Língua, texto e ensino Outra escola possível



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Língua, texto e ensino

Outra escola possível

Irandé Antunes

São Paulo

Parábola Editorial

2009
SUMÁRIO

Apresentação 11

Introdução 13

PARTE I - A LÍNGUA SOB NOVOS OLHARES



Capítulo 1 - A língua e a identidade cultural de um povo... 19

Capítulo 2 - Língua e cidadania: repercussões para o

Ensino... 33

PARTE II - O TEXTO SOB NOVOS OLHARES

Capítulo 3 - Textualidade e gêneros textuais: referência para o ensino de línguas.... 49

Capítulo 4 - Ir além dos elementos linguísticos do texto:

um desafio para os interlocutores 75



Capítulo 5 - Mas... e a coerência do texto a partir de seu material linguístico? 91

Capítulo 6 - Os vazios naturais do texto e sua coerência ... 105

Capítulo 7- O que é mesmo a informatividade do texto?... 125

Capítulo 8 - As funções do léxico na construção do texto ....141

Capítulo 9 - Da intertextualidade à ampliação da competência

na escrita de textos 161

PARTE III - O ENSINO SOB NOVOS OLHARES

Capítulo 10 - E se o ensino de línguas não perder de vista as

funções sociais da interação verbal? 173



Capítulo 11 - A leitura: de olho nas suas funções ....185

Capítulo 12 - A escrita de textos na escola: de olho na diversidade 207

Capítulo 13 - Concepções de língua: ensino e avaliação - avaliação e ensino .... 217

Capítulo 14 - Resumindo a escuta 229

Bibliografia 235
......

A Marcuschi,

a quem se ligam muitos dos fios com que fui

tecendo a rede semântica destes textos.

........
Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano

Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa

Atordoado eu permaneço atento



(Chico Buarque)

......

APRESENTAÇÃO

Os textos que compõem este livro foram, originalmente, apresentados em congressos ou seminários de linguística; alguns foram publicados depois em anais ou revistas especializadas. Responderam, portanto, a pro­pósitos acadêmicos de pesquisa e divulgação científica, dirigidos a um pú­blico de especialistas, quase sempre, professores e alunos universitários.

Ter acesso a esses textos, dispersos assim em diferentes épocas e su­portes, é pouco prático, sobretudo para os professores do ensino funda­mental e médio e para alunos dos diversos cursos de graduação do país. Decidi, então, juntá-los numa única publicação.

Mais: professores do ensino fundamental e médio e alunos dos cursos de graduação são leitores para quem a literatura disponível ainda é pouco farta. Por isso, decidi, também, dar a esses textos uma orientação mais explicitamente pedagógica e acessível.

Com esse propósito, revi-os todos e fiz significativas alterações, acres­centando, exemplificando, relacionando-os mais diretamente às práticas de ensino, na tentativa de promover um encontro maior entre a pesquisa que se faz na universidade e a orientação que o ensino de línguas exige, seja de língua materna, seja de línguas estrangeiras.

Os encontros frequentes com professores do ensino fundamental e médio e com alunos da pós-graduação me deixam sempre na escuta. É essa escuta que alimenta a minha disposição de lhes trazer um pouco

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mais de luz e apoio para enfrentarem tantos problemas que dificultam seu trabalho e deixam mais tardios os ideais de uma educação linguística relevante. A queixa dos professores de que "já não sabem, por vezes, o que fazer nas aulas de línguas" pode encontrar neste trabalho – espero - algumas, mas significativas respostas.

Meus agradecimentos a quem, implícita ou explicitamente, soube ter a disposição de me pedir essas respostas.

Mesmo, por vezes, atordoada, eu permaneço atenta a todas as perguntas!



Irandé Antunes

Recife, fevereiro de 2009



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INTRODUÇÃO

Uma professora me confessou que, ao voltar à sala de aula, depois de estar afastada por dez anos, constatou que se mantinha na escola a mes­ma programação de ensino da língua: cada uma das classes gramaticais - repetidas à exaustão, do fundamental ao ensino médio. Quase nada havia mudado, portanto, nesse espaço de tempo, apesar de tantos avanços das teorias, respaldados pelas pesquisas mais contundentes e especializadas. Como se isso pouco significasse, constatou também a professora que esse estudo era comprovadamente ineficaz, pois, no final do ensino médio, seus alunos ainda demonstravam ter grandes dificuldades, até mesmo frente aos mais elementares padrões da ortografia oficial.

Essa limitação do ensino às categorias gramaticais e suas funções sin­táticas se evidencia ainda no discurso da escola, pois, referindo-se às au­las de português, é comum, por exemplo, falar-se simplesmente em aulas de gramática, como se uma coisa equivalesse à outra. Mais de uma vez, acompanhei, em Recife, o comentário que, numa emissora de TV, é feito às provas do vestibular das universidades federais de Pernambuco. Nes­se programa, o comentário à prova de língua portuguesa foi anunciado por um professor como comentário à prova de gramática. De fato, parece acreditar-se que uma coisa equivale à outra.

Conclusão: ainda falta perceber que uma língua é muito mais do que uma gramática. Muito mais, mesmo. Toda a história, toda a produção cul­tural que uma língua carrega, extrapola os limites de sua gramática.



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Uma questão que se impõe diante de tais constatações tem a ver com o fosso existente entre os avanços teóricos das ciências da linguagem e a prática pedagógica do ensino de línguas; entre as orientações oficiais - pelo menos aquelas divulgadas por instituições dos governos - e o dia a dia da sala de aula.

Parece que são dois caminhos paralelos, que nunca vão se encontrar: por um lado, os cientistas e pesquisadores, com suas investigações e achados; por outro, os professores, com suas atividades diárias de ensino. Cada um olhando para seu próprio mundo. A especialização fica confinada no espaço da acade­mia e, assim, se torna patrimônio de poucos. O ensino continua preso às suas próprias justificativas e conveniências, e assim, vai-se reproduzindo nos mes­mos perfis e parâmetros. Muitos dos temas mais atuais desenvolvidos pela linguística ainda são estranhos aos programas estudados nas escolas. Parece que ainda falta acontecer a mútua relação entre a teoria - que inspira e funda­menta a prática - e a prática - que realimenta e instiga a teoria.

O que falta, para que a produção científica dos pesquisadores, dos lin­guistas e pedagogos tenha mais força junto ao trabalho feito na escola? O que falta para que a teoria linguística consiga desinstalar a tradição ('o modelo que se seguiu sempre') como a única referência para a prática pedagógica da escola?

O esforço por uma maior divulgação dessa produção dos centros de estudo pode ser uma das saídas para o impasse. De fato, trazer para o entendimento dos professores princípios teóricos, consistentes e bem fundamentados, explicitar teorias que possam alimentar seus debates e reflexões pode promover uma intervenção mais significativa da escola. Sobretudo, no que se refere às questões textuais ou quando se trata de ultrapassar as costumeiras questões morfossintáticas das palavras e das frases feitas a propósito.

Na verdade, os professores:

- precisam estar conscientes das amplas funções desempenhadas pelo uso das línguas na construção das identidades nacionais e na participação dos indivíduos nas mais diferentes formas de promover o desenvolvimento das pessoas e dos grupos sociais;



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- precisam saber mais sobre as questões textuais - coesão, coerência, graus de informatividade de um texto - sobre os vazios linguística e prag­maticamente autorizados pelos contextos da interação;

- precisam conhecer melhor as implicações lexicais, gramaticais e discursi­vas da diversidade de tipos e de gêneros de texto;

- precisam saber como se pode dar um tratamento textual às unidades da gramática;

- precisam conhecer mais sobre a intertextualidade e seu peso na atividade de ler e elaborar textos, sobretudo aqueles mais complexos;

- precisam saber mais sobre as grandes funções da leitura e da escrita; na verdade, precisam saber como promover a gradativa inserção do indiví­duo no mundo da escrita, ou melhor, no mundo da cultura letrada;

- precisam saber como articular ensino e avaliação, avaliação e ensino.

Tudo isso - e mais, que não dá para enumerar aqui - a fim de que, por seu trabalho, o professor consiga, de fato, alfabetizar, fazer crescer o letramento dos alunos e ampliar as competências mais significativas para as atividades sociais, interativas e de encantamento, relativas aos usos literários ou não das línguas (atividades de fala, escuta, leitura, escrita, análise).

Meu empenho com a publicação deste trabalho, conforme já fiz notar na apresentação, vai exatamente nesta direção: refletir com os professo­res, com os alunos de letras, de pedagogia, com os alunos das licencia­turas, enfim, sobre alguns aspectos das questões linguísticas. Não tenho a pretensão de trazer aqui grandes novidades teóricas. Este trabalho é, antes, uma espécie de apoio, de confirmação, de reiteração de princípios já definidos, mas que ganham ainda mais força se vistos com outros olhos, se ditos de outra forma, com outras perspectivas e outros destinos.

Digamos que faço com este livro uma tentativa de tradução de alguns dos princípios linguísticos mais amplos, que podem fundamentar um trabalho de ensino das línguas, na verdade, de educação linguística, que capacite a pessoa para atuar, com sucesso, nas atividades sociais que im­plicam, sob qualquer forma, algum tipo de linguagem.

Numa primeira parte, encaro mais de perto a relação entre língua, in­divíduo e cultura; entre língua e exercício da cidadania. Numa segunda, fixo-me em algumas questões mais especificamente textuais, para depois,



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numa terceira parte, centrar-me na atividade pedagógica do ensino, com foco em leitura e escrita. Em todo o trabalho, a perspectiva pedagógica aparece, uma vez que sempre procuro estar atenta às implicações que as teorias podem ter para o ensino.

Quero sentir-me como que me aproximando dos professores e alunos: para uma conversa. Para uma troca de ideias. Sem pretensões maiores que ajudá-los a encontrar jeitos de ver a linguagem e seu ensino com outros olhos: os olhos da interação, do diálogo, da funcionalidade, da diversidade, do encantamento. Quem sabe, assim, todos poderão sentir-se estimulados a ampliar as competências comunicativas que a convivência social exige?

Sentemo-nos, pois, para conversar um pouco!

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PARTE I


A LÍNGUA SOB NOVOS OLHARES
Este trabalho foi originalmente apresentado no VIII Fórum de Estudos Linguísticos, em novembro de 2005, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
capítulo I

A LÍNGUA E A IDENTIDADE CULTURAL DE UM POVO

O tema em apreço neste capítulo põe em con­fronto quatro realidades: língua, cultura, identidade, povo; na verdade, todas irremediavelmente indisso­ciáveis. O povo tem uma identidade, que resulta dos traços manifestados em sua cultura, a qual, por sua vez, se forja e se expressa pela mediação das lingua­gens, sobretudo da linguagem verbal. Dessa forma, não há jeito de se debruçar sobre cada um desses itens sem visualizar os outros três e os elos que os unem. Os paradigmas teóricos que tentaram isolar língua e povo, por exemplo, ou língua e cul­tura, serviram a outros objetivos que não o de dar conta da real natureza da linguagem, na sua abrangência de sistema de signos em uso, para fins da interação social.

Nessa perspectiva bem abrangente, vamos tentar mostrar os efeitos da interferência conjunta entre língua e cultura, povo e identidade, nas concepções e atividades pedagógicas do ensino da língua materna e, por extensão, no ensino de línguas estrangeiras. Devido à já referida indis- sociabilidade desses quatro elementos, evitaremos tratar cada um deles

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isoladamente. Ao contrário, a partir do fenômeno da língua, vamos pres­supor a conexão existente e determinante entre eles.

Vamos começar pela questão de base: o que é uma língua?

A escola e, em geral, o consenso da sociedade ainda se ressentem das heranças deixadas por uma perspectiva de estudo do fenômeno linguísti­co cujo objeto de exploração era a língua enquanto conjunto potencial de signos, desvinculada de suas condições de uso e centrada na palavra e na frase isoladas. Nessa visão reduzida de língua, o foco das atenções se res­tringia ao domínio da morfossintaxe, com ênfase no rol das classificações e de suas respectivas nomenclaturas. Os efeitos de sentido pretendidos pelos interlocutores e as finalidades comunicativas presumidas para os eventos verbais quase nada importavam.

Consequentemente, os fatos da interação verbal se reduziam à sim­ples condição de material linguístico, de itens gramaticais, cujo estudo, por sua vez, se exauria na simples análise dos componentes imanentes a cada um dos estratos que compõem a língua. Não foi por acaso que a exploração das classes de palavras, com todas as suas divisões e subdi­visões, constituiu o eixo dos programas de português. Uma análise de qualquer livro didático e, até mesmo, de certos compêndios de técnica de redação comprova esse dado.

Mas a integração da linguística com outras ciências, a abertura das pesquisas sobre os fatos da linguagem a perspectivas mais amplas, so­bretudo aquelas trazidas pela pragmática, provocaram o paulatino surgi­mento de novas concepções.

Com efeito, a compreensão do fenômeno linguístico como atividade, como um dos fazeres do homem, puxou os estudos da língua para a consi­deração das intenções sociocomunicativas que põem os interlocutores em interação; acendeu, além disso, o interesse pelos efeitos de sentido que os interlocutores pretendem conseguir com as palavras em suas atividades de interlocução; trouxe para a cena dos estudos mais relevantes o discur­so e o texto, desdobrados nas suas relações com os sujeitos atuantes, com as práticas sociais e com as diferentes propriedades que asseguram seu estatuto de macrounidade da interação verbal.



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Nesse cenário, era natural que ganhassem maior visibilidade as rela­ções entre a língua e seus contextos de uso, o que implica dizer entre as manifestações linguísticas e a produção e a expressão da cultura de cada comunidade de falantes.

Estava admitido, assim, o fenômeno linguístico sob a ótica de uma rea­lidade multifacetada e complexa. Aliás, muito complexa, insistimos. Isto porque incorpora elementos de diferentes ordens, uma vez que se situa também em múltiplos domínios.

Isto é, a língua, por um lado, é provida de uma dimensão imanente, aquela própria do sistema em si mesmo, do sistema autônomo, em poten­cialidade, conjunto de recursos disponíveis; algo pronto para ser ativado pelos sujeitos, quando necessário. Por outro lado, a língua comporta a dimensão de sistema em uso, de sistema preso à realidade histórico-social do povo, brecha por onde entra a heterogeneidade das pessoas e dos gru­pos sociais, com suas individualidades, concepções, histórias, interesses e pretensões. Uma língua que, mesmo na condição de sistema, continua fazendo-se, construindo-se.

Pela ótica dessa última dimensão, a língua deixa de ser apenas um conjunto de signos (que tem um significante e um significado); deixa de ser apenas um conjunto de regras ou um conjunto de frases gramaticais, para definir-se como um fenômeno social, como uma prática de atuação interativa, dependente da cultura de seus usuários, no sentido mais am­plo da palavra. Assim, a língua assume um caráter político, um caráter histórico e sociocultural, que ultrapassa em muito o conjunto de suas de­terminações internas, ainda que consistentes e sistemáticas.

Dessa forma, todas as questões que envolvem o uso da língua não são apenas questões linguísticas-, são também questões políticas, históricas, so­ciais e culturais. Não podem, portanto, ser resol­vidas somente com um livro de gramática ou à luz do que prescrevem os comandos de alguns manuais de redação.

Restringir-se, pois, à análise dos fatos da lín­gua, como se ela estivesse fora das situações de interação, é obscurecer seu sentido mais amplo

...

Marta Scherre (2005, p. 43), refletindo sobre o preconceito linguístico, se expressa nesses mesmos termos: as questões que envolvem a linguagem não são simplesmente linguísticas.



...

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de condição mediadora das atuações sociais que as pessoas realizam quando falam, escutam, leem ou escrevem. É subtrair das línguas o que de mais significativo elas têm: seu poder de significar, de conferir sentido às coisas, de expressar esses sentidos e, sobretudo, de mediar as relações interpessoais envolvidas na interação social.

A troca dos bens simbólicos, que constituem o patrimônio cultural dos grupos humanos, passa irremediavelmente pela mão dupla da interação verbal. Quer dizer, a linguagem é o suporte, a mediação pela qual tudo pas­sa de um indivíduo a outro, de um grupo a outro, de uma geração a outra. E é também o meio pelo qual se criam e se instauram os valores que dão sen­tido a todas as coisas, inclusive ao próprio homem. Ninguém pode, pois, reduzir a linguagem à questão menor de falar certo, de falar sem erro.

Efetivamente, a língua, sob a forma de uma entidade concreta, não existe. O que existe são falantes; são grupos de falantes. A língua, tomada em si mesma, não passa de uma abstração, de uma possibilidade, de uma hipótese. O que existe de concreto, de observável são os falantes, que, sempre, numa situação social particular, usam (e criam!) os recursos lin­guísticos para interagirem uns com os outros e fazerem circular a gama de valores culturais que marcam cada lugar, cada situação e cada tempo.

Nessa concepção, a língua só pode ser vista como um conjunto siste­mático, mas heterogêneo, aberto, móvel, variável: um conjunto de falares, na verdade, já que é regulado por comunidades de falantes.

Em qualquer língua, de qualquer época, desde que em uso, ocorre­ram mudanças, em todos os estratos, em todos os níveis, o que significa dizer que, naturalmente, qualquer língua manifesta-se num conjunto de diferentes falares, que atendem às exigências dos diversos contextos de uso dessa língua. Pensar numa língua uniforme, falada em todo canto e em toda hora do mesmo jeito, é um mito que tem trazido consequências desastrosas para a autoestima das pessoas (principalmente daquelas de meios rurais ou de classes sociais menos favorecidas) e que tem confun­dido, há séculos, os professores de língua.

Exatamente, por essa heterogeneidade de falares é que a língua se tor­na complexa, pois, por eles, se instaura o movimento dialético da língua: da língua que está sendo, que continua igual, e da língua que vai ficando diferente.

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Não querer reconhecer essa natural tensão do movimento das línguas é deixar de apanhar a natureza mesma de sua forma de existir: histórica e culturalmente situada.

Por conta dessas vinculações da língua com as situações em que é usada, a voz de cada um de nós é, na verdade, um coro de vozes. Vozes de todos os que nos antecede­ram e com os quais convivemos atualmente. Vo­zes daqueles que construíram os significados das coisas, que atribuíram a elas um sentido ou um valor semiológico. Vozes que pressupõem papéis sociais de quem as emite; que expressam visões, concepções, crenças, verdades e ideologias. Vozes, portanto, que, partindo das pessoas em interação, significam expressão de suas visões de mundo e, ao mesmo tempo, criação dessas mesmas visões.

A língua é, assim, um grande ponto de encontro; de cada um de nós, com os nossos antepassados, com aqueles que, de qualquer forma, fize­ram e fazem a nossa história. Nossa língua está embutida na trajetória de nossa memória coletiva. Daí, o apego que sentimos à nossa língua, ao jeito de falar de nosso grupo. Esse apego é uma forma de selarmos nossa adesão a esse grupo.

Tudo isso porque linguagem, língua e cultura são, reiteramos, realida­des indissociáveis.

É nesse âmbito que podemos surpreender as raízes do processo de construção e expressão de nossa identidade ou, melhor dizendo, de nossa pluralidade de identidades. É nesse âmbito que podemos ainda experi­mentar o sentimento de partilhamento, de pertença, de ser gente de al­gum lugar, de ser pessoa que faz parte de determinado grupo. Quer dizer, pela língua afirmamos: temos território-, não somos sem pátria. Pela lín­gua, enfim, recobramos uma identidade.

Na verdade, a língua que falamos deixa ver de onde somos. De certa forma, ela nos apresenta aos outros. Mostra a que grupos pertencemos. É uma espécie de atestado de nossas identidades. Revelamo-nos pela fala. Começamos a dizer-nos por ela. Simplesmente pela forma, pelos sons,

...

...


De fato, o que se diz só faz sentido em relação aos sen­tidos preexistentes. Nenhum discurso é o ponto primeiro de uma cadeia. Todos nós apenas continuamos o discurso que já está em circulação.

...


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pela entonação, pelo jeito com que falamos. Antes mesmo que nos revele­mos pelas coisas que dizemos. As ideias, se dizem de nós, só vêm depois do que já disseram nosso sotaque, nossas entonações, nossas escolhas lexicais e opções sintáticas.

Existe, consequentemente, uma relação de estreita interdependência entre variedade cultural e variedade linguística. Dois contextos cultural­mente distintos - mesmo no seio de um território em que se fale a mesma língua - terão, necessariamente, distinções também no âmbito de suas realizações linguísticas.

Nesse caso, estão Portugal e Brasil, por exemplo: territórios com vi­síveis diferenças geográficas, étnicas, históricas, socioculturais. Conse­quentemente, realidades presas à condição inevitável de apresentarem uma também visível diversidade linguística, sobretudo naqueles aspectos mais acidentais, que não afetam propriamente o cerne de sua identidade de sistema único.

Como realidade teórica, esse princípio se mostra inteiramente aceitável e parece não gerar maiores controvérsias. Ninguém duvida de sua perti­nência. Todos acham até mesmo engraçadas as diferenças entre os falares de Portugal e os do Brasil, nomeadamente aquelas diferenças que envol­vem diversidades lexicais. As coisas mudam, no entanto, quando a ótica pela qual essas diferenças são vistas tem a ver com a gramática, melhor di­zendo, tem a ver com a questão do português certo e do português errado.

Nesse domínio, as complicações são muitas. Por exemplo, se compa­rados os dois falares, e se constatadas diferenças (sobretudo de ordem sintática), a diferença é vista como erro, e o erro é sempre atribuído ao português brasileiro. Evidentemente, esse julgamento é, em última aná­lise, herança de uma história de colonização e dominação política, e re­monta a relações seculares de uma pretensa superioridade cultural do povo colonizador.

Não deixa de ser, portanto, resquício de uma ideologia, baseada num certo etnocentrismo, que deixa o colonizado na condição de inferior, eter­namente subalterno. Por isso é que os brasileiros, por exemplo, têm car­regado a vida toda o peso ou a culpa de terem "maculado", "subvertido",



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"deteriorado" "corrompido", "empobrecido", "atropelado", "assassinado" o português de Portugal. Este, sim, é um português "elegante", ou melhor, é "o verdadeiro português".

Nesse meio de campo, resvala-se facilmente para uma associação im­procedente, simplista (mas muito arraigada!), que consiste em se fazer uma ligação entre, por um lado, beleza e feiura e, por outro, língua certa e língua errada. Ou seja, na concepção de muitos, "língua certa" é "língua bonita"; "língua errada" é "língua feia". "Até dói nos ouvidos". Nessa visão, não apenas o português do Brasil é mais errado que o português de Por­tugal. É também mais feio e mais pobre.

......

Pesquisa realizada por Auxiliadora Coelho, em 1998, em Belém de São Francisco, alto sertão de Pernambuco, confirmou significativamente a veracidade desses dados.



.....

Pesquisas etnográficas já demonstraram a for­ça dessa associação: interrogados sobre quem falava mais bonito, se os nordestinos ou os pau­listas, nordestinos do sertão pernambucano de­clararam, com ares de quem dizia obviedades, que a fala do nordestino é muito mais feia, muito mais desagradável e deselegante que a do paulista, evi­dentemente. Essa associação, na ingenuidade de muitos, leva a afirmar que o próprio falante nordestino é mais feio que o falante paulista.

O pior é que, implícita ou explícita, sutil ou ostensivamente, a es­cola reforça tais distorções. Reforça, porque deixa de trazer para o debate aberto o princípio do relativismo cultural, pelo qual se pode admitir que, de fato, não existe língua feia ou deselegante; não existe língua que se degrade, que entre em decadência. O que existe é língua que muda, que varia, que incorpora novos sons, novas entonações, novos vocábulos, que altera seus significados, que cria associações diferentes, que adota padrões sin­táticos novos, sobretudo quando essa língua é exposta a variadas situações de uso, a outras in­terferências culturais.

A cultura do erro, tão forte no espaço da escola e nas folhas, ondas e imagens da mídia, tem reforçado essas distorções acerca do fenômeno linguístico e tem alimentado as confessadas ou discretas manifestações do preconceito linguístico.

.....

Vale a pena consultar os trabalhos de Marcos Bagno (cf. Bibliografia), que tem desenvolvido significativas pesquisas e reflexões em torno da questão do preconceito linguístico e das particularidades do português do Brasil.



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Aos partidários do conservadorismo, até parece razoável admitir que mudanças na língua tenham acontecido no desenrolar da história, ao longo dos séculos passados. Assim, a todos eles, parece natural que o português do século XXI seja diferente do português do século XVI, por exemplo. Estranham, contudo, que esse processo de mudança continue acontecendo, ainda hoje, presentemente. Estranham que, no Brasil, ago­ra, se fale um português com diferenças - da fonética à semântica - do português de Portugal. E aí apontam como erro o que, de fato, são apenas mudanças; são apenas outras normas.

Poderíamos exemplificar com o que acontece em relação aos padrões da colocação pronominal. Na escola brasileira, é tradição se considerar erro começar um período com um pronome oblíquo.

De fato, a gramática do português prescreve que "Não se inicia período por pronome átono" (cf. Becha­ra, 1999, p. 588) ou "Não se principia o período pelo pronome átono" (cf. Hildebrando, 1997, p. 451). Na verdade, essa é a norma que predomina no português de Portugal. Lá, não é preciso ser escolarizado para saber disso. Até uma criancinha diz: "Dá-me", ou ain­da, "Minha mãe disse-me que...", pois, lá, a ênclise é a norma geral da colocação dos pronomes átonos.



......

A propósito de toda essa questão da norma - bastan­te complexa, por sinal - incluindo os conceitos de norma culta e norma-padrão, vale a pena ler o livro de Faraco (2008). Muitos equívocos podem ser desfeitos.

......

Mas é diferente no português do Brasil. Neste, ao contrário, o padrão comum é a próclise, que comparece no uso da língua em geral, da culta à menos culta. Por que, então, não assumir como corretamente gramatical o que, de fato, é norma, isto é, é prática regular, na fala (e até em exempla­res da escrita formal) do português do Brasil?



Se analisarmos as observações com que, em algumas gramáticas, se abre o capítulo da colocação pronominal, temos a impressão de que, fi­nalmente, vai ser reconhecido como certo o padrão de uso dos pronomes no português do Brasil.

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Com efeito, Bechara (1999, p. 587), introduzindo o tópico sobre colo­cação dos pronomes átonos, admite que:

Durante muito tempo viu-se o problema apenas pelo aspecto sintático, criando-se a falsa teoria da "atração" vocabular do não, do quê, de certas conjunções e tantos outros vocábulos. Graças a notáveis pesquisadores, e principalmente a Said Ali, passou-se a considerar o assunto pelo aspecto fonético-sintático. Abriram-se com isso os horizontes, estudou-se a questão dos vocábulos átonos e tônicos, e chegou-se à conclusão de que muitas das regras estabelecidas pelos puristas ou estavam erradas, ou se aplicavam em especial atenção ao falar lusitano. A gramática, alicerçada na tradição literária, ainda não se dispôs a fazer concessões a algumas tendências do falar de brasileiros cultos, e não leva em conta as possibilidades estilísticas que os escritores conseguem extrair da colocação de pronomes átonos. Daremos aqui apenas aquelas normas que, sem exagero, são observadas na linguagem escrita e falada das pessoas cultas. Não se infringindo os critérios expostos, o problema é questão pessoal de escolha, atendendo-se às exigências da eufonia. É urgente afastar a ideia de que a colocação brasileira é inferior à que os portugueses observam (os destaques são nossos).


De fato, as observações de Bechara parecem abrir para a possibili­dade de se reconhecer como certo o fato de o português do Brasil adotar outros critérios além do puramente sintático para o lugar dos pronomes na frase. No entanto, na maioria das gramáticas, quando as regras da colo­cação pronominal são apresentadas, fecha-se totalmente a possibilidade de um padrão brasileiro diferente. Ao contrário, se assume um tom os­tensivamente prescritivo ("Não se inicia período por pronome átono") e indiscriminado (sem referência nem a Portugal nem ao Brasil), valendo, assim, para um português geral, abstrato, sem referência localizada.

Vale a pena perguntar-se e avaliar: qual o conceito de norma que adotamos quando propomos certas regras da língua? Pelo que se sabe, o conceito de norma "se encontra no cen­tro de numerosos debates" e remonta à complicada questão da padronização das línguas (cf. Charaudeau & Maingueneau, 2004,348-350). O conceito de norma pode equivaler a regra, que todos devem incondicio­nalmente seguir, sendo, assim, projetiva, no sentido

....

O que acontece é que a escola, em geral, enxerga a norma mais pelo ângulo da normatividade do que pelo outro, da regularidade.



......

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de que regula as produções que vão acontecer, como pode corresponder àquilo que regularmente ocorre em um determinado contexto, sob certas condições, correspondendo, portanto, àquilo que é regular, que costuma acontecer nos usos cotidianos da língua.

São dois sentidos, então, para o conceito de norma: o que é regra, pres­crição de uso; o que é regular, costumeiro nos usos de determinado grupo. No primeiro caso, norma implica normatividade; no segundo, implica re­gularidade. Nessa perspectiva, afirma Faraco (2002, p. 38): "Os grupos sociais se distinguem pelas formas de língua que lhes são de uso comum. Esse uso comum caracteriza o que se chama de a norma linguística de determinado grupo" (essa dupla conceituação de norma Faraco reitera e deixa muito bem esclarecida em seu livro de 2008).

Nessa ótica, a norma que desconsidera o uso real dos diferentes gru­pos sociais revela-se inconsistente; consequentemente, é improcedente o julgamento da correta padronização da língua que deixa de levar em conta o que, de fato, se diz em determinada comunidade de falantes. Entender bem essa diferença entre norma-padrão e norma culta é crucial para quem trabalha à volta das questões linguísticas e suas repercussões sociais.

Vale lembrar que as comunidades de falantes não vivem isoladas umas das outras. Pelo contrário, estão em constantes situações de intercâmbio, o que significa dizer que as normas particulares de cada comunidade tran­sitam também para outras, em um movimento dinâmico e contínuo de vai­vém. Esse movimento torna ainda mais complexa qualquer possibilidade de definir com precisão aquilo que poderia ser a norma-padrão nacional. Ou seja, são muitos os fatores implicados na determinação dos fatos lin­guísticos, pela razão mesma de sua vinculação à vida sociocultural das co­munidades. A questão da norma ultrapassa, assim, os limites da gramática e do léxico da língua. Infiltra-se nas intrincadas veredas das identidades culturais, das ideologias, dos valores e das crenças dos grupos sociais.

Parece oportuno ir mais adiante e perguntar: por que não assumir essa perspectiva da natural complexidade dos fatos linguísticos? Por que não trazer, do discurso teórico para a prática social e pedagógica, as implicações das teorias sociolinguísticas, que defendem a legitimidade da variação linguística de nossas interações verbais concretas?

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Até quando vamos contar como erro - erro que deve ser corrigido - o uso da próclise no Brasil, em começo de frases? Quando, de fato, vamos admitir que não existe um "português de verdade" (o europeu) e outro, "caricato", "cópia enviesada e desfigurada" (o nosso)? Quando vamos ad­mitir que o gramaticalmente certo do Brasil não precisa coincidir com o gramaticalmente certo de Portugal?

É essa ótica estreita e simplista que sustenta o sentimento verde-amarelo de que "o brasileiro não sabe falar", "fala um português estro­piado", "comete atentados contra o idioma português", "não respeita as regras da gramática". A persistência na denominação pejorativa de vícios de linguagem - tão a gosto dos escolarizados e até mesmo de professores - denuncia bem claramente esse olhar preconceituoso sobre os fatos do português do Brasil.

Seria bem mais proveitoso e mais animador se as mudanças linguís­ticas fossem vistas simplesmente como mudanças, como diferenças, algo inevitavelmente esperado na normalidade dos fatos sociais e históricos. Ou algo inteiramente previsível nos contextos regulados pelas institui­ções humanas. Numa palavra: algo normal. E mais: até enriquecedor. Des­sa forma, se evitaria ajuntar à identificação das diferenças um juízo de valor, que acaba por enquadrar os usos do passado nos usos melhores, e os de agora, nos piores, ou como práticas que ameaçam desfigurar a integri­dade ou, pelo menos, a beleza original da língua.

Num exercício de classe, uma professora solicitou que os alunos ana­lisassem um texto escrito em português do século XVII e pediu que eles opinassem sobre a linguagem usada pelo autor. A maioria dos alunos foi taxativa em mostrar que "o texto estava cheio de erros". Ou seja, os alunos cedo aprenderam a ver, nas mudanças, simplesmente, erros. Na verdade, simplesmente expressam o que a opinião geral da escola lhes tem feito ver acerca das mudanças linguísticas.

Em síntese, uma associação clara, explícita, reiterada, entre a língua e as situações culturais e históricas de seus usos poderia evidenciar que as mu­danças linguísticas são apenas decorrências normais das mudanças históri­cas e culturais sofridas pelos grupos sociais em que essas línguas são faladas. Na verdade, o que faria bem a todos nós seria mudar de óculos. Ou seja, enxergar

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a língua com os olhos da ciência, com os olhos da pesquisa linguística, da investigação antropológica ou de outra qualquer que integre o homem e sua atividade no rol das coisas em movimento, em mutação, em construção permanente. Somente assim se poderia romper com a visão ingênua subja­cente ao mito da imutabilidade e da homogeneidade linguísticas.



Evidentemente, nessa área, se situa o conflito entre a necessidade da padronização e o respeito às diferenças. A complexidade do fenômeno linguístico tem raiz também aqui: por um lado, a língua não pode per­der sua identidade; por outro, não pode deixar de incorporar mudanças e diferenças. Resta aos interlocutores equilibrar esses dois lados, o que, intuitivamente, é feito pela própria necessidade que os falantes têm de garantir a mediação da linguagem em suas atuações sociais.

A escola, nesse particular, pode assumir o papel de explicitar esse con­flito, orientando os alunos a perceber a existência das línguas como algo feito e, ao mesmo tempo, fazendo-se. A identidade de cada língua é apenas alguma coisa em viagem; sem que o padrão anterior seja melhor ou mais puro que o atual. Simplesmente, os dois lados fazem parte da original e sempre inacabada constituição das línguas. As identidades linguísticas - e todas as outras - são múltiplas, precárias e transitórias.

É lamentável que o trabalho da escola ainda obscureça esses aspectos contidos na complexidade dos fatos linguísticos. De fato, o trabalho da esco­la, à volta com as nomenclaturas, ou fechado na análise apenas sintática de frases soltas, de textos construídos artificialmente para exemplificar unida­des linguísticas, tem, na grande maioria, deixado de fora a exploração dos sentidos, das intenções, das implicações socioculturais dos usos da língua. Tem deixado de fora, sobretudo, o papel das atuações verbais na condução da própria história das pessoas e dos mundos que elas constroem e habitam.

Seria extremamente importante que a escola concedesse mais espa­ço a um trabalho de análise sobre os fatos da língua. Uma análise que ti­vesse base científica e, assim, se soltasse das impressões pessoais e das concepções ingênuas do senso comum. Uma análise que se detivesse nos aspectos mais relevantes de sua constituição; ou seja, na língua enquanto fato social, vinculado à realidade cultural em que está inserida e, assim, sistema em constante mutação e a serviço das muitas necessidades comunicativas de seus falantes.

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Uma análise que incluísse, evidentemente, questões de gramática, mas que soubesse ir muito além do que descre­vem ou prescrevem os manuais. Uma análise, enfim, que explorasse os usos reais que são feitos e, assim, pudesse surpreender o movimento de criação e de vida que passa pelo interior da história de todas as línguas. Nessas análises, a produção literária teria um lugar de destaque: seria uma forma de vivenciar o gosto pela admiração dos bens simbólicos e estéticos que fazem o patrimônio nacional.

Vale a pena sonhar com o dia em que a escola saiba despertar nos alu­nos a paixão pela língua portuguesa; inclusive pela língua portuguesa fala­da no Brasil. Saiba fazer ver que a metrópole, da qual os mares atlânticos nos separam, não pode constituir a única referência de nossa identidade linguística. A língua portuguesa falada no Brasil precisa ter como foco de sua legitimidade as manifestações da plural e mestiçada cultura brasileira.

O certo no Brasil é se falar conforme falam os brasileiros. Sem adotar, contudo, a estreiteza de negar-se a conhecer outros exemplares da lusofonia intercontinental, tão culturalmente diversificada, tão impregnada de história, de mares e de terras, tão misturada de cores (e sabores!), de sons e ritmos; por isso mesmo impossibilitada de ficar igual a si mesma, petrificada ou cristalizada numa forma única e invariável.

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Quando o debate sobre essas questões vai se tornar rotineiro nas escolas e na mídia nacional?

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Capítulo 2



LÍNGUA E CIDADANIA: REPERCUSSÕES PARA O ENSINO

1. Introdução

Mantendo a consciência da interdependência entre língua, cultura, identidade e povo, pretendemos, neste segundo capítulo, explorar, mais especificamente, o entrosamento entre língua e cidadania - o que impli­ca a relação direta entre escola e sociedade. Ou seja, pretendemos considerar a dimensão social e política do ensino da língua, ou o ensino da língua como meio e possibilidade de a escola atuar na formação, cada vez mais consciente e participativa, do cidadão. Em síntese, queremos trazer elementos que nos ajudem a compreender como o ensino de línguas - línguas que marcam a identidade cultural de um povo - pode favorecer a formação do sujeito para a cidadania.

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Este trabalho foi originalmente apresentado no XIX Congresso da Federação Internacional dos Professores de Línguas Vivas, realizado na UFPE, Recife, no mês de março de 1997. Traz agora significativos acréscimos.

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2. Ensino de línguas e concepções acerca da linguagem

O ponto crucial da questão no momento levantada reside no âmbito das concepções que temos acerca do que é uma língua, das funções que a

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gramática e o léxico desempenham, dos fins a que se destina uma língua, imediata e mediatamente, no plano individual e no plano social. Tal ponto é crucial porque representa o fundamento de tudo. As decisões pedagógicas que tomamos, as ativida­des que empreendemos - quer se trate de objetivos, quer se trate de currículos, ou de avaliação - depen­dem do conjunto das concepções que temos, mes­mo que não saibamos explicitá-las.

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Uma pesquisa feita por Maria Helena Moura Neves, em 1994, revelou que, entre tantas outras opções, os professores de português se concen­tram em atividades de reconhecimento das classes gramaticais e das funções sintáticas das palavras nas frases.

(Outros trabalhos da professora Ma. Helena tratam de questões rela­tivas à gramática e a seu ensino. Cf. Bibliografia)

Em muitas escolas do Brasil, ainda persistem esses tipos de atividades e faltam oportunidades de leitura e de escrita. A obsessão pela gramática "engole" a maior parte do tempo em sala de aula. Os pais dos alunos, alheios às exigências de uma educação linguística mais ampla, reforçam esse ensino e ingenuamente creem que assim se aprende a ler e a escrever com sucesso.

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A pesquisa acerca do que se faz nas aulas de línguas - embora aqui nos detenhamos mais nas aulas de português - tem revelado que ainda pre­valece (salvo algumas exceções) uma concepção de língua demasiado estática (sem mudanças), demasiado simplificada e reduzida (sem indefini­ções, sem imprevisibilidades), descontextualizada (sem interlocutores, sem intenções) e, portanto, falseada.

Isto é, ainda predomina uma concepção de língua como um sistema abstrato, virtual apenas, desprega­do dos contextos de uso, sem pés e sem face, sem vida e sem alma, "inodora, insípida e incolor". Uma língua que, nesses termos, facilmente se esgota em um estu­do da morfologia das palavras e da sintaxe das frases. Ou se satisfaz na exploração de nomenclaturas e clas­sificações, com requintes de pormenores, beirando, na maioria das vezes, os dogmatismos infundados das abordagens simplistas.

Os resultados desse ensino também já se deram a conhecer: o declínio da fluência verbal, da compreensão e da elaboração de textos mais complexos e formais, da capacidade de leitura da lingua­gem simbólica, entre muitas outras perdas e reduções.

Em resposta a toda essa experiência, consolida-se, por parte do aluno, a aversão quase generalizada e quase incontornável ao estudo do português,

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além da convicção de que se trata de uma língua "inaprendível", "comprovadamen­te mais difícil que todas as outras". Por parte do professor, fica a certeza de muito pouco retorno para tantos esforços, retorno que não satisfaz nem mesmo no domínio da própria vida escolar. E, como saldo final, fica a disse­minação hegemônica da "ideologia da incom­petência", isto é, a internalização pelos alunos do sentimento de que não têm competência, não sabem falar, não sabem escrever (nem conseguem aprender); enfim, não conseguem resolver, com êxito, as tarefas comunicativas do dia a dia. É curioso que essa consciência de que são linguisticamente incompetentes os alunos só desenvolvem quando passam a frequentar a escola.

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Vi, muito recentemente (2007), um grupo de crianças que brincavam de escola. O "professorzinho" passava a tarefa: um ditado das seguintes frases: Vovó vai à vila. A pipa é do papai. O pião é do Dudu. Vovó vê o ovo. Lili caiu.

Aparentemente, nada de mais. Na verdade, tem muito de menos. Falta a essa atividade o exercício de uma interação; falta uma função, uma finalidade para essas frases; falta uma unidade semântica. Quando alguém, numa situação real de interação, diz: "Vovó vai à vila", sem dúvida, está respondendo a perguntas de outro, como: Pra onde vovó vai? O que vovó vai fazer hoje? Vovó vai sair? Ou seja, ninguém diz as coisas à toa, fora de um propósito comunicativo qualquer. Fora de uma dialogicidade, pelo menos, presumida. No caso em análise, pode­mos ver que as frases se sucedem sem nenhuma motivação interacional. Muito significativo é o fato de as crianças - brincando de escola - estarem repro­duzindo fielmente o que vivenciam em sala de aula (em pleno século XXI). Se não se concebe a linguagem como uma atividade constitutivamente dialógica e funcional, seu estudo vira um exercício inócuo e sem sentido.

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2.1. Mas, que concepções de língua pode­riam favorecer um ensino que repercutisse positivamente na formação do cidadão? Em linhas muito gerais, vamos lembrar algumas.

Em primeiro lugar, a língua é uma ativida­de funcional. Isto é, as evidências nos dizem que nenhuma língua existe em função de si mesma, desvinculada do espaço físico e cultu­ral em que vivem seus usuários ou indepen­dente de quaisquer outros fatores situacio­nais. As línguas estão a serviço das pessoas, de seus propósitos interativos reais, os mais di­versificados, conforme as configurações con­textuais, conforme os eventos e os estados em que os interlocutores se encontram. Daí por que o que existe, na verdade, é a língua-em-função, a língua concretizada em atividades, em ações e em atuações comunicativas; isto é,



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a língua como modo de ação, como forma de prática social, direciona­da para determinado objetivo. Na verdade, existem muitas formas de se exercer a prática social. A linguagem é apenas uma delas e se concretiza linguisticamente, por meio do discurso falado ou escrito.

Dessa forma, vale dizer que as pessoas, quando falam, evidentemen­te, dizem coisas; mas dizem coisas para fazer outras, para praticar ações, para intervir, agir ou cumprir, em relação a um outro, certas funções. Isto é, o que dizemos tem uma força, que se manifesta em atos, os quais têm seus efeitos: são explicações, declarações, pedidos, oferecimentos, ordens, advertências, ameaças, promessas etc. O falar por falar, na prática, não existe. Se, por alguma conveniência, afirmamos isso, estamos na verdade recorrendo a uma estratégia discursiva para deixar velado um propósito que não podemos ou não queremos assumir.

Em segundo lugar, há uma estreita e inexorável reciprocidade entre língua e sociedade, entre língua e história, entre língua e cultura, por conta mesmo dessa funcionalidade da linguagem. Na verdade, socieda­de, história e cultura se constroem também pela ação da linguagem, e vice-versa: a linguagem se faz na sociedade, sob as marcas da história e da cultura. Ou seja, pela força do que as pessoas dizem, muita coisa ocorre na comunidade, e as coisas que ocorrem na comunidade voltam a repercutir no que as pessoas dizem, pois todas as concepções se ex­pressam e são compartilhadas pela linguagem. A história de todos os povos, de todos os grupos, de todas as culturas tem intersecção com a história de suas línguas.

Em terceiro lugar, e sob esse mesmo viés, ganha sentido lembrar que a linguagem é, geral e especificamente, regulada e moldada pelas estruturas sociais, deforma que não existem usos linguísticos aleatórios ou de aplica­ções irrestritas. Por exemplo, uma notícia de jornal é produzida segundo certos esquemas discursivos em voga numa determinada agência midiática; uma carta de recomendação é feita conforme as normas da instituição a que se destina. Existe, para qualquer situação de interação verbal, uma espécie de rotina discursiva, que comanda, inclusivamente, as estratégias de distribuição, de recepção e de interpretação dos discursos. Essa rotina discursiva é cultural; faz parte dos "costumes" em voga num determinado espaço e tempo.

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Conhecer uma língua implica conhecer também o conjunto de procedimentos que envolvem seu uso social.

A real possibilidade da ambivalência interpretati­va do discurso também é significativamente reduzida por esses esquemas convencionais. De fato, a inserção do discurso no âmbito de determinada prática social já permite que sejam feitas predições acerca dos sentidos e das intenções atualizados e, por outro lado, já excluem outros não cabíveis ou improcedentes.

Daí que representa muito pouco se restringir ao puramente linguístico e, muito menos ainda, ao puramente classificatório e metalinguístico, por mais sofisti­cados que sejam os meios empregados.

Em quarto e último lugar, queríamos lembrar o se­guinte: aquela língua-em-função, que só ocorre sob a forma de atividade social, para fins da interação e da intervenção humana, acontece inevitavelmente sob a forma da textualidade, isto é, sob a forma de textos orais e escritos, sejam eles breves ou longos.

E já que a língua, conforme vimos anteriormen­te, só acontece em situações reais, postula-se, para essa textualidade, além da estrutura linguística, uma outra, a estrutura extralinguística, igualmente deter­minante e relevante. Por isso é que o conhecimento linguístico, apesar de ser necessário, é insuficiente, pois o que dizemos é normatizado não só por regras linguísticas, mas ainda por regras textu­ais e por regras sociais, interativas, culturalmente estabelecidas, ratifica­das ou retificadas.

Não existe fala nem escrita autônomas, no sentido de que sua ade­quação possa ser considerada sem se levar em conta as determinações das situações em que são usadas. A coesão, a coerência, a informatividade, por exemplo, precisam da referência à situação de uso para serem legitimamente avaliadas.



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O modo de ocorrência da atividade verbal não é, portanto, uma questão de escolha aleatória do sujeito, uma espécie de prática livre e fora de qualquer coerção. Primeiramente, porque, para interagir verbalmente, não existe outro recurso senão o texto, oral ou escrito. Em segundo, porque todo texto se submete a uma série de

regularidades, que promovem, sinalizam e determinam seu teor de "peça com sentido", capaz de funcionar como mediação interativa.

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Em desdobramento a esse ponto relativo à textualidade, queremos lembrar que os materiais pelos quais atuamos verbalmente constituem gêneros e, como tais, são produzidos conforme padrões mais ou menos típicos, esses também definidos culturalmente. É assim que, pelas con­venções que se estabelecem num dado momento, uma carta difere de um relatório, um editorial difere de uma notícia, um aviso, de um requeri­mento, um anúncio, de uma crônica e assim por diante.

Quer dizer, os textos, tomados na especificidade formal de seus gêne­ros, apresentam-se:

. com uma estrutura de organização típica, uma espé­cie de grade esquemática própria;

. com partes e subpartes, até certo ponto, previsíveis; numa sequência também, quase sempre, estabelecida.

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Para cumprir tal proposta de ensino, o professor tem que ir além da tarefa de retirar do texto frag­mentos para que neles se reconheça uma unidade ou se exem­plifique o emprego de uma regra grama­tical. Ninguém fala, por exemplo, para exercitar um fonema; ou ninguém escreve a alguém com o simples propósito de praticar o uso de certas letras. Escrevemos para dizer coisas que, num dado momento, precisam ser ditas, fazem falta se não forem ditas. Em outro capítulo, na segunda parte deste livro, trazemos uma reflexão mais abrangente sobre a questão dos gêneros textuais e sugestões de como explorá-la em sala de aula.



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Convém não deixar de explicitar, no entanto, que tal estrutura é flexível, podendo ser intencionalmen­te alterada em função de propósitos comunicativos eventualmente em questão. A originalidade preten­dida para certos textos decorre exatamente da altera­ção dos padrões estabelecidos ou da quebra proposi­tada das convenções aceitas.

Um ensino de línguas que, em última instância, esteja preocupado com a formação integral do cida­dão, tem como eixo essa língua em uso, orientada para a interação interpessoal, longe, portanto, da­quela língua abstrata, sem sujeito e sem propósito - língua da lista de palavras e das frases soltas.

Evidentemente, na perspectiva linguística da interação interpessoal, o que se sobressai não é o texto estático, produto acabado, posto sobre a pági­na, como se fosse algo que se esgota na materialida­de linguística que comporta. O texto que propomos como o objeto de estudo da escola preocupada com

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a formação do cidadão é o texto que é construção e interpretação de um dizer e de um fazer, é o texto que estabelece um "ponto de encontro" entre dois sujeitos historicamente presentes num aqui e num agora definidos. É o texto vivo, que circula, que passa de um interlocutor para outro, que tem finalidades, que não acontece apenas para servir de treino.

Esse texto tem cara própria. Quer dizer, uma cara definida, embora fle­xivelmente, conforme as convenções também flexivelmente estabelecidas para a interação verbal de cada situação. Tem-nos ocorrido, assim, que ensinar uma língua — português, por exemplo —, desde que se pretenda a ampliação da competência comunicativa dos alunos — em função de competências sociais ainda mais amplas - pode tornar-se produtivo se o ensino é ensino do português dos textos em circulação nos mais variados gêneros e suportes.

Uma via de acesso a esta proposta, conforme já dissemos, são os gê­neros textuais, ou as diferentes classes de textos que circulam, por escrito ou oralmente, nas instituições e na comunidade em geral.

Na verdade, pelo estudo dos gêneros é que se poderia:

. identificar a intenção global subjacente a cada texto e os objetivos particulares de cada parágrafo;

. prever o(s) destinatário(s) e suas condições de participação no curso do evento comunicativo;

. estabelecer os critérios de ordenação e sequência dos vários segmentos do texto, em respeito à sua estrutura esquemática;

. seguir as normas de paragrafação e as convenções de apresentação de cada gênero;

. analisar e sistematizar as noções e normas gramaticais e lexicais próprias de cada gênero e das condições de circulação desse gênero.

Os programas de línguas teriam outra orientação se fossem ins­pirados pela procura do que uma pessoa precisa saber para atuar social­mente com eficácia. Os pontos da gramática ou do léxico não viriam à sala de aula simplesmente porque estão no programa nem viriam na ordem em que lá estão. Viriam por exigência do que os alunos precisam ir apren­dendo, para serem comunicativamente competentes e, assim, construírem

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Na verdade, o cerne das atividades de linguagem deve ser o exercício da interação, possibilitada pela fala e pela escrita. Na verdade, o texto é apenas mediação para a interação comunicativa, para a prática social do inter­câmbio, da troca, da participação ativa na construção responsável dos diferentes grupos em que estamos inseridos.

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e interpretarem os diferentes gêneros, ade­quada e relevantemente. Vale salientar que, de acordo com essa perspectiva, muda não apenas a ordem em que as questões aparecem. Mudam as próprias questões do programa, agora consi­deradas relevantes na medida em que interferem na construção e na interpretação da própria ati­vidade verbal.



Saber falar e escutar em contextos formais, estar inserido no mundo da comunicação escrita e da comunicação virtual, saber apreciar os va­lores literários e todas as expressões da cultura, ter consciência das imensas possibilidades de criação e de participação social promovidas pelo

uso da linguagem constituem o amplo espectro do que poderiam ser os objetivos do ensino da língua.

No entanto, só é possível eleger tais objetivos se ampliarmos nossas concepções, se ampliarmos nossos fundamentos teóricos acerca do que é uma língua, do que é ensinar, do que é aprender. Para visões curtas, obje­tivos pequenos. Objetivos amplos requerem horizontes vastos.
3. Ensino de língua e cidadania

A educação tem sido amplamente defendida como a condição básica para o desenvolvimento, para a superação dos mais diferentes problemas. Parece, no entanto, que ainda falta "sentar os pés no chão", "cair na real", para identificar os problemas-chave que afetam a sociedade e, a partir daí, estabelecer prioridades.

No que se refere ao ensino de línguas, entre tais prioridades, está, sem dúvida, a implantação séria e consistente de um programa de ensino que leve, bem amplamente, a uma educação linguística, o que significa um programa de revisão de conceitos, de alteração de mentalidades, de superação de mitos e consensos ingênuos.

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Na verdade, ainda não é uma preocupação da sociedade em geral avaliar se a escola está cum­prindo ou não suas funções. A muita gente, ainda parece natural (e, por isso, não causa nenhuma indignação) ver crianças sem escolas, escolas sem professores, professores sem programas efi­cientes de ensino, alunos sem saber ler e escre­ver, mesmo depois de oito anos de escola. Nem causa espanto ou indignação ver que tudo isso acontece exatamente com a classe mais pobre, como se o menino - apenas por ser pobre - já tivesse nascido predestinado ao analfabetismo e ao subdesenvolvimento consequente.

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Há pouco tempo, uma professora, falando comigo, observou: — Você sabe, Irandé, como o aluno da escola pública tem dificuldade para apreender! Como se isso fosse uma fatalidade. Como se essa suposta dificuldade do aluno fosse alguma coisa congênita, natural, que, inexoravelmente, tem de cumprir-se. Nunca se pensa na "coincidência" de serem apenas as crianças pobres as que não conseguem sucesso na escola.

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No que concerne ao estudo de línguas, com raras exceções, temos tido, até o momento, um ensino centrado em gramática; melhor dizendo, em classificação e nomenclatura gramatical. Aula de língua (de língua estrangeira também!) equivale a aula de gramática. Das cinco aulas semanais de língua, três, no mínimo, são de gramática. A sobra fica para redação e literatura.

Nesse contexto, o que prevalece é um ensino como "transmissão de conhecimento". Está provado que esse ensino:

. reduz a atuação do professora um trabalho de 'mera passagem de conteúdos' em função de uma cobrança posterior;

. privilegia a informação e tira de foco a formação integral da pessoa;

. faz com que os cursos se esgotem numa simples sucessão de lições;

. favorece a supremacia de um 'dizer', sem a necessária correspondência com o ser';

. estimula a compreensão de uma formação acabada, estabilizada, pronta;

. propõe um estudo "para os outros".

Em um programa orientado para uma educação linguística ampla - condição de cidadania -, o ensino e a distribuição 'do que ensinar' teriam que ser alterados. O foco seria a compreensão e a produção dos sentidos

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materializados em gêneros de textos, com grande destaque para a litera­tura. A gramática viria naturalmente (não poderia deixar de vir!), quando fosse necessária para que se pudesse entender melhor uma passagem ou expressar com mais propriedade o que se quer dizer. Viria, ainda, quando fosse necessário apreender ou avaliar as normas do uso formal da língua, conforme as exigências sociais em questão.

Nesse programa, por ser forçosamente bem amplo, a escola sairia de seus muros, para envolver a própria sociedade, que, em geral, conforme dissemos, é inteiramente tolerante e omissa frente à má qualidade do en­sino, pois não pede mudanças e não denuncia abusos e incompetências das gerências municipais, estaduais e federais. Fecha os olhos, como se a ineficiência do ensino, o fracasso da escola não a atingisse. Todo final de ano letivo, cada comunidade vê, sem se abalar, a divulgação dos tristes resultados escolares. Durante o ano, muitas famílias veem seus filhos de­sistirem da escola, e ninguém faz nada. Todo mundo considera uma coisa normal uma criança de escola pública não conseguir aprender a ler. Nin­guém se espanta com o número dos que deixam a escola (filhos de pobre, é claro!); ninguém considera isso uma perda social irreversível.

Falta, na verdade, um engajamento da sociedade nos programas de educação de sua comunidade. A escola pública não é coisa do governo. É coisa nossa. É coisa de todos. Nos diz respeito. O desenvolvimento é de todos e para todos. O crescimento não deve ser prerrogativa de quem tem dinheiro. Saber ler e escrever não pode ser um bem disponível apenas para quem pode pagar. A comunidade precisa, portanto, entrar na escola, assumi-la, como alguma coisa que também lhe pertence.

Em suma, a escola tem um papel decisivo na construção de uma so­ciedade que tenha consciência de seus deveres e de seus direitos; entre eles, o de exigir sérias e competentes administrações, para que se deixe a fácil acomodação de achar que "não tem jeito", que "é assim mesmo". Jeito tem; é só a comunidade se dispor a enfrentar, um por um, os problemas, acreditando que as coisas não têm que ser "assim como são". Elas são o que nós quisermos que elas sejam, evidentemente dentro dos limites de nossa contingência humana.

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Tudo isso no âmbito bem mais amplo da escola.

E no âmbito mais específico do ensino de línguas, como o professor poderia promover a formação do cidadão?

Primeiramente, estimulando o senso crítico do aluno por meio de múl­tiplas atividades de análise e de reflexão; instigando a curiosidade, a pro­cura, a pesquisa, a vontade da descoberta, o que implica a não-conformação com o que já está estabelecido; desestimulando, portanto, o simplismo e o dogmatismo com que as questões linguísticas têm sido tratadas.

Do ponto de vista mais estritamente linguístico, o ensino de línguas poderia promover a formação do cidadão:

. fomentando a conscientização do grande significado da linguagem para a construção dos sentidos de todas as coisas;

. centrando-se na exploração dos usos da língua - em todos: nos usos in­formais e nos usos formais, de diferentes gêneros, de diferentes dialetos, - de modo que o aluno possa partilhar do mundo da produção, da circula­ção e da análise da cultura, com destaque, é claro, para a arte literária;

. incentivando toda forma de interação - oral e escrita - como recurso de atuação competente do sujeito nas comunidades (família, trabalho, es­cola, lazer) em que está inserido;

. fomentando a prática da observação, da análise, do questionamento, da reflexão crítica, com a convicção de que conhecer é um processo em cons­tante desenvolvimento e de que não existe um saber pronto, acabado, inalterável;

. estimulando o desenvolvimento de um saber geral, de uma competência lexical, pela ampliação do repertório de informações e da capacidade do usuário para criar, recriar, ressignificar e incorporar novas palavras;

. explicitando as intuições linguísticas já sedimentadas ou ampliando as concepções acerca dos fenômenos específicos aos usos da língua;

. favorecendo a discussão sobre os mitos que se impuseram sobre as lín­guas em geral, sobre a língua portuguesa e sua trajetória histórica nas muitas terras que Portugal colonizou;

. acatando e valorizando a pluralidade linguística que se manifesta nos mais variados falares nacionais, abominando, assim, todo e qualquer resquício de discriminação ou preconceito por este ou aquele modo de falar.



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Por essa linha, é claro, o caráter de plurilinguismo do português usado no Brasil seria positivamente reconhecido e avaliado por professores e alunos, pondo fim aos inúmeros preconceitos que rondam os falares bra­sileiros. Por essa linha, ainda, a gramática desceria do pódio que, simplistamente, ocupou desde "priscas eras". Em seu lugar, ficaria a totalidade da língua; com léxico e gramática; com sua funcionalidade e seu caráter de atividade interativa e discursiva - com tempo, lugar, sujeitos e propósitos comunicativos mais variados.

Subjacente a tudo isto, estaria o desenvolvimento da capacidade de ler e de escrever; numa ascensão constante, pela consciência de que a participação de cada um na vida da comunidade é condição de vida e de progresso individual e coletivo, particular e público. Evidentemente, essa capacidade de ler e de escrever abarca, no momento, a inserção do sujeito no mundo virtual, no mundo da informática, da internet, com suas múlti­plas formas de interação.

E para que esta reflexão não se reduza ao cumprimento de um propó­sito editorial apenas, desejamos que ela possa ecoar:

. no âmbito da formação dos professores de língua, lá onde se tecem os fundamentos; lá onde se forjam os currículos das licenciaturas, dos cursos de magistério e até das pós-graduações;

. no âmbito extra-academia de todas as instâncias dos governos, lá onde se definem as políticas educacionais, os programas de ensino e de avaliação;

. no âmbito da sociedade, no lugar em que cada um de nós está, lá onde pode ter começo a fala legítima dos que se dispõem a reclamar de si, dos outros e dos governos o respeito pela pessoa.

Tudo leva a crer que, por essa forma interativa e discursiva de abordar a língua, se possa viver, dentro da escola, não uma experiência de treino, mas a vivência da atividade verbal e da reflexão sobre suas funções e seus usos. Somente assim, o sujeito dessa atividade pode assumir a condição de interlocutor, com autoria e poder de participação, para, como cidadão, intervir no destino das coisas e do mundo.

O destino das coisas e do mundo, somos nós que traçamos. Nessa aventura, a linguagem tem um poder central.

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Enquanto saber a língua identificar-se com saber um amontoado de nomenclaturas, de clas­sificações e regras estáveis, quase dogmáticas; en­quanto saber essas coisas constituir um parâme­tro de discriminação e exclusão, a escola não terá condições de cumprir seu papel fundamental:

. favorecer a participação consciente, crítica e re­levante das pessoas na construção de um mun­do em que todos possam ter vez e voz.

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De uma forma mais ampla, discuto a intricada questão da gramática e dos muitos equívocos que foram criados em torno dela, em meu livro de 2007, Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. Esse livro pode ser útil a professores, alunos e pais de alunos, em geral.



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o que é o saber, se disso a comunidade não se aproveita?

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PARTEII


O TEXTO

SOB NOVOS OLHARES


capítulo 3

TEXTUALIDADE EGÊNEROSTEXTUAIS: referência para o ensino de línguas

O tema dos gêneros textuais tem sido bastan­te estudado nestes últimos anos e pode apoiar um trabalho de estudo da língua bem mais significati­vo e consistente. Vejamos alguns aspectos implica­dos nesse tema.

1. A dimensão da textualidade como perspectiva de compreensão do fenômeno linguístico

Influências que vieram de muitas direções, prin­cipalmente do campo da pragmática, das perspec­tivas interacionais da linguagem, conduziram a linguística até o âmbito mais amplo da língua como forma de atuação social e prática de interação dialógica, e, a partir daí, até a textualidade. Ou seja, se chegou a dois con­sensos: o de que usar a linguagem é uma forma de agir socialmente, de interagir com os outros, e o de que essas coisas somente acontecem em textos.

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Este texto foi originalmente apresentado na Universidade Federal de Alagoas, Maceió, em 1997, por ocasião do I Congresso Nacional da ABRALIN, na mesa redonda intitulada "Gêneros textuais como prática discursiva e prática social." Para a presente publicação, foram feitas sensíveis complementações.

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Por textualidade, então, se pretende considerar a condição que têm as línguas de somente ocorrerem sob a forma de textos e as propriedades que um conjunto de palavras deve apresentar para poder funcionar co­municativamente.

Quer dizer: falamos ou escrevemos, sempre, em textos. Isso é de uma obviedade tremenda. Mas algumas distorções do fenômeno linguístico, sobretudo aquelas acontecidas dentro das salas de aula, impediram que essa evidência fosse percebida. Por essas distorções, chegou-se a crer que textos são apenas aqueles escritos, ou aqueles literários, ou aqueles mais extensos (uma palavra só nunca poderia constituir um texto!). Con­sequentemente, a frase ocupou o lugar de objeto de estudo e de análise da língua na escola. Pensava-se a língua a partir de frases; exercitava-se a língua a partir de frases.

A chegada ao consenso da textualidade implicou, portanto, uma mu­dança de perspectiva, a qual ampliou sensivelmente o objeto da inves­tigação linguística e a deixou na condição epistemológica de dar conta daquilo que acontece, efetivamente, quando as pessoas falam, ouvem, es­crevem e leem nas mais diferentes situações da vida social. Representou, portanto, um grande passo para a compreensão do que é a linguagem e de seu modo de funcionar.

Entretanto, incluir a textualidade na imensa complexidade linguístico-social em que ela se ma­nifesta, significou, também, sujeitar-se à heteroge­neidade e à fluidez próprias de todos os tipos de atuação humana. Ou seja, por um lado, alargaram- se as perspectivas de apreensão do objeto linguísti­co, mas, por outro, se entrou no corredor movediço das indeterminações e das contingências próprias das práticas sociais. As definições e classificações categóricas, que são possíveis no âmbito da pala­vra e da frase isoladas, foram dando lugar às dependências enunciativas e contextuais. Nessa perspectiva, as palavras e as frases passaram a ganhar pleno sentido somente na medida em que são vistas como partes de tex­tos,

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Nesse ponto, recordo Hartmann, citado por Schmidt (1978, p. 7), quando defende que é no texto que consiste o 'sinal linguístico primá­rio' e, portanto, é ele o ponto de partida para uma linguística fenomenologicamente adequada a seu objeto.



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como componentes de discursos, pelos quais as pessoas dizem, agem, participam, tomam posições, se firmam e se afirmam no aqui e no agora de sua existência.

Assim, com a ampliação de paradigmas, trazida pela consciência da textualidade, a linguística ficou exposta:

. por um lado, a uma maior abrangência do fenômeno original da língua - o texto;

. por outro, às indeterminações de um objeto que, apesar de regular, se manifesta como heterogêneo, flexível e multifuncional.

Apesar dessa condição de indeterminação, cremos que as vantagens de ter aterrissado no domínio do texto são maiores que aquelas das abor­dagens centradas em unidades isoladas, descontextualizadas, rígidas, exatas e uniformes (lembro as tais frases soltas ou aqueles textos cartilhados do tipo "Ivo vê a uva".)

2. A dimensão da textualidade como fundamento para o ensino de línguas

Em desdobramento àquela abertura de paradigmas trazida pela con­sideração da textualidade, ganhou impulso a divulgação de uma proposta: a de que o estudo das línguas recobraria mais consistência e mais relevân­cia se elegesse, como ponto de referência, o texto.

É fácil encontrar razões que sustentem a pertinência dessa propos­ta. Entender o fenômeno da linguagem constitui uma tarefa tanto mais fecunda quanto mais se pode compreender os diferentes processos im­plicados em seu funcionamento concreto, o que leva, necessariamente, ao domínio do texto, em seus múltiplos desdobramentos cognitivos, linguís­ticos, discursivos e pragmáticos.

O texto envolve uma teia de relações, de recursos, de estratégias, de operações, de pressupostos, que promovem a sua construção, que promo­vem seus modos de sequenciação, que possibilitam seu desenvolvimento temático, sua relevância informativo-contextual, sua coesão e sua coerên­cia, enfim.



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De fato, um programa de ensino de línguas, comprometido com o desenvolvimento comunicativo dos alunos, somente pode ter como eixo o texto, em todos esses e outros desdobramentos.

A divulgação desses princípios foi-se fazendo pouco a pouco. E as con­sequências se fizeram sentir, pelo menos no âmbito das discussões e das orientações pedagógicas mais gerais. Documentos oficiais - por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais - defenderam, explicitamente, que o uso da língua, em textos orais e escritos, é que deveria ser o eixo do ensi­no. Entre os objetivos desse ensino, foram incluídas metas como a amplia­ção da competência comunicativa dos alunos, e outras congêneres.

Entrava em jogo, para os professores, uma mudança de perspectiva e uma ampliação de paradigma, que afetariam sua concepção de língua, de gramática, de texto, de frase e, assim, a redefinição do objeto mesmo de ensino. E passar das discussões - muitas delas altamente especializa­das - à prática pedagógica implicava repensar, redimensionar os paradig­mas anteriores, tarefa para a qual faltaram orientações mais específicas e acessíveis aos professores do ensino fundamental e do ensino médio.

Vieram, então, as simplificações inevitáveis. Empenhados em "ensi­nar línguas com base no texto", "a partir do texto", "através do texto", "de forma contextualizada", algumas propostas de atividades supunham estar alinhadas pelas novas perspectivas, simplesmente pelo fato de estarem propondo a retirada de palavras e frases dos textos para fazer os mesmos tipos de análises que faziam antes.

Ou seja, a rigor, eram mantidos os mesmos pressupostos teóricos; só que, agora, as palavras e as frases para a análise já não eram escolhidas ao acaso, mas eram fragmentos de um determinado texto, que, assim, na feliz expressão de Marisa Lajolo (1986, p. 52), servia apenas de "pretexto" para o reconhecimento e a classificação das unidades e de suas definições morfossintáticas.

Quer dizer, em sua maioria, as velhas perspectivas de ensino persis­tiram, e as práticas continuaram as mesmas, com a aprovação tácita (ou não) de professores e gestores e com o apoio explícito e feliz de grande parte dos pais dos alunos.

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Dessa forma, continuava fora de foco o estudo das regularidades tex­tuais, ou o estudo dos processos e das estratégias implicados na construção e na interpretação da atividade verbal, no entendimento de suas funções e do que as pessoas fazem com ela no cotidiano de suas relações sociais.

É evidente que, se não se consegue desco­brir o texto e suas regularidades, também não se descobre a língua na sua dimensão funcional de atividade interativa. Daí que continuou, em grande parte das escolas, a experiência inócua e frustrante de um estudo de língua que parece esgotar-se em exercícios de classe e deveres de casa, que pouco ou nada têm de discursivos, de textuais, de interativos, de funcionais. Na verda­de, como se tem apregoado, literariamente ou não, uma é a língua que se fala; outra a que se estuda na escola (às vezes nem parece língua!).

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Lembro o conhecido poema de Drummond, Aula de português, que se fecha com o verso: "O português são dois: o outro mistério", em alusão ao artificialismo da língua estudada na escola.



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3. A dimensão da textualidade desde a realização dos gêneros textuais

Admito que uma das explicações de não se ter aterrissado no vasto do­mínio da textualidade reside na pouca abrangência com que se tem enca­rado a linguagem. Por razões históricas - fora de análise aqui -, as línguas foram vistas, preferencialmente, em seus aspectos imanentes; isto é, na­quilo que é especificamente linguístico e interior a seu sistema de regras.

Não se percebeu que é preciso ir além e atingir os elementos que condicionam esse linguístico, que o determinam e lhe conferem, de fato, propriedade e relevância. Ou seja, é preciso chegar ao âmbito das práti­cas sociais e, daí, ao nível das práticas discursivas, domínios em que, na verdade, são definidas as convenções do uso adequado e relevante da língua. Desde esses domínios, é que se pode perceber os modos de cons­trução dos textos concretos, aqueles historicamente reais e situados no tempo e no espaço.

Nessa perspectiva bem mais ampla, poderíamos lembrar que:



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. os textos diferem enormemente, pois dependem da multiplicidade de propósitos que envolvem; por exemplo: um aviso tem uma finalidade co­municativa bem diferente daquela de um ensaio ou de um editorial;

. os textos obedecem a certos padrões mais ou menos fixos; são, pois, uma espécie de modelos, resultantes de convenções estabelecidas pelas co­munidades em que circulam e a que servem; por exemplo, um relatório, um requerimento seguem certas convenções sedimentadas pelas pró­prias instituições que os adotam;

. os textos se organizam, assim, em estruturas típicas, as quais, por sua vez, se compõem de blocos ou partes, cada uma desempenhando uma função também determinada; um artigo científico, por exemplo, tem uma configuração própria, que inclui diferentes partes, cada uma com uma função particular;

. os textos - na conformação a essas estruturas - contêm elementos obri­gatórios e elementos opcionais. Os primeiros, mais que os segundos, mar­cam o que, efetivamente, é típico de um gênero, ou, mais precisamente, de uma classe de gênero; por exemplo, em uma resenha, é obrigatório um bloco em que se apresente uma síntese do conteúdo da obra rese­nhada; é opcional a apresentação do sumário ou de comentários acerca da bibliografia referida.

Fica evidente: o que se tem denominado de 'gêneros de texto' abarca outros elementos além do linguístico, pois abrange normas e convenções que são determinadas pelas práticas sociais que regem a troca efetivada pela linguagem. Daí que conhecer os diferentes gêneros que circulam oral­mente ou por escrito faz parte de nosso conhecimento de mundo, de nosso acervo cultural. (A escola não pode furtar-se à responsabilidade de pro­mover esse conhecimento.)

O conceito de 'gêneros textuais', portanto, retoma - ampliando-o, no entanto - um pressuposto básico da textualidade: o de que a língua usada nos textos - dentro de determinado grupo - constitui uma forma de comportamento social. Ou seja, as pessoas cumprem determinadas atuações sociais por meios verbais, e tais atuações - a exemplo de todo o social - são tipificadas, estabilizadas; por outras palavras, são sujei­tas a modelos, em que a recorrência de certos elementos lhes dá exata­mente esse caráter de estabelecido, de típico, de regular. É esse caráter

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de 'regular' que faz com que o próprio conteúdo de um gênero possa ser previsto.

Daí também a possibilidade de se prever os modos de desenvolver um determinado gênero, ou de se prever os protótipos textuais, com regulari­dades de estrutura, de conteúdos, com regularidades lexicais e gramaticais - do que resultam as expectativas que alimentamos em relação à atividade verbal. Mesmo intuitivamente, sabemos que existe uma espécie de modelo para cada gênero de texto. É comum perguntarmos sobre como se faz um requerimento, como se faz uma resenha, uma ata, e assim por diante.

Vale a pena ressaltar que a tipicidade dos gêneros decorre de outra tipi­cidade anterior: a das situações em que os textos se efetivam, situações que são também culturalmente construídas, como lembram Halliday & Hasan, em seu trabalho de 1989, p. 55. Ou, como diz Todorov (1976, p. 162):

Em uma sociedade, a recorrência de certas propriedades discursivas é insti­tucionalizada, e os textos individuais são produzidos e percebidos em rela­ção às normas constituídas por esta codificação. Um gênero, literário ou não, é esta codificação de propriedades discursivas.

Mas vale ressaltar ainda que, apesar de típicos e de estáveis, os gêne­ros são também flexíveis; quer dizer, variam no decorrer do tempo, das situações, conforme a própria trajetória cultural diferenciada dos grupos em que acontecem. Variam ainda porque assumem novas formas, novas representações e valores; porque alteram sua frequência de ocorrência ou, ainda, porque surgem "caras novas", isto é, surgem gêneros novos (o e-mail, o blog, a teleconferência, por exemplo).

Tais variações acentuam, por um lado, aquele aspecto heterogêneo das atividades verbais e, por outro, o caráter inter-relacional das proprie­dades da textualidade, pois cada variação de um texto significa, na verda­de, uma resposta pessoal do sujeito às condições concretas de produção e circulação de seu discurso. Assim, ressalto, ao considerar a tipicidade dos textos, não podemos deixar de lado a flexibilidade com que aquelas regularidades acontecem.

Nesse quadro, ainda, cabe a consideração acerca da reciprocidade entre linguagem e sociedade, ou a bidirecionalidade entre linguagem e situação social.

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Com a linguagem as pessoas atuam, intervêm na socieda­de, e, em contrapartida, as atuações que elas empreendem na sociedade repercutem em sua linguagem.
4. Os gêneros textuais e o ensino de línguas: com que fundamentos?

Com o propósito de sintetizar os fundamentos de uma proposta do ensino de línguas com base na tipicidade dos gêneros textuais, gostaria de reiterar neste tópico:

. o conceito de gênero, definido, segundo Swales (1990, p. 33), como: "Uma categoria distintiva de discurso de algum tipo, falado ou escrito, com ou sem propósitos literários";

. o princípio de que "os gêneros têm uma estrutura esquemática típica", a qual é condicionada pela "configuração contextual" em que os textos são produzidos e postos em circulação;

. o princípio de que tal configuração contextual possibilita prever-se (com flexibilidade, é claro), para cada gênero, que elementos são obrigatórios ("devem ocorrer"), quais deles são opcionais ("podem ocorrer" - mas, não aleatoriamente), qual a sequência em que se distribuem (onde devem ou podem ocorrer) e sob que formas os gêneros se apresentam, se iniciam, se desenvolvem e podem ser considerados completos.

O momento atual dos estudos que contemplam a questão dos gêne­ros ainda reclama por definições mais precisas e consistentes. Mesmo assim, consideramos, em sequência à voz de alguns autores, que muito já se compreendeu acerca dos gêneros; portanto, chegar a suas minúcias classificatórias não representa um interesse prioritário. Swales, em sua obra de 1990, p. 37, afirma: "Mais do que o interesse classificatório que a questão do gênero pode oferecer, vale a pena centrar-se nas suas possibi­lidades clarificatórias" (grifos meus).

Ou seja, a ênfase da questão deve estar na explicitação dos mode­los pelos quais, em seus textos, as pessoas realizam seus fins comu­nicativos e, não, na possibilidade de se estabelecer um sistema uni­forme para a classificação da imensa variedade de gêneros.

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Em síntese, mesmo conhecendo as dificulda­des de chegar a classificações mais precisas e con­sistentes, vale tomar os gêneros como referência para o estudo da língua, e, consequentemente, para o desenvolvimento de competências em fala, em escuta, em leitura e em escrita dos fatos ver­bais com que interagimos socialmente.

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Tem-se referido que as pesquisas acerca dos aspectos da organização dos diferentes gêneros de textos ainda são insuficientes e, assim, nosso conhecimento das estruturas esquemáticas dos textos permanece quase sempre implícito. No entanto, vale con­siderar que já existem consideráveis trabalhos sobre os gênerose suas repercussões no ensino de línguas. Na bibliografia, apresentamos várias referências dessas obras.



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Que implicações pedagógicas poderia ter o fato de admitirmos os gêneros como referência de nosso trabalho em sala de aula?

. Em primeiro lugar, os textos, orais e escri­tos - suas regularidades, suas normas, suas convenções de ocorrência - passariam a ser o objeto de estudo das aulas de língua - mesmo nas primeiras séries do ensino fundamen­tal. Quer dizer, passariam a ser o eixo do programa. Poderia ter fim, portanto, o monopólio da gramática e a velha prática de fazer do texto, apenas, o espaço para encontrar as classes de palavras que os alunos precisam aprender a reconhecer e a classificar. O programa, reitero, seria o texto. (Bem dizendo: o texto oral e escrito).

. Assim, os textos assumiriam sua feição concreta, particular, de rea­lização típica, uma vez que seriam identificados como sendo, cada um, de determinado gênero. As atividades de escrita, por exem­plo, deixariam de ter o estatuto de peça indefinida ("Escrevam um texto"; "Façam uma redação"; "Falem sobre") para terem a cara e o nome particular do gênero que realizam ("Escrevam uma carta, um aviso; Façam um convite" etc.). Por sinal, vale a pena acres­centar que o nome do gênero já aponta, por si só, para o propósito comunicativo do gênero: um convite, um aviso, um atestado, um anúncio, um debate, uma exposição oral já antecipam muito de seu

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propósito comunicativo. Tem sentido, portanto, nomear os tex­tos que escrevemos, falamos ou analisamos, chamando-os por seu nome específico, isto é, pelo nome do gênero que realizam. Como disse, deixa-se a perspectiva generalizada e indefinida, meio etérea, do texto simplesmente; como se todos, os orais e os escritos, fossem iguais.

. Recobraria pleno sentido também o estudo detalhado das estrutu­ras de composição dos textos ou a sua forma composicional, quer dizer, conheceríamos que blocos compõem determinado gênero; que formas assumem e em que sequência esses blocos são distri­buídos. Todo texto se concretiza numa determinada forma de cons­trução, que engloba certa sequência de elementos, mais ou menos estipulados. Se somos capazes de, empiricamente, reconhecermos a que gênero pertence determinado texto, é porque identificamos as formas prototípicas de eles se concretizarem numa determinada sequência. Uma exposição oral, por exemplo, obedece a certas res­trições - que precisam ser previstas - embora, em toda circunstân­cia, haja abertura para as necessárias adaptações.

. Na perspectiva dos gêneros, ainda, as regras gramaticais ganhariam seu caráter de funcionalidade, uma vez que seriam exploradas de acordo com as particularidades de cada gênero. O estudo dos pro­nomes, de cada uma de suas subclasses, por exemplo, atenderia ao que é comum acontecer em cada gênero; assim, os pronomes de tratamento seriam estudados quando se estivesse explorando as especificidades das cartas e de outros tipos de comunicação inter­pessoal e, não, a partir da sequência das classes de palavras. Mais: as diferenças implicadas nos usos dos modos e dos tempos verbais ganhariam sentido quando vistas como exigência de determinado gênero narrativo, descritivo ou expositivo; uma notícia, por exem­plo, apresenta uma sequência de fatos que se evidencia pelo uso do verbo no pretérito e por expressões que marcam sequência tempo­ral. Os conectivos argumentativos mereceriam um estudo particu­lar quando fossem analisados gêneros dissertativos ou opinativos, acerca de uma ou outra questão, e assim por diante.

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. Além disso, as atividades de compreensão superariam o simples cuidado de entender o texto, ou a semântica de seu conteúdo, para atingirem os propósitos comunicativos com que foi posto em circulação. Numa palavra, deve-se ir além do sentido para identificar também as intenções pretendidas pelo au­tor, as quais se expressam nas palavras e em muitos outros sinais.

. O estudo dos gêneros permitiria aos alunos perceber como a elaboração e a compreen­são de um texto resultam da conjunção de fatores internos à língua e de fatores exter­nos a ela; externos, porque ancorados numa situação social que envolva uma prática de linguagem. Essa conjunção de fatores inter­nos e externos poderia fundamentar, inclu­sivamente, a prática da análise linguístico- pragmática de mal-entendidos, de conflitos, de imprecisões ou de ambiguidades, atesta­dos em uma comunicação.

. Esses e outros objetivos fariam com que os conceitos de 'certo' e de 'er­rado' - formas quase exclusivas de se avaliar na escola uma decisão lin­guística - cedessem lugar a outras referências, reveladoras da relação entre língua e contexto, entre um interlocutor e outro, entre dizer e fazer. O texto "bom" não seria visto, portanto, simplesmente pela ótica da cor­reção gramatical, conforme pensa muita gente. Um texto absolutamente correto pode estar fora das especificidades de seu gênero, por exemplo, e, assim, já não seria um exemplar da boa linguagem. Uma palavra mal escolhida pode quebrar o fio de coerência ou gerar problemas de clare­za que afetam o entendimento. É preciso que tenhamos olhos para ver outras coisas nos textos além de sua correção gramatical. A escola não pode centrar-se apenas no estudo da gramática e deixar para descrições sumárias e superficiais a complexidade das questões textuais.

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Sabemos como a análise do desempe­nho dos alunos é feita, quase exclusivamente, com base em aspectos de sua superfície e na perspectiva do puramente gramatical. Essa visão é tão arraigada que qualquer trabalho de avaliação é referido como uma atividade de "corre­ção". Os professores sempre falam em "corrigir" quando se trata de avaliar provas, redações, resumos etc. Não têm uma visão mais ampla que lhes permita perceber que vão "avaliar" o trabalho dos alunos e, assim, procurar perceber o que eles acertaram e o que eles não compreenderam bem.



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. Outra implicação do estudo dos gêneros seria que as habilidades propostas, tanto para a fala quanto para a escrita, contemplariam a variedade da interação verbal que, de fato, marca a vida das pessoas nos diferentes grupos sociais. Vale a pena lembrar que essa varie­dade não é aleatória, mas depende também do lugar social em que tem lugar cada interação. Esse lugar, constantemente referido como "domínio discursivo", é também mais ou menos estabilizado, embora varie de uma cultura para outra. Lembramos, por exemplo, o domí­nio religioso, o domínio jornalístico, o domínio da ciência, o domínio acadêmico, o domínio jurídico, o domínio da literatura, o domínio da publicidade, e, entre outros, o domínio mais recente da esfera ele­trônica e digital. Cada um desses domínios se distingue também por ativar determinadas atividades de linguagem (argumentar, expor, narrar, descrever, orientar), que, por sua vez, exigem determinadas competências comunicativas (por exemplo, os comentários, as aná­lises de opinião, a exemplo dos editorias, são gêneros em que pre­dominam estratégias argumentativas). Cada um desses domínios, ainda, abriga uma série de gêneros próprios, com uma configuração e propósitos comunicativos também mais ou menos próprios. Focali­zar tais elementos da realidade interacional da vida social é concentrar-se no modo de, efetivamente, a linguagem acontecer. Os objetivos estreitos com que o uso da língua comumente é vista na escola dei­xam a impressão de que todo texto tem as mesmas configurações, não importa o domínio social em que acontece ou o propósito comu­nicativo que traz. A propósito, a escolha do texto dissertativo, como objeto de avaliação nas provas dos vestibulares, fez com que "a reda­ção" se constituísse no único "gênero" que os alunos do ensino médio precisam aprender a redigir. Quando vão debruçar-se sobre outros gêneros, socialmente tão requisitados e relevantes?

. Ainda: com o estudo dos gêneros, as dificuldades de produção e de recepção dos textos seriam mais facilmente atenuadas e, progressi­vamente, superadas. A familiaridade dos alunos com a diversidade dos gêneros os deixaria aptos a perceberem e a internalizarem as regularidades típicas de cada um desses gêneros, além de favorecer a capacidade de alterar os modelos e criar outros novos.

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. Vale a pena lembrar que, na verdade, cada gênero constitui uma espécie de classe, de agrupamento particular, representa um con­junto de textos com semelhanças formais muito próximas. Assim é que cada gênero admite subtipos no interior de seu próprio escopo. Por exemplo, uma 'carta' corresponde a diferentes configurações, conforme seja carta de amor, de recomendação, de cobrança, de apresentação, de solicitação, de protesto, de pedido de demissão, de leitor etc. Por essa e outras razões, os gêneros textuais permitem que se apreenda o funcionamento da língua como parte de muitas e diferentes relações histórico-sociais; por isso mesmo, um funciona­mento complexo e heterogêneo.

. Em suma, a língua virtual, cujo estudo se esgota pela consideração da palavra e da frase isoladas, cederia lugar à língua que, de fato, é atua­ção de sujeitos de linguagem, ao lado de tantas outras manifestações culturais com que se vai tecendo a história das pessoas e do mundo. Admitindo-se que o subdomínio textual dos gêneros, orais e escritos, constitui um setor de grande relevância e de grande complexidade, não podemos deixar de ressaltar que seu estudo não pode prescin­dir de uma intervenção didática bem fundamentada, consistente e gradual. Por essa intervenção é que se poderá articular os diferentes tipos de conhecimento (o linguístico e os não linguísticos), e desen­volver a necessária competência para falar e escrever, ouvir e ler de forma adequada às diferentes situações da comunicação social.


6. À guisa de ilustração: os termos de uma proposta

Arrisco-me a propor o que poderia ser um programa de estudo de línguas a partir dos gêneros, ou, noutras palavras, um caminho por onde se possa estruturar o ensino do texto. É algo incompleto, é claro, suscetível de ser alte­rado, conforme cada realidade; mas uma espécie de referência. Vejamos.

Restringindo-me, por enquanto, ao ensino fundamental, julgo que a se­leção das atividades e dos conteúdos poderia ser feita, em cada unidade, em torno de determinado gênero, que seria, assim, o objeto central de estudo dos fatos de fala, de escrita, de leitura, de análise e sistematização linguística.

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Essa opção não implicaria que outros gêneros - além do gênero es­colhido - não fossem objeto de leitura e de análise. Na verdade, o que se propõe é que determinado gênero seja o item central do estudo daquela unidade, isto é, seja o objeto do trabalho escolar. Por vezes, os livros didáti­cos exploram certos gêneros, mas de uma forma muito apressada e super­ficial, de forma que os alunos não apreendem com muita clareza aspectos centrais desses gêneros, como sua forma de composição, concretizada, na prática discursiva, com múltiplas e funcionais variações.

Ancorada nessas convicções, arrisco-me, repito, a propor uma espécie de grade programática, que se organizaria tendo em cada unidade um de­terminado gênero como ponto nuclear a ser objeto de estudo, de análise, de aprendizagem, afinal (sem excluir, insisto, a leitura e a eventual produ­ção de outros gêneros). Por vezes, pode acontecer de um gênero estender- se por mais de uma unidade, dada a sua complexidade. Tudo isso, numa atitude pedagógica comprometida com os usos efetivos da língua e com a decisão de favorecer o desenvolvimento 'da competência comunicativa' dos alunos. Para que, sendo ampliada, essa competência lhes possa servir em sua atuação de efetivos participantes de uma sociedade letrada. Lem­bro que, nessa altura da vida escolar, o ensino fundamental, a exploração da nomenclatura das unidades gramaticais não constitui prioridade.

Em síntese, tal grade programática poderia ter, mais ou menos, a se­guinte configuração.

1ª SÉRIE


Ia UNIDADE

2a UNIDADE

1 - Leitura

Além de outros gêneros de texto, leitura, interpretação, análise e comentário de listas e de enumerações.



1 - Leitura

Além de outros gêneros de texto, leitura, interpretação, análise e comentário de bilhetes.



II - Produção oral e escrita

Composição de listas e enumerações diversas com os respectivos enunciados de abertura.



II - Produção oral e escrita

Composição de bilhetes, com diferentes propósitos comunicativos e extensões, (nessa altura, também se deve dar espaço à realização de 'recados').



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III - Análise e sistematização linguística

a) explicitação das condições de uso dos nomes comuns e próprios;

b) reconhecimento das condições de uso dos adjetivos (como caracterizadores e restritores dos nomes);

c) diferentes critérios de ordenação dos vários itens de uma enumeração;

d) exploração do vocabulário (com maior atenção para os hiperônimos, que, nos enunciados de abertura das listas e enumerações, desempenham uma função resumitiva);

e) estudo das convenções ortográficas;

f) exploração da pontuação específica para esse gênero;

g) usos de maiúsculas e minúsculas;

h) normas de apresentação de listas e enumerações;

i) considerações acerca de seus contextos sociais de uso: onde usamos listas, de que tipos, com que funções etc.



III -Análise e sistematização linguística

a) formas de explicitação do objetivo particular de cada bilhete;

b) previsão do destinatário para 0 cálculo efetivo de certas decisões textuais e linguísticas;

c) normas de uso dos pronomes pessoais e de tratamento adequados a esse gênero;

d) estudo das convenções ortográficas;

e) exploração da pontuação específica;

f) normas de apresentação de um bilhete;

g) análise do nível de linguagem usado nos bilhetes, 0 informal, em geral.



3a UNIDADE

4a UNIDADE

1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de convites.



1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de avisos.



II - Produção oral e escrita

Composição de convites



II - Produção oral e escrita

Composição de avisos



III - Análise e sistematização linguística

a) previsão das decisões linguísticas decorrentes das condições de produção desse gênero (destinatários, suporte, finalidades do convite etc.);

b) explicitação das normas de polidez peculiares a esse gênero;

c) critérios de ordenação e de sequência dos vários segmentos específicos de um convite;

d) noções de divisão do texto em parágrafos;

e) normas de uso dos pronomes de tratamento;



III - Análise e sistematização linguística

a) previsão das regularidades e possíveis alterações linguísticas decorrentes das condições de produção desse gênero de texto (destinatários, finalidade, espaço de circulação, suporte etc.);

b) critérios de ordenação e de sequência dos vários segmentos próprios de um aviso;

c) usos dos tempos verbais em textos com função de informação e de advertência, como são os avisos;



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f) estudo das convenções ortográficas;

g) exploração da pontuação específica para esse gênero;

h) normas gerais de apresentação de um convite, em suas múltiplas variações.


d) explicitação das normas de polidez decorrentes das relações entre 'quem avisa e quem é avisado';

e) exploração do vocabulário específico;

f) estudo das convenções ortográficas;

g) exploração da pontuação específica para esse gênero;

h) normas gerais de apresentação de um aviso, em suas múltiplas variações e conforme os diferentes suportes em que circulam.

2ª SÉRlE


Ia UNIDADE

2a UNIDADE

1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de historinhas.



II - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de segmentos descritivos que fazem parte de historinhas.



II - Produção oral e escrita

Composição e recontagem de historinhas.



II - Produção oral e escrita

Composição de segmentos descritivos com diferentes propósitos comunicativos.



Ill -Análise e sistematização linguística

a) introdução à identificação e à explicitação dos vários elementos constitutivos do esquema de uma narrativa [espaço, tempo, personagens (principais e secundários), conflito, desfecho etc.]);

b) explicitação das regras de uso dos artigos indefinidos e definidos, enquanto elementos gramaticais de determinação das expressões referenciais que aparecem na sequência do texto;

c) noções de 'substantivo' (como elemento núcleo das expressões referenciais) e do 'adjetivo' (como elemento caracterizador e restritor das entidades referidas);

d) noções de 'substituição lexical' como prática de retomada das referências feitas em partes prévias do texto (substituições


Ill - Análise e sistematização linguística

a) exploração das diferentes perspectivas com que as pessoas, os objetos, os cenários, as entidades podem ser descritos (descrição objetiva, descrição subjetiva, descrição genérica, descrição detalhada, descrição física, descrição psicológica etc.);

b) critérios de ordenação ou de sequencia- ção dos elementos da descrição;

c) previsão das possíveis alterações textuais e linguísticas decorrentes dos diferentes propósitos e destinatários previstos, com atenção especial para a seleção vocabular adequada;

d) exploração da função dos adjetivos como elementos que caracterizam ou restringem os indivíduos descritos;


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de uma palavra por outra; substituições que podem ser por sinonímia, por hiperonímia ou por uma expressão que, contextualmente, implica equivalência de sentido ou de referência);

e) noções preliminares do discurso direto (a voz literal dos personagens) e do discurso indireto (a voz do narrador), com suas respectivas normas de uso;

f) identificação dos diferentes tipos de conec­tivo (preposições, conjunções, advérbios e respectivas locuções) que promovem a arti­culação entre partes da narrativa;

g) estudo das convenções ortográficas;

h) exploração da pontuação específica para esse gênero, com atenção especial para O uso do travessão;

i) exploração das normas de divisão desse gênero em parágrafos;

j) exploração das muitas opções de títulos para as histórias;

k) normas gerais de apresentação de uma história, com ou sem ilustração de imagens ou de outros sinais gráficos, por exemplo.



e) estudo das convenções ortográficas;

f) exploração da pontuação em segmentos descritivos;

g) normas de uso dos tempos verbais nesse tipo de segmento textual.


3a UNIDADE

4a UNIDADE

1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de historinhas.



1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de notícias.



II - Produção oral e escrita

Composição (ou recontagem) de historinhas.



II - Produção oral e escrita

Composição (ou recontagem) de notícias



Ill -Análise e sistematização linguística

a) explicitação dos elementos contextualizadores das historinhas ouvidas e lidas (título, autor, editora, local e ano de publicação);

b) regras do uso textual dos artigos indefinidos e definidos como elementos gramaticais de determinação das 'expressões referenciais';

c) aprofundamento das noções de 'discurso direto' e 'discurso indireto', e de 'foco narrativo';



III - Análise e sistematização linguística

a) identificação dos vários itens que constituem uma notícia e previsão do repertório vocabular adequado;

b) explicitação dos critérios mais comuns de ordenação desses itens;

c) ampliação da noção de substantivo (como elemento núcleo das expressões referenciais) e do adjetivo (como elemento que caracteriza e restringe as entidades referidas);



65
continuação da 3ª unidade

d) estudo dos tempos e modos verbais próprios dos segmentos narrativos ou descritivos;

e) explicitação das diferenças entre 'autor' e 'narrador';

f) estudo dos procedimentos da 'substituição pronominal' e de sua função textual na retomada das referências textuais;

g) estudo dos elementos conectivos que assinalam a sequência temporal dos fatos ou eventos relatados;

h) exploração das normas de divisão desse gênero em parágrafos;

i) estudo das convenções ortográficas;

j) exploração das opções de titulo de

historinhas;

k) normas gerais de apresentação desse gênero de texto.

Continuação da 4ª unidade

d) regras da substituição pronominal e da substituição lexical, como elementos que promovem a continuidade do texto;

e) recapitulação dos elementos conectivos que assinalam a sequência temporal dos fatos ou eventos relatados;

f) estudo das convenções ortográficas;

g) estudo da pontuação comumente usada em notícias;

h) exploração das opções de um título adequado a certos tipos de notícia;

i) exploração da paragrafação e das normas gerais de apresentação desse gênero de texto.
3ª SÉRIE

Ia UNIDADE

I - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de resumos de histórias e de notícias.

II - Produção oral e escrita

Composição de resumos de histórias e de notícias.

Ill -Análise e sistematização linguística

a) explicitação das regras de composição de resumos;

b) critérios de ordenação e sequência dos vários segmentos desse gênero;

c) estudo das unidades lexicais de significado mais geral e resumitivo (em função das substituições hiperonímicas comuns a esse gênero);

2a UNIDADE

I - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de. esquemas e de resumos de informações contidas em textos expositivos de diferentes áreas de conhecimento.

II - Produção oral e escrita

Composição de esquemas e de resumos de informações contidas em textos expositivos de diferentes áreas de conhecimento.

III -Análise e sistematização linguística

a) explicitação dos elementos contextualizadores da matéria esquematizada ou resumida (área de conhecimento, tema em questão, título, autor, editora, local e ano de publicação);

b) critérios de ordenação e de hierarquização dos vários segmentos de um esquema ou de um resumo;

66



d) exploração dos elementos contextualizadores dos diferentes núcleos temáticos;

e) estudo das convenções ortográficas;

f) estudo da pontuação adequada a esse gênero;

g) normas de paragrafação;

h) normas gerais de apresentação de um resumo.


c) noções de "estruturas paralelas" e de paráfrases explicativas como recursos co­esivos comuns a esses gêneros de texto;

d) ampliação da noção de substituição lexical, sobretudo por hiperonímia, em função da organização resumitiva desse gênero;

e) estudo das convenções ortográficas;

f) exploração da pontuação comum a esse gênero;

g) normas gerais de apresentação gráfica de um esquema e de um resumo.


3a UNIDADE

4a UNIDADE

1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de códigos e de normas disciplinares.



1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de questionários e de formulários.









II - Produção oral e escrita

Composição de pequenos códigos e normas disciplinares.



II - Produção oral e escrita

Composição de questionários e de formulários.



Ill - Análise e sistematização linguística

a) critérios de ordenação dos vários segmentos do gênero em questão;

b) ampliação da noção de "estruturas paralelas" como recurso coesivo comum a esse gênero;

c) critérios de ordenação, de hierarquização e de enumeração, enfim, dos vários segmentos desse gênero;

d) estudo do vocabulário comum à elaboração de códigos e normas e exploração da noção de "campo semântico", como fundamento para o entendimento da coesão lexical;

e) estudo das convenções ortográficas;

f) normas de pontuação;

g) normas gerais de apresentação.



Ill -Análise e sistematização linguística

a) explicitação das regras de composição de questionários e de formulários (com base em exemplares já em circulação);

b) critérios de seleção e de ordenação dos vários segmentos de um questionário e de um formulário;

c) avaliação das escolhas linguísticas decorrentes das condições dos destinatários previstos e das finalidades em tela, com atenção especial para a seleção vocabular adequada;

d) exploração dos tipos de perguntas ou de solicitações que costumam ocorrer nesses gêneros;

e) estudo das convenções ortográficas;

f) normas de pontuação;

g) normas gerais de apresentação.



67
4ª SÉRIE

Ia UNIDADE

2a UNIDADE

1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de cartas (informais e formais).



1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de entrevistas.



II - Produção oral e escrita

Composição de cartas com diferentes graus de formalidade, com diferentes propósitos e diferentes destinatários.



II - Produção oral e escrita

Composição de pequenas entrevistas com pessoas da escola e de outras comunidades mais próximas à experiência do aluno.



Ill - Análise e sistematização linguística

a) explicitação das possíveis implicações linguísticas por conta dos diferentes propósitos e dos diferentes destinatários previstos em cada caso;

b) critérios de ordenação dos pontos a serem tratados conforme a finalidade da carta;

c) exploração dos usos dos pronomes de tratamento, conforme os destinatários previstos;

d) exploração dos diferentes tipos de conectivo (preposições, conjunções, advérbios e respectivas locuções) que promove a articulação entre diferentes partes da carta;

e) estudo das convenções ortográficas;

f) revisão das regras de pontuação;

g) normas da paragrafação;

h) normas gerais de apresentação de uma carta, incluindo dados da 'abertura', do 'desenvolvimento' e do 'fechamento'.


Ill -Análise e sistematização linguística

a) explicitação das regras de elaboração de perguntas, tendo em vista a realização de entrevistas a partir de determinado conteúdo ou tema geral;

b) critérios de seleção e ordenação dos vários itens constituintes da entrevista, tendo em conta a contextualização de cada uma;

c) atenção ao teor das respostas esperadas em função da perspectiva temática escolhida na pergunta;

d) avaliação das escolhas linguísticas decorrentes das condições dos destinatários previstos e da finalidade pretendida para a entrevista;

e) estudo das convenções ortográficas;

f) revisão das regras de pontuação;

g) exploração das regras de polidez aplicáveis à prática da entrevista;

h) normas gerais de apresentação desse gênero de texto.


3a UNIDADE

4a UNIDADE

1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de anúncios.



1 - Leitura

Além de outros gêneros, leitura, interpretação, análise e comentário de, textos opinativos.



68
continuação da 3ª unidade

II - Produção oral e escrita

Composição de anúncios com previsão de diferentes propósitos e diferentes destinatários.

Ill -Análise e sistematização linguística

a) previsão das possíveis escolhas linguísticas por conta dos diferentes propósitos e dos diferentes destinatários pretendidos para o anúncio;

b) explicitação da natureza dos tempos e modos verbais comuns a esse gênero de texto apelativo;

c) noções elementares da função comunicativa dos textos apelativos

- centrados no interlocutor com quem o falante e o escritor interagem;

d) jogos linguísticos ou figuras de linguagem comuns à composição desse gênero, como metáforas, metonímias, antíteses, trocadilhos, repetição de palavras ou de outros segmentos, transgressões;

e) estudo das convenções ortográficas;

f) recapitulação das regras de pontuação, com atenção especial para o uso da pontuação para fins expressivos;

g) consideração às possíveis variações desse gênero em decorrência de sua função apelativa ou do suporte em que o texto vai circular;

h) normas gerais de apresentação dos anúncios.
Continuação da 4ª unidade

II - Produção oral e escrita

Composição de pequenos comentários em que se expressem opiniões e pontos de vista acerca de determinada questão. (É importante relacionar os elementos dessa questão com os conteúdos de outras disciplinas).

III - Análise e sistematização linguística

a) sinalização dos critérios de seleção e de hierarquização dos argumentos que fun­damentem o ponto de vista escolhido;

b) identificação das palavras-chave que sustentam a unidade do texto;

c) exploração de expressões que desempenham funções de abertura ou de fechamento e de síntese do tema ou de um tópico;

d) exploração, ainda, de expressões que permitam, no desenvolvimento do tema, a identificação dos tópicos principais e dos secundários;

e) estudos das relações semânticas entre frases, períodos ou parágrafos, tais como as de 'causa e efeito', 'conclusão', 'oposição', 'concessão', 'comparação, exemplificação' e outras, sinalizadas por seus respectivos conectores;

f) levantamento de expressões que costumam ocorrer para 'modalizar' o que é dito ou marcar a sequência dos segmentos do texto;

g) estudo das convenções ortográficas;

h) recapitulação da pontuação;

i) normas de paragrafação;

j) exploração das opções de título para um

comentário opinativo;

k) normas gerais de apresentação do gênero em estudo.



69
É possível perceber que se trata de uma sugestão, de uma espécie de programa, centralizado, como disse, em cada unidade, à volta de deter­minado gênero, o que pode, evidentemente, sofrer qualquer acréscimo ou alteração na dependência das diferentes situações de cada escola, ou dos interesses particulares dos alunos, que podem sugerir um ou outro gênero cuja exploração lhes pareça mais pertinente.

A progressão do objeto de estudo, admitida nas grades apresentadas, está também sujeita a alterações, conforme cada situação, conforme as aptidões demonstradas pelos alunos. É importante que o nível de comple­xidade das leituras, das análises, das produções corresponda ao nível de desenvolvimento dos alunos. Quanto mais alto seu nível de compreensão, mais complexos devem ser os gêneros escolhidos para estudo. Uma aten­ção deve ser dada ao cuidado de não repetir o estudo do mesmo gênero sem alterar seu grau de complexidade.

Também merece atenção a conveniência de se explorar os gêneros tipicamente escolares (ou acadêmicos) - por exemplo, esquema, resu­mo, resenha, resposta a questões, apresentação de justificativas ou de resultados de uma pesquisa, entre outros. A escola, já que é domínio social, também preenche a condição de lugar de comunicação e, por isso, seleciona um grupo de gêneros orais e escritos que fazem parte de seu cotidiano. Consequentemente, deve explicitar as regras de com­posição desses gêneros. O bom desempenho dos alunos nesses gêneros também é relevante para, pouco a pouco, criar e reforçar seu interesse por regular ou monitorar, eles mesmos, suas atividades e seus comporta­mentos com a linguagem.

Uma consideração deve ser feita, ainda, ao estudo das convenções or­tográficas. Pode-se ver que, em cada unidade, está previsto o estudo des­sas convenções. De fato, ele deve perpassar toda a trajetória escolar, so­bretudo, no ensino fundamental, partindo-se do pressuposto de que, no ensino médio, a ortografia já seja um conhecimento dominado. Sem deixar de frisar que é importante o domínio das convenções ortográficas, quero chamar a atenção para o atrativo que os erros de ortografia exercem sobre os professores. Se não há cuidado quanto a isso, esses erros tapam os nos­sos olhos e não vemos mais nada. É natural: eles estão na superfície.

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Uma das grandes vantagens desse planejamento de estudo dos gêne­ros estaria em que seria concedido um tempo específico para cada gênero, pondo-o como referência para as decisões quanto a conteúdos e atividades. O texto sairia da sua condição de objeto indefinido, sem feição própria, ou perderia sua identidade escolar, que é ser, simplesmente, exemplificação de uma gramática. Seria, ao contrário, matéria da vida social das pessoas, que, necessariamente, interagem pela enunciação e pelo entendimento de dife­rentes gêneros textuais. Pode-se perceber que, na explicitação de cada pro­posta de leitura, está prevista a 'análise' de exemplares do gênero-núcleo apontado. Isso implica que um tempo grande deve ser reservado para que os alunos tragam, de casa e dos contextos por onde circulam, esses exem­plares e os analisem na imensa diversidade que, com certeza, eles apresen­tam. Dessa forma, nem é preciso inventar textos, ou formar frases, para que seja visto como as coisas acontecem quando falamos ou quando escrevemos. Por outro lado, a elaboração dos gêneros permitiria que o professor identi­ficasse, com maior clareza e precisão, em que nível estão os alunos, em suas competências já sedimentadas e em suas dificuldades mais salientes.



Não posso deixar de fazer duas observações muito importantes, que dizem respeito ao trabalho com os gêneros orais e ao trabalho com textos poéticos.

Em relação ao primeiro ponto, gostaria de esclarecer que, embora, a proposta apresentada esteja centrada nos gêneros escritos, não deixo de reconhecer a extrema importância de que a escola promova uma consistente intervenção didática em relação aos gêneros orais. Um planejamento semelhante ao que propus poderia ser feito para o trabalho em sala de aula com os gêneros orais. Nesse caso, deveriam ter prioridade os gêneros da oralidade própria dos contextos públicos, em geral, mais formais do que aqueles da oralidade em contextos privados. A simples conversação familiar ou entre amigos íntimos mereceria menos atenção do que, por exemplo, a apresentação de um tema para um grupo de ouvintes, pois deveria língua interessar à escola ultrapassar as práticas orais do

...

A proposito do ensino dos gêneros, Schneuwly, Dolz e colaboradores (2004) trazem bons encaminhamentos para o trabalho com os gêneros orais na escola. Merece destaque o capitulo 8 sobre a exposição oral. Também pode ser muito útil a consulta a Matêncio (2001) que põe em confronto o estudo da falada e a aula de língua materna.



...

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cotidiano para alcançar aquelas mais presas às coerções institucionais. A propósito, a análise dos livros didáticos, em geral, tem revelado que o trabalho com os gêneros orais na escola tem-se limitado a conversas, debates, discussões com os colegas ou combinações acerca da elaboração de um trabalho. Nesses limites, os alunos não chegam a tomar consciên­cia de que podem explorar as características convencionais próprias dos gêneros orais, tão diferentes na imensa gama de suas realizações concre­tas. Também não chegam a desfazer a ideia meio consensual de que as convenções e normas textuais, a escolha certa das palavras, as regras de gramática são coisas do mundo da escrita; não existem para a fala, que é, por isso mesmo, caótica, imprevisível e assistemática.

A segunda observação que pretendo fazer concerne à leitura de textos literários, sobretudo de poemas. Não há uma unidade reservada especificamente para essa classe de texto exata­mente porque, em nosso entender, ele faz parte de todas as unidades. Ler poemas, melhor dizen­do, declamar poemas - a declamação faz parte do gênero - deve ser uma prática diária, algo já pre­visto na programação do dia, naquele momento de mais concentração e 'gozo'. Isso não é impossível: basta a escola sa­ber criar esses momentos. Pode-se aprender tudo na vida, inclusive a sentir o gosto bom que têm os poemas. Não fica descartada aqui a ideia de que se pode analisar questões linguísticas, em um poema, ou em um outro gênero da escrita literária. Afinal, os textos literários também são feitos com um léxico e uma gramática; o que não tem sentido é reduzir a leitura de um poema, por exemplo, à simples tarefa de identificar em seus versos categorias sintáticas ou morfológicas, sem qualquer con­sideração ao que isso implica para a construção da própria condição literária do texto.

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Desconfio que quase nenhum gosto, quase nenhuma emoção há em se ler que "Ivo vê a uva"!



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Sem desconsiderar as enormes dificuldades que tornam precárias as condições de trabalho da maioria dos professores, por conta do descaso público em que tem estado a política educacional do país, quero juntar minha voz à de tantos outros que acreditam na validade de um ensino de línguas que favoreça o exercício da interação humana, como forma de ser

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e de estar realizado, apesar dos inevitáveis conflitos e mal-entendidos, que se estendem ao mundo da natureza e da cultura.

Que não nos apoiemos nas dificuldades existentes para justificar nenhum tipo de inoperância e de conservadorismo estéril. Pelo contrário, que as difi­culdades nos estimulem a lutar pelo fim da escola irrelevante e inócua.

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não é por nós, indivíduos de linguagem, que tudo recobra significação e relevância? e a escola pode ficar fora desse jogo?

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Capítulo 4

IR ALÉM DOS ELEMENTOS? LINGUISTICOS DOTEXTO: um desafio para os interlocutores


Entre as muitas propriedades que fazem de um conjunto de palavras um texto, figuram aquelas ligadas aos interlocutores, as quais, na literatura linguística, têm sido denominadas de intencionalidade e de aceitabilidade. A primeira, concerne ao emissor do ato verbal; a segunda, ao destinatário. Ambas, ressaltam o caráter interati­vo da atividade verbal.

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Este texto foi originalmente publicado na revista Investigações, n. 3, 1993, P- 41-52, com o título: "A insuficiência dos elementos linguísticos: um desafio para os inter­locutores". Como os outros, sofreu algumas alterações.

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Ocorre que essa nomenclatura - sobretudo o nome da primeira propriedade - presta-se a con­fusões, pois os mais iniciantes tendem a confundir a intencionalidade com a intenção (o objetivo ou a força ilocucionária) de quem fala ou escreve.

O sentido da intencionalidade - conforme postulam os estudiosos da linguística de texto - é outro: refere-se à predisposição do falante para com- portar-se eficientemente em sua atividade verbal, ou seja, para apenas dizer coisas que têm sentido - em passagens coesas e coerentes - e que, sejam, portanto, interpretáveis. Essa intencionalidade representa, pois, a



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disposição do interlocutor de cooperar com seu par­ceiro para que ele possa processar, com sucesso, os sentidos e as intenções do que é expresso.

Por outro lado, a aceitabilidade corresponde à outra face da moeda: a também predisposição do par­ceiro para apreender, calcular, captar os sentidos do que é dito pelo outro. Constitui também um esforço de cooperação, no que resulta, para a atividade verbal, a existência de uma cooperação mútua, "um contrato" ou uma via de duas mãos, cujo efeito maior é a comu­nhão de sentidos e de intenções.

Nessa perspectiva, vale a pena relembrar que:

. primeiramente, a atividade verbal é uma atividade necessariamente textual;

. em segundo lugar, essa atividade não se esgota pelo conjunto dos elementos verbais que a cons­tituem. Conta, entre outros fatores, com a inter­venção dos sujeitos participantes que, à partida, se predispõem para produzir e interpretar, de forma coesa e coerente, os eventos linguístico-comunicativos que protagonizam.

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O ensino da produção e da compreensão da atividade textual ganharia maior relevância e se tornaria mais produtivo se o professor ultrapassasse a abordagem puramente linguística que, de forma geral, tem caracterizado esse ensino. Os parâmetros de uma língua que se basta a si mesma, demasiadamente abstrata - e, por vezes, inteiramente descontextualizada - parecem estar na base de uma ineficiência do ensino, a qual tem sido, por muitos meios, atestada e denunciada.

...


É em direção a este ponto que oriento a presente reflexão. Tenho em mente a urgente e sempre oportuna necessidade de questionar os pro­cedimentos com que se ensina a prática da composição e da compreen­são de textos orais e escritos. Por isso, vou estar atenta às orientações de como ir além do estritamente linguístico, para surpreender outros fatores responsáveis por sua relevância comunicativa.

...


Apesar desses interesses, ainda há escolas onde se acredita que o texto é apenas o lugar de se praticar a aplicação da gramática.

...
1. A atividade verbal acontece de qualquer jeito?

A atividade verbal, sob qualquer condição, so­mente se exerce sob o modo da textualidade. Quer dizer, ninguém fala ou escreve, a não ser por meio

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de textos. Esse princípio está bastante consolidado nos meios da pesquisa linguística e tem, sob muitos aspectos, centralizado o interesse dos inves­tigadores, principalmente daqueles que promovem o desenvolvimento e a aplicação de teorias sobre o texto.

Nos desdobramentos desse princípio, ganha relevo a noção de que existem propriedades que regulam o exercício da textualidade e especifi­cam os modos de sua relevância linguística e social. Ou seja, um texto não se faz de qualquer jeito; mas é regulado por um conjunto de propriedades, as quais constituem uma rede de relações, ou seja, assumem um caráter inteiramente relacional, de modo que a aplicação de qualquer uma delas revela-se dependente da aplicação das outras do conjunto.

Daí por que não se pode aceitar a perspectiva reducionista de teorias que veem o texto como objeto meramente linguístico, dominado, apenas, por regras gramaticais e lexicais, que, embora legítimas, não preenchem as exigências da atuação verbal apropriada e relevante.

Começo, pois, por advogar não apenas uma ampliação do objeto lin­guístico até o domínio do texto, mas, e principalmente, por ressaltar que os elementos linguísticos nele presentes formam apenas parte do conjunto dos fatores que lhe conferem sentido e relevância.

Mais especificamente, proponho que o estudo do texto, tão pertinente para a compreensão da interação verbal, seja feito tendo-se em conta a inter-relação que existe entre o linguístico e o extralinguístico em cada atuação verbal.

No momento, meu ponto principal de reflexão concerne ao laço entre coesão e coerência - elementos de seu aparato linguistico (cf. Beaugrande& Dressler, 1981) - e a predisposição dos interlocutores para mutuamente cooperarem na produção e na interpretação dos sentidos e das intenções pretendidos em cada oportunidade.

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Em geral, a preocupação com o entendimento do texto se fixa naquilo que o autor disse, ou seja, no sentido do que e r dito. Pouco se atenta para as intenções com que as coisas são ditas. Na verdade, o sentido é que se conforma à intenção. Ou, a forma como se diz uma coisa está na dependência da intenção que temos ao dizê-la.

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2. O componente linguístico do texto: uma superfície autônoma?

No âmbito dos estudos sobre a materialidade intenção que temos linguística do texto, têm ganhado evidência as teorias ­

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acerca da coesão e da coerência. Em geral, a coesão tem sido definida como um conjunto de recursos léxico-gramaticais destinados a prover e a assinalar a interligação semântica entre os diferentes segmentos que compõem a superfície do texto. A afirmação de que uma sequência alea­tória de palavras ou de frases não constitui um texto encontra um de seus fundamentos na propriedade da coesão. Com efeito, uma característica distintiva das realizações textuais é a inter-relação existente entre seus componentes, ou a propriedade de que os elementos linguísticos, no tex­to, estão vinculados entre si de modo que cada unidade está, de alguma maneira, presa a uma outra antecedente ou subsequente.

Dessa vinculação resultam a continuidade e a unidade semânticas ne­cessárias para que a superfície do texto se mostre coerente, tenha sentido e seja interpretável.

No entanto, vale sublinhar aqui que não se trata de uma coesão mera­mente superficial, que deixa o texto, em si mesmo, totalmente autônomo, em relação a outros fatores. Não basta, por exemplo, que, numa sequência de frases, haja unidades que de uma forma ou outra se retomem. A superfície do texto não é, por si mesma, decisiva na determinação da sua pertinência. Construir um texto não implica, simplesmente, juntar palavras ou justapor uma série de frases, por mais bem formadas que estejam. A rede de rela­ções que se estabelece pela coesão é de natureza semântica. Deste modo, os nexos atestáveis na linha da superfície textual sinalizam as relações que, no nível da estrutura profunda, garantem sua legítima continuidade e sua unidade semântica. O que se pretende pelas marcas da coesão superficial é prover e assinalar a continuidade e a unidade conceitual exigidas.

Por essas considerações, fica já evidente a correlação entre a coesão e a coerência. Se um texto se faz com palavras, postas não aleatoriamente na sequência de sua superfície, ou, ainda, se o aparato linguístico do texto deve interligar-se, outra razão não existe para isso senão a de assegurar e indicar a continuidade de conceitos e de relações subjacentes àquela superfície.

Assim, a exigência de que um texto deve constituir uma unidade se­mântica fundamenta o uso dos vários recursos coesivos. Um texto falho em elementos coesivos concorre para julgamentos de incoerência e dá a

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entender que o locutor parece ter perdido o controle de sua comunicação, como admite Adam, 2008.

Coesão e coerência constituem, assim, duas propriedades da matéria textual, as quais, para se­rem relevantes, devem estar em inteira harmonia e consonância. O plano da superfície, que, conforme vimos, deve estar coesivamente organizado, preen­che a função de promover e assinalar a interligação semântica requisitada pela unidade textual.
3. No entanto, bastam a coesão e a coerência linguísticas?

A dimensão linguística do texto, se é fundamen­tal, é também insuficiente para a determinação de sua relevância sociocomunicativa. Se um texto se faz com palavras, se estas constituem suas instru­ções mais óbvias, é igualmente verdade que elas - as palavras - não pre­enchem a totalidade dos requisitos necessários à sua realização. Um texto é resultado de uma atividade exercida por dois ou mais sujeitos, que, numa determinada situação social, interagem; produzem juntos uma peça de co­municação. Logo, as implicações resultantes das intenções e expectativas desses sujeitos constituem, também, elementos do sentido configurado.

...

Uma das tarefas que cabe à linguística de texto é definir quais as grandes categorias desses elementos coesivos que nos per­mitem estabelecer as conexões que abrem ou fecham os diferentes segmentos textuais. A propósito, vale a pena consultar a obra de Jean-Michel Adam (2008), A linguística textual - introdução à análise textual dos discursos. Em mais de um capítulo, o autor trata de questões da coesão e de suas marcas textuais.



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Daí que, conforme sugeri atrás, cuidar da adequada organização dos constituintes linguísticos do texto não esgota as providências necessárias para uma apropriada e relevante interação verbal. Perder de vista outras dimensões textuais pode desvirtuar a compreensão das legítimas con­dições da atividade comunicativa. Parece oportuno, pois, que se procu­re ultrapassar a matéria linguística do texto e se apreenda a intervenção, também decisiva, de outros fatores.

Entre esses fatores, pretendo destacar aqui 05 interlocutores, na con­dição de sujeitos que intentam e que aceitam participar da interação, de modo que ela se revista de todo o sucesso possível. A não ser com "segun­das intenções", ninguém fala ou escreve de forma a não se fazer entender.

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...

Observações que são feitas em livros de redação podem exemplificar essa visão eminentemente linguística do texto. Por exemplo, quando se diz que se deve evitara repetição de palavras ou o uso de redundâncias, não se deixa uma brecha para que os interlocutores envolvidos na produção desse texto decidam sobre a conveniência de se repetir uma palavra, quantas vezes sejam necessárias, ou de se recorrera uma redundância por mais óbvia que ela possa, em outros contextos, representar. Ou seja, os manuais deveriam mostrar que a última justificativa para usar ou não determinado recurso linguístico está no contexto, está nos sujeitos, conforme suas intenções pretendidas.

...
Ninguém, por outro lado, deixa de fazer os cálculos necessários para encontrar sentido naquilo que os outros dizem.

Proponho, assim, que se considere a inter-relação existente entre a dimensão linguística do tex­to e a participação cooperativa dos interlocutores. Meu propósito maior é propor que se ultrapasse o reducionismo de um texto que parece ser apenas linguístico, sem enunciador e sem destinatário, um "produto" desvinculado e solto da interação social de que é, inevitavelmente, parte relevante.

Em suma, a atividade verbal se efetiva por meio do linguístico, mas sob a intervenção e a regência dos interlocutores, o que constitui condição inalie­nável de sua real efetivação.
Qual a disposição do enunciador do texto? Antes mesmo de entrar em ação?

Do lado do interlocutor que toma a palavra (oral ou escrita), existe, em princípio, a predisposição de que sua construção linguística seja coesa e coerente e, en­quanto tal, possibilite a expressão dos sentidos e das intenções previstos. Ou seja, qualquer interlocutor em interação se dispõe a dizer, apenas, coisas que fazem algum sentido, isto é, coisas interpretáveis, que sejam, conforme o contexto de atuação, coesas e coerentes.

Essa disponibilidade do interlocutor abrange não apenas o propósito prévio de construir uma atividade linguística coesa e coerente, mas tam­bém a providência de manter este propósito, no decorrer de toda a inte­ração, pela utilização dos diferentes recursos disponíveis.

Por essas considerações, evidencia-se, sem dúvida, a relação da textualidade com a concepção da linguagem enquanto atividade comunicativa,



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ou seja, enquanto ação empreendida por sujeitos, em contex­tos de comunicação.

Nesta perspectiva, compor um texto é mais do que organizar na linha do tempo, ou sobre o papel, uma sequência de palavras, ainda que sob o cumprimento dos padrões da gramática da língua. Compor um texto é, na verdade, promover uma inter-ação, ao mesmo tempo, linguística e social. Inclui a intromissão de um sujeito, com propósitos prévios e empenhos sucessivos, para que se crie e se mantenha o caráter funcional da produ­ção linguística. Nega-se, assim, qualquer hipótese de passividade ou de alheamento de quem propõe a troca comunicativa, por mais que se consi­dere o teor tácito de seu empenho e de seu envolvimento.

Pela admissão dessa intenção do interlocutor de ser coerente, fica evi­dente a visão ampliada do exercício linguístico, no sentido de que as condi­ções de sua eficiência implicam mais do que seus elementos linguísticos dei­xam perceber. Por outras palavras, o apelo à predisposição do interlocutor abre um espaço para surpreender a presença de quem produz o texto e, mais ainda, o pressuposto de que quem o produz o faz coesa e coerentemente.
5. E como se comporta quem está do outro lado da linha?

O parceiro da interação comunicativa - o ou­vinte ou o leitor - também se dispõem a procurar sentido para o que é dito. Agem assim, exatamente porque pressupõem que a intenção do interlocu­tor foi a de ser cooperativo e, portanto, interpretá­vel, segundo propõem os linguistas Beaugrande & Dressler, em seu livro de 1981, na p. 29.

Noutras palavras, do ponto de vista do interpretante, a expectativa de que aquilo que é dito faz sentido en­caminha a busca das possíveis ligações entre as palavras, sentenças, parágrafos ou, ainda, entre blocos supraparagráficos. Nem nos damos conta de que, se procuramos entender o que o outro nos diz, é porque acreditamos que, de feto, há um sentido naquilo que ele diz.

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Brown & Yule (1983) também aludem à expectativa das pessoas de que aquilo que lhes é dito ou escrito tem sentido no contexto em que isto é feito. Dizem que, mesmo nas circunstâncias mais inapropriadas, a natural reação das pessoas é se esforçar para buscar o sentido, desde que haja um só indício de que se trata de algum tipo de linguagem.

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Como observa Morgan (1979), citado por Brown & Yule (1983, p. 25), quando, num texto, alguém faz a ligação entre um pronome e um sintag­ma nominal previamente apresentado é porque presume, antes de tudo, que o texto é coerente e, portanto, tem sentido procurar fazer tais liga­ções. Ou seja, se o receptor empenha-se por encontrar o sentido de um texto, e não desiste deste empenho, é porque acredita que algum sentido lá está: "Textos são aquilo que ouvintes e leitores tratam como textos", afirmam ainda Brown & Yule, na mesma obra, p. 199. A tolerância e a persistência com que, comumente, procedemos, frente a eventuais difi­culdades interpretativas, decorrem dessa certeza de que existe sempre algum sentido possível para aquilo que o outro expressa e, portanto, vale a pena insistir em procurá-lo.

A disposição do interlocutor de ser coerente tem, assim, a sua contra­parte na outra do parceiro de procurar um sentido, até encontrá-lo. Negar- se a essa procura de sentido, numa interação conflituosa, por exemplo, é uma declaração ostensiva de que a fala do outro não interessa.

A inclusão desses dois critérios no conjunto da textualidade repre­senta a intervenção dos interlocutores (enquanto "intenção" e "captação" desta intenção), no que diz respeito à instituição da coesão e da coerência de suas interações verbais.

Neste particular, cabe evocar o 'princípio da cooperação', proposto por Grice em 1975. Esse princípio, apesar de aplicar-se diretamente às si­tuações de conversação, oferece elementos gerais ("máximas", nas palavras do autor) acerca de como as pessoas, normalmente, se comportam na cons­trução e na interpretação do sentido de suas ativi­dades verbais. Em toda instância, o que as pessoas pretendem é que sua interação obtenha o maior sucesso possível.

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Um ponto muito pertinente que poderia entrar nos programas de ensino seria esse das "máximas da conversação" de Grice. Muita orientação de como podemos proceder, para que nossas ações verbais tenham sucesso, podem ser dadas a partir do estudo dessas máximas.



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Este objetivo, em princípio, presente a todo e qualquer evento comunicativo, supõe o cumprimento de determinadas regu­laridades e, até mesmo, da propositada violação dessas regularidades, sem

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que se dilua o teor comunicativo da interação. Pelo referido princípio de coo­peração, cuja manutenção é tacitamente prevista pelos interlocutores, emis­sor e receptor estão contratualmente empenhados tanto quanto os termos da situação exigem. Objetivam o bom termo de sua troca comunicativa, inclusive pelo discernimento dos eventuais propósitos daquelas violações. Providen­ciam estratégias de estabelecimento e de recuperação do sentido global do texto, pois acreditam na natureza comunicativa de sua atividade. Sem difi­culdades, somos capazes de perceber quando os sentidos pretendidos por alguém correspondem exatamente ao contrário daquilo que é explicitamente dito; ou seja, somos capazes de entender quando algo é dito ironicamente.

Halliday & Hasan (1976), em seu livro sobre a coesão, sem chegarem à explícita denominação de aceitabilidade, formulam um ponto de vista coincidente quando dizem que "nós insistimos em interpretar qualquer passagem de um texto, desde que haja a mais remota possibilidade de fazê-lo" (p. 23). Brown & Yule (1983), admitindo que o ouvinte ou o lei­tor são conduzidos na sua tarefa de interpretação pela suposição de que os textos são coesos e coerentes, invocam os princípios da 'interpretação local' e da 'analogia', como recursos que viabilizam a seleção interpreta­tiva que cabe ao receptor realizar, frente à imensa possibilidade de sentidos alternativos.

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Daí a dificuldade de encontrar resposta para uma adivinhação. É que não existem dados que nos permitam restringir o contexto de interpretação para o minimamente suficiente. Temos que procurar o sentido numa área demasiado alargada. Por exemplo, diante da pergunta: "O que é que cai em pé e corre deitado?", não temos pistas contextuais mais imediatas que nos indiquem de que objeto se trata.



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Para Brown & Yule, pelo princípio da interpretação local, o ouvinte ou o leitor agem na busca de um contexto que seja relevante para a interpretação, com base em expansões suficientemente limitadas ao que é exigido por tal interpretação.

Restringem-se, pois, aos dados contextuais que apenas são decisivos para o calculo do sentido pretendido e operam dentro destes limites, sem expansões desnecessárias.

O fundamento para este princípio reside nos dados presentes ao texto, o qual, por si só, já constitui um limite para a interpretação do que é dito. O gênero atualizado e a própria unidade semântica requerida para a coerência conduzem o interpretante

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na busca dos sentidos pretendidos, de forma a impedi-lo de ir aonde não é necessário.

O leitor, diante de um texto que tem a cara de uma historinha, por exemplo, que começa dizendo: "Tudo aconteceu no tempo em que os bi­chos falavam", tem seu trabalho interpretativo já iniciado, pois dispõe de elementos que o ajudam a restringir as imensas possibilidades de sentido para esse texto. Já pode saber que se trata de uma narração fictícia e que tudo deve ser entendido dentro desses limites.

As marcas formais da coesão também fornecem indicações para o es­tabelecimento local do contexto de interpretação. Ou seja, por essas mar­cas são dados sinais para que o destinatário da interação não construa um contexto mais amplo do que é necessário. Daí que deixar de ter em conta os sujeitos que atuam na atividade comunicativa é pôr em risco e, até mesmo, falsear as reais condições da atividade verbal.

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O princípio da analogia relaciona-se com as noções de "esquemas globais" veiculadas pela psicologia cognitiva.

Tais noções incluem o que se tem denominado de esquemas, planos, ou scripts, elementos intervenientes na construção e interpretação da atividade comunicati­va. Como afirma van Dijk (1984, p. 156): "Uma condição cognitiva importante da coerência semântica é a suposta normalidade dos mundos implicados".

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O princípio da interpretação local relaciona-se com o outro, o da analogia, mencionado atrás. Como pretendem Brown & Yule, a constituição de um con­texto apenas o suficientemente largo, apoia-se nas generalizações e tipificações em que os indivíduos organizam seu conhecimento de mundo.

Ou seja, as pessoas são dotadas da habilidade de, por analogia, configurarem tipos de eventos. Isso porque subsiste a expectativa geral de que os aconte­cimentos se conformam a certa regularidade e guar­dam uma presumida constância. Ou seja, há uma certa "mesmice" (sem sentido pejorativo) na forma de as coisas acontecerem em cada grupo social.

Estes autores destacam, ainda, que as generali­zações com que os indivíduos ordenam a realidade não apenas lhes permitem reconhecer uma expe­riência como sendo de determinado tipo, mas tam­bém lhes possibilitam o discernimento sobre que fatores são relevantes para determinado tipo de evento comunicativo.

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Vale a pena chamar a atenção para o fato de que o conceito de aceita­bilidade pode prestar-se a mal-entendidos. Vejamos:

A noção de aceitabilidade não significa, para começo de conversa, que o parceiro destinatário da interação está disposto a aceitar qualquer coisa que é dita, no sentido de concordar com tudo o que outro diz. Não significa, ain­da, que o enunciador deve deixar sua intervenção aceitável do ponto de vista da correção gramatical. Implica, isso sim, como já explicitamos, a disposição - do ouvinte ou do leitor - de, tanto quanto seja necessário, procurar captar, interpretar, apreender o sentido e as intenções do que o outro expressou.

Incorpora, assim, como base decisiva de sua legitimidade, o recurso ao contexto de uso. Neste domínio, é que os interlocutores ponderam e decidem sobre a forma adequada - e, portanto, apropriada - de seleção do material linguístico disponível, cabendo-lhes, inclusive, ajustar este material às condições subjetivas, espaciotemporais e culturais pressu­postas e presentes à atividade verbal que empreendem.

Por força dessas condições, conforme salien­tam Beaugrande & Dressler (1981), qualquer um pode violar alguma regularidade da organização virtual do sistema, desde que alguma motivação interacional o justifique.

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A maioria dos manuais que trazem orienta­ções para uso de uma linguagem "sem erro" parece ignorar esse princípio. Nesses manuais, as "regras" são apresentadas como se nenhum sujeito, em nenhum contexto, pudesse deixar de cumpri-las. Lei é lei: "Nunca devemos iniciar uma oração com o pronome oblíquo proclítico" (o destaque é nosso). Nunca, mesmo?



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Dessa forma, a boa formação sintático-semântica das frases converte-se, apenas, em um dos fa­tores que definem as condições de relevância do plano textual. Ainda assim, essa boa formação en­tra em uma dimensão contingente e limitada, uma vez que, como disse, fatores contextuais podem justificar a quebra de qualquer padrão da organi­zação interna dessas mesmas frases.

Em síntese, no âmbito do texto, os elementos linguísticos representam escolhas de quem fala ou escreve, formas de sinalizar, de maneira interpretável, sentidos e inten­ções. Logo, por outro lado, essas escolhas servirão de pistas, de marcas que hão de conduzir os passos do ouvinte ou do leitor no processo de



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apreensão desses sentidos e intenções. Trata-se, portanto, de um jogo de interação - um de cá, outro de lá - mediados pelos sinais linguísticos, os quais são necessários, mas não suficientes.

É por essa ótica que a aceitabilidade do ouvinte ou do leitor pode lem­brar o conceito de signo linguístico como "instrução", apresentado, entre outros, por Weinrich (1981). Esta concepção insere-se na visão de uma linguística orientada para a atividade comunicativa e, obviamente, cen­trada no texto. Supõe que, no exercício verbal, emissor e receptor intera­gem através da emissão e captação de "instruções", que devem ser dadas e seguidas no percurso da interação.

Tais instruções funcionam como indicações de diversas ordens - sintáticas, semânticas, pragmáticas - que o enunciador fornece ao seu parceiro de comu­nicação, de forma a conduzi-lo na ordenação e na se­leção dos dados disponíveis. 0 parceiro, então, deve ter em conta essas instruções, consoante elas foram dadas, a fim de que o texto possa ser interpretado, o mais possível, conforme foi pretendido. Tais instru­ções servem ainda como passos indicativos que orien­tam e ativam, numa direção pretendida e adequada à situação, a habilidade interpretativa do sujeito recep­tor, de maneira que, conforme diz o próprio Weinrich, "o texto mesmo inclui múltiplas ajudas para sua pró­pria decodificação" (Weinrich, 1981, p. 11).

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Para se compreender melhor o que acontece no processo de com­preensão de um texto, poderíamos recorrer à metáfora de quem faz uma viagem. Seguimos em frente de acordo com o que nos vão indicando diferentes tipos de sinais, inclusive aqueles que já previamente foram armazenados em nossa memória. A atenção a todos esses sinais é fundamental para as decisões a tomar. Ninguém vai à toa (a não ser que esse seja o plano, e aí já não é à toa). A interpretação de um texto também se apóia em muitos tipos de sinalizações que nos vão indicando por onde conduzira apreensão dos sentidos.

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Considero imensamente relevante essa com­preensão do signo linguístico como instrução ten­do em conta que, por esses termos, o texto assume, de fato, sua condição de atuação de sujeitos coope­rativamente em parceria - sujeitos que "intentam" e que "aceitam" produções coesas e coerentes.

A esses sujeitos, compete administrar a dosa­gem dos tipos e da quantidade de instruções, a fim de que os sentidos possam ser calculados com êxito. Nenhum interlocutor age, portanto, sozinho, na operação desse cálculo.

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Por essas vias, é admissível que, no contexto da interação, a ambiguidade das expressões lin­guísticas fique atenuada, pois os elementos cons­tituintes da cena comunicativa, na maioria das ve­zes, são suficientes para clarificá-las.

Tenho em conta que as unidades linguísticas, po­tencialmente, comportam diferentes significados. No entanto, em determinado texto, graças ao conjunto daqueles elementos contextuais envolvidos, tais uni­dades atualizam um desses significados e assumem, portanto, um sentido (em geral, apenas um).

É justamente para que esse sentido pretendido seja identificado que concorrem as instruções de diferentes ordens. O caráter potencialmente polissêmico das palavras é que sustenta as compro­vadas "versatilidade e adaptabilidade semióticas da língua", efetivadas nas interações do dia a dia, como diz Lyons (1980, p. 66).

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Beaugrande & Dressler (1981, p. 84) apontam uma distinção entre o que eles denominam de ambiguidade e de polivalência. Como dizem, ocorre a ambiguidade sempre que a indeterminação do sentido de uma expressão linguística não tenha sido intencionalmente pretendida. A poliva­lência, ao contrário, acontece quando a indeterminação é buscada propositada­mente. A terminologia não importa tanto; o que importa é saber que os interlocutores podem recorrer a diferentes recursos quando pretendem deixar seu enunciado com múltiplos sentidos.



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Por isso é que, nas atuações sociocomunicativas cotidianas, a realidade complexa dos sistemas linguísticos, em condições normais, não suscita dificuldades relevantes. Vimos que subsiste, entre os parceiros da comunicação, um empenho cooperativo pelo qual os dados instrucionais das seleções a serem feitas vão sendo fornecidos. Se as in­dicações postas não são suficientes, procede-se à demanda de novas instruções. Os sentidos pretendidos vão emergindo, assim, na dinâmica deste fluxo inter­pretativo e, consequentemente, as possíveis ambiguidades vão-se resolvendo.

Parece-me útil lembrar as condições de vantagem que, de uma manei­ra geral, goza a fala em relação à escrita. Na interação face a face, o falante, além de outras pistas contextuais, tem acesso mais imediato às reações do seu parceiro e, desta forma, pode orientar-se na condução da atividade que empreendem.

A aceitação destas condições não significa que, em algum momento, muito ideal e simplistamente, sejam postas de parte as condições de­

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limitação que toda atividade comunicativa acarreta e pelas quais está su­jeita, inexoravelmente, à incompletude, à falta de total transparência e, portanto, à imperfeição. Contudo, a certeza dessas contingências não anu­la o princípio fundamental de que até mesmo a inerente imperfeição da interação linguística é cooperativamente atenuada e contornada pela ação conjunta dos interlocutores.

As duas propriedades aqui discutidas - que envolvem a predisposição dos interlocutores para atuarem coerentemente - estão, pelo que se pode depreender do exposto, ancoradas nas perspectivas cognitivas e pragmá­ticas com que se pode conceber a atuação das pessoas em um evento co­municativo.


6. Como trazer para o ensino de línguas a perspectiva dessas propriedades do texto?

De maneira geral, começo por lembrar que adotar essa perspectiva significa ver o texto não apenas na sua constituição linguística e, muito menos, na sua constituição apenas gramatical.

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A escola falha toda vez que simplesmente pede aos alunos que escrevam um texto sem indicar para quem devem fazê-lo. A escrita sem destinatário não é exercício de linguagem.



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Isso se evidenciaria pelo cuidado do profes­sor em ensinar o aluno a ultrapassar a matéria linguística do texto e a ter em conta os interlo­cutores envolvidos - quem fala, quem escreve e para quem. Isto é, o texto precisa ser visto como uma intervenção histórica de determinado su­jeito para outro ou outros. Daí que, numa ati­vidade de interpretação, atribuir uma autoria ao texto e identificar seu destino são medidas úteis para que se obtenha o sucesso desejado. Por outro lado, numa atividade de fala ou de escrita, preencher esse lugar de autor e fazê-lo cooperativamente - o que significa ajustar-se às condições do in­terlocutor - são também condições de sucesso. É imperioso que, para cada evento de fala, se preveja o interlocutor envolvido ou, para cada exercício de escrita, se preveja o leitor - que, eventualmente pode ser o professor.

Na vida real, ninguém fala para ninguém.

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Além disso:



. também seria relevante que o professor levasse o aluno a perceber, no texto, os sinais de cooperação do autor. Em geral, esses sinais são expressões ou marcas gráficas que preenchem aquela pretensão do autor de "dar uma instrução" acerca de por onde vai o sentido. No caso de quem fala ou escreve, dar esses sinais, explicitá-los, consti­tui um indicativo de que o outro está sendo levado em conta. Ex­pressões do tipo 'no entanto', ou 'entretanto', 'por outro lado', por exemplo, sinalizam que a argumentação em curso vai se encaminhar numa direção oposta à que está em curso. Expressões do tipo 'em suma', 'em síntese', 'finalizando', indicam que se está fechando, resu­midamente, um tópico. É muito pouco, portanto, apenas saber que essas expressões são conjunções ou expressões dessa ou daquela classe. É preciso aprender a perceber quais instruções elas trazem para o entendimento da sequência textual em que aparecem.

. Teria sentido ainda que o professor ajudas­se o aluno a descobrir o teor de dialogicidade da linguagem, a qual somente existe no encontro, na troca, no engajamento da pergunta-resposta. Em um texto, nada é dito gratuitamente; tudo é, em certa medida, uma meia-palavra, ou a palavra-metade que se vai completar com a outra metade da palavra do outro. Cabe ao professor explicitar esses princípios. Não se deve esperar que os alunos os descubram sozinhos. É fundamental, em cada exercício de linguagem, prever para quem se vai falar ou escre­ver. Redações escritas "para ninguém", numa mutilação ostensiva do outro sujeito que integra a atividade comunicativa, só podem resul­tar no desinteresse e na ineficácia de que somos testemunhas, na maioria dos casos. De que jeito exercitar as tomadas de decisão que a interação verbal requer se não sabemos a quem nos dirigimos? De que jeito supor os conhecimentos partilhados e, em função disso, discernir sobre a forma adequada de providenciar as instruções ne­cessárias ao entendimento do que é expresso? De que jeito decidir sobre as condições da coesão e da coerência se não há parâmetros de avaliação da aceitabilidade pressuposta do outro lado da linha?

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Cadê a dialogicidade da linguagem quando se diz - ninguém sabe com que finalidade - que Vovó vai à vila?



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. O professor deve, mais, levar o aluno a ser flexível; a saber ajustar-se às condições dos interlocutores envolvidos na interação. Cada situa­ção de comunicação é única, por mais ritualizada que seja.
Enfim, não basta, como simplistamente se tem feito, cuidar para que sejam cumpridas as regras da gramática da norma-padrão. É evidente que a elaboração de textos que sejam adequados a uma situação formal de interação exige o cumprimento dessas normas. Contudo, a relevância desta mesma gramática precisa ser constantemente revista e só é inteira­mente reconhecida quando se ultrapassa o escopo meramente linguísti­co, ou melhor ainda, o escopo meramente superficial do texto, que, antes de tudo, é ponto de encontro entre duas ou mais pessoas em interação.

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se as palavras não são as únicas instruções para se apreender o sentido do que é dito, como exercitar a busca de outras instruções?

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capítulo 5

MAS... E A COERÊNCIA DO TEXTO A PARTIR DE SEU MATERIAL LINGUÍSTICO?
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Este texto teve sua primeira versão apresentada na XV Jornada de Estudos Linguísticos do Nordeste, realizada na UFPE, em novembro de 1997.



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No capítulo anterior, pus em destaque a relevân­cia dos fatores extralinguísticos na determinação dos sentidos do texto. Quis mostrar que o material linguístico não é tudo. Entretanto, é bom prever o equívoco que pode resultar desse princípio, se não entendemos a questão em sua totalidade.

De fato, a ênfase dada à dimensão pragmática dos usos da língua poderia levar os menos avisados à ideia de que as pa­lavras de um texto e os condicionamentos gramaticais a que devem se submeter não têm assim tanta importância. Basta que o texto comunique, dizem alguns.

Na verdade, não é bem assim: se há uma coerência que ultrapassa o lin­guístico, também há uma coerência que está presa aos limites do léxico e às leis da gramática. Desses limites, não há como fugir (a não ser sob algum pretexto particular e eventual).

Assim, a escolha das palavras e sua sequência sintática na arruma­ção da frase constituem um desses limites e, obviamente, uma das con­dições da coerência. Não tem fundamento, portanto, a ideia simplista

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de que os padrões gramaticais que regulam os usos da língua podem ser subestimados, sob a alegação de que, em qualquer contexto, o mú­tuo entendimento é o suficiente.

Vamos nos deter um pouco mais nessa questão.


1. A coerência do texto depende também da escolha e da arrumação das palavras na sequência das frases?

Na perspectiva de uma relação da linguística com o ensino de línguas, um ponto me tem inquietado, quando me ponho em contato com textos escritos de alunos de diferentes graus, até mesmo daqueles de pós-graduação. Esse ponto diz respeito às condições da coerência e, nesse particular, à coerência que depende diretamente dos elementos linguísticos.

Minha inquietação se agrava com a suspeita, não totalmente infunda­da, de que um mal-entendido possa sedimentar-se, principalmente entre professores do fundamental e médio, quanto às determinações linguísti­cas - lexicais e gramaticais - em relação à coerência.

O interesse de linguistas por denunciar, mesmo legítima e consisten­temente, os extremos e as inadequações do ensino da gramática pode suscitar o equívoco, ou a compreensão ingênua de que "não se tem mais que estudar gramática", uma vez que "no final, é a comunicação, é o enten­dimento que contam".

Esse equívoco de subestimar-se a gramática pode ampliar-se, inclusi­ve, quando se defende, muito genericamente, um estudo do texto, sem es­pecificar exatamente o que isso implica, sem explicitar que propriedades esse estudo contempla, favorecendo-se, por vezes, o entendimento sim­plista e falseado de que, para falar, ouvir, ler e escrever, ninguém precisa de regras de gramática.

As determinações linguísticas não preenchem a totalidade das regula­ridades da textualização e a coerência não depende única e exclusivamente dos componentes linguísticos do texto. Ou seja, regem a coerência outras determinações para além daquelas linguísticas. Os autores que incluem a coerência entre as propriedades linguísticas do texto, para citar apenas es­tes,

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o fazem, contudo, admitindo que a coerência ultrapassa o componente verbal, para incluir elementos cognitivos e fatores situacionais.



Em outras palavras, a textualidade é de natureza complexa e se cons­titui de uma dupla estrutura: uma linguística e outra extralinguística. Am­bas, determinantes e imprescindíveis para a coerência do texto.

Portanto, o fato de admitir o condicionamento de fatores situacionais para a definição da coerência dos textos não neutraliza a pertinência de seu material linguístico.

Daí por que me pareceu oportuno chamar a atenção, neste momento, para a não menor relevância da co-textualização, ou seja, da textura interna do texto, da sua composição sintático-semântica, detendo-me, então, no texto como objeto linguístico, dependente da estrutura interna dos enunciados que o constituem e da articulação construída entre esses enunciados.
2. Qual a relação entre coerência e léxico, entre coerência e gramática?

Uma obviedade gritante - mas que é pertinen­te referi-la aqui - é que os textos linguísticos são construídos com palavras. Palavras que, desde o sistema, têm um significado básico, estão sub­metidas a regras particulares de combinação, em vistas a uma organização sequencial coerente, nos âmbitos micro e macroestrutural.

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O léxico de uma língua, em seu sentido mais geral, corresponde ao inventário total de palavras disponíveis aos falantes. Numa perspectiva mais específica, o léxico compreende o conjunto de recursos lexicais de uma língua, o que inclui também os morfemas e os processos aceitáveis na língua para a construção de palavras.



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Dessa forma, construir um texto, capaz de fun­cionar sociocomunicativamente num contexto específico, é uma operação de natureza também lexical e gramatical. Quer dizer, não se pode esco­lher aleatoriamente as palavras, nem arrumá-las de qualquer jeito, nem tampouco optar por qualquer sequência de frases.

Por exemplo, não posso, indiferentemente, usar as palavras 'estável' ou 'instável'; 'amoroso' ou 'amigável'; não posso, indiferentemente, usar o verbo 'ser' ou o verbo 'estar'; usar o sintagma 'no qual' ou 'do qual'; usar o



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pronome 'que' ou o pronome 'onde'; usar o artigo indefinido ou o definido; não posso, ainda, em qualquer lugar, suprimir o artigo. Tudo está submetido a uma série de restrições, que constituem, no final, o conjunto das regulari­dades de cada língua.

Se, por um lado, tais restrições são coercitivas, por outro, são funcio­nais, no sentido de que são elas que possibilitam o entendimento mútuo entre as pessoas de uma mesma comunidade linguística.

Isso é evidente demais; no entanto, o processo de escolarização que a língua sofreu, processo em que, normalmente, reinou a mais radical descontextualização, apagou da língua seu caráter de funcionalidade. E aí, por vezes, se cai no extremo de fazer as regras valerem por si mesmas, absolutas e intocáveis, ou se cai no outro de desconsiderá-las e não des­confiar de que não vale qualquer palavra, em qualquer lugar.

As pessoas que não se habituaram a examinar os critérios com que es­colhem as palavras, como exemplifiquei acima, nem sequer percebem que podem estar comprometendo o mais elementar sentido do que está sen­do dito e onerando o trabalho do leitor, que, num esforço de 'cooperação', deve, praticamente, refazer o texto que recebeu para lhe dar um sentido possível. Por exemplo, diante do trecho de um relatório de pesquisa em que estava escrito:

(1) Nesta referida turma são matriculados 55 alunos no qual estavam presentes 46, onde nenhum se omitiram em responder.

o leitor não tem o que fazer a não ser tentar calcular o que o outro "queria ter dito", refazer a escolha das palavras e reconstruir sua ordenação sintática.

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As palavras-com seus sentidos básicos - funcionam como as margens de um rio: se, por um lado, limitam o percurso das águas, por outro possibilitam seu curso. Sem margem, o rio perde a sua identidade.



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Ou seja, quem fala ou quem escreve não pode fugir à definição e à delimitação sintático-semân- tica das unidades lexicais e das construções gra­maticais com que se constrói a superfície do texto, o qual sofre, então, as restrições decorrentes dos próprios limites das palavras que o compõem. Na verdade, os sentidos e as intenções pretendidos em cada texto tornam-se disponíveis ao interlo­cutor pela mediação das sinalizações linguísticas

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presentes, sejam elas lexicais ou gramaticais. Na superfície, as palavras funcionam, portanto, como sinais, como plaquinhas que vão indicando as pistas para o ouvinte ou o leitor alcançarem o sentido e as intenções pre­tendidos. É verdade que, além desses sinais linguísticos, existem outros; mas isso não neutraliza o valor daqueles.

Convém lembrar, ainda, que o sentido calculado para o texto não de­corre apenas do sentido de cada palavra isoladamente. Desde que uma palavra entra em um texto, passa a ser afetada pelos sentidos de outras que a precedem ou que a seguem, de maneira que nenhuma funciona iso­ladamente, solta, sem estar constituindo um nó com alguma outra.

Reparemos, por exemplo, nas variações de sentido existentes, confor­me digamos:



- fazer a conta;

- fazer de conta;

- fazer por conta;

- fazer em conta;

- fazer sem conta, para ficar apenas nessas poucas combinações.

Os sentidos do texto são apreendidos, portanto, num movimento de interdependência, de voltas e avanços; quer dizer, as unidades são, mu­tuamente, vias de acesso, ou vão-se determinando relevantes reciproca­mente, cada forma perdendo a sua autonomia absoluta. Por outras pala­vras, qualquer escolha de uma palavra ou de uma sequência interfere nas subsequentes e é, por sua vez, atingida pelas precedentes, de maneira que toda forma vai funcionando como um meio de acesso a outra ou a outras, independentemente da linearidade estrita que, à primeira vista, o desen­volvimento do texto poderia implicar.

Essa interdependência entre as palavras sobrecarrega ainda mais o peso dessas determinações linguísticas para as quais venho chamando a atenção, pois não se trata apenas de escolher a palavra individualmente certa, mas de escolher a palavra certa para determinado contexto, para de­terminada vizinhança. Por exemplo, são bem comuns as combinações faixa etária, dispositivos legais, materiais didáticos, tomar uma decisão. Assim é que se diz tomar o café-da-manhã, mas não se costuma dizer tomar o almo­ço; se diz acordo amigável; mas não se costuma dizer amigo amigável.

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Portanto, fica reiterado o princípio de que não se pode escolher qual­quer palavra e de que não é, em qualquer ponto do texto, que se pode inserir não importa o que.

Tais determinações aplicam-se tanto ao domínio da macroestrutura quanto ao outro, o da microestrutura. Uma razão para isso é que um texto deve fazer sentido em cada um dos seus segmentos pontuais e em seu todo, ou seja, "deve conter uma macroestrutura microestruturalmente organizada", o que reforça, ainda mais, esse caráter de importância das palavras e de sua arrumação sintática.

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Charolles, em seu trabalho intitulado Introdução aos problemas da coerência dos textos (cf. bibliografia), define que a coerência de um texto deve ser conjuntamente determinada desde os pontos de vista local e global. Um texto, assegura ele, pode ser microestruturalmente coerente sem o ser macroestruturalmente.



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É por isso que, no trecho transcrito acima (Nesta referida turma são matriculados 55 alunos no qual estavam presentes 46, onde nenhum se omi­tiram em responder), a escolha inadequada dos re­lativos 'no qual' e 'onde' compromete a inteligibi­lidade do que é dito. Um professor que apenas olhasse para a ortografia não veria quanto a significação do enunciado ficou prejudicada.

Ou seja, a coerência, insistimos, é também linguística; é também gra­matical. Não tem sentido, portanto, pensar que não há por que estudar gramática. O que é preciso é estudar a gramática que nos faz entender e compor, de forma mais adequada, textos orais e escritos.


3. A coerência é apenas uma questão global?

Ou é afetada também em pontos menores do texto?

Sem dúvida, a coerência global - do texto em sua totalidade - assume importância capital. Por ela é que reconhecemos a unidade de sentido e de intenção prevista. É ela que, no final, retemos em nossa memória de ouvinte ou de leitor e é ela que pode, inclusivamente, justificar eventuais rupturas em determinados pontos do texto.

Isso não quer dizer, no entanto, que podemos deixar de reconhecer a importância da coerência pontual. Quer dizer, da coerência resultante das

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determinações microestruturais, aquelas que se localizam entre dois ter­mos, entre duas orações, entre dois parágrafos (a exemplo das que mos­tramos atrás, a propósito do uso de um 'no qual' ou 'onde').

Dessa forma, quero focalizar, no presente tópico, a sequência sintáti­ca intrafrástica; na perspectiva da sua interferência para a construção da coerência do que é dito.


3.1. Que peso tem a sequência sintática das palavras no interior de cada frase?

Na construção da frase, é decisivo — para a clareza e precisão do que se diz — o discernimento quanto ao que escolher e trazer para a superfí­cie. Escolhas indevidas podem obscurecer o sentido ou até comprometê-lo; vejamos, a propósito o exemplo (1). A relevância das determinações lexicais e das regras gramaticais reside, exatamente, no fato de ambas se prestarem a possibilitar a representação de um sentido. Daí por que essas determinações e regras constituem uma condição necessária para a ex­pressão do sentido, embora sua eventual alteração possa ser, ela mesma, veiculadora de um efeito especial de sentido.

Esses princípios guardam certo paradoxo: por um lado, eles são muito evidentes e, por outro, precisam ser explicitados e considerados nos discursos sobre a linguagem.

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Por exemplo, as pessoas demonstram ter uma compreensão intuitiva da coesão e da coerência do texto, quando dizem que alguém não "junta lé com cré"; ou diz "coisas sem pé nem cabeça"; ou "junta alhos com bugalhos" etc. O que tem faltado é explicitar que recursos existem para que nossos textos não incorram em tais impropriedades A quem cabe fazer isso? A escola, naturalmente.

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A raiz desse paradoxo está no fato de que tudo o que diz respeito à linguagem tem esse ar de máxima evidência, uma vez que a linguagem está presente em todas as atividades das pessoas e tudo, de certa forma, passa por ela. Ao mesmo tempo, contudo, de tão evidente, a linguagem as­sume uma condição de "coisa já sabida demais", automatizada, e que dispensa, portanto, refle­xões, explicações, explicitações. Na prática, devi­do a uma série de razões, acaba por prevalecer a primeira perspectiva, ou seja, a da percepção na­tural, intuitiva e empírica da linguagem, que, às vezes, não garante uma compreensão mais ampla,



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mais crítica e consciente do que acontece quando falamos, ouvimos, escrevemos ou lemos.

À escola é atribuída, por dever, a segunda perspectiva, ou seja, a de explicitar, de explicar os fenômenos que definem o funcionamento intera­tivo da linguagem, e refletir sobre seus usos, seus efeitos e as estratégias que as pessoas usam para interagirem verbalmente.

Acontece que a incompreensão de certas questões - sobretudo aque­las relativas à gramática - empurrou o trabalho da escola para fora da linguagem, para fora do sentido e da interação. Empurrou o trabalho para a mera classificação das entidades linguísticas, para sua rotulação, para a análise de suas funções sintáticas e morfológicas, sobretudo no âmbito da palavra e da frase isolada. Ficou faltando fazer essa vista sobre os usos da língua para descobrir suas determinações, suas regras de funcionamento, sejam sintáticas, semânticas ou pragmáticas.

É por isso que o princípio que apresento aqui - o de que não se pode em qualquer lugar do texto usar qualquer palavra - ainda precisa ser ob­jeto de reflexão e de consideração.

Nas aulas de línguas, nem sempre, as palavras são, privilegiadamente, vistas como "portadoras de sentido", de um sentido que, se tem uma base estável, é também móvel, contextual, porque é afetado pelas outras pala­vras que formam a vizinhança em que essa palavra aparece. "Esqueceram o sentido" para que se "aprenda" o valor morfológico ou as funções sintá­ticas que a palavra assume.

Apenas sob a hipótese dessa fuga do sentido é possível explicar como alguém, são e letrado, depois de muitos anos de escola, chega a escrever, num trabalho acadêmico, um parágrafo do tipo que se mostra a seguir:

(2) As palavras, como as frases e os textos construídos no seu tempo, modo e se possível, apresentando o sujeito, ou não, quando escritos pelos poetas, escritores ou jornalistas, pessoas que pelo uso sabem utilizar, no seu tempo certo, no momento certo, transformam em melodias e textos harmô­nicos o que dizem ou escrevem. Como músico que utiliza com maestria a composição das notas musicais.

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Por que é possível alguém escrever um 'texto' como esse e não per­ceber que não existe aí unidade de sentido interpretável? É que, durante anos, não foi a busca do sentido que esteve em pauta nos momentos de es­tudo da língua. O que polarizou o interesse das aulas, das avaliações, das provas foi a busca apenas dos nomes, dos rótulos que as palavras e frases têm. A descontextualização com que tais palavras e frases são vistas tira de foco o sentido, tira de foco a significação do que é dito. Daí a gente dizer que Vovó vê o ovo, mesmo quando nenhum contexto justifique que se diga isso. Diz-se só para treinar. Mas quando é que, na vida real, a gente fala só para treinar? Numa sessão de fonoaudiologia?

Ou seja, repito, o princípio mais elementar de que qualquer palavra não pode acontecer em qualquer contexto e de que o sentido, portanto, não resulta pura e simplesmente de uma junção de palavras, não é tido em conta, a ponto de não se ser capaz de perceber que não se conseguiu produzir uma peça linguística que tem um sentido recuperável ou que tem relevância em algum contexto.

Assim, temos que reforçar: a coerência resulta também das palavras e das relações gramaticais que são estabelecidas, embora, insistimos, fatores da situa­ção de interação também intervenham na determinação dessa coerência.

A explicitação desse princípio poderia contribuir para desfazer certos equívocos que têm perturbado o professor de línguas: ensinar ou não ensi­nar gramática. Já vimos que a expressão do sentido depende também das determinações lexicais e gramaticais da superfície textual; portanto, as re­gras da gramática da língua são essenciais, são indispensáveis, para a pro­dução do sentido e das intenções que caracterizam as interações verbais.

O problema, então, não é uma questão de opção: gramática, sim ou não. A hipótese da não-gramática inexiste. Sem gramática, não há língua, não se fazem textos, nem orais nem escritos, nem formais nem informais. O problema é saber distinguir o que é uma regra de gramática e o que é, pura e simplesmente, uma questão de rotulação gramatical ou de classifi­cação de uma unidade linguística.

Conforme se pode ver por aquele parágrafo transcrito em (2), faltou ali a aplicação das regras de combinação das palavras, de modo a possibi­litar



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a apreensão de um sentido, de uma unidade discursiva qualquer, que vai resultando desse sentido continuado por cada palavra. Faltou, portan­to, o domínio de como juntar as palavras, de como combiná-las, de como associá-las, de como articulá-las para se deixar um sentido e se expressar uma intenção. Ou seja, faltou, também, gramática; não a gramática dos nomes que as palavras têm; mas a gramática que regula a forma de usar as palavras para dizer as coisas que queremos dizer.

Evidentemente, a gramática se justifica pelo que ela possibilita ex­pressar; ou seja, antes da gramática vem o que se tem a dizer, o que se quer dizer; nesse nível é que as escolhas se definem, para que faça sentido o que é dito.

Observe-se, por exemplo, o seguinte parágrafo:

(3) No plano textual são de suma importância as relações de reitera­ção enquanto mecanismo de coesão, pois linguisticamente, o nível léxico-gramatical do texto concorre para a unidade do mesmo, bem como possibilita a organização da superfície textual. (destaque nosso)

Numa análise mais cuidadosa, podemos perceber que o uso do marca­dor 'pois', explicativo nesse caso - que introduz o segmento em negrito - não satisfaz plenamente. De fato, o segmento "pois linguisticamente, o nível léxico-gramatical do texto concorre para a unidade do mesmo" não consti­tui uma explicação para a afirmação feita na primeira parte do trecho.

Quer dizer, conforme o que está escrito no parágrafo acima, foi estabele­cida uma relação de explicação entre a reiteração e o nível léxico-gramatical do texto, mas não é bem isso o que a coerência teórica da questão implica. As relações de reiteração são importantes enquanto mecanismos de coesão uma vez que retomam segmentos anteriores do texto e os ligam a outros subsequentes, favorecendo, portanto, a continuidade, a sequência e, portan­to, a coesão. Não é isso o que está expresso nas palavras do enunciado.

Ainda na mesma perspectiva, pode-se ver, em (4), como a enumera­ção destacada reflete uma desarrumação na ordem e na sequenciação dos itens, o que se manifesta, inclusive, na falta de paralelismo das estruturas.

(4) Um texto com uma boa estrutura, faz com que o leitor se sinta mais à vontade, não tendo pressa de o terminar (organização; pontuação;

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prenda a atenção; desenvolva as ideias; não fugir do tema; a letra; boa estrutura). (destaque nosso)

A propósito do que são citados esses itens em negrito? São os itens que concorrem para "uma boa estrutura do texto?" Mas, quais foram os critérios escolhidos para sua ordenação? Há algum critério reconhecível para a sequência adotada na enumeração? Começou do mais geral para o mais particular? E a formulação sintática em que esses itens aparecem: prevaleceu a escolha de substantivos, de verbos? Por que motivo se pas­sou, indistintamente, de uma categoria para outra?

E quem escreveu esse trecho, lendo-o depois, seria capaz de reconhecer essas desarrumações?

A gente parece esquecer que existe um sentido que se quer expressar e - para nosso bem (mais que para nosso mal, acredito!) - existem as pala­vras, com limites sintáticos e semânticos, que pos­sibilitam essa expressão.

...

Certamente, quem escreveu esse trecho não saberia perceber aí o efeito da falta de sentido, pois não está acostumado a fazer esse tipo de procura. O que tem feito, em anos de escola, é analisar frases soltas, cujo teor informativo não importa. O que impor­ta é acertar o nome das unidades e categorias gramaticais.



...
São exatamente esses limites sintáticos e se­mânticos que restringem nossa liberdade de esco­lher, para qualquer lugar, um 'pois', um 'portanto, um 'entretanto', um 'no qual', um 'onde' ou qual­quer outra palavra. São exatamente esses limites sintáticos e semânticos que restringem também nossa liberdade de apagar, sem mais nem menos, um ou outro argumento do verbo, uma ou outra palavra.

As palavras pequeninas (os artigos, as preposições), como se pode ver em (5), são as maiores vítimas desse processo de cancelamento arbitrá­rio, o qual pode trazer sérios prejuízos para a compreensão das referên­cias introduzidas ou retomadas na sequência do texto.

(5) Enfim, um bom texto, é aquele em que o indivíduo não (con) cansa­rá, em outra oportunidade, retomá-lo, e indicá-lo aos amigos.

Uma outra digressão nada funcional pode ser vista em:

(6) Um bom texto tem que ter coerência, clareza e principalmente orga­nização. Sem esquecer também de saber ou não se expressar.

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De que jeito estabelecer a ligação temática entre os dois períodos? O primeiro tem como tema a expressão 'um bom texto'-, ou seja, é disto que se está falando. 0 segundo nem sequer tem tema explícito, pois não sabemos a que sujeitos remeter a predicação feita pelos verbos esquecer e saber. Além disso - perguntamos - caberia, tem coerência a alternativa em saber ou não se expressar?

Ou ainda, dizer que:

(7) Um texto "bom" deve passar por diversos processos de confecção, afim de que os vícios deste sejam eliminados ao máximo possível, tornando a leitura atraente, com bons aspectos estruturais.

não parece uma brincadeira de juntar aleatoriamente as pedras de um jogo?

Isto é, não se pode dizer qualquer coisa. O discurso, apesar de incluir todos os seus amplíssimos enraizamentos individuais e histórico-culturais, comparece na materialidade da produção verbal e a ela também está sujeito. É seu limite, é a própria afirmação de sua condição de pertencer à contingência humana.

Vale a pena observar que a liberdade de quem usa a língua, igual a to­das as outras liberdades, é relativa; é limitada pelas injunções da própria socialização a que a língua serve, inteiramente. O outro para quem e com quem falo é o limite para minha liberdade.


4. Para finalizar: escrever um comentário, um aviso... Ou fazer uma redação?

Na escola, escrever um comentário, fazer uma exposição, fazer uma carta, divulgar um fato, entre outras coisas, passou a ser, genericamente, fazer uma redação ou, por vezes, produzir um texto. Esquecemo-nos de que não somos, no dia a dia de nossas interações, "produtores de textos". Somos pessoas que falam, que escrevem, que leem, para atender às nossas múltiplas necessidades de interação.

Sob o rótulo da redação, qualquer um dos gêneros em circulação perde a sua especificidade e se conforma a uma espécie de fórmula, de modelo, ex­tremamente bitolado e artificial. Aquele que escreve, por sua vez, perde a sua

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identidade pessoal e assume a outra, de um grupo amorfo, detalhadamente uniformizado, que tudo vê e tudo diz sob a mesma ótica e a mesma forma.

É por isso que todas as redações escolares são iguais. São, simplesmen­te, produtos iniciados e acabados ali. Nada há de autoria, de pessoal, de pró­prio. Poderiam ser trocados seus autores e não haveria grandes diferenças nem quanto à forma nem quanto à perspectiva com que as coisas são ditas. Ninguém transgride funcionalmente um determinado padrão para obter algum efeito estilístico. Um ou outro apenas - bem atrevido - se arrisca a dizer coisas de um jeito diferente. Até o espaço que marca a entrada dos parágrafos tem a mesma dimensão. Tudo é, literalmente, con-formado.

É assim que são feitas as redações da escola (com algumas raras ex­ceções, é claro!). É assim que se intenta ensinar os alunos a escreverem cartas, relatórios, projetos, depoimentos, justificativas, gêneros que - no exercício de atividades futuras - vão estar nas exigências do dia a dia e vão, muitas vezes, decidir o engajamento profissional de cada um.

Se poderia pensar que esse jogo escapa totalmente ao juízo crítico do alu­no. Há quem intua, ou mesmo explicite, as consequências desse processo de anulação de um sujeito, que planeja, produz e "autoriza" seu texto, a favor de um "sujeito despersonalizado, impessoalizado" que produz uma redação.

Abordados sobre como se pode caracterizar o bom texto, um aluno escreveu:

(8) Atualmente cobra-se do aluno redações que forçam o mesmo a omi­tir sua opinião em função de apresentar um texto mais claro pro sistema, esse estão fabricando pessoas falsas e mentirosas, que deus quera não fassa parte da imprensa.

Até essa situação mudar temos que lidar com isso, mas sem esquecer nossas ideias. (...) Obs: procurei não fazer um texto seguindo tais regras.

Outra observação não se afasta muito dessa primeira, mas toca mais de perto a questão do ensino da gramática. Pelo que se pode ver no fragmento transcrito acima, somos levados a concluir que: tantos esforços nas análises da tipologia de sujeitos, de predicados, de orações e de outras unidades da língua - na verdade, esforços para o saber classificatório sobre a língua -, parecem não resultar na compreensão de que a combinação das palavras nos enunciados não é aleatória e deve promover um sentido inteligível.



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Na verdade, é que, para isso, falta ensino, falta reflexão, falta análise. Ou, mais especificamente, parecem faltar novas situações de ensino. De ensino da necessária passagem do oral informal para o escrito formal, do impreciso para o preciso, do desordenado para o ordenado, do literal para o metafórico, da redação, enfim, para a escrita de textos significati­vamente presos a um propósito comunicativo específico.

O domínio da oralidade informal, o domínio da análise de frases soltas ou da escrita da 'redação escolar', apenas, constituem uma reduzida com­petência comunicativa, bem longe do que é exigido agora para este século - o século, como dizem, do conhecimento, da divulgação e socialização dos saberes, da informação multimídia, das especializações.

No mundo contemporâneo, mais do que oportunidades de trabalho, o que falta são trabalhadores qualificados, setor em que o domínio fluente, versátil, funcional, claro e relevante da linguagem se mostra inteiramente significativo. A escola não pode furtar-se a esse papel formador do cida­dão técnica, política e socialmente capaz.

Que se pense na função social da linguagem - da linguagem oral, da linguagem escrita e da linguagem digital, inclusive - para a produção e a socialização do conhecimento. Que se pense nos benefícios de se saber garantir a coerência linguística do que dizemos, para que aquilo que dize­mos possa ser expressão de nossa crescente disposição de cooperar com o discurso total da humanidade - que ninguém sabe quando começou nem quando vai findar.

...

o que falta ser feito nas escolas para que essas questões sejam entendidas e tantos equívocos, desfeitos?

...

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capítulo 6

OS VAZIOS NATURAIS DO TEXTO E SUA COERÊNCIA

...

Este texto foi, anteriormente publicado, em 2003, na revista Portaldo São Francisco, uma revista do Centro de Ensino Superior do Vale do São Francisco (Belém de São Francisco, PE).

...
Uma das grandes questões da interação verbal concerne à competência dos interlocutores para to­mar decisões quanto ao que explicitar e ao que dei­xar implícito. Tais decisões têm que estar apoiadas no conjunto de informações que supomos partilhar com nosso parceiro de interação. Tudo quanto é presumi­do como já 'sabido' não necessita ser explicitado, sal­vo interesses particulares de ênfase, de reiteração etc. O que é certo é que, na trama de nossas interações, há um pano de fundo que regula nosso dizer, ora mais, ora menos, explícito. A competência para administrar essas condições reper­cute na coerência e reitera nossas certezas de que escrever gramaticalmente correto não representa a condição suficiente de um texto bem escrito.

Consideremos um pouco mais essas questões da explicitude e da implicitude do discurso.


1. A explicitude do discurso

É consenso que o discurso das línguas naturais não é totalmente ex­plícito. Ou seja, em todo discurso há proposições que não se expressam

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diretamente e, portanto, não aparecem na superfície, embora possam ser apreendidas a partir de outras que estão literalmente expressadas ou previstas contextualmente.

São proposições implícitas ("enlaces omitidos" "vazios"), que, apesar de não serem expressas, são necessárias ao estabelecimento da coerência ou de seu entendimento. Quem fala ou escreve tem consciência dessa in­completude natural do discurso e vai, com maior ou menor competência, administrando o que traz ou não para a explicitude do texto. Quem ouve e lê, também, sabe que tudo o que é dito não está manifestado nas sinaliza­ções superficiais e, igualmente, vai administrando esses vazios, de forma a calcular o sentido e as intenções pretendidas pelo seu interlocutor.

Por exemplo, quem pega o jornal, na seção de classificados, e lê que:

(1) Quem anuncia vende.

sabe como preencher os vazios aí deixados e recuperar, portanto, os ter­mos que devem complementar a predicação dos verbos 'anunciar', 'ven­der'. Iguais a esses, muitíssimos outros casos pedem a atenção do ouvinte ou do leitor para completar as lacunas deixadas. Vamos ver mais adiante alguns desses casos.

Mais interessante ainda é um anúncio de jornal em que uma dona de casa procura os serviços de uma babá. Se não tivéssemos em conta os ele­mentos de mundo que constituem essa situação, tudo pareceria estranho ou até mesmo absurdo. Vejamos:

(2) Procura-se babá que durma no emprego.

Como esse, grande parte de nossos enunciados, além de seus signifi­cados explícitos, carrega também outros implícitos, subjacentes, contex­tuais, que não aparecem na superfície, mas que são fundamentais para o entendimento global do que é dito.


2. Implícitos: mas em que condições?

Vale a pena indagar: sob que condições o que queremos dizer pode ou deve ficar implícito? Que propriedades das palavras, das orações, das

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sequências de orações, dos gêneros de texto ou do contexto situacional solicitam ou condicionam o recurso a implícitos? Como pressupor o êxito da compreensão interativa, apesar desses implícitos?



Num primeiro momento, convém distinguir, e o fazemos com base em van Dijk, 1984, entre discurso completo (totalmente explícito) e discurso incompleto (com implícitos).

Um discurso é completo se todos os elementos (indivíduos, proprie­dades, relações) que caracterizam uma situação aparecem expressos na superfície do texto. Pela nossa experiência mesma, sabemos que, na maioria das situações, o conjunto de tais elementos é muito amplo, re­sultando daí que o discurso completo é impraticável e pragmaticamente inadequado, pois muito da informação acabaria por ser redundante e não relevante para a interação.

Imagine-se que, em vez de alguém dizer:

(3) O sonho de qualquer universitário é ter um emprego garantido após a formatura,

dissesse o seguinte:

(3') O sonho de qualquer universitário é, após cursar todas as disci­plinas do curso e, desde que comprovada a aprovação em todas elas, após receber o diploma, registrá-lo junto aos órgãos competentes, elaborar um curriculum, procurar uma empresa idônea, apresentar- se como pessoa capacitada, ser avaliado, em diferentes tipos de testes, ser aprovado e ser selecionado, ter um emprego garantido.

É evidente que o sujeito, até mesmo de forma bem intuitiva e natural, seleciona o que dizer dentro do grande conjunto das "informações possíveis", inclusive quantitativamente, para dizer apenas o que é relevante num deter­minado contexto. O critério para discernir sobre o que é relevante é exata­mente optar por aquilo que não pode deixar de ser dito, pois se o for, faz falta.

A decisão de escolher entre o que expressar e o que deixar implícito cabe, pois, ao sujeito autor do discurso, de acordo com o gênero e com outras condições de cada situação de interação, sobretudo, é claro, as con­dições do interlocutor ou dos interlocutores envolvidos na interação. Al­guns

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discursos, evidentemente, podem conter referências ou descrições detalhadas. Outros - por exemplo, os discursos legais ou de processos cri­minais - até devem chegar a todos os detalhes, por vezes, com a máxima explicitude possível, para não dar margem a interpretações equivocadas.

Numa reportagem sobre um acidente, na qual foram referidas as pro­vidências tomadas para garantir o socorro às vítimas, o repórter optou por fazer a seguinte seleção:

(4) De um celular, a enfermeira ligou para o Hospital Santa Clara, onde trabalha, em Jussara. Um rapaz com uma caminhonete transportou os feridos.

Ou seja, muita informação foi omitida na descrição do que aconteceu en­tre o momento da chamada para o hospital e o transporte dos feridos. As informações omitidas não pareceram relevantes ao repórter, pois ele pressu­põe que o leitor é capaz de "recuperar" o que não foi realizado lexicalmente.

Admite-se, assim, para os textos, a existência de:

a) graus de completude e

b) níveis de completude.

Ambos se inter-relacionam e concorrem para a maior ou menor completude do discurso.

Os graus de completude do discurso concernem ao maior ou ao me­nor detalhamento na apresentação das informações. Um discurso em que fossem explicitados todos os pormenores de uma cena, por exemplo, até mesmo aqueles dados por supostos, produziria um efeito desagradável e atenuaria o interesse do parceiro da interação. Faz parte da competência discursiva do sujeito saber garantir a coerência pragmática de sua inter­locução, pelo dizer explícito, apenas, do que é necessário.

Por sua vez, os níveis de completude do discurso concernem aos dife­rentes estratos hierárquicos em que as informações podem ser articula­das na suposta normalidade dos mundos representados em nosso dis­curso. Uma informação mais geral, de maior abrangência, contém outras mais específicas e de menor espectro; estas, naturalmente, são compo­nentes necessários ou prováveis daquelas. Como pode ser considerado a partir do exemplo (3'), conseguir um emprego, após uma formatura

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universitária, é um estado que inclui, necessariamente, concluir um curso, ser aprovado, apresentar-se a uma empresa, ser avaliado etc. etc. Quer dizer, informações mais específicas já incluídas em outras mais gerais não precisam ser explicitadas. Do contrário, a interação se tornaria pesada, desinteressante e improdutiva.

Podemos, então, distinguir entre discurso hipercompleto e discurso infracompleto. Um discurso que chegasse a ser demasiado explícito, de­masiado específico e detalhado, seria um discurso hipercompleto; um discurso em que faltassem pormenores relevantes seria um discurso in­fracompleto. No meio termo, estariam os discursos que satisfazem as ex­pectativas de uma informação contextualmente suficiente, no qual nem sobram nem faltam elementos.

Tanto os graus quanto os diferentes níveis de completude do discurso dependem, fundamentalmente:

- da modalidade (oral ou escrita) em que acontece a interação (um discurso escrito pode exigir um detalhamento maior de informação);

- dos propósitos dos interlocutores no ato comunicativo, (a pretensão de um convencimento, por exemplo, pode requerer estratégias de maior explicitude);

- do conhecimento partilhado pelos agentes da interação (em geral, o que é presumido como sabido não precisa ser explicitado);

- do domínio discursivo e do gênero de texto implicados (tais elementos, por si sós, já dão pistas do conteúdo ou das intenções implicados).

Comumente, mais de um desses fatores se junta para condicionar uma forma de discurso mais completo ou mais incompleto. Como sugeri, o discur­so oral apresenta mais vazios que o escrito devido às suas condições de pro­dução. Basta lembrar os sentidos implicados na copresença dos interlocuto­res e na sua inserção numa determinada cena de interação social, no acesso imediato aos objetos de referência, nos efeitos de sentido promovidos pelas diferenças de entonação, pelas expressões fisionômicas e gestuais etc.

Em decorrência dessas diferenças de grau e de nível de completude, cada discurso tem, numa dada situação, um limite superior de generaliza­ção e um limite inferior de especificação. Cabe aos protagonistas da cena

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discursiva discernir sobre a extensão desses limites. É um desafio. Desafio, reitero, que extrapola, em muito, o conhecimento da gramática da língua.


3. Como se mostra a maior ou menor explicitude do discurso?

A completude e a incompletude do discurso podem assumir formas diferentes. Assim, é possível omitirem-se dados:

- ou porque eles não constituem elementos relevantes para o contexto da inte­ração; em geral, eles são inteiramente previsíveis no contexto da interação;

- ou porque eles estão indiretamente presentes em segmentos de nível mais alto, dos quais são componentes necessários ou prováveis (nesse caso, é mais apropriado dizer-se que tais elementos estão implícitos).

No primeiro caso, trata-se de uma incompletude seletiva: os dados omi­tidos se situam na mesma ordem (ou nível) de generalidade, e a opção por omiti-los, ou não, é uma decisão do interlocutor regulada pelas condições do contexto. No caso do exemplo (4) - notícia sobre um acidente -, as ações mencionadas (a chamada telefônica para o hospital, o resgate da vítima numa caminhonete) constituem fatos da mesma ordem de generalidade. Sua explicitude depende de uma estratégia de seleção do interlocutor.

No segundo caso, a omissão não decorre de uma operação de seleção en­tre várias informações do mesmo nível de especificação. Decorre do fato de uma informação estar contida em outra mais geral, posta anteriormente, e, por isso mesmo, não precisar ser explicitada. A propósito do exemplo (3'), podemos considerar que cursar todas as disciplinas do curso, receber o diplo­ma, registrá-lo, elaborar um curriculum, procurar uma empresa idônea, apresentar-se como pessoa capacitada, ser avaliado, ser aprovado e ser selecionado são componentes necessários de outros fatos mais gerais e, por isso, podem ser dados como previsíveis. Outros exemplos podem ser vistos em (5) e (6):

(5) Evite dor de cabeça. Escolha produtos de qualidade.

embora, nesse caso, a hierarquia de níveis implicada seja de ordem mais pragmática que semântica.

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(6) Do desembarque no aeroporto internacional de Malpensa, em Milão, (...) à partida da Seleção Brasileira contra o Peru, (...) o paulista Ri­cardo Ezecson, o Kaká, de 21 anos, experimentou emoções pelas quais a maioria das pessoas não passa em sua vida inteira.

Repare-se que não é necessário dizer que Kaká chegou a Milão de avião, pois essa afirmação já está contida no segmento que aparece em negrito no trecho.

Vejamos, no pequeno conto a seguir, quanto desses tipos de incomple­tude se poderia atestar.

FUGIR DO CARNAVAL

No carnaval, ou se brinca ou se foge para onde ninguém fala em carnaval. Este lugar existe? Minimiano achava que sim, e procurou-o em praia longín­qua, onde deparou com o banhista fantasiado de pote. Rumou para a mata na montanha, e lá viu uma cenoura sambando, com jeito indubitável de mulher. Minimiano fretou um helicóptero para passar o maior tempo possível afastado da folia. No alto, o piloto pediu-lhe licença para mascarar-se de sagui-caratinga. "Só a máscara, o resto do corpo não. 0 senhor não vai se incomodar, né?" Minimiano ia dizer que sim, que se incomodava e muito, mas a cara do piloto era tão suplicante que ele respondeu: — Claro que não. Você não tem aí outra máscara para mim?

(Carlos Drummond de Andrade, Contos plausíveis.

Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, p. 74).
...

Essa é uma boa oportunidade para lembrar quanto a exploração dessas questões é

fundamental e precisa, por isso, fazer parte do programa das aulas de línguas. O exercício competente da linguagem exige a habilidade de decidir quanto trazer para a superfície do discurso.

...
Repare-se que a relação entre 'carnaval' e 'brin­car', 'carnaval' e 'fantasiado', 'sambando', 'folia' já é dada como sabida e justifica que muitas informa­ções fiquem implícitas; igualmente, a relação entre 'praia' e 'banhista'; entre 'helicóptero' e 'piloto'; entre 'helicóptero' e 'No alto', para referir apenas essas. O fato de dizer que 'Minimiano fretou um he­licóptero' já contém a informação de que o helicóp­tero não lhe pertencia. O segmento "No alto", aliado a nosso conhecimento de mundo, já dispensa refe­rir o vôo do helicóptero. Muitos vazios, portanto,

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são deixados sem que o texto tenha a sua coerência abalada. Pelo contrá­rio, a explicitação de dados supostamente tidos como sabidos produziria um efeito de irrelevância e comprometeria, em muito, sua coerência.
4. A incompletude do discurso e sua coerência

Pelas considerações feitas até agora, pode-se depreender que tanto a infracompletude quanto a supracompletude do discurso podem constituir con­dições de sua incoerência. Mas a incompletude do discurso é, pelo contrário, uma das marcas de sua coerência e, como disse anteriormente, uma conve­niência de ordem pragmática. A interação verbal seria insuportável se não fossem esses "vazios", supostamente dados como preenchíveis pelo próprio conhecimento que temos do mundo onde os estados de coisas acontecem.

Daí que um texto não se faz apenas com o material linguístico presen­te, muito menos com gramática, apenas. Daí que a avaliação de qualquer texto é inconsistente caso seja descartada a consideração às suas condi­ções de produção e de circulação.
5. Os implícitos

A implicitude do discurso tem sido uma questão bastante discutida, tanto no âmbito da semântica quanto no da pragmática, pelo que uma grande variedade de tipos de implícitos tem sido apontada. Uma distin­ção que se tem destacado é aquela que estabelece a diferença entre pres­suposto (dependente de fatores linguísticos) e subentendido (dependente de fatores contextuais). A primeira, envolve a pressuposição e a implica­ção. A segunda, a inferência. Vejamos um pouco dessa questão.

5.1. A pressuposição

5.1.1. Numa dimensão mais ampla

Os locutores envolvidos numa interação, além das informações explí­citas, tendem a supor, como evidentes, uma série de dados, na expectativa de que os destinatários articulem o que é explicitado - isto é o posto - com

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o que está simplesmente pressuposto. Ou seja, na medida em que alguém efetua um ato comunicativo, ele o faz a partir de determinados pressu­postos, ou seja, a partir de um conjunto implícito de dados, anteriores à real efetivação do ato comunicativo.

Uma dessas pressuposições básicas concerne à crença do ouvinte (ou do leitor) de que quem fala (ou quem escreve) está na disposição de só dizer coisas coerentes, coisas que façam sentido e sejam interpretáveis. Por outro lado, a expectativa do falante (ou de quem escreve) é que seu parceiro vai empreender todos os esforços necessários para encontrar um sentido em cada coisa dita ou em cada fragmento que ficou implícito. Certamente, a intuição popular soube descobrir essa teia de pressuposi­ções, de ambos os interlocutores, quando popularizou o dito:

(7) Para o bom entendedor, meia palavra basta.

"Meia palavra" basta, porque a outra "meia" será recuperada pelo par­ceiro, que, assim, pode ser considerado como "um bom entendedor". Esse mútuo empenho de emprestar sentidos à atividade da linguagem é que está na base de uma concepção interacionista da linguagem. Nem falante nem ouvinte é, cada um isoladamente, a matriz do sentido verbalizado numa situação comunicativa. A interação empreendida pelos dois é que constrói a rede dos sentidos e das intenções expressos.

Ou seja, a dependência interpretativa entre as partes de um discurso resulta, entre outros fatores, do fato de que há implicitudes fundadas em informações expressadas explicitamente em segmentos prévios. Dessa forma, esse conjunto de pressuposições, aceitas, de antemão, como ver­dadeiras pelos parceiros da atuação verbal, constitui componentes essen­ciais da situação de comunicação.

Vejamos a graça com que Millôr, na sua finíssima intuição linguísti­ca, expressa a compreensão dessas pressuposições mais amplas, refor­çando a ideia de que nem tudo precisa ser explicitado, considerando o que é situacionalmente presumido numa situação de interação, pelo que a incompletude do texto representa uma condição de sua coerência. Vamos ao texto.

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A mensagem



Num mundo em que a comunicação é tudo e o discurso sempre pouco, conta-se aqui uma história altamente moral sobre a inutilidade da primeira enquanto se economiza o segundo.

E chamou o pintor e lhe encomendou a placa para anunciar a especialidade do seu negócio: "Nesta casa se vende ovos frescos". Além dos dizeres, recomendou ao pintor que bolasse uma figura, qualquer alegoria referente ao ramo. E per­guntou quanto era. O pintor disse que ficaria em 50.000 cruzeiros.

- Cinquenta mil o quê? indagou o comerciante, pensando, inutilmente, numa moeda mais desvalorizada do que o cruzeiro.

- Cinquenta mil cruzeiros, disse o pintor. Ah, não vale, disse então o comerciante.

- Como não vale? retrucou o pintor, ofendido em sua arte mais do que atingido em sua economia.

- O senhor não poderia reduzir um pouco? arriscou o comerciante.

- Claro que posso, disse o pintor, posso reduzir afigura e os dizeres.

- Como assim? disse o negociante.

- Olha, explicou o pintor, pra começo de conversa, não precisamos usar figura ne­nhuma. Se se diz que o senhor vende ovos, não há necessidade de colocar nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o normal são ovos de galinha, o fato de não ter nenhuma outra ave faz com que os ovos sejam, presumivelmente, de galinha.

- É certo, concordou o negociante.

- Então, fez o pintor, vinte mil cruzeiros de menos. Agora também não é ne­cessário dizer "nesta casa". Se o freguês passa por aqui e vê: "se vende ovos frescos", já sabe que é nesta casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado, não é mesmo?

- Certíssimo, exclamou o comerciante.

- Então, continuou o pintor, por que colocar "Se vende"? Se o freguês potencial lê "Ovos frescos" já sabe que se vende. Ninguém pensaria que o senhor vai abrir uma casa comercial para alugar ovos ou apenas para expô-los, certo?

- É mesmo, espantou-se ainda mais o comerciante.

- Quanto ao "frescos", continuou impávido o pintor, refletindo melhor, não é de boa psicologia usar essa palavra. "Fresco" lembra sempre a hipótese contrária, a de ovos "velhos". Não deve nem ter passado pela cabeça do comprador a ideia de que seus ovos podem ser outra coisa senão frescos. Portanto, tiremos tam­bém o "frescos".

114
- Certíssimo! Berrou o negociante, agora profundamente entusiasmado com a dia­lética do pintor. Façamos, portanto, apenas "OVOS", tout court Por favor, desenhe aí só essa palavra, bem bonita, bem clara: OVOS! Só ovos, ovos em si mesmos, que se vendam pela sua pura e simples aaparência de ovos, pelo seu inimitável oval!



- Então vamos lá, concordou o pintor. Mas antes de começar a usar o pincel, voltou-se para o negociante, preocupado:

- Mas, me diga aqui, amigo pensando bem, por que vender ovos?

(Millôr Fernandes. Tempo e contratempo.

Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, s. d.)
Repare-se que os argumentos do pintor para suprimir qualquer in­formação incidem, sempre, sobre o fato de que a informação pode ser in­terpretada como já presumida, consensualmente, na situação de interação. Não é necessário, portanto, que se explicite o que já está, de um jeito ou outro, contido no que é afirmado, como se pode ver, por exemplo, na justi­ficativa do pintor: "Não é necessário dizer 'nesta casa'. Se o freguês passa por aqui e vê: 'se vende ovos frescos', já sabe que é nesta casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado, não é mesmo?" Argumentos do mesmo tipo são apresentados para justificar por que não é necessário dizer que "se vendem ovos" ou que eles "são frescos".

Daí que muita coisa não precisa ser dita explicitamente, confirmando- se o princípio de que o discurso, para ser pragmaticamente relevante e coerente, tem que ser incompleto.


5.1.2. Numa dimensão mais específica

A pressuposição, como se verá, conta com algum tipo de suporte le­xical ou morfossintático; ou seja, está contida no próprio significado de uma palavra (por exemplo, em 'voltar' está pressuposto que já se esteve presente antes) ou de uma estrutura sintática (por exemplo, em 'deixar de' está pressuposto que algo já não acontece mais). Depende, portanto, mais do conteúdo linguístico explicitado do que das condições particula­res da situação de comunicação.

Conforme Mira Mateus et alii (1983, p. 166), a pressuposição está su­jeita à seguinte condição:

115
Diz-se que uma asserção A1 pressupõe outra asserção A2 se a verdade de A2 for condição necessária mas não suficiente da verdade de A1, isto é, a verdade de A2 não garante a verdade de A1.


Assim, por exemplo, em:

(8) Todos os professores da Universidade Estadual do Ceará são brasileiros, está pressuposto que:

(9) A Universidade Estadual do Ceará tem professores.

Conforme está estipulado nas condições acima descritas, a afirmação de (9) não garante a verdade de (8).

Nesse âmbito da pressuposição específica, vale a pena fazer algumas distinções. Vejamos.

- A pressuposição existencial - está presente nos sintagmas nomi­nais com artigo definido e outros determinantes; como, por exem­plo, nas expressões seguintes:

(10) 'o carro'; 'o presidente da República', 'meu carro'; 'vários alunos' etc.

Nessas construções, fica declarada a existência (real ou imaginária) da entidade à qual nos referimos. Ou seja, se eu digo 'meu carro', é porque eu te­nho um carro, nem que seja apenas no meu desejo ou nas minhas fantasias.

- A pressuposição factiva - está presente nos chamados 'verbos ou expressões factivas', ou seja, verbos e expressões cuja informação a eles adicionada é entendida como um fato verdadeiro. Por exemplo, no texto em que aparecessem os segmentos seguintes:

(11) Eu lamento que a derrocada tenha-se instalado nas instituições financeiras,

(12) Eu estou feliz por ver que acontece a reflexão sobre a educação nacional,

(13) Alegro-me que a escola tenha revisado seus projetos de ensino,

as informações que complementam a predicação verbal são tidas como fatos que aconteceram realmente, que já tiveram lugar num intervalo de tempo passado. E essa interpretação é autorizada pela natureza factiva (de 'fato') dos verbos que constituem o núcleo desses predicados.

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- A pressuposição léxico-semântica - está presente no uso de uma pa­lavra que tem, além de seu próprio significado, um outro não-expressado, mas reconhecível. Por exemplo, quando dizemos a alguém que:

(14) A empresa conseguiu enfrentar o desafio de uma forte concorrência,

é porque se pressupõe que ela 'tentou' mais de uma vez, obtendo êxito, afinal. O mesmo acontece quando dizemos:

(15) A empresa conseguiu enfrentar o desafio de novo,

pressupõe-se que ela já tinha conseguido antes.

Ou, na afirmação de que:

(16) O Banco Central começou a aquecer a economia do país,

pressupõe-se que ele não o fazia antes. Em:

(17) O Banco Central parou de aquecer a economia do país, pressupõe-se que ele o fazia antes. Em:

(18) O Banco Central voltou a aquecer a economia do país, pressupõe-se que ele havia feito isso antes e que, agora, havia deixado de faze-lo.

...


Daí que o estudo significativo do léxico não se esgota pelo simples fato de se procurar saber, em listas de palavras, seus significados. É preciso ir além para identificar os sentidos (explícitos e implícitos) que essas palavras, em determinados contextos de uso, podem assumir ou implicar.

...
Na verdade, o domínio que temos do léxico de nossa língua permite que, adequadamente, use-mos e interpretemos essas palavras e locuções.

- A pressuposição não-factiva - está associada a um número de verbos, expressões e estruturas cuja informação a eles vinculada deve ser interpretada como não sendo um fato real. Por exemplo:

(19) Eu sonho com uma casa no campo... Eu queria ter... Se eu tivesse uma casa... Eu teria uma casa, se...

- A pressuposição contrafactual - está associada a um número de verbos, expressões e estruturas cuja informação a eles vinculada deve ser interpretada como não sendo possível no mundo real.

(20) Se eu tivesse asas, iria te encontrar agorinha!

117
• A pressuposição estrutural - está presente na forma como são organiza­das certas estruturas frasais. Por exemplo, vejamos o que é possível pres­supor a partir do sentido dos interrogativos nos enunciados abaixo.

(21) Quando foram (serão) divulgados os novos projetos da escola?

(22) Onde foram (serão) divulgados os novos projetos da escola?

(23) Como foram (serão) divulgados os novos projetos da escola?

em que se pressupõe que esses projetos já foram ou serão, de fato, divulgados.

É da mais alta relevância ter em conta que as pressuposições permane­cem válidas na negação. Assim, em A empresa não conseguiu enfrentar o desa­fio de uma forte concorrência, está igualmente pressuposto que ela tentou.


5.2. A implicação

Outra distinção merece ser feita, ainda que sumariamente, entre a pressuposição e a implicação.

Para relembrar, voltemos um pouco.

Quando se diz, por exemplo, que Todos os professores da Universidade Es­tadual do Ceará são brasileiros, está pressuposto que: A Universidade Estadual do Ceará tem professores. No entanto, em: A Universidade Estadual do Ceará tem professores, não se pode garantir que esses professores sejam brasileiros.

Na implicação é o contrário: a verdade de uma afirmação depende ne­cessariamente da verdade da outra. Por exemplo, dizer que:

(24) Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos implica admitir que ele já não é candidato.

Observemos, por exemplo, a implicação contida no par de enunciados (25 e 26).

(25) Ontem à noite, Paula viu aquele professor na reunião do Departamento.

(26) Aquele professor foi visto ontem na reunião do Departamento. (Enunciado implicado em (25)).

Observemos que a implicação é, de fato, diferente do pressuposto. Por exemplo, são pressupostos de (25) que 'ontem aconteceu uma reunião';

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que 'Paula e o professor foram à reunião; que 'Paula não é cega', entre outros. Mas o fato de ter havido uma reunião e de lá terem estado Paula e o professor não garante que o professor tenha sido visto. Poderiam estar os dois na reunião e um não ter sido visto pelo outro. Na implicação, ao con­trário, a verdade de uma afirmação está presa à verdade da outra. Ou seja, se Paula viu o professor, o professor foi visto.

São distinções bem sutis, mas que fazem a di­ferença no cotidiano de nossas interações verbais. Considerá-las aqui responde a esse nosso interes­se de, cada vez mais, trazer para a explicitação os efeitos de sentido que são expressos ou que estão subjacentes às unidades e às estruturas da língua, até mesmo para que não pensemos que o mundo da língua se esgota nas regras "certas" das concor­dâncias, das regências e outras "ias".

Trazer à consideração essas diferenças tem, portanto, o objetivo de nos chamar a atenção para a complexidade da atividade verbal, na sua produ­ção e na sua recepção, complexidade que eviden­cia a importância dos sentidos que têm as palavras e as estruturas que elas constituem.

A linguagem se justifica pelos sentidos que ex­pressa, pelas intenções que manifesta. Sentidos e intenções que decorrem dos valores culturais dos grupos onde vivemos e interagimos. Durante mui­to tempo, em muitas aulas de língua, perdemos de vista este componente semântico, este componente pragmático da linguagem e nos detivemos em análises de sua morfologia e de sua sintaxe, como se essas coisas ti­vessem vida por si mesmas.

A serviço de que estão a morfologia e a sintaxe, a não ser a serviço do sentido e das intenções que nos ocorre expressar? Falamos, simplesmente, para dizer coisas que têm sentido, para cumprir intenções; não para exerci­tar a formação de categorias morfológicas ou sintáticas. Quando alguém diz

...


Será que a dificuldade maior de quem escreve é não saber discernir entre "um adjunto adnominal" e um "complemento nominal", entre um "se" partícula apassivadora e um "se" índice de indetermina­ção do sujeito? Como recuperar o tempo gasto com essas e outras explicações? Pondo, no centro de nossas atividades de sala de aula, o estudo, a análise, a exploração, a comparação, a observação, em textos, das especificidades dos sentidos e de seus efeitos na compreensão do que dizemos e ouvimos.

...


119
que "vovó vai à vila" - o que carrega, naturalmente um sentido, - o diz com uma intenção qualquer; para responder, talvez, ao interesse de alguém que quer saber "para onde vovó vai" ou o que vai fazer essa tarde. Não diz sim­plesmente por dizer, muito menos para treinar a produção do som "v". Ou seja, é preciso que a palavra do outro desencadeie nossa própria palavra. É nesse ponto que sobressai o caráter descontextualizado do ensino da esco­la: a língua é vista "dessitualizadamente", sem referência a um dizer prévio, a uma finalidade específica de interação, onde dizer o que se diz se faz per­tinente porque corresponde a uma expectativa qualquer de um outro.

Voltemos às considerações acerca da natural incompletude do discurso.


5.3. A inferência

O termo 'inferência' é comumente reservado para informações implí­citas que são identificadas com apoio de nosso conhecimento de mundo, informações que se relacionam, portanto, com o 'saber partilhado' pelos interlocutores. A inferência está, assim, profundamente vinculada à vida, aos valores culturais da comunidade onde acontece a atividade verbal. As situações sociais, os cenários onde os 'atores' da atividade verbal interagem constituem os pontos de referência para as interpretações inferenciais.

Assim é que a associação interpretativa ente 'eleição' e 'campanha', entre 'eleição' e 'urna', entre 'eleição' e 'pesquisa', por exemplo, decorre do conhecimento que temos acerca de como essas entidades estão or­ganizadas em nossa experiência e que espaço, físico e cultural, dividem. Difere, portanto, da pressuposição, que se fundamenta em determinações linguísticas, derivadas dos traços semânticos das expressões ou das con­dições sintáticas em que essas expressões ocorrem.

Pela via dessas associações, estabelecidas com base em nossos co­nhecimentos de mundo, muitos vazios podem ser recuperados em nossas interações, até mesmo aqueles que, aparentemente, nada tinham de asso­ciáveis. Diante de alguém que nos informa que

(27) Amanhã as aulas vão começar,

é possível inferir uma outra informação; por exemplo, a de que:

(28) O trânsito na cidade vai piorar,

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ou que

(29) É preciso deitar-se mais cedo.

Ora, a relação entre "início das aulas" e "congestionamento do trânsito" não se dá por razões semânticas, quer dizer, não decorre de uma interde­pendência entre os valores de sentido das palavras aí presentes. Do ponto de vista estritamente semântico, "início das aulas" e "congestionamento do trânsito" não estão em nenhum tipo de inter-relação de sentido.

Não é, portanto, o conhecimento da língua que nos faz estabelecer en­tre essas expressões um nexo de coerência. É preciso conhecer os esque­mas da vida urbana, com suas práticas e repercussões, para entender por que as duas coisas - aulas em curso e engarrafamento do trânsito - se re­lacionam e podem entrar na constituição de um nexo coesivo e coerente. Por isso mesmo, é que não faz sentido analisar a língua fora do universo cultural do qual ela faz parte.

Quando lemos, à entrada de um restaurante, um aviso de advertência do tipo:

(30) É proibido entrar sem camisa,

ou um outro, em um estabelecimento comercial, informando:

(31) Aberto aos domingos,

acionamos o nosso conhecimento de mundo para resgatar o todo des­sas comunicações e, assim, entendemos o que nem foi preciso dizer: os homens (sabemos perceber que a advertência é para eles) também não podemos entrar sem calças; o estabelecimento está aberto todos os dias da semana, não somente aos domingos. Esses cálculos requisitaram mais que os elementos linguísticos explícitos.

O jornal Diário de Pernambuco, que circulou no domingo, 25 de janeiro des­te ano de 2009, trazia em caixa alta, na primeira página, a seguinte manchete:

(32) CASAIS TROCAM ALTAR POR JUIZ.

Imaginemos a dificuldade que um leitor proveniente de uma cultura mui­to diferente da nossa poderia sentir para entender de que "troca" se está fa­lando. Imaginemos as hipóteses de interpretação a fim de entender o porquê da referência a "altar" e a "juiz". Somente o recurso ao conhecimento de como,

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em nossa experiência cultural, esses elementos são distribuídos pode nos dar a chave da interpretação correta, apesar dos elementos não explícitos e apenas inferíveis: hoje os casais preferem o casamento civil ao religioso.

Em suma, estabelecer a coerência de um texto é uma atividade cognitiva bastante complexa. É um verdadeiro trabalho interpretativo; uma atividade de articulação entre o que é apanhado no enun­ciado e o que é selecionado no conjunto de dados contextuais que conhecemos. Envolve, pois, uma série de operações mentais, de fatores cognitivos, de conhecimentos, que, acionados, nos permitem "pescar" ou recuperar a coerência do que dizemos e ouvimos, considerando não apenas o que é pos­to na superfície do discurso, mas tudo quanto está pressuposto ou implicado naquilo que é dito, ou é inferível, a partir de nossas experiências de vida.

...


Os alunos poderiam ser orientados pelo professor para, em anúncios, em avisos, em notícias e reportagens, e tantos outros materiais, identificarem enunciados que somente podem ser entendidos se recorrermos ao nosso conhecimento de mundo. Todos os exemplos apresentados aqui - alguns como fragmentos de textos - são fatos textuais que podem ser observados e estudados, para que se entenda melhoro mundo das realizações discursivas.

...
Todos esses tipos de implícitos são comuns nas anedotas, nas tirinhas, nos cartuns, nos anúncios publicitários. A análise desses gêneros, na perspectiva de identificar os vazios que, paradoxalmente, completam o seu sentido e, assim, lhe dão relevância comunicativa, constitui um expediente significativo para se perceber os modos de funcionamento da interação verbal. Na verdade, é isto que importa: saber como ocorre a prática da linguagem.

Por todas as considerações feitas neste capítulo, fica evidente, mais uma vez, a insuficiência do conhecimento linguístico para a atividade da intera­ção verbal. Muito mais ainda a insuficiência do conhecimento estritamente gramatical. A tão divulgada incompetência dos alunos, em leitura e em elabo­ração de textos formais, não é, pois, fatalidade, nem fruto do acaso, nem tam­pouco decorrência da falta de dotes intelectuais dos alunos; é, com certeza, resultado de um ensino pobre, irrelevante e extremamente limitado ao mais exterior da superfície linguística: sua nomenclatura e suas classificações.

No que tange à gramática, pouco se explora, por exemplo, as infor­mações implícitas que decorrem do uso de certas categorias gramaticais,

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como é o caso do artigo definido, dos pronomes indefinidos, dos quantifi­cadores, para citar apenas esses.

Vejamos o início de uma fábula escrita por Millôr Fernandes.

A GALINHA REIVINDICATIVA ou THE HEN'S LIBERATION Em certo dia de data incerta, um galo velho e uma galinha nova encontra­ram-se no fundo de um quintal e, entre uma bicada e outra, trocaram im­pressões sobre como o mundo estava mudado. O galo, porém, fez questão de frisar que sempre vivera bem, tivera muitas galinhas em sua vida sentimental e agora, velho e cansado, esperava calmamente o fim de seus dias.

Observemos que somente podemos concluir que a galinha se mostrou insa­tisfeita recorrendo ao sentido de oposição expresso pelo conectivo 'porém'. Em nenhum outro momento há qualquer referência às suas queixas. No início da fábula, a situação de ambos - galo e galinha - é apresentada com neutralidade: conversavam sobre como o mundo está mudado. Essa neutralidade é desfeita por conta do que fica contido no uso da adversativa 'porém'. Ou seja, é também com categorias gramaticais que se constrói o sentido dos textos. Categorias que têm funções, que provocam sentidos, que implicam o estabelecimento de certas con­clusões. Não apenas categorias que têm um nome.

De fato, a escola tem subestimado todo esse con­tingente de informações implícitas, que, de um jeito ou de outro, fica "subjacente". Já que seu trabalho ainda incide preferencialmente sobre a morfologia das pa­lavras e a sintaxe da frase, ou, no caso do texto, sobre o que está expresso em sua superfície, a imensa ques­tão dos implícitos, dos "vazios" fica de fora. É como se tudo o que é dito estivesse expresso literalmente, ou à vista sobre as linhas do texto ou na sequência dos sons. Perde-se com isso a oportunidade de explorar um ponto que é constitutivo da linguagem em uso e que representa, portanto, uma das condições da am­pla competência comunicativa dos sujeitos.

...


Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias, em Ler e compreender—os sentidos do texto, nos ofereceram um ótimo exemplar de como explorara multiplicidade de elementos que concorrem para que encontremos os sentidos do texto. Também vale a pena a consulta à obra de Norma Discini, Comunicação nos textos, onde podemos encontrar um farto material com análises e fundamentações bem consistentes.

...


Constantemente, somos assediados por um con­junto de informações, que, na maioria das vezes, são muito mais relevantes pelo fato de que não estão ex­plicitadas na superfície. Os propósitos de manipulação ­

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a que somos submetidos cada dia, quase sempre, se escondem, exatamen­te, na sutileza do que está apenas subjacente. Basta ver quanto a publicidade em geral se vale da força dos 'ditos' apenas pressupostos, evocados ou suge­ridos. Basta estar atento ao discurso da esfera política, que, muitas vezes de propósito, "joga" com esses "não-ditos explícitos", na esperança de que não saibamos encontrar lá dentro os sentidos implicitados.

Se somos feitos pela linguagem, não podemos deixar de ter a clara consciência do caminho que percorremos, com veredas e atalhos, preci­sos e imprecisos, retos e tortuosos. Os professores não podem furtar-se à responsabilidade de desenvolver nos alunos as habilidades de percebe­rem como se delineiam as trilhas certas e como se traçam as artimanhas em que estão escondidas "as segundas intenções".

Aulas de línguas, estudos de línguas: não seriam uma oportunidade feliz para se analisar como ocorrem as múltiplas atuações comunicativas das pes­soas, e desenvolver a consciência do que se pode fazer com a linguagem? Não seriam uma oportunidade feliz para se explorar os ganhos e os riscos a que es­tamos expostos pelos discursos soltos ao ar ou pintados no papel ou na tela?

Eles são mais, muito mais mesmo que conjuntos de sons, que "papéis pintados", que sinais eletrônicos... Podem curar, podem ferir; são trans­parentes; são opacos; revelam mesmo quando parecem ocultar; salvam e podem ser ameaças.

Ninguém pode, pois, ficar à beira do que os discursos superficialmen­te expressam.

...


são como um cristal, as palavras.

Algumas, um punhal, Um incêndio.

Outras, orvalho apenas. Secretas vêm, cheias de

memória.

(Eugénio de Andrade)

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Capítulo 7



O QUE É MESMO A

INFORMATIVIDADE DO TEXTO?


...

Com o título "A informatividade do texto", este trabalho foi publicado na revista Arte e Comunicação, do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, em 1994.

...
1. Em que consiste?

Fazer do texto objeto de análise é uma tarefa que supõe paradigmas mais amplos que aqueles definidos pelas descrições da gramática tradicio­nal, normalmente focalizados em questões morfo­lógicas e sintáticas. A relevância da linguística de texto decorre exatamente das propostas de am­pliação desses paradigmas e das categorias a se­rem vistas como ponto de investigação. Para além das regularidades léxico-gramaticais com que se constroem os textos, encontram-se, e de forma igualmente pertinente, outros fatores que cons­tituem critérios da adequação, da qualidade e da relevância de nossas atuações verbais.

Um desses fatores é, sem dúvida, a informatividade, uma propriedade que diz respeito ao grau de novidade, de imprevisibilidade que a compreensão de um texto comporta.

...


Uma observação: mais adiante, veremos como certos textos de algumas de nossas transações sociais, por razões práticas, apresentam-se com o mesmo conteúdo e, por vezes, sob a mesma forma.

...


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Em princípio, todo texto traz algum elemento de novidade. Ninguém fala para dizer o óbvio, ou o que o outro já sabe. Há sempre algo de novo, seja na forma - a maneira ou os recursos com que dizemos -, seja no con­teúdo - informações, dados, ideias que expressamos.

O texto, portanto, comporta algum grau de imprevisibilidade, na depen­dência, é claro, daquele mesmo grau de novidade com que se apresenta. Consequentemente, o interesse que o discurso pode suscitar no interlocu­tor decorre desse maior ou menor grau de imprevisibilidade. Dizer o que o outro já sabe, a priori, não provoca nenhum interesse. Dispomo-nos a ouvir, a interagir com o outro na expectativa de que algo de interessante - quer dizer, de 'novo' (pelo menos naquele contexto) - nos vá ser dito.

Esse grau de interesse - causado pela novidade da informação - é que determina, por sua vez, a relevância do discurso, ou seja, seu teor de per­tinência, diante do que nos dispomos a cooperar ativamente, ouvindo ou lendo cada trecho do que nos é dito.

Quando o discurso nos parece muito pertinente, não o queremos per­der e, facilmente, consentimos em "prestar-lhe toda a atenção". Ocorre que um discurso é tanto mais pertinente quanto mais ele acrescenta; es­clarece; informa; amplia nosso repertório; atende nossas aspirações esté­ticas; nossas representações simbólicas; satisfaz nossas necessidades de contato; nosso desejo do lúdico, do ameno etc.

Daí por que nem todo discurso tem o mesmo grau de relevância, ou seja, de informatividade, ou seja, de interesse. Nem poderia ter, pois as situações sociais em que as interações têm vez são diferentes, os propósitos com que interagimos são diferentes, as necessidades de comunicação são diferentes.

Na verdade, decidir pela maior ou menor informatividade é uma questão contextual, pragmática e saber fazê-lo representa uma habilidade comuni­cativa de grande apreço. A adequação de um texto à cena de sua ocorrência implica também administrar o grau de informatividade que o discurso terá.

Parece-nos de grande interesse, portanto, trazer esse tema da infor­matividade para reflexão, até porque, na prática pedagógica da avaliação dos textos dos alunos, essa propriedade não tem sido levada em conta na medida em que deveria ocorrer. Em geral, - sabemos de experiência própria­

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- avaliar os textos dos alunos era, na verdade, uma tarefa de corrigir os erros de ortografia e de gramática, contando esses erros para cálculo da nota final. Pouco se prestava atenção na relevância do que era dito, por mais que as coisas ditas parecessem "obviedades gritantes". Se estavam bem escritas, ortograficamente, é claro, passavam. Assim... não crescia em nós a competência para dizer aquilo que precisa ser dito, porque traz al­gum elemento de novidade e de interesse para nosso interlocutor.


2. Mas... um texto tem sempre

o mesmo grau de informatividade?

Quando um texto é mais, ou menos, relevante do ponto de vista das informações novas que traz?

Segundo Beaugrande (1980, p. 103) e Beaugrande & Dressler (1981, p. 39), a informatividade não concerne apenas ao princípio de que um texto tem um conteúdo, tem uma mensagem (como se costuma dizer na escola) e é, portanto, informativo.

No sentido definido por esses autores, a informatividade concerne ao grau de novidade e de imprevisibilidade que esse conteúdo ou a forma sob que se expressa assumem. Concerne, ainda, ao efeito interpretativo que o caráter inesperado de tais novidades e variedades produz.

A informatividade, nesse sentido, está relacionada com o grau maior ou menor do que é, co-textual e contextualmente, previsível para o conjun­to de determinada atualização verbal. Ou seja, quanto mais um texto se realiza dentro dos padrões estabelecidos (padrões formais e padrões de conteúdo), sem variações, sem imprevisibilidades, menos informativo ele é. O grau de informatividade é avaliado, portanto, na proporção das novi­dades de conteúdo e deforma que ele apresenta. Portanto: mais novidade, mais informatividade.

Assim, o cálculo é feito com base no seguinte critério:

- quanto mais têm lugar ocorrências imprevisíveis, tanto mais alto é o teor de informatividade do texto.

127

Tais imprevisibilidades, é natural, não são absolutas, no sentido de que cada falante pode, à revelia de qualquer norma, organizar os dados linguísticos de suas atuações verbais conforme lhe apraz. Limitam-se, es­sas imprevisibilidades, à condição de que as produções verbais em que aparecem devem ser funcionais, inteligíveis e socialmente pertinentes.



Recorrer a tais imprevisibilidades é, pois, indício de uma habilidade comunicativa do sujeito para adequar o aparato linguístico, no seu con­tingente formal ou semântico, às condições da situação comunicativa. É, ainda, indício de que se sabe discernir sobre como se afastar das previsibilidades estimáveis para determinado texto, em ordem a conferir-lhe um caráter funcional, de singularidade ou até de estranheza, em função de algum propósito particular.

As previsibilidades aqui consideradas explicam-se pela própria di­nâmica da interação, que tem seus padrões, impostos e propostos, que acabam por estabelecer-se como 'modelos', como 'esquemas', como 're­gularidades'.

Por essa prática reiterada é que são construídas expectativas sobre aquilo que constitui a realização padronizada de determinada atuação sociocomunicativa. Não sem fundamento, portanto, elaboramos modelos, a partir dos quais se levantam previsões e se calculam probabilidades de realização, de interpretação e de funcionamento dessas atuações.

A informatividade tem a ver com esses modelos, com essas previsibi­lidades, tanto no âmbito do conteúdo quanto no outro da forma.


3. De onde provêm as previsões que fazemos para nossas interações?

Beaugrande & Dressler (1981, p. 146-150) apontam uma série de fa­tores que atuam como fontes destas expectativas que subjazem à prática da interação verbal.

Entre tais fontes, esses autores enumeram:

a) a organização do "mundo real", em cujos fatos e consequentes crenças uma determinada sociedade se apóia para a construção de seu "mo­delo

128

de mundo" — (a construção do "mundo textual" tem sua principal fonte e seu ponto de orientação no modelo de mundo, aceito e em circulação pela comunidade);



b) a organização léxico-gramatical do sistema linguístico em atividade;

c) a "estrutura de informação das sentenças", pela qual se organiza a distribuição dos con­teúdos considerados "novos" ou já introdu­zidos anteriormente;

d) o tipo e o gênero de texto em uso;

e) o contexto imediato onde o texto se insere e circula.


Todo esse complexo conjunto de fatores - rei­tero - atua como base para as previsões que se nutrem acerca do modo de ocorrência de deter­minada interação verbal. Pode-se concluir, então, que a informatividade é uma questão complexa, com muitas ramificações e desdobramentos.

Qualquer fuga a qualquer uma das previsões autorizadas por aqueles fatores tem o caráter de inesperado, de quebra da regularidade provável e, desta forma, preenche o papel de elemento catali­sador da atenção e do interesse do interpretante.

...

Na verdade, frente aos outros, esperamos que tenha sentido aquilo que eles nos dizem, ou seja, esteja de acordo com o fluxo normal das coisas no mundo; esperamos que as coisas sejam ditas dentro dos padrões lexicais e gramaticais de nossa língua, esperamos que as informações, entre novas e velhas, se organizem nas frases; esperamos que o texto esteja conforme o tipo e o gênero de texto requisitado, conforme o contexto em que estamos. Ou seja, há uma regularidade, bem estabelecida, que é, por isso mesmo, esperada, presumida. Quebrar essa regularidade, de alguma forma, afeta o grau de informatividade do texto.



...
4. Que diferentes graus de informatividade podem ser reconhecidos nos textos?

Apoiados na aceitação desse princípio da fuga ou não às regularida­des previstas, Beaugrande (1980: p. 105-112) e Beaugrande & Dressler (1981 p. 141-146) avançam na definição dos "graus de informatividade", cuja escala global compreende três ordens. Vejamos.

4.1. Numa primeira ordem de informatividade, situam-se as ocorrên­cias com o grau máximo de previsibilidade e, em razão disso, de proces­samento

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interpretativo mais fácil. A "estabilidade" prevista, a partir do conjunto de fatores atrás mencionados, é mantida, é preservada. Não há descontinuidades, nem rupturas, nem discrepâncias, nem surpresas. A atenção do destinatário é, nessas condições, requisitada em proporções muito reduzidas. Podemos lembrar, como exemplo de textos dessa pri­meira ordem de informatividade, aqueles que servem de sinais para o trânsito de veículos e pedestres.

Na verdade, em textos do tipo: PROIBIDO ESTACIONAR, ou outros se­melhantes (DESVIO À ESQUERDA, REDUZA A VELOCIDADE, CURVA PERI­GOSA), há o máximo de previsibilidade porque há, simultaneamente, o mínimo de alternativas para o preenchimento adequado das expectativas interpretativas levantadas.

Isto é, não existem muitas hipóteses de interpretação para esses tex­tos. Praticamente, todos "acertam" na sua interpretação, todos compreen­dem o mesmo, quer dizer, todos aqueles que partilham as mesmas expe­riências de vida, o que, mais uma vez, põe em evidência a relevância dos elementos contextuais da atividade verbal. Condições de ordem pragmá­tica restringem o número das hipóteses interpretativas e fazem convergir - oportunamente - para outros níveis a atenção imediata do destinatário da interação comunicativa. Por conta daquele conhecimento partilhado, qualquer um reconhece o sentido atribuível aqui à palavra estacionar, por exemplo, e qualquer um sabe que coisa não pode ficar estacionada; mais: todos sabem, mesmo sem qualquer indicação linguística, que o lugar no qual não se pode estacionar é aquele em que a placa está exposta.

Com base no contexto de uso desses textos, um contexto, de certa for­ma, inteiramente inalterado, a escolha interpretativa se reduz, sempre, a uma única alternativa, de maneira que a polivalência interpretativa é afastada por inteiro. Na verdade, a elaboração de outras hipóteses inter­pretativas ocuparia a atenção do leitor, o que seria inadequado para esse momento, que exige outros cálculos e cuidados.

Esta primeira ordem de informatividade está sempre presente em qualquer texto, pois qualquer ocorrência representa a rejeição da "não- ocorrência como uma alternativa".

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Contudo, a primeira ordem de informatividade não constitui nem a única nem a forma padrão. Textos dessa natureza, reduzidos ao mínimo, com grande parte de seus componentes informacionais não explicitados, constituem um modelo atípico e requisitam situações altamente espe­ciais de utilização. A inalterabilidade que caracteriza esses textos contri­bui, inclusive, para o natural desgaste de sua força comunicativa, embora constitua também uma das condições de sua funcionalidade.

Pode-se ver, portanto, que há contextos sociais em que o uso de textos com um grau mínimo de informatividade se impõe como a realização mais adequada e com possibilidades de maior sucesso comunicativo.

4.2. A essa primeira ordem de informatividade, quase integralmente estável, segue-se uma segunda, caracterizada como uma ordem média, em que aquelas expectativas atrás referidas realizam-se em proporções que medeiam os extremos da ordem anterior - da ampla previsibilidade - e aqueles da ordem seguinte, a terceira, de baixa previsibilidade. Por isso mesmo, uma ordem média.

No nível dessa segunda ordem, situa-se a maior parte das atividades verbais - orais e escritas - das pessoas. É natural que haja, por parte do sujeito interlocutor, o cuidado para encontrar o equilíbrio no recurso à imprevisibilidade, até mesmo por fidelidade àquele "princípio de coope­ração", que Grice (1975) postula existir entre os parceiros da comunica­ção. Conforme se viu, ocorrências de primeira ordem, apesar de serem adequadas às condições de algumas situações, são pouco instigadoras do interesse e da atenção do receptor, além de restringirem-se a usos e con­textos demasiado específicos, de tal forma que não podem estender-se à generalidade da interação verbal.

O mais comum é que transitemos entre uma primeira e uma terceira ordem, numa espécie de jogo entre o mínimo e o máximo, conforme pareça apropriado a cada situação. A propósito, vale lembrar o que prevê a receita popular: "Nem tanto ao mar nem tanto à terra", em vistas ao equilíbrio do meio. Sempre, é claro, na dependência das condições da interação.

4.3. Uma terceira ordem de informatividade concerne àquelas situa­ções em que predominam as imprevisibilidades, as quebras de padrão, as irregularidades, afinal. Em linhas gerais, poderíamos lembrar que estão

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nessa ordem de informatividade os textos da teorização ou da exposição científica, as produções da literatura, as reflexões mais complexas, os re­latórios especializados, as peças judiciais, para citar apenas esses.

Os destinatários de tais discursos já esperam deparar-se com imprevisibilidades, com "novidades", de conteúdo ou de forma. Mas, na suposi­ção de que é mantida a intenção da comunicação coesa e coerente, tentam descobrir o que motivou tais imprevisibilidades, tentam interpretá-las e conferir sentido à interação.

É evidente que, por esse viés, as imprevisibilidades em causa diferem daquelas que poderiam ocorrer por inabilidade comunicativa de alguns. Pelo contrário, a excentricidade que responde pela elevação do teor in­formativo dos textos resulta da competência do sujeito para manipular, de forma inusitada, as virtualidades da língua, o valor imagético das pala­vras, a maleabilidade dos recursos e dos procedimentos estilísticos.

Vejamos, por exemplo, a excentricidade, a "novidade" do que é dito neste poema de Manoel de Barros:


RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA

A menina apareceu grávida de um gavião.

Veio falou para a mãe: o gavião me desmoçou.

A mãe disse: Você vai parir uma árvore para

A gente comer goiaba nela.

E comeram goiaba.

Naquele tempo de dantes não havia limites

para ser.

Se a gente encostava em ser ave ganhava o

poder de alçar.

Se a gente falasse a partir de um córrego

A gente pegava murmúrios.

Não havia comportamento de estar.

Urubus conversavam sobre auroras.

Pessoas viravam árvore.

Pedras viravam rouxinóis.

Depois veio a ordem das coisas e as pedras

Têm que rolar seu destino de pedra para o resto

dos tempos.

Só as palavras não foram castigadas com

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a ordem natural das coisas.

As palavras continuam com seus deslimites,

nas suas conchas puras?

(Manoel de Barros. Retrato do artista quando coisa.

Rio de Janeiro: Record, 1989, p. 77).

Pode-se ver, com clareza, quanta regularidade foi quebrada nesse poe­ma, quanto cuidado interpretativo tem que ser despendido para que sejam captadas as significações aí expressas (sobretudo aquelas simbólicas)!

4.4. Em suma, a essas diferentes ordens estão relacionados os graus de informatividade de um texto, a qual, reitero, ocorre numa proporção inversa. Por outras palavras, a informatividade eleva-se à medida que di­minui a previsibilidade de ocorrência dos elementos.

Nessa linha de consideração, quero chamar a atenção para a relevância informativa das unidades lexicais em confronto com as unidades gramati­cais. Em geral, as chamadas "palavras de conteúdo" (substantivos, adjeti­vos e verbos, sobretudo) são textualmente mais significativas que as "pa­lavras de função" (artigos, preposições, conjunções, advérbios, sobretudo). No entanto, vale a pena sublinhar também que o distanciamento dessa regularidade é suscetível de conferir um maior grau de informatividade. Haja vista, por exemplo, o uso de palavras de fun­ção onde ordinariamente seria previsível o uso de palavras de conteúdo lexical, como se pode ver no poema ao lado:

...

EMBORA SONETO



Vivo meu porém

No encontro do

todavia

Sou mas.

Contudo

Encho-me de ainda

Na espera do quando

Desando ou desbundo.

Viver é apesar

Amar é a despeito

Ser é não obstante.

Destarte

Sou outrossim

Ilusão, sem embargo

Malgrado senão.

(Paulo Alberto M. M. de Barros. 1986).


Naturalmente, os textos com um grau mais elevado de informatividade, graças ao maior afas­tamento das produções típicas, ganham mais inte­resse e envolvem maior empenho interpretativo das pessoas. Por outro lado, preenchem, também, usos muito particulares, tais como aqueles dos tex­tos teóricos ou dos textos poéticos. Daí por que é no âmbito daquela segunda ordem de informativi­dade que acontece o contingente maior de nossas atuações verbais.

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De qualquer forma, a previsão mais geral é de que "todo texto é, pelo menos, um tanto informativo", uma vez que existe sempre a possibilidade de recorrer a um conteúdo ou a uma forma não inteiramente prevista.

É natural que haja, por parte do interlocutor, alguma motivação para a adoção de padrões de conteúdo ou de expressão não-convencionais e que, nessas circunstâncias, entrem em ponderação os recursos que a lín­gua ou outros sistemas sígnicos oferecem.

Conforme a situação, indicações, mais ou menos explícitas, devem ser oferecidas para que a "nova" organização da mensagem seja não apenas entendida, mas, pelo contrário, ganhe, por esse caráter inesperado, um maior interesse ou uma maior força persuasiva (se for o caso).

Na sequência desse conjunto de considerações, podemos ver que a informatividade exerce um significativo controle sobre a seleção das pa­lavras e de outros recursos, bem como sobre o arranjo que esses recursos vão assumir na organização do discurso.

Não quero deixar passar a oportunidade de ressaltar, mais uma vez, que a seleção do que dizer e de como fazê-lo é motivada por princípios muito mais gerais que a simples padronização prevista pela gramática da língua enquanto sistema normativo. Isso implica admitir que a gramática, se é necessária, é também insuficiente. Ninguém eleva o padrão de infor­matividade de um texto apoiando-se, pura e simplesmente, em gramática, muito menos em nomenclatura gramatical.

4.5. Alguma observação também poderia ser sumariamente avançada aqui no tocante à relação entre a informatividade - nas suas diferentes ordens e graus - e a atividade jornalística.

Parece admissível que, por um lado, a contingência em que se incluem os jornais, como "meios de comunicação de massa", orienta-os, na sua grande generalidade, para formas de realização moderada, cabíveis numa segunda ordem de informatividade. Por outro lado, também parece razoá­vel esperar que a atividade jornalística tenda a quebrar a predominância absoluta desta segunda ordem em direção a padrões menos previsíveis, com o intuito de por em elevação o grau de novidade e, dessa forma, sus­citar e manter o interesse dos leitores, na dependência, obviamente, do complexo conjunto de fatores contextuais. Reconheço que há jornais mais especializados, restritos a um determinado público, e que, por isso mes­mo,

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fogem ao trivial da notícia simples ou do comentário superficial. O importante é que o jornal, qualquer que seja ele, procure adequar-se às expectativas de seu público e seja, assim, "informativo" na medida certa.
5. Que relações tem a informatividade do texto com a coesão e a coerência?

A informatividade pode assumir uma grande significação em relação à coesão exatamente pelo fato de que essa propriedade constitui um dos mecanismos prováveis da organização do texto. É justo admitir-se, pois, que a forma mais ou menos padronizada de realização da coesão terá influ­ência na graduação informativa do texto. Ou seja, igual a qualquer outra ex­pectativa, supõe-se que as previsibilidades da coesão também podem ser intencionalmente quebradas, ou atenuadas, em ordem à elevação do grau de informatividade que se intenta conseguir. É certo que um texto, com um padrão novo de organização coesiva, exerça sobre o interlocutor um maior grau de interesse. A novidade desperta. É mais facilmente perceptível.

A relação entre a informatividade, a coesão e a coerência sobressai, ainda, quando se leva em conta o equilíbrio que um texto deve apresentar entre dois pontos opostos:

- a manutenção de um "ponto de orientação", de um eixo de convergência - o que nos mantém concentrados em um foco e nos prende a um mesmo tópico discursivo;

- e, ancorado nesse eixo de convergência, a saída para o novo, para o não-sabido, para o inédito - o que propicia a elevação do grau de informatividade.

A competência relevante que se espera do interlocutor que está com a palavra é que ele saiba conseguir esse equilíbrio e garantir para o dis­curso, simultaneamente, a âncora na informação "já conhecida" e o movi­mento para o novo, para o ainda "não sabido".

Um exemplo a partir do qual poderíamos ponderar sobre essa ques­tão da informatividade é um texto em que Millôr Fernandes simula uma descrição, didática talvez, do Brasil.

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Vejamos o texto:

O BRASIL (DESCRIÇÃO FÍSICA E POLÍTICA)

O Brasil é um país maior do que os menores e menor do que os maiores. É um país grande, porque, medida sua extensão, verifica-se que não é pequeno. Divide-se em três zonas climatéricas absolutamente distintas: a primeira, a segunda e a terceira. Sendo que a segunda fica entre a primeira e a terceira. As montanhas são consideravelmente mais altas que as planícies, estando sempre acima do nível do mar. Há muitas diferenças entre as várias regi­ões geográficas do país, mas a mais importante é a principal. Na agricultura faz-se exclusivamente o cultivo de produtos vegetais, enquanto a pecuária especializa-se na criação de gado. A população é toda baseada no elemento humano, sendo que, as pessoas não nascidas no país são, sem exceção, es­trangeiras. Na indústria fabricam-se produtos industriais, sobretudo iguais e semelhantes, sem deixar-se de lado os diferentes. No campo da exploração dos minérios o país tem uma posição só inferior aos que lhe estão acima, sen­do, porém, muito maior produtor do que todos os países que não atingiram o seu nível. Pode-se mesmo dizer que, excetuando-se seus concorrentes, é o único produtor de minérios no mundo inteiro. Tão privilegiada é hoje, enfim a situação do país, que os cientistas procuram apenas descobrir o que não está descoberto, deixando para a indústria tudo que já foi aprovado como industrializável e para o comércio tudo que é vendável. Na arte também não há ciência, reservando-se essa atividade exclusivamente para os artistas. Quan­to aos escritores, são recrutados geralmente entre os intelectuais. É, enfim, o País do Futuro, sendo que este se aproxima a cada dia que passa.

(Millôr Fernandes)
Numa primeira análise da descrição feita por Millôr, poderíamos ad­mitir que se trata de uma apresentação inteiramente óbvia, portanto, com um nível de informatividade baixíssimo. No entanto, numa segunda análise, tendo em conta o que sabemos acerca do autor, podemos admitir que se trata de um texto escrito propositadamente nessa forma, ou seja, apenas aparentemente informativo, com cara de exposição didática, mas inteiramente vazio de informação, a ponto de tornar-se anedótico.

Possivelmente, Millôr, com esse tipo de descrição, quis retratar (e, cer­tamente, ironizar) aquela espécie de discurso esvaziado, muito em voga no mundo da comunicação politicamente manipuladora, que "fala para

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não dizer nada", embora o faça corretamente e com uma linguagem qua­se rebuscada e meio empolada. Em geral, esse discurso "impressiona" os menos críticos ou menos avisados, exatamente pelo caráter definitório e formal que assume.

Em síntese, da criatividade de Millôr saíram dois textos: o que ele simu­la - e aí, temos um texto esvaziado pela obviedade, com baixíssimo grau de informatividade - e o texto com que, de fato, Millôr critica e até ridiculariza o discurso oco, vazio, inoperante, de quem não diz nada que mereça ser ouvido. E, aí, temos um texto com um alto grau de informatividade pela imprevisibilidade interpretativa que ele acarreta e pela fuga que realiza aos padrões comuns da comunicação: ninguém fala para dizer apenas o óbvio.

Na verdade, trata-se de um jogo em que as duas peças, amalgamadas, assumem caráter e função diferentes. O teor de informatividade é dife­rente em cada uma: a versão que simula traz subjacente a outra - a crítica a possíveis versões reais, dos discursos "mudos" da comunicação vazia (por incompetência ou por causa de outros interesses).

De qualquer forma, vale a pena abrir espaço para considerar as exi­gências do caráter informativo, mais alto ou mais baixo, dos textos.


6. E como ter em conta a informatividade do texto nas aulas de línguas?

Em um passado já meio distante (tomara, meu Deus, tomara!), tive­mos, em nossas salas de aula, as famosas cartilhas, compilações de textos inventados, criados a propósito em função das sequências de letras que precisávamos aprender a reconhecer para ler e escrever com sucesso. Durante décadas, soletramos e lemos que "O boi baba"; que "Mimi mia"; que "Ivo vê a uva" e, até mesmo, que "A vovó vê o ovo novo". A rigor, isso é a linguagem ao contrário: para não dizer nada. Refém do som, da grafia, sem compromisso com o sentido, com os usos, com as intenções de su­jeitos (vivos!) em interação.

Naturalmente, essa experiência iria repercutir depois nos textos que os alunos escreveriam. Textos também escritos para treinar a grafia ou a leitura­

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das letras e não para possibilitar a funcionalidade da interação verbal, o que, na verdade, implicaria a grafia e outras regularidades do sistema.

Sem dúvida, as crianças, mesmo apenas intuitivamente, estranhavam essa linguagem esquisita, usada para não dizer nada e organizada segun­do critérios que não coincidiam com os de suas necessidades interativas. Somente o contrato pedagógico a que estavam submetidas poderia justi­ficar aquelas saídas da rota da linguagem para estranhas esferas, "nunca dantes (por elas) navegadas".

Por essa rota estranha, também circulavam as coisas que as crianças tinham que escrever. Textos sem "a cara específica" de determinado gêne­ro; textos sem destinatários; sem um propósito comunicativo, sem refe­rência a determinado domínio discursivo; textos só para treinar (embora, na verdade, fosse para treinar como não deve ser um texto). Por essa rota circulamos nós; quase todos nós.

A falta de interesse pelos sentidos do texto, a falta de um trabalho pre­paratório de leitura e de comentário acerca do que escreveríamos provo­cavam a pobreza e a obviedade das ideias, das informações. Qualquer coi­sa que se dissesse estava bem, pois o que mais interessava era a forma, era o fato de não cometer erros de ortografia ou outros igualmente salientes.

Evidentemente, o teor de informatividade desses textos resultava em um nível muito baixo. Predominava a irrelevância de um dizer insigni­ficante, sem interesse, sem sabor, sem expressividade. Consolidava-se a prática de um discurso vazio, igual, submetido a uma única fórmula, bem diferente da diversidade de discursos que ocorrem nas interações da co­municação escrita cotidiana.

É que, de fato, as propriedades do texto, inclusive a informatividade - com suas variações de grau e de forma - não foram objeto de exploração na escola.

Focalizar essas propriedades e elegê-las como objeto de estudo impli­ca despertar o aluno para a descoberta explícita de muitas regularidades discursivas, que, de outro modo, passam despercebidas ou, pelo menos, são conhecidas apenas intuitivamente.

No caso específico da informatividade, torná-la foco de estudo implica que o professor:

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  • promova a leitura sistemática de bons textos, de textos informativos, expositivos, opinativos; de textos criativos - literários ou não - explicitan­do, em análises sucessivas, os aspectos que mais diretamente contribuíram para elevar o teor de relevância das coisas que são ditas;

  • chame a atenção dos alunos para a importância discursiva da informatividade, mostrando, inclu­sivamente, a inadequação de dizer o óbvio ou o irrelevante;

  • promova a etapa de preparação e planejamento dos textos a serem elaborados, o que envolve atividades de leitura, reflexão, e discussão pré­via, acerca do tema previsto, sobretudo quando se solicitam que abordem assuntos mais espe­cializados ou fora dos interesses imediatos dos alunos; que o professor instaure a prática de con­ceder aos alunos tempo para que eles preparem os conteúdos de suas produções e para que eles possam, a tempo, hierarquizar esses conteúdos;

- incentive a ampliação do repertório vocabular disponível, salientando a conveniência de, em textos mais formais, saber usar palavras mais distantes dos padrões coloquiais ou mais próximas da ter­minologia específica à área temática em curso;

- explore a diversidade de recursos estilísticos ou re­tóricos, capazes de emprestar à forma efeitos de novidade, como é o caso das metáforas, das metonímias, das analogias, das antíteses, das hipér­boles, das inversões sintáticas, dos paralelismos, das repetições, das transgressões propositadas, entre muitas outras (não basta apenas saber o nome desses recursos);

- procure neutralizar a primazia quase absoluta que a escola tem concedido à correção gramati­cal, salientando que, se determinado texto deve ser correto, deve também apresentar outras propriedades não menos im­portantes; noutras palavras, deve salientar que a correção gramatical não é o único predicado que torna um texto bom e relevante.

...


Em geral, a escola não dá muita atenção à ampliação do vocabulário dos alunos; nem incentiva o recurso à quebra das regularidades lexicais ou gramaticais, presa que é à suposta uniformidade da língua padrão. Por essa via, o aluno deixa de explorar sua capacidade de criação, de invenção de novos padrões ou de novas formas de dizer. Evidentemente, há situações em que tais invenções são mais adequadas que outras. A competência ideal do sujeito seria, inclusivamente, aquela de discernir quando cabe ou não uma "invenção", ou "uma transgressão". Por exemplo.

Raquel de Queiroz, em uma de suas crônicas, fala nos escritores "estrelos".

Permitiríamos que um aluno nosso escrevesse isso em uma crônica? O elogiaríamos por isso? Ou apontaríamos o "erro", sem mais comentários?

...


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Sob muitos aspectos, tem sido mostrado que o uso da língua - em textos orais e escritos, de diferentes tipos e gêneros - ocorre debaixo de certas regularidades discursivas, bem mais amplas e complexas que aquelas específicas ao sistema linguístico. Um programa de ensino de línguas, que pretenda resultados individual e socialmente relevantes, não pode restringir-se a questões gramaticais, apenas. Ao contrário, deve ampliar-se para incluir o estudo e a exploração das questões textuais, questões que extrapo­lam em muito a gramática, suas classificações e nomenclaturas. Ou seja, um programa de ensino de línguas deve incluir, entre outras, noções e atividades acerca dos graus de informatividade de um texto e de como consegui-los.

A abertura da escola para o âmbito da prática discursiva, da ativida­de interativa, amplia os focos de percepção do fenômeno linguístico, um fenômeno pelo qual afirmamos nosso destino de seres criativos, sociais, dialógicos, participativos, significantes e significadores.

É possível, na experiência do estudo das línguas, divisar horizontes bem mais abertos, bem mais libertadores e bem mais fascinantes do que tem sido visto até agora!

...


Ainda se pode esperar?

Quem está perdendo?

...

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Capítulo 8



AS FUNÇÕES DO LÉXICO NA CONSTRUÇÃO DO TEXTO
...

Este texto foi, em primeira mão, publicado na revista Investigações (n. 5, p. 7-19, dez. 1995), sob o título "De como se poderia abordar pela textualidade a função coesiva das unidades do léxico".

...
O léxico, em geral, tem recebido pouca atenção nos estudos de línguas, sobretudo no estudo da língua materna. Pelo visto, parece que os usos sociais de uma língua não requi­sitam, como condição de seu sucesso e de sua relevância, a utilização de um léxico, de um vocabulário específico, adequado a cada situa­ção. Na sala de aula, as atividades com o léxico têm se limitado (com poucas exceções) à apre­sentação de glossários, a exercícios simplistas de substituição de palavras por sinônimos, quase sempre em pares de frases ou numa perspectiva descontextualizada (frases retiradas de textos sob a forma de unidades autônomas).

A título de recapitulação, retomamos o que foi dito no capítulo 5: o léxico de uma língua, em seu sentido mais geral, corresponde ao inventário total de palavras disponíveis aos falantes. Em geral, essas palavras estão registradas em um dicionário, que, evidentemente,

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nunca está totalmente atualizado, pois sempre estão surgindo no­vas palavras ou novos significados para aquelas já existentes.

Em um sentido mais específico, costuma-se fazer uma distinção semântico-funcional entre as unidades do léxico (unidades lexicais) e as unidades da gramática (unidades gramaticais). Estas últimas remetem, enquanto unidades de relação, para o universo interno da gramática da língua (como as preposições, as conjunções); as outras, as unidades lexicais, remetem para o mundo da experiência real ou fictícia, vivida, pensada ou sentida pelas pessoas conforme a cultura de seus grupos sociais (os substantivos, os adjetivos, os verbos, por exemplo).

A gramática - temos insistido - tem polarizado o interesse de professores e da comunidade escolar e não tem deixado o professor com tempo para o estudo de outros componentes da língua. É estra­nho que bem poucos tenham podido perceber essa polarização da gramática e tenham procurado explorar o domínio do léxico, suas funções textuais, os processos e recursos de sua formação e de sua constante ampliação.

Nesta reflexão, pretendemos focalizar como a questão do léxi­co poderia ser vista de forma mais relevante na escola, com base nas funções que ele desempenha na construção e na organização do texto.

Em última instância, queremos responder às perguntas:

a) como ampliar o estudo do léxico?

b) como tornar esse estudo mais significativo e relevante?

c) como perceber o léxico na perspectiva da construção do texto?


1. O texto: gramática e léxico

Do ponto de vista estritamente linguístico, um texto constitui uma sequência de elementos verbais, os quais, com funções próprias, se alter­nam entre unidades do léxico e unidades da gramática.

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Umas são suporte para as outras, umas requerem as outras, de manei­ra que a totalidade do texto é, na verdade, um tecido integrado de natureza léxico-gramatical. No entanto, para que uma sequência de unidades lin­guísticas resulte comunicativamente funcional, é necessário que tais uni­dades se submetam a padrões sintático-semânticos de combinação e, ainda, a estratégias textuais de encadeamento, organização e hierarquização.

Assim, as unidades verbais presentes em um texto remetem simulta­neamente a dois domínios distintos, embora complementares:

- remetem ao sistema da língua, enquanto elementos do seu léxico ou de sua gramática;

- remetem à instância particular do texto que atualizam, enquanto partes constitutivas da organização de seu sentido global.

Tais unidades conjugam, assim, conforme se designa no quadro da se­mântica instrucional, "instruções canónicas" e "instruções situativas" (cf. Schmidt, 1978, p. 90), uma vez que estabelecem relações, quer como virtualidades, quer como atua­lidades instrucionais. Dessa forma, pode-se dizer que os elementos verbais de um texto providenciam parte do seu sentido, desde o valor sintático-semântico que a língua lhes atribui; e providenciam ainda parte de seu sentido desde a distribuição e a organi­zação que assumem no domínio particular de cada discurso concreto.

Do ponto de vista descritivo, cada instrução lin­guística pode ser encarada isoladamente - quando são focalizados aspectos de seus valores virtuais -, ou pode ser encarada desde a perspectiva das ins­tâncias comunicativas que constituem. Nessa se­gunda hipótese, são focalizadas suas funções tex­tuais ou discursivas, o que, naturalmente, reclama uma visão integrada da instrução, tomada, dessa forma, globalmente, ou seja, desde os aspectos vir­tuais e os outros textuais de seus usos.

...

Alguns autores que se aplicaram ao estudo do texto chegaram a apontar uma série de itens que não podem ser compreendidos apenas no limite da frase. Por exemplo, a alternância entre o uso do artigo definido e o do indefinido só pode ser percebida no percurso do texto. Igualmente acontece com as relações de correferencialidade ou aquelas da associabilidade semântica entre as palavras, recursos tão relevantes para o estabelecimento da coerência do texto.



...

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Historicamente, a integração implicada na última dessas alternativas parece não ter constituído a preferência das investigações linguísticas, pelo menos até meados do século XX, como parece não constituir - ainda hoje - a preferência de muitos que se ocupam da atividade pedagógica do ensino de línguas. Prevalece, por complexas razões que não cabe agora analisar, uma abordagem, quer do léxico, quer da gramática, dissociada dos usos dessas unidades, ou seja, centrada apenas em suas regularidades virtuais ou restrita aos limites reduzidos da palavra e da frase descontextualizadas. Tais limites, que não incorporam as determinações da prag­mática, são insuficientes para dar conta do fenômeno linguístico original, o qual, bem sabemos, somente se efetiva sob a condição da textualidade.

Ou seja, o estudo da gramática e o estudo do léxico, fora dos parâmetros da textualidade, contemplam apenas parte de suas regularidades e deixam, por isso, de ganhar a relevância e a aplicabilidade que poderiam ter.
2. As unidades lexicais e a construção do texto

Conforme venho pontuando, interessa-me aqui considerar as unida­des do léxico, não como unidades da língua, ou unidades do dicionário, um repertório em estoque; mas como unidades de texto, peças com que se constrói a materialidade significante posta em sua superfície. São, por­tanto, unidades lexicais co-textualizadas, constitutivas de uma unidade de significado, para fins de um propósito comunicativo qualquer. Nessa perspectiva, não me interessa apenas a carga de sentido que as unidades do léxico têm. Interessa-me, e, sobretudo, a função que essas unidades desempenham na organização - coesa e coerente - do texto. Essa função vai além do sentido.

Em termos meio óbvios - mas imperceptíveis, às vezes, - declaro o que pretendo, neste momento: considerar o vocabulário dos textos como elemento de sua construção, de sua "arquitetura", e não apenas como um conjunto de palavras que "têm um significado".

Nessa pretensão, vou procurar deter-me no léxico, sob a perspectiva da construção textual da coesão e da coerência. Parto do principio de que a articulação (a coesão) que promove a unidade semântica do texto (a

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coerência) é conseguida também com os recursos das unidades lexicais presentes na sua superfície. Com base no mesmo princípio, proponho que se empreenda o estudo das unidades lexicais, também, na perspectiva de suas funções no estabelecimento da continuidade e da unidade de senti­do requeridas pelo texto, isto é, da sua coesão e da sua coerência.

Conforme apontam, entre outros, Halliday & Hasan (1976; 1989), a coesão textual que pode ocorrer pelas vias das unidades lexicais acontece graças a dois procedimentos, que eles chamam:

- reiteração;

- colocação.

Em ambos os procedimentos, o que está em jogo é a continuidade e a unidade do texto. Essa continuidade resulta de um processo de enca­deamento, que os sujeitos vão empreendendo com base em ligações se­mânticas, tecidas em operações de base cognitiva e pragmática. Por tais ligações, as unidades, quer dizer, as palavras do texto, interdependem, se articulam, se integram e constituem um todo.

As especificidades da reiteração e da colocação ficam por conta de pe­quenas diferenças no tipo das relações estabelecidas. É o que pretendo apresentar a seguir.


2.1. A reiteração

No domínio da reiteração, uma unidade lexical pode ser:

- repetida - literal ou parcialmente -, conforme se mantenham ou se alterem suas marcas morfológicas, como em 'democracia', 'demo­cracia' e 'democracia', 'democrata';

- substituída por uma outra que, de alguma maneira, lhe é equivalen­te, como em 'articulação', 'encadeamento'.


2.2. A colocação

O procedimento chamado de 'colocação' obedece à condição de que, no texto, as palavras não estão sozinhas; ou seja, vêm "colocadas" umas

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junto às outras. Mais: tendem a procurar "as mesmas companhias", crian­do certa regularidade na composição da sequência, o que, eventualmente, pode resultar na criação de uma "locução fixa". Por exemplo, a palavra jato costuma vir acompanhada da outra avião, ou da outra água. Daí, as ex­pressões avião a jato, e jato d'água, que já se cristalizaram, praticamente, como expressões fixas.

É importante destacar que, sob a ótica da colocação, não se conside­ra apenas que as palavras vêm umas em companhia de outras. O que se ressalta é que a regularidade maior ou menor com que elas costumam vir juntas cria, entre elas, uma espécie de ligação, tanto que a ocorrên­cia de uma puxa a ocorrência da outra. Diz-se, então, que elas tendem a co-ocorrer no mesmo co-texto, ou seja, tendem a 'colocarem-se' na mesma sequência de texto. Por exemplo, basta lembrar como costumam vir juntos os pares: plano econômico; elevação de preços; classe média.

Essa tendência de coocorrência de certas palavras deriva da rede de associações semânticas que elas possibilitam ou de uma certa compatibi­lidade de sentido que elas apresentam. Daí tenderem a aparecer juntas: no mesmo texto e até na mesma oração. 0 contrário também ocorre: ou seja, há pares de palavras que guardam entre si uma espécie de incom­patibilidade e, por isso, não costumam vir juntas. Segundo Ilari (2002, p. 47), a combinação de duas palavras que, em princípio, são incompatí­veis pode surtir um efeito de sentido particular (por exemplo, quando se fala em um 'livro indigesto', uma 'conversa picante', uma 'mente suja', uma 'pessoa quadrada' etc.).

Especificando melhor, lembro que as associações estabelecidas entre as palavras são decorrentes dos mais diversos tipos de ligações - semân­ticas ou pragmáticas - possíveis. Daí por que esse procedimento, de certa forma, equivale ao que tenho considerado como o recurso coesivo da as­sociação semântica ou da contiguidade semântica (cf. Antunes, 2005).

Pela reiteração e pela colocação (naturalmente em conjunção com ou­tros recursos, no momento, fora de questão), se completa o "tecido" do texto, ou seja, se deixa o material linguístico em inteira interligação, de maneira que nada fica solto, isto é, nenhuma palavra está sem vínculo com, pelo menos, uma outra, próxima ou distante.

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A consideração desses recursos da coesão lexical, sem dúvida, propi­ciaria ao ensino das línguas reorientações bem mais significativas para a reavaliação e o tratamento de algumas questões textuais. Ou seja, saber o que se faz com o léxico para deixar o texto com sentido e bem estruturado constitui, de fato, uma competência das mais significativas.

Tomemos como ilustração o trecho seguinte, parte de uma matéria publicada na revista Veja, de 19 de julho de 1995.

OS PREÇOS MUITO LOUCOS DA ERA DO REAL

Culpar a última caipirinha pela total discrepância entre a nota apresentada pelo garçom e a inflação exibida pelo governo é injustiça. Emprestar os ou­vidos para o dono da pizzaria explicar a elevação de preços, apesar da baixa da farinha e dos ovos, é masoquismo. Os preços dos itens que influem no bolso da classe média estão uma loucura. Esse é, hoje, um dos principais desafios do Plano Real. Na semana passada, a Fundação Getúlio Vargas, FGV, calculou para VEJA o índice da inflação da classe média no primeiro ano de real: 46% — nada menos que 11 pontos acima do índice oficial de 35%. Nesse ritmo, a classe mé­dia está sendo surrada.

Um sinal de que o real ainda tem chão pela frente antes de ser encarado como moeda forte para valer: até agora, os centavos quase não existem para os bra­sileiros. Habituados a vê-los varridos para debaixo do tapete a cada novo pla­no econômico, o brasileiro tende a encará-los como moedinhas sem valor. /Is frações do real ainda não emplacaram nas trocas do dia a dia, não foram as­similadas pelo inconsciente popular. Isso tem um peso no aumento dos preços. Ninguém se lembra de que 6 centavos compram um pão. Outros 45 centavos pagam uma passagem de ônibus. Uma garrafa de refrigerante ou uma lata de cerveja custam 50 centavos. Com 54 centavos compra-se um litro de gasolina. Prova do desprezo: as moedinhas não se incorporaram ao vestuário dos bra­sileiros. Nada sobe em centavos, sempre de real em real. Para a classe média, em muitos reais.


Ou seja, muitas questões de ordem lexical poderiam receber um trata­mento mais adequado e, consequentemente, poderiam surtir efeitos mais significativos, se fossem percebidas desde a perspectiva das funções tex­tuais que preenchem, ou seja, se fossem vistas desde a aplicação que po­dem ter, enquanto recursos de construção dos diferentes discursos, orais e escritos, coesos e coerentes, com que interagimos.

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Vejamos como poderíamos adotar essa pers­pectiva.

Em primeiro lugar, dentro do procedimento da reiteração, seria útil rever a forma coercitiva e de­predadora com que a estratégia textual da repeti­ção de palavras tem sido considerada. De maneira absolutamente simplista e infundada, costuma-se coibir a repetição de palavras no texto, vista, na grande maioria dos casos, apenas, como indício da "pobreza vocabular" de quem a ela recorre.

...


Em geral, na avaliação das redações dos alunos, os professores costumavam sublinhar as palavras que se repetiam, até mesmo quando se tratava de um "que". Importante seria mostrar, em textos, os casos em que a repetição de uma palavra desempenha uma função textual ou discursiva relevante. Por exemplo, a repetição de uma palavra pode sinalizar a concentração temática de um texto, de um parágrafo, ou marcar a ênfase que se deseja atribuíra uma palavra, a uma informação, a uma ideia.

...


Se repararmos no texto da Veja, mostrado ante­riormente, constatamos uma série de unidades re­petidas (por exemplo, preço, inflação, índice, classe média, real, moeda, centavo, brasileiro, comprar). Al­gumas dessas palavras vêm várias vezes repetidas, e, nem por isso, poderíamos duvidar da competência lexical do autor, tampouco da boa qualidade de seu comentário. Ou seja, repetir palavras não é, sempre, uma operação que indica a insuficiência ou a inabili­dade comunicativa do locutor.

Pelo contrário, depois de submetida a análises em diferentes corpora textuais, a repetição tem sido apontada como um procedimento de gran­de relevância funcional, como uma regularidade discursiva incontestável e, para os textos mais extensos, como um procedimento praticamente ine­vitável (cf., entre outros, Marcuschi, 1992; Antunes, 1996, 2005).


3. A propósito, que funções textuais pode ter a repetição de uma ou mais palavras?

Fixemo-nos um pouco nessa questão.

É evidente que está fora de consideração a percepção reducionista ou não-interativa do texto enquanto mero ponto de passagem ou de trans­missão de uma informação. O texto, na concepção aqui assumida, afirma-se

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como processo de interação social, de ativação e de intercâmbio de sentidos e de intenções, pelo qual os interlocutores atuam.

Nessa perspectiva, a repetição constitui uma das operações de textualização, decorrente não apenas do conteúdo lexical das unidades repeti­das, mas ainda da própria operação discursiva de usar a repetição - em determinados pontos do texto e com determinada frequência.

Por outras palavras, a repetição de palavras cumpre não apenas uma função no âmbito daquilo que se pretende "dizer" pelo texto. Acumula também a função de estabelecer os pontos de relação que o processamen­to dos sentidos requer. Destaca-se, portanto, como um tipo de "instrução" que orienta a apreensão desses sentidos e o controle da interpretação do texto - um todo articulado e coerente. Vincula-se à própria atividade do interlocutor de compor, de organizar a sequência de seu texto. Resulta, portanto, da atribuição de intenções discursivas e de decisões intencio­nalmente cooperativas dos sujeitos da interação.

Como tenho salientado, a organização da sequência do texto está condi­cionada às exigências da sua continuidade e da sua unidade tópica. Do ponto de vista desses requisitos, o intercâmbio promovido pela interação textual requer a concentração numa unidade temática específica, a qual polariza todo o percurso da interação e é, por essa via, condição da sua continuida­de Noutras palavras, o texto tem um único núcleo semântico-pragmático que perpassa o percurso inteiro de sua sequência. Todos os seus segmentos estão, assim, enlaçados, em convergência para um ponto comum.

...


É em relação a essa continuidade e a essa unidade do texto que considero aqui a operação textual de repetir palavras e sequências de palavras.

...


Em termos mais gerais, ao contrário do que, simplistamente, têm divulgado alguns manuais de redação, a repetição cumpre a função dis­cursiva de favorecer o processamento daquele núcleo do discurso. Nesse sentido, repetimos, define-se como operação de textualização e como ins­trução em vistas à recuperação dos sentidos e das intenções continuados e hierarquicamente unificados. Em termos mais específicos, destaco para a repetição três diferentes funções.

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3.1. Primeiramente, atribuo à repetição a função de confirmar a concentração do texto num mesmo eixo semântico, marcando pontualmente a reinci­dência sequencial dos elementos convergentes e, promovendo, assim, a apreensão da unidade te­mática pretendida. Em outras palavras, a repetição constitui uma marca da unidade temática do texto, pois a volta à unidade ou às unidades lexicais que concernem a seu núcleo semântico representa uma estratégia de confirmar a intenção de não se afastar desse núcleo. A repetição funciona, assim, como pon­tos de amarração, ou como autênticos nós, na indica­ção da continuidade que perpassa o eixo vertical do texto.

...

Como parte de minha tese de doutorado (cf., Antunes, 1996), analisei, em editoriais jornalísticos, a ocorrência dos nexos coesivos de natureza lexical. Ficou evidente como a repetição de unidades lexicais concorre para manter em 'ativação' a memória do tema em desenvolvimento.



...
De fato, conforme mostrou uma análise em dez editoriais jornalísti­cos, as cadeias de repetições constituem indicativo de que a continuidade temática do texto se mantém, qual um fio articulador, em todo o seu per­curso. Tal continuidade é promovida não apenas pela repetição formal da unidade nos sucessivos parágrafos (p. 1, p. 2, p. 3 etc.), mas, ainda, pela vinculação semântica que cada conjunto de unidade repetida guarda com o título do editorial.

Uma pequena amostra dessa análise pode ser vista no quadro seguin­te. Observemos como as palavras repetidas em cada parágrafo de cada editorial estão em óbvia relação com o título, que, por sua vez, é marca da centração temática do texto.


QUADRO 1. AMOSTRA DA REPETIÇÃO DE UNIDADES LEXICAIS LIGADAS AO TÓPICO CENTRAL DOTEXTO

TÍTULOS DOS EDITORIAIS

1. Defesa do regime

2. A hora agônica do cooperativismo

3. Panorama em janeiro

4. Reforma partidária

5. Código Tributário

Parágrafo




p.1




cooperativas

desenvolvimento

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