Bernardo Guimarães a escrava Isaura



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esposa para com a mulatinha, capricho que qualificava de caduquice.

- Forte loucura! - costumava exclamar com acento de comiseração.

- Está ai se esmerando em criar uma formidável tafulona, que lá

pelo tempo adiante há de lhe dar água pela barba. As velhas, umas dão

para rezar, outras para ralhar desde a manhã até à noite, outras para

lavar cachorrinhos ou para criar pintos; esta deu para criar mulatinhas

princesas. É um divertimento um pouco mais dispendioso na verdade;

mas.., que lhe faça bom proveito; ao menos enquanto se entretém por

lá com o seu embeleco, poupa me uma boa dúzia de impertinentes e

rabugentos sermões... Lá se avenha!...

Poucos dias depois do casamento de Leôncio, o comendador, com

toda a família, inclusive os dois novos desposados, transportou se de

novo para a fazenda de Campos. Foi então que o comendador entregou

a seu filho toda a administração e usufruto daquela propriedade,

com toda a escravatura e mais acessórios nela existentes, declarando lhe

que achando se já bastante velho, enfermo e cansado, queria passar

tranqüilamente o resto de seus dias livre de afazeres e preocupações,

para o que bastavam lhe com sobejidão as rendas que para si

reservava. Feita em vida esta magnífica dotação a seu filho, retirou se para a

corte. Sua esposa porém preferiu ficar em companhia do filho, o que foi

muito do gosto e aprovação do marido.

Malvina, que apesar da sua vaidade aristocrática tinha alma cândida

e boa, e um coração bem formado, não pôde deixar de conceber logo

desde o principio o mais vivo interesse e terna afeição pela cativa Isaura.

Era esta com efeito de índole tão bondosa e fagueira, tão dócil, modesta e submissa,

que apesar de sua grande beleza e incontestáveis dotes de espírito, conquistava

logo ao primeiro encontro a benevolência de todos.

Isaura tornou se imediatamente, não direi a mucama favorita, mas

a fiel companheira, a amiga de Malvina que, afeita aos prazeres

e passatempos da corte, muito folgou de encontrar tão boa e amável

companhia na solidão que ia habitar.

- Por que razão não libertam esta menina? - dizia ela um dia à

sua sogra. - Uma tão boa e interessante criatura não nasceu para ser escrava.

- Tem razão, minha filha, - respondeu bondosamente a velha;

- mas que quer você?... não tenho ânimo de soltar este passarinho

que o céu me deu para me consolar e tornar mais suportáveis as

pesadas e compridas horas da velhice.

E também libertá la para quê? Ela aqui é livre, mais livre do

que eu mesma, coitada de mim, que já não tenho gostos na vida nem

forças para gozar da liberdade. Quer que eu solte a minha patativa? e

se ela transviar se por aí, e nunca mais acertar com a porta da gaiola?... Não,

não, minha filha; enquanto eu for viva, quero tê la sempre bem

pertinho de mim, quero que seja minha, e minha só. Você há de estar

dizendo lá consigo - forte egoísmo de velha! - mas também eu já

poucos dias terei de vida; o sacrifício não será grande. Por minha morte

ficará livre, e eu terei o cuidado de deixar lhe um bom legado.

De feito, a boa velha tentou por diversas vezes escrever seu

testamento a fim de garantir o futuro de sua escravinha, de sua querida

pupila; mas o comendador, auxiliado por seu filho com delongas

e fúteis pretextos, conseguia ir sempre adiando a satisfação do louvável e

santo desejo de sua esposa, até o dia em que, fulminada por um ataque

de paralisia geral, ela sucumbiu em poucas horas sem ter tido um só

momento de lucidez e reanimação para expressar sua última vontade.

Malvina jurou sobre o cadáver de sua sogra continuar para com a

infeliz escrava a mesma proteção e solicitude que a defunta lhe havia

prodigalizado. Isaura pranteou por muito tempo a morte daquela que

havia sido para ela mãe desvelada e carinhosa; e continuou a ser escrava

não já de uma boa e virtuosa senhora, mas de senhores caprichosos,

devassos e cruéis.


Capitulo 3
Falta nos ainda conhecer mais de perto a Henrique, o cunhado de

Leôncio. Era ele um elegante e bonito rapaz de vinte anos, frívolo, estouvado

e vaidoso, como são quase sempre todos os jovens, mormente

quando lhes coube a ventura de terem nascido de um pai rico. Não

obstante esses ligeiros senões, tinha bom coração e bastante dignidade e

nobreza de alma. Era estudante de medicina, e como estava se em

férias, Leôncio o convidara a vir visitar a irmã e passar alguns dias em sua

fazenda.


Os dois mancebos chegavam de Campos, onde Leôncio desde a

véspera linha ido ao encontro do cunhado.

Só depois de casado Leôncio, que antes disso poucas e breves

estadas fizera na casa paterna, começou a prestar atenção à extrema

beleza e às graças incomparáveis de Isaura. Posto que lhe coubesse em

sorte uma linda e excelente mulher, ele não se havia casado por amor,

sentimento esse a que seu coração até ali parecia absolutamente

estranho. Casara se por especulação, e como sua mulher era moça e bonita,

sentira apenas por ela paixão, que se ceva no gozo dos prazeres

sensuais, e com eles se extingue. Estava reservado à infeliz Isaura fazer

vibrar profunda e violentamente naquele coração as fibras que

ainda não estavam de todo estragadas pelo atrito da devassidão.

Concebeu por ela o mais cego e violento amor, que de dia em dia ia

crescendo na razão direta dos sérios e poderosos obstáculos que

encontrava, obstáculos a que não estava afeito, e que em vão se esforçava

para superar. Mas nem por isso desistia de sua tresloucada empresa, porque em

fim de contas, - pensava ele, - Isaura era propriedade sua, e quando

nenhum outro meio fosse eficaz, restava lhe o emprego da violência.

Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal

devassidão do comendador.

Pelo caminho, como sua mente andava sempre cheia da imagem

de Isaura, Leôncio conversara longamente com seu cunhado a respeito

dela, exaltando lhe a beleza, e deixando transluzir com revoltante cinismo

as lascivas intenções que abrigava no coração. Esta conversação

não agradava muito a Henrique, que às vezes corava de pejo e de

indignação por sua irmã, mas não deixou de excitar lhe viva curiosidade

de conhecer uma escrava de tão extraordinária beleza.

No dia seguinte ao da chegada dos mancebos às oito horas da

manhã, Isaura, que acabava de espanejar os móveis e arranjar o salão,

achava se sentada junto a uma janela e entrelinha se a bordar, à espera

que seus senhores se levantassem para servir lhes o café. Leôncio e

Henrique não tardaram em aparecer, e parando à porta do salão

puseram se a contemplar Isaura, que sem se aperceber da presença

deles continuava a bordar distraidamente.

- Então, que te parece? segredava Leôncio a seu cunhado. -

Uma escrava desta ordem não é um tesouro inapreciável? Quem não

diria que uma andaluza de Cádiz, ou uma napolitana?...

- Não é nada disso; mas é coisa melhor, respondeu Henrique

maravilhado; é uma perfeita brasileira.

- Qual brasileira! é superior a tudo quanto há. Aqueles encantos

e aquelas dezessete primaveras em uma moça livre, teriam feito virar o

juízo a muita gente boa. Tua irmã pretende com instância, que eu a

liberte, alegando que essa era a vontade de minha defunta mãe; mas

nem tão tolo sou eu, que me desfaça assim sem mais nem menos de

uma jóia tão preciosa. Se minha mãe teve o capricho de criá la com

todo o mimo e de dar lhe uma primorosa educação, não foi decerto

para abandoná la ao mundo, não achas?... Também meu pai parece

que cedeu às instâncias do pai dela, que é um pobre galego, que por ai

anda, e que pretende libertá la; mas o velho pede por ela tão

exorbitante soma, que julgo nada dever recear por esse lado. Vê lá,

Henrique, se há nada que pague uma escrava assim?...

- É com efeito encantadora - replicou o moço, - se estivesse

no serralho do sultão, seria sua odalisca favorita. Mas devo notar te,

Leôncio, - continuou, cravando no cunhado um olhar cheio de

maliciosa penetração, - como teu amigo e como irmão de tua mulher,

que o teres em tua sala e ao lado de minha irmã uma escrava tão

linda e tão bem tratada não deixa de ser inconveniente e talvez

perigoso para a tranqüilidade doméstica...

- Bravo! - atalhou Leôncio, galhofando, - para a idade que

tens, já estás um moralista de polpa!... mas não te dê isso cuidado, meu

menino; tua irmã não tem dessas veleidades, e é ela mesma quem mais

gosta de que Isaura seja vista e admirada por todos. E tem razão; Isaura

é como um traste de luxo, que deve estar sempre exposto no salão.

Querias que eu mandasse para a cozinha os meus espelhos de Veneza?...

Malvina, que vinha do interior da casa, risonha, fresca e alegre

como uma manhã de abril, veio interromper lhes a conversação.

- Bom dia, senhores preguiçosos! - disse ela com voz argentina

e festiva como o trino da andorinha. - Até que enfim sempre se levantaram!

- Estás hoje muito alegre, minha querida, - retorquiu lhe sor 

rindo o marido; - viste algum passarinho verde de bico dourado?...

- Não vi, mas hei de ver; estou alegre mesmo, e quero que hoje

aqui em casa seja um dia de festa para todos. Isto depende de ti, Leôncio,

e estava aflita por te ver de pé; quero dizer te uma coisa; já devia

tê la dito ontem, mas o prazer de ver este ingrato de irmão, que há

tanto tempo não vejo, me fez esquecer...

- Mas o que é?... fala, Malvina.

- Não te lembras de uma promessa, que sempre me fazes,

promessa sagrada, que há muito tempo devia ter sido cumprida?... hoje

quero absolutamente, exijo, o seu cumprimento.

- Deveras?.., mas que promessa?... não me lembro.

- Ah! como te fazes de esquecido!... não te lembras, que me

prometeste dar liberdade a...

- Ah! já sei, já sei; - atalhou Leôncio com impaciência. - Mas

tratar disso aqui agora? em presença dela?... que necessidade há

de que nos ouça?

- E que mal faz isso? mas seja como quiseres, - replicou a moça

tomando a mão de Leôncio e levando o para o interior da casa; -

vamos cá para dentro. Henrique, espera aí um momento, enquanto eu

vou mandar preparar nos o café.

Só depois da chegada de Malvina, Isaura deu pela presença dos

dois mancebos, que a certa distância a contemplavam cochichando a

respeito dela. Também pouco ouviu ela e nada compreendeu do rápido

diálogo que tivera lugar entre Malvina e seu marido. Apenas estes se

retiraram ela também se levantou e ia sair, mas Henrique, que ficara só,

a deteve com um gesto.

- Que me quer, senhor? - disse ela baixando os olhos com humildade.

- Espera ai, menina; tenho alguma coisa a dizer te, - replicou o

moço, e sem dizer mais nada colocou se diante dela devorando a com

os olhos, e como extático contemplando lhe a maravilhosa beleza.

Henrique sentia se acanhado diante daquela nobre figura radiante de beleza,

e de angélica serenidade. Por seu lado Isaura também olhava para o

moço, atônita e tolhida, esperando em vão que lhe dissesse o que

queria. Por fim Henrique, afoito, e estouvado como era, lembrando se que

Isaura, a despeito de toda a sua formosura, não passava de uma

escrava, entendeu que fazia um ridículo papel, deixando se ali ficar diante

dela em muda e extática contemplação, e chegando se a ela com todo

o desembaraço e petulância travou lhe da mão, e...

- Mulatinha, disse, - tu não fazes idéia de quanto és feiticeira.

Minha irmã tem razão; é pena que uma menina assim tão linda não seja

mais que uma escrava. Se tivesses nascido livre, serias incontestavelmente

a rainha dos salões.

- Está bem, senhor, está bem! replicou Isaura soltando se da mão

de Henrique; se é só isso o que tinha a dizer me, deixe me ir embora.

- Espera ainda um pouco; não sejas assim má; eu não te quero

fazer mal algum. Oh! quanto eu daria para obter a tua liberdade, se

com ela pudesse obter também o teu amor!... És muito mimosa e muito

linda para ficares por muito tempo no cativeiro; alguém impreterivelmente

virá arrancar te dele, e se hás de cair nas mãos de algum desconhecido,

que não saberá dar te o devido apreço, seja eu, minha Isaura, seja o irmão

de tua senhora, que de escrava te haja de fazer uma princesa...

- Ah! senhor Henrique! retorquiu a menina com enfado; - o

senhor não se peja de dirigir esses galanteios a uma escrava de sua

irmã? isso não lhe fica bem; há por aí tanta moça bonita, a quem o

senhor pode fazer a corte...

- Não; ainda não vi nenhuma que te iguale, Isaura, eu te juro.

Olha, Isaura; ninguém mais do que eu está nas circunstâncias de

conseguir a tua liberdade; sou capaz de obrigar Leôncio a te libertar,

porque, se me não engano, já lhe adivinhei os planos e as intenções, e

protesto te que hei de burlá los todos; é uma infâmia em que não posso

consentir. Além da liberdade terás tudo o que desejares, sedas, jóias,

carros, escravos para te servirem, e acharás em mim um amante

extremoso, que sempre te há de querer, e nunca te trocará por quanta

moça há por esse mundo, por bonita e rica que seja, porque tu só

vales mais que todas elas juntas.

- Meu Deus! - exclamou Isaura com um ligeiro tom de mofa; -

tanta grandeza me aterra; isso faria virar me o juízo. Nada, meu senhor;

guarde suas grandezas para quem melhor as merecer; eu por ora estou

contente com a minha sorte.

- Isaura!... para que tanta crueldade!... escuta, - disse o moço

lançando o braço ao pescoço de Isaura.

- Senhor Henrique! - gritou ela esquivando se ao abraço, -

por quem é, deixe me em paz!

- Por piedade, Isaura! - insistiu o rapaz continuando a querer

abraçá la; - oh!... não fales tão alto!... um beijo... um beijo só, e já te

deixo...

- Se o senhor continua, eu grito mais alto. Não posso aqui trabalhar

um momento, que não me venham perturbar com declarações que

não devo escutar...

- Oh! como está altaneira! - exclamou Henrique, já um tanto

agastado com tanta resistência. - Não lhe falta nada!... tem até os ares

desdenhosos de uma grande senhora!... não te arrufes assim, minha

princesa...

- Arre lá, senhor! - bradou a escrava já no auge da impaciência.

- Já não bastava o senhor Leôncio!... agora vem o senhor também...

- Como?... que estás dizendo?... também Leôncio?... oh!... oh!

bem o coração me estava adivinhando!... que infâmia!... mas decerto tu

o escutas com menos impaciência, não é assim?

- Tanto como escuto ao senhor.

- Não duvido Isaura; a lealdade, que deves a tua senhora, que

tanto te estima, não te permite que dês ouvidos àquele perverso. Mas

comigo o caso é diferente; que motivo há para seres cruel assim?

- Eu cruel para com meus senhores!!! Ora, senhor, pelo amor de

Deus!... Não esteja assim a escarnecer de uma pobre cativa.

- Não! não escarneço... Isaura!... escuta, - exclamava Henrique

forcejando para abraçá la e furtar lhe um beijo.

- Bravo!... bravíssimo! - retumbou pelo salão uma voz acompanhada

de sardônica e estrepitosa gargalhada.

Henrique voltou se sobressaltado. Toda a sua amorosa exaltação

tinha se lhe gelado de súbito no âmago do coração.

Leôncio estava em pé no meio da porta, de braços cruzados e

olhando para ele com sorriso do mais insultante escárnio.

- Bravo! muito bem, senhor meu cunhado! - continuou Leôncio

no mesmo tom de mofa. - Está pondo em prática belissimamente as

suas lições de moral!... requestando me as escravas!... está galante!...

sabe respeitar divinamente a casa de sua irmã!...

- Ah! maldito importuno! murmurou Henrique, trincando os

dentes de cólera, e seu primeiro impulso foi investir de punho fechado, e

responder com cachações aos insolentes sarcasmos do cunhado.

Refletindo porém um momento, sentiu que lhe seria mais vantajoso

empregar contra o seu agressor a mesma arma de que se servira contra ele, o

sarcasmo, que as circunstâncias lhe permitiam vibrar de modo vitorioso

e decisivo. Acalmou se, pois, e com sorriso de soberano desdém:

- Ah! perdão, meu cunhado! - disse ele não sabia que a

peregrina jóia do seu salão lhe merecesse tanto cuidado, que o levasse

a ponto de andá la espionando; creio que tem mais zelo por ela do que

mesmo pelo respeito que se deve à sua casa e à sua mulher. Pobre de

minha irmã!... é bem simples, e admira que, há mais tempo, não tenha

conhecido o belo marido que possui!...

- O que estás dizendo, rapaz? - bradou Leôncio com gesto

ameaçador; - repete; que estás dizendo?

- O mesmo que o senhor acaba de ouvir, - redargüiu Henrique

com firmeza, - e fique certo que o seu indigno procedimento não há

de ficar por muito tempo oculto à minha irmã.

- Qual procedimento!? tu deliras, Henrique?...

- Faça se de esquerdo!... pensa que não sei tudo?... enfim.

adeus, senhor Leôncio: eu me retiro, porque seria altamente

inconveniente, indigno e ridículo da minha parte estar a disputar com

o senhor por amor de uma escrava.

- Espera, Henrique... escuta...

- Não, não; não tenho negócio nenhum com o senhor. Adeus! -

disse e retirou se precipitadamente.

Leôncio sentiu se esmagado, e arrependeu se mil e uma vezes de

ter provocado tão imprudentemente aquele leviano e estouvado rapaz.

Ignorava que seu cunhado estivesse ao fato da paixão que sentia por

Isaura, e dos esforços que empregava para vencer lhe a isenção e lograr

seus favores. verdade que lhe havia falado sem muito rebuço a esse

respeito; mas algumas palavras ditas entre rapazes, em tom de mera

chocarrice, não constituíam base suficiente para que sobre ela Henrique

pudesse articular uma acusação contra ele em face de sua mulher.

Decerto a rapariga lhe havia revelado alguma coisa, e isto o fazia espumar

de despeito e raiva contra um e outra. Bem pouco lhe importava a

perturbação da paz doméstica, o que o enfurecia era o perigo em que

se colocara de ver desconcertados os seus perversos desígnios sobre a

gentil escrava.

- Maldição! - rugia ele lá consigo. - Aquele maluco é bem ca 

paz de desconcertar todos os meus planos. Se sabe alguma coisa, como

parece, não porá dúvida em levar tudo aos ouvidos de Malvina...

Leôncio ficou por alguns momentos em pé, imóvel, sombrio,

carrancudo, com o espírito entregue à cruel inquietação que o fustigava.

Depois, pairando as vistas em derredor, deu com os olhos em Isaura, a

qual, desde que Leôncio se apresentara, corrida, trêmula e anelante,

fora sumir se em um canto da sala; dali presenciara em silenciosa ansiedade

a altercação dos dois moços, como corça mal ferida escutando o

rugir de dois tigres, que disputaram entre si o direito de devorá la. Por

seu lado também se arrependia do intimo d'alma, e raivava contra si

mesma pela indiscreta e louca revelação, que em um assomo de

impaciência deixara escapar dos seus lábios. Sua imprudência ia ser

causa da mais deplorável discórdia no seio daquela família, discórdia,

de que por fim de contas ela viria a ser a principal vítima. A desavença

entre os dois mancebos era como o choque de duas nuvens, que se encontram

e continuam a pairar tranqüilamente no céu; mas o raio desprendido de

seu seio teria de vir certeiro sobre a fronte da infeliz cativa.

Capítulo 4

- Ah! estás ainda ai?... fizeste bem, - disse Leôncio mal avistou

Isaura, que trêmula e confusa não ousara sair do cantinho, a que se

abrigara, e onde fazia mil votos ao céu para que seu senhor não a visse,

nem se lembrasse dela naquele momento. - Isaura, continuou ele,

- pelo que vejo, andas bem adiantada em amores!... estavas a ouvir

finezas daquele rapazola...

- Tanto como ouço as suas, meu senhor, por não ter outro remédio.

Uma escrava, que ousasse olhar com amor para seus senhores, merecia

ser severamente castigada.

- Mas tu disseste alguma coisa àquele estouvado, Isaura?...

- Eu?! - respondeu a escrava perturbando se; - eu, nada que

possa ofender nem ao senhor nem a ele...

- Pesa bem as tuas palavras, Isaura; olha, não procures

enganar me. Nada lhe disseste a meu respeito?

- Nada.


- Juras?

- Juro, - balbuciou Isaura.

- Ah! Isaura, Isaura!... tem cuidado. Se até aqui tenho sofrido

com paciência as tuas repulsas e desdéns, não estou disposto a suportar

que em minha casa, e quase em minha presença, estejas a escutar

galanteios de quem quer que seja, e muito menos revelar o que aqui se

passa. Se não queres o meu amor, evita ao menos de incorrer no meu

ódio.


- Perdão, senhor, que culpa tenho eu de andarem a perseguir me?

- Tens alguma razão; estou vendo que me verei forçado a

desterrar te desta casa, e a esconder te em algum canto, onde não sejas

tão vista e cobiçada...

- Para quê, senhor...

- Basta; não te posso ouvir agora, Isaura. Não convém que nos

encontrem aqui conversando a sós. Em outra ocasião te escutarei. -

preciso estorvar que aquele estonteado vã intrigar me com Malvina -

murmurava Leôncio retirando se. - Ah! cão! maldita a hora em que te

trouxe à minha casa!

- Permita Deus que tal ocasião nunca chegue! - exclamou

tristemente dentro da alma a rapariga, vendo seu senhor retirar se.

Ela via com angústia e mortal desassossego as continuas e cada vez mais

encarniçadas solicitações de Leôncio, e não atinava com um meio de

opor lhes um paradeiro. Resolvida a resistir até à morte, lembrava se da

sorte de sua infeliz mãe, cuja triste história bem conhecia, pois a tinha

ouvido, segredada a medo e misteriosamente, da boca de alguns velhos

escravos da casa, e o futuro se lhe antolhava carregado das mais negras

e sinistras cores. Revelar tudo a Malvina era o único meio, que se lhe

apresentava ao espírito, para pôr termo às ousadias do seu marido, e atalhar

futuras desgraças. Mas Isaura amava muito sua jovem senhora para ousar dar

semelhante passo, que iria derramar lhe no seio um pego de desgostos

e amarguras, quebrando lhe para sempre a risonha e doce ilusão em

que vivia.

Preferia antes morrer como sua mãe, vitima das mais cruéis

sevícias, do que ir por suas mãos lançar uma nuvem sinistra no céu até ali

tão sereno e bonançoso de sua querida senhora.

O pai de Isaura, o único ente no mundo, que à exceção de Malvina

se interessava por ela, pobre e simples jornaleiro, não se achava


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