IV
Ouvi teu grito rouco, em um soneto,
rimar, "ouvir estrelas", com castigo.
Ouvi a voz de quem procura abrigo,
então abri as portas do meu peito.
Não há poeta que já nasça feito,
nem poesia prenhe de emoção,
se não se pode ouvir no coração
pois, pra ouvir, de fato, ele foi feito.
Saber ouvir é ter aquele jeito
de ouvir e escutar, sem preconceito,
a voz que já não sabe aonde ir...
Que seja a poesia feito estrela!
Ainda que a visão não possa vê-la,
a alma, certamente, pode ouvir.
17-Sob a sombra de José Saramago
Caim
E, ao comer do fruto proibido,
adão sentiu a fúria do senhor!
E eva, num ato heroico e de amor,
ficou entre a serpente e a libido!
O criador cuspiu-lhe ao pé do ouvido
um verbo nunca antes conjugado
e adão tomou ciência do pecado,
que até o próprio deus tinha esquecido.
Do amor de adão e eva veio abel,
que já nasceu com um lugar no céu,
morto, que foi, por seu irmão, caim.
Como é cruel o mando do divino!
Já sabe de antemão nosso destino,
mas põe-nos a cumpri-lo até o fim.
Evangelho apócrifo
E Deus apareceu para Jesus,
às pressas, bem no meio do deserto!
E o pobre moço pôde ver de perto
a dimensão real da sua cruz.
Após uma explosão de som e luz
o todo poderoso entrou em cena.
O moço, amedrontado, se apequena
qual uma sombra posta à contraluz.
Anos mais tarde, já um homem feito,
descobre ser Jesus o filho eleito
pra comandar a mais ferina guerra:
disseminar a culpa, em profusão,
impor um alto preço ao perdão
e monopolizar o céu e a terra.
Mea máxima culpa
Quem viu o pôr do sol no pantanal,
a lua numa noite de São João,
a luz dentro da bolha de sabão,
o mar a espumar em água e sal.
Quem viu papai Noel, pelo natal,
vagar nas fantasias da infância.
Quem viu, mesmo que seja à distância,
as cores da aurora boreal.
Quem viu desabrochar um só botão
de uma flor qualquer durante a vida,
custa entender por que alguém duvida
na crença milenar a criação.
Como jamais vi Eva nem Adão,
espero ver o Pai ainda em vida.
A pornografia segundo Saramago
Que vá à merda o puro, imaculado...
o casto, o venerável, o pudico...
Que caibam, todos eles, num penico
repleto de detrito evacuado.
Que seja fartamente acumulado
(por onde quer que caiba uma só bunda)
o pus que se acumula na corcunda
da corja abençoada e sem pecado.
Que curve-se aos pés da poesia,
à luz da divinal pornografia
que fez da hipocrisia um codinome:
os doutos, a elite complacente;
as "santas", os cagões e essa gente
que rouba enquanto a outra passa fome.
19-Sob a sombra de Bocage
Idolatria poética
Já adulto e maduro, homem feito,
(um poeta por força do destino)
me recordo de quando, inda menino,
li Bocage nas letras de um soneto.
"Contrição", em seu verso algo divino:
"Meu ser evaporei na lida insana"...
fez min'alma andarilha (esta cigana)
evolar-se do solo nordestino.
Hoje vivo das letras de um poema,
qual um peixe a nadar na piracema,
a procura das águas da nascente.
Peço ao sumo Bocage o meu perdão,
por tornar seu soneto, "Contrição",
um neurônio a mais na minha mente.
20-Sob a sombra de Millôr Fernandes
Tentação
A bela musa, à beira da loucura,
despiu-se em minha mente um certo dia:
rasgou todos os véus da poesia,
deixando à mostra o estro sem censura.
A bela musa (deusa em formosura)
deixou seu corpo nu em minha mão.
Tentei ignorar a tentação
que veio a mim por baixo da cintura.
A bela musa sabe mais de mim
do que qualquer mortal e, mais, enfim,
do que sempre pensei que eu soubesse.
A bela musa sabe, de antemão,
que se um bardo queima de tesão,
o fogo da paixão nunca arrefece.
Porre poético
Um duplo (seu garçom) de água benta!
Sem gelo, sem mistura e tira-gosto!
Um malte envelhecido desde agosto,
de mil e oitocentos e quarenta.
Uísque é quase como o sexo oposto:
atiça e convida para a cama.
Dá sono, mas jamais apaga a chama,
maltrata, mas não mata de desgosto.
Um triplo (seu garçom), que hoje é dia
de uma dose a mais de poesia
pra transbordar o copo do poeta!
Puro, como é de ser um destilado.
Amigo, qual cachorro engarrafado,
que lambe, e late, e mija em hora certa.
Metáforas de um sonho bom
Quem sente em suas mãos algum perfume,
que seja um vestígio, uma fragrância...
consegue perceber a importância
de tudo o que uma flor, em si, resume.
Pois a flor, como é de seu costume,
empresta o seu perfume a qualquer um.
Quer seja nobre e raro, ou comum,
com cheiro de perdão ou de ciúme.
Ontem colhi botões de margaridas
(que são as minhas flores preferidas)
e dei-os, de presente, a um estranho.
Há pouco o encontrei por um acaso
e ajudei-o a escolher o vaso,
antes de começar um novo sonho.
21-Sob a sombra de Sêneca
Abrindo a celas
De repente me veio uma ideia,
ao ver uma formiga em movimento.
E, dessa ideia, veio o pensamento
de transformar formiga em centopeia.
Então eu comecei minha odisseia,
pelos mares hostis da criação,
até, que numa noite de verão,
nasceu minha formiga-centopeia:
metade himenóptero (formicídeo),
a outra scutigera (aracnoide).
E, assim, este poeta debiloide,
abriu todas as portas do presídio.
Quando se prende a mente de um poeta,
jamais a poesia se completa.
22-Sob a sombra de Fernando Sabino
Pesos e medidas
Furtou uma banana no mercado
para matar a fome de dois dias!
Foi preso, sem direito a regalias,
fosse fiança ou fosse advogado.
Quando chegou defronte ao delegado
um misto de vergonha e de temor
tomou conta do pobre infrator,
que, ali, quase quedou, paralisado.
"Deu um desfalque o nobre empresário!"
Ouvi alguém fazer um comentário,
não lembro se no rádio ou na tevê.
O seu processo, como é natural,
frequenta os salões do tribunal,
discretamente, em petit comité.
23-Sob a sombra de Sigmund Freud
Um passo à frente
Quando cheguei ao topo da montanha,
há muito um poeta estava lá,
de porre (com uísque e guaraná)
a degustar poemas com picanha.
Quando cheguei "pra lá de Bagdá",
o bardo já curtia uma ressaca.
Saí de lá com cara de tabaca,
à base de Engov com Ban-Chá.
Quando cheguei ao fundo do oceano
há muito que um poeta lusitano
mostrava a poesia ao tubarões.
Quando cheguei, enfim, aqui no céu,
me recebeu um nobre menestrel,
por Deus apelidado de Camões.
24-Sob a sombra de Sócrates
Humor Pós-socrático
Caí na gargalhada em um velório,
quando vi que o defunto era banguela.
Pensei em me jogar pela janela...
graças a Deus achei um mictório!
Bem sabem, pois é público e notório,
que sempre fui um homem muito sério.
Sabem também, não é nenhum mistério,
que nunca tive culpa no cartório.
Daquele dia em diante e hoje em dia,
eu vivo, qual artista na coxia,
à espera de poder entrar em cena:
se alguém faz qualquer coisa engraçada,
afino os dentes das duas arcadas
e dou meu riso insano de hiena.
25-Sob a sombra de Machado de Assis
Uma sátira ao livro da vida
Nasci sem um só fio de cabelo,
franzino, ictérico, sem dentes...
Mijei no colo amigo dos parentes
e defequei da fralda ao tornozelo.
Cresci com muito amor e muito zelo,
até formar-se o pomo de Adão.
Mais tarde o enfisema do pulmão
brindou a minha artrose do joelho.
E veio o esquecimento, a catarata,
as mechas de cabelos cor de prata,
a ponte de safena, a depressão...
Até que enfim sem luz, sem esperança...
deixei um velho livro como herança
no prelo da penúltima edição.
26-Sob a sombra de Voltaire
Cruel sinceridade
Dizer sempre o que penso é meu ofício,
mesmo que desacate um bom amigo.
E ainda que não ouça o que digo
eu tomo a verdade, como um vício.
Jamais joguei alguém no precipício,
por mais que eu estivesse em perigo.
Nem mesmo por vingança ou por castigo
eu hei de padecer deste suplício.
Se acaso te ferir a minha pena,
que seja um só verso, uma dezena...
um soneto, um idílio, uma trova...
um haicai, um rondó, uma elegia:
do sangue há de brotar a poesia,
que é, de inocência, a minha prova.
Defeito perfeito
A graciosidade de um soneto
é mais do que a métrica reclama:
é dissecar o peito de quem ama,
inda que seja Tales de Mileto.
É derreter a dor na mesma chama
que aquece as nuances do prazer;
matar a lua e ver o sol nascer,
inda que seja um raio sobre lama.
O que faz um soneto tão sublime?
A alma do poeta, quando exprime
aquilo que lhe vem ao coração.
E ainda que carregue algum defeito
a poesia sempre dá o peito
ao filho que enjeitou a perfeição.
27-Sob a sombra de Mario Quintana
Um poeminha despretensioso
Você que ora lê este poema
não tema em levá-lo até o fim,
pois um poema, mesmo bem ruim,
no fim, pode encerrar um grande tema.
Há algo em você igual a mim,
assim como há de mim em qualquer um.
Nenhum de nós, nem mesmo o incomum,
difere um do outro tanto assim.
Portanto este poema é pra você,
que veio até aqui e que me lê
co'a lente de quem sabe o que procura.
É pra você que lê sem preconceito,
enquanto eu fuço dentro do seu peito,
atrás de algum vício de leitura.
Linguagem metafórica de uma leitura poética
Quem lê e não entende uma só linha,
mas sabe desfrutar da poesia,
pode quebrar a vil monotonia
do rei, que dorme ao lado da rainha.
O rei que tem a pele, qual a minha,
exposta às intempéries da coroa:
os súditos reais e suas loas,
ao som de tediosa ladainha.
Quem lê e interpreta um poema,
há de viver à sombra de um dilema
de quase impossível solução:
entrar no pensamento de um poeta,
como se fosse um santo ou um profeta,
e desfazer o nó da criação.
28-Sob a sombra de Pitágoras
Um senhor escravo
Eu sou senhor de mim em quase tudo:
do Eu, do pensamento, da razão...
Eu sou senhor também do coração
e até da minha voz, inda que mudo.
Eu levo a minha vida pela mão,
como quem leva um cão pela coleira.
Eu entro nos umbrais pela soleira,
sou dono do meu sim e do meu não.
Eu sou senhor dos bens materiais,
da casa em que moro e, ainda mais:
eu tenho a minha própria engenharia.
Mas de uma coisa nunca fui senhor:
um verso, um simples verso de amor,
que fez de mim refém da poesia.
29-Sob a sombra de Clarice Lispector
Soneto malfeito
Quem viu este soneto, por acaso,
viu que sou um poeta amador:
um bardo que não sabe aonde pôr
a flor que floresceu fora do vaso.
Quem viu a flor morrer fora do vaso
sabe que fui um néscio jardineiro:
um nada, um trinta um de fevereiro,
que fez este soneto por acaso.
Quem viu o sol na hora do ocaso,
sabe que a poesia dá um prazo
pra que o poeta encontre inspiração.
Quem viu, e leu, e fez tão pouco caso
de mim, que sou poeta por acaso,
jamais há de saber qual a razão.
30-Sob a sombra de Oscar Wilde
Tributo à crítica
Critique, meu amigo, a minha arte:
a vírgula, o ponto, a reticência...
Critique com firmeza e consistência
e, assim, será escrito o teu aparte.
Critique, meu amigo, pois dessarte
me dás convicção de que consigo
guardar-te, mais ainda, como amigo
e esmerar bem mais a minha arte.
Não concordes comigo simplesmente,
pois há um olho vesgo em minha mente,
que enxerga pela lente da paixão.
E que, além de vesgo, tem miopia:
não vê de longe os erros de grafia,
mas vê de perto o tom da louvação.
31-Sob a sombra de Jean-Paul Sartre
Brasa dormida
Não se pode comprar um pensamento,
inda que esteja à venda, simplesmente
porque junto com ele há uma mente,
que teima e não aceita o pagamento.
A mente é volátil como o vento
e sólida como a pedra angular.
Tem asas sempre prontas pra voar,
mas pode até dormir em movimento.
A mente de um poeta é fogo em brasa!
De tanto que voou não tem mais asa,
mas nunca se apaga um só momento.
Apenas um só sopro e se inflama,
e o mundo pode ver mais uma chama
arder na imensidão do firmamento.
32-Sob a sombra de Immanuel Kant
O sonho
Tenho sonhado tanto ultimamente,
que já não sei se vivo ou se sonho.
Quiçá eu faça parte do rebanho
daqueles que ficaram pra semente.
Há algo de anormal na minha mente,
que o sonho me revela a cada dia.
Quiçá um aleijão da poesia,
que faz do sono um vício permanente.
Tenho sonhando mais do que é preciso.
Quiçá algo de mim perdeu o siso
e pôs-me a dormir, inda que tarde.
O sonho é uma coisa interessante:
expõe a eternidade em um instante
e faz, de um instante, a eternidade.
33-Sob a sombra de Victor Hugo
Prospecção filosófica
E lá estava o riso junto ao pranto
nos olhos irrequietos da criança,
como se fossem pares de uma dança
ou duas orações pro mesmo santo.
Quem não consegue ver a semelhança
que há entre uma lágrima e um riso,
jamais há de saber o que é preciso
pra aceitar os dotes de herança.
E lá estava o pranto junto ao riso
como que a demonstrar o que é preciso
pra entender os passos dessa dança.
Quem não consegue ver a diferença
daquilo que se faz e o que se pensa,
jamais há de voltar a ser criança.
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