o risco iminente de um ferrão.

Jazigo da fé

Não acredito em nada que eu não toque,

ou veja, ou escute ou sinta o cheiro.

Eu sou aquele cético verdadeiro,

que traz sempre a descrença a reboque.

Eu creio no trabalho, no dinheiro,

na flor, no beija-flor, numa gaivota...

no sábio, que respeita o idiota,

no mar, na embarcação no marinheiro.

Só acho bom o fruto que tem gosto.

Não vejo a dor, vejo o suor no rosto,

qual um orvalho a deslizar, o pranto...

Não creio pela fé, mas pelo tino!

Eu sempre fui assim, desde menino,

quando enterrei o meu primeiro santo.
3-Sob a sombra de Padre Antonio Thomaz

Adão

Adão, na imensidão do paraíso,

capitulou ao silvo da serpente

e se curvou à ela e, reverente,

deu-lhe as rédeas, o rumo e o siso.

A Naja então bramiu seu tosco guizo

em ode à vitória da libido.

Eva bendisse aos céus com um gemido

e Adão perdeu de vez todo o juízo.

Ao tempo, esse vassalo do destino,

coube ungir as mão de um menino

com o bálsamo sagrado do perdão.

Fez-se do corpo nu a poesia

que ora exibe, em plena luz do dia,

os versos recitados por Adão.

O Judas moderno

O Judas hodierno, meu Poeta,

gagueja, de batina, os missais,

pra camuflar horrendos rituais

que a Sé, em vil conluio, acoberta.

Tal como a luz que luz nos castiçais,

-qual flâmula de honor à opulência,

o novo Judas foca a consciência

dos ninos, dos nubentes, dos casais...

O Judas hodierno, Padre Antônio,

é a versão moderna do demônio

forjada nos porões das catedrais:

Carrega o santo livro em uma mão,

enquanto a outra cai na tentação

de sórdidos desejos sexuais.

4-Sob a sombra de Santo Agostinho

A santa ignorância

Eu aprendi ciências naturais,

ciências humanas e exatas.

Eu aprendi andar em duas patas

e me afastei dos símios ancestrais.

Eu aprendi a reza dos missais,

algumas sei de cor e salteado.

Eu aprendi amar sem ser amado

para viver no mundo dos mortais.

Hoje, que não consigo aprender mais,

eu peço a deus, em nome dos meus pais,

que faça-me voltar à tenra infância.

Talvez assim, meu santo Agostinho,

eu possa encontrar pelo caminho

a mais bendita e santa ignorância.


5-Sob a sombra de Charlie Chaplin

Em busca da beleza

Eu encontrei vestígios de beleza

nas flores, nos amores, nas pinturas,

nos céus, nos corações das criaturas

e nas curvas corpóreas de uma deusa.

Também achei beleza nas alturas

(etérea moradia do divino),

no riso exultante de um menino

a procurar por novas travessuras...

Mas a beleza imensa da feiura,

da dor, da solidão, da amargura,

do mal, que no meu peito, ora blasfema.

Essa beleza oculta e disfarçada,

fui encontrar no meio da estrada,

à sombra aconchegante de um poema.
6-Sob a sombra de Platão

O poeta e a paixão

Quando a paixão lembrou que eu existia

tentou me corromper a qualquer preço.

Mandou para meu último endereço,

mil versos em buquês de poesia.

E revirou min ‘alma pelo avesso,

e fez de mim o que ela bem queria,

e me tratou com tanta hipocrisia,

que até Platão duvida que mereço.

E eu, que sempre fui um homem forte,

senhor da minha vida e minha morte,

tornei-me um escravo, sem feitor,

parido nas senzalas de um soneto.

Hoje sou uma foto, em branco e preto,

do filme em que revelo a minha dor.

Algo a dizer

Um poeta que esquece o dom sagrado

de dizer muito mais do que a palavra,

há de ouvir o bufar, da própria lavra,

recitar em menção de desagrado.

Há de ser qual um verbo rejeitado

pelo dom natural da poesia:

um versinho qualquer, sem serventia,

que caminha, co' o nada, lado a lado.

Do poeta é cobrado o grã dever

de falar por ter algo pra dizer

e ouvir, em silêncio, o que foi dito.

Se for sábio, há de ouvir o que é preciso

pra sair dos jardins do paraíso

e encontrar um lugar bem mais bonito.


7-Sob a sombra de Aristóteles

O julgamento

Morreu um homem justo e foi aos céus!

Em lá chegando, veio o próprio Deus

do Cristo, do Islão e dos Judeus

e pôs o homem justo entre os réus.

No tribunal, havia dois ateus,

dois padres, dois rabinos, dois pastores,

dois santos, dois meninos, dois atores,

e Ele, pois não há mais que um Deus.

O homem justo fora condenado

ainda em vida, por um só pecado:

ter comungado sem a confissão.

E veio o veredito e, finalmente,

o réu foi declarado inocente

e Deus dorme feliz, desde então.


A caminho da sensatez

Não duvidei de nada (ou quase nada),

até nascerem os pelos pubianos.

Ignorei durante esses anos

o lápis, o papel, a tabuada...

Cresci e persisti nessa toada,

até que um dia desses, por acaso,

fui descobri (à porta do Parnaso)

a duvidar de tudo, até do nada.

E fui envelhecendo dia a dia,

e pus-me a refletir o que sabia,

enquanto aprendia um pouco mais.

Hoje (eu não afirmo cegamente),

duvido de mim mesmo e dessa gente

que diz que sabe tudo e tudo faz.

8-Sob a sombra Albert de Einstein

A teoria do infinito

A estupidez humana é consequência

de erros germinais da criação,

que o espermatozoide de Adão

reproduziu por toda a descendência.

O homem, que no colo da ciência

foi peça essencial da evolução,

é hoje uma estrela em extinção

no céu da sua própria consciência.

Enquanto, a expandir-se no universo,

a poesia corre atrás de um verso

que torne a vida um pouco mais bonita,

o ser humano sai na contramão,

para provar que Einstein tem razão:

"a estupidez humana é infinita".

9-Sob a sombra de Che Guevara

A primavera da utopia

Há um desejo inato de domínio

nos homens que detêm o capital:

um tipo de instinto animal

capaz de os levar ao assassínio.

Há um pavor inato do declínio

(a sombra e precipício da ascensão):

um tipo de fobia sem razão

capaz de suscitar o extermínio.

Há uma rosa morta na trincheira:

a rosa que serviu como bandeira

na guerra entre a usura e a quimera.

Quando uma rosa queda em combate,

há outra a brotar em qualquer parte

pra perfumar a nova primavera.

10-Sob a sombra de Shakespeare

Confessionário

Oh, algema carnal do pensamento

fechada pela fé do Santo Ofício,

que impôs à inteligência o sacrifício

de comungar um falso juramento!

Oh, fogo milenar do padre bento,

que desfolhou o galho da roseira

e fez da heresia feiticeira,

e espalhou horrores pelo vento!

Prefiro a solidão do cemitério,

ao trono milenar do teu império

e, o breu, à falsa luz da salvação.

Prefiro segredar com os helmintos,

pois sabem viajar nos labirintos

da mais antiga e vil inquisição.

11-Sob a sombra de Alberto Caeiro

Versos livres

Tu tens razão, Caeiro, tens razão!

A rima faz do verso um escravo,

do jeito que a rosa faz do cravo

e o amor, também, do coração.

Um verso não precisa afinação

como se fosse nota musical.

Precisa ser apenas natural

e dar um sentimento à oração.

Eu tento, ó Caeiro, (de verdade)

deixar meus pobres versos à vontade:

sem ritmo, sem rima, naturais...

Mas por não ser Caeiro ou Pessoa

sigo a rimar aquela rima à toa

dos idos de Camões e outros mais.

12-Sob a sombra de Augusto dos Anjos

Resignatário

O homem ama deus por garantia,

pois que a morte embaça sua crença

e o saldo do pecado de nascença

iguala a ignorância à covardia.

Se deus me castigar, como anuncia

a chama da cruel inquisição,

hei de enterrar meu corpo noutro chão

para esconder, do pai, a poesia.

E se as tolas cismas do destino

cederem sob o julgo do divino,

entregarei min ‘alma ao parnaso.

E quando o soma entrar no cemitério,

vou sepultar meu único mistério

sob os lençóis surrados do ocaso.

O beijo e o amor

Provei o beijo doce de Maria

quando Maria deu-se à minha boca!

Eu era louco e ela muito moça

e acreditava em tudo que eu cria.

Eu era moço e ela era louca

por versos de amor e poesia.

Quando provei os lábios de Maria

o sol luziu no céu minha boca.

Quando beijei a boca de Maria

eu entendi por que a mente cria

enquanto o coração está contente.

É que o amor, poeta, qual a cana,

só não é doce quando nos engana,

ou quando não se sabe o que se sente.


13-Sob a sombra de Nelson Rodrigues

O rosto do morto

Mentiu a vida inteira o desgraçado!

Traiu o seu amigo de orgia,

fingindo valer mais do que valia

a cã de fio branco-prateado.

Viveu sua mentira noite e dia,

até com um requinte de vaidade.

E mesmo no apagar da mocidade

cada vez mais e mais ele mentia.

Gemeu sua mentira mais tardia

no auge de um ataque de embolia

quando entregou-se à morte sem alarde...

Quem viu o pobre diabo no caixão,

privado da palavra e da visão,

chegou a conhecê-lo de verdade.

14-Sob a sombra de Denis Diderot

Mandamento capital

O capital ostenta a bandeira

do lucro como meio de progresso

e faz a conta exata do sucesso

por quanto se carrega na carteira.

Para o dinheiro nunca há excesso:

quanto mais rico, mais se é genial!

E assim vai-se tornando o capital

a máxima virtude do progresso.

O resto é apenas utopia,

qual verso que engasgou a poesia

na goela do poeta que escreveu.

Não há virtude alguma no talento.

O capital só tem um mandamento:

o lucro é mais divino do que Deus.


Tributo ao iluminismo

Enquanto houver um déspota sequer

e uma igreja a dar-lhe a comunhão.

Enquanto houver um único tostão

no bolso de um clérigo qualquer.

Enquanto alguém disser:"enquanto houver"

e não houver alguém que diga não.

Enquanto houver total submissão

do homem ao amém, se Deus quiser...

Enquanto houver qualquer religião,

que pregue o conformismo, a confissão

(de todos os pecados), penitência...

não haverá na terra um só Adão

(liberto das amarras do perdão)

em paz com sua própria consciência.

15-Sob a sombra de Jean-Jacques Rousseau

Propriedade privada

E Deus criou a terra, o céu, o mar...

o rio, a floresta, o por do sol...

o som do sabiá, do rouxinol...

a noite, as estrelas, o luar...

Criou os animais, de par em par,

e para cada par um grande amor.

Não deu a seu ninguém, o Criador,

direito de alguém se apropriar.

E Deus então criou o ser humano,

que foi evoluindo com os anos

até sobrepujar o próprio Deus:

Cercou o rio, o mar, o céu e a terra...

assassinou seus pares, fez a guerra...

e pôs-se a repetir: —É tudo meu!

16-Sob a sombra de Olavo Bilac

Paródias para as estrelas

I

Ser poeta não é ouvir estrela,

mas entendê-la, tão completamente,

a ponto de sentir que ela sente,

que realmente possa-se entendê-la.

Pois que estrelas sabem que a gente

(seres viventes, súditos da lua)

vive de cada sonho que cultua,

tornando esse sonho permanente.

É quando o ser poeta, penitente,

que é humano só por acidente,

acende, nas estrelas, poesia.

E finge ouvir, mas nunca ouve nada.

Poeta é uma estrela apagada,

que espera ser acesa algum dia.

II

Sim! Um poeta pode ouvir estrelas

e entendê-las, tão profundamente,

como se uma estrela fosse gente

e gente também fosse uma estrela.

Poetas são estrelas delinquentes,

vagando pelo céu, no firmamento,

à espera ansiosa do momento

de se fazer ouvir como vivente

com alma, coração e corpo, e mente...

que ama, e fala, e cala, e ouve, e sente,

a dor de uma estrela em agonia.

E ao ouvi-la então pode entendê-la,

pois pra falar a língua de uma estrela,

precisa dar-se voz à poesia.

III

Se a um poeta é dado ouvir estrelas,

minha surdez matou a poesia!

Nem mesmo ouço minha estrela guia

como haverei, então, de ouvir estrelas!?

Como Beethoven, em uma sinfonia!?

Como Bilac à sombra de um soneto!?

Ou como eu, com todos os defeitos

que no meu peito passam noite e dia.

Não sei se ouvir estrelas, minha gente,

é uma bênção mesmo ou, de repente,

um dom que não nasceu dentro de mim.

Mas se alguém ouvir este soneto,

que sejas tu, poeta, e te prometo:

minha surdez também chegou ao fim.


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