Referia-se a um aparelho que capta e classifica as vozes segundo as vibrações produzidas, comparadas com as armazenadas na sua memória. A de Mike Martin ficara registada antes da sua partida para Bagdade. Por conseguinte, a captada naquela noite era a sua, sem margem para a mínima reserva. Paxman receava igualmente que tivesse sido capturado, torturado e "virado", e agora transmitisse mensagens sob pressão. No entanto, acabou por rejeitar a ideia. Havia pormenores previamente combinados -uma pausa especial, uma hesitação, um acesso de tosse-que preveniriam os ouvintes em Riade, se a transmissão não fosse espontânea. De resto, a comunicação anterior verificara-se apenas três dias atrás. A polícia secreta iraquiana era brutal, mas de modo algum rápida nos seus métodos. E Martin não cederia facilmente. Portanto, um homem espancado e "virado" -um farrapo torturado-tão depressa deixaria transparecer o seu estado na fala. Isso significava que a mensagem era autêntica e se limitara a ler e traduzir o texto recebido de Jericó. O que proporcionava mais imponderáveis. Jericó comunicava a verdade, equivocara-se ou mentia. - Vá chamar o Julian -indicou, por fim, a um dos técnicos. Enquanto este obedecia, marcou o número da linha privada do seu homólogo americano, Chip Barber.-Acho conveniente vir até cá, sem demora. O homem da CIA acordou totalmente com prontidão. A intonação do britânico revelava-lhe que não o acordara para se divertir. Algum problema? Tem todo o aspecto disso. Atravessou a cidade e apresentou-se na casa do SIS em menos de meia hora, de camisola de lã e calça de flanela por cima do pijama. Era 1.00 e entretanto Paxman munira-se da gravação em inglês e arábico, além de uma transcrição nos dois idiomas. Os técnicos, que prestavam serviço no Médio Oriente desde longa data, dominavam a língua local e confirmaram que a tradução de Martin estava correcta. - Deve ser brincadeira -declarou Barber, quando acabou de a escutar. Fez uma pausa, enquanto Paxman lhe explicava os testes a que procedera para se certificar da autenticidade da voz. -Em todo o caso, Jericó informa-nos do que alega que ouviu o Saddam dizer nessa manhã. Pode não passar de uma patranha deste último. Aliás, o homem mente com a maior das facilidades. Mentira ou verdade, o assunto não podia ser resolvido 282 em Riade. Os postos locais do SIS e da CIA forneciam aos seus generais informação militar táctica e até estratégica procedente de Jericó, mas a faceta política competia a Londres e Washington. -Eles devem estar a preparar cocktails, neste momento -disse Barber, consultando o relógio, que indicava que eram sete horas em Washington. -Alertemos Langley, imediatamente. -Cacau e biscoitos, em Londres -referiu Paxman. -Vou informar a Century. O americano retirou-se, a fim de transmitir a sua cópia da mensagem em código a Bill Stewart, com a advertência "cósmica", grau de urgência mais premente conhecido. Assim, quem a recebesse saberia que o destinatário devia ser localizado com a maior prontidão possível. Paxman procedeu do mesmo modo em relação a Steve Laing, o qual seria acordado a meio da noite e teria de abandonar a cama quente para mergulhar na noite glacial e rumar a Londres. Havia mais uma coisa que o agente britânico podia fazer, e fê-la. Martin dispunha de um espaço de transmissão apenas para escuta, às quatro da madrugada. Paxman aguardou essa hora e enviou para o seu homem em Bagdade uma mensagem muito breve, embora não menos explícita. Até ordem em contrário, não se devia aproximar de qualquer das suas seis caixas de cartas mortas. Pelo sim pelo não. O estudante jordano, Karim, efectuava progressos lentos, porém firmes no assédio romântico a Fraulein Edith Hardenburg. Ela permitia que lhe pegasse na mão quando passeavam nas ruas de Viena e até admitia para consigo que o contacto lhe proporcionava um prazer especial. Na segunda semana de Janeiro, obteve entradas para o Burgtheater Theater... pagas por Karim, a fim de assistirem à representação de uma peça de Grillparzer, Gygus und sein fíing. Ela explicou, excitada, antes de entrarem, que se tratava de um rei idoso com vários filhos, e aquele a quem legasse o seu anel seria o sucessor. Karim acompanhou o desenrolar da peça com particular atenção e solicitou várias explicações sobre o texto, que consultava constantemente. No intervalo, Edith esclareceu-lhe mais algumas dúvidas. Posteriormente, Avi Herzog diria a Barzilai que estava tão excitado como se assistisse à raspagem de um muro para ser pintado. -Não passa de um inculto -acusou-o o homem da Mossad. -Falta-lhe um mínimo de erudição. 283 Não vim para ampliar a minha cultura. Então, concentre-se no trabalho, meu rapaz. No domingo, Edith, católica devota, foi à missa da manhã na Votivkirche. Karim explicou-lhe que, na sua qualidade de muçulmano, não a podia acompanhar, mas ficaria à espera num café das proximidades. , Mais tarde, sentados diante de chávenas fumegantes, ele entreteve-se a descrever as diferenças e similaridades entre o cristianismo e o islamismo, enquanto ela o escutava, fascinada, reconhecendo que se equivocara ao supor que os muçulmanos adoram ídolos. --Gostava de jantar consigo -anunciou Karim, três dias depois. -?De acordo, mas você gasta demasiado dinheiro comigo. - Não num restaurante.
..,;:--Então, onde?
-Quer preparar uma refeição para mim? Suponho que sabe cozinhar? Refiro-me a comida autenticamente vienense. Edith corou ante a perspectiva acabada de mencionar. Todas as noites, a menos que fosse a um concerto, preparava uma refeição modesta na pequena kitchenett& do seu apartamento. Mas sim, sabia cozinhar realmente. De qualquer modo, ele levara-a a vários restaurantes dispendiosos, além de que se tratava de um jovem extremamente educado e atencioso. Que mal podia haver nisso? Afirmar que a mensagem de Jericó da noite de 12 para 13 de Janeiro provocou consternação em determinados círculos secretos de Londres e Washington seria ficar muito aquém da verdade. Um pânico controlado era a expressão mais apropriada. Um dos problemas consistia no número restrito de pessoas ao corrente da existência do informador e ainda menos dos pormenores. O princípio da necessidade de saber poderá parecer mesquinho ou mesmo obsessivo, mas funciona por um motivo. Todas as agências sentem uma obrigação por um "bem" que trabalha para elas numa situação de risco muito elevado, por ignóbil que ele seja como ser humano. O facto de Jericó não passar claramente de um mercenário e não de um ideólogo não era para aí chamado. A circunstância de trair cinicamente o seu país e governo podia considerar-se irrelevante. De resto, as autoridades supremas do Iraque desfrutavam da reputação, justificada e comprovada, de repulsivas, pelo que se tratava de um caso de um velhaco exercer as funções de traidor para com outro do mesmo naipe. 284 O essencial era que, à parte o seu valor óbvio e a possibilidade de a sua informação poder salvar vidas dos Aliados no campo de batalha, Jericó constituía um bem de alto preço, pelo que as duas agências que o controlavam haviam mantido o conhecimento da sua existência limitado a um minúsculo círculo de iniciados. Por conseguinte, o seu produto fora dissimulado de uma variedade de maneiras. Tinha sido inventada uma miscelânea de versões para explicar a origem da sua torrente de informação. As disposições militares deviam-se supostamente a uma série de deserções de soldados iraquianos provenientes do Koweit, entre os quais um major imaginário que fornecera um estendal de elementos valiosos, na sequência de um longo, penoso e delicado interrogatório num local secreto pertencente aos serviços secretos Aliados. Mas como explicar uma informação directa das palavras proferidas pelo próprio Saddam Hussein, no decurso de uma reunião a que só tinham assistido os homens da sua inteira e permanentemente verificada confiança? Os perigos de aceitar uma coisa dessas era esmagador. Antes de mais, havia inconfidências-é algo que sempre existiu: documentos com resoluções ministeriais que transpiram, assim como mensagens confidenciais que acabam por se tornar conhecidas nos corredores. Não se tratava da tenebrosa possibilidade de alguém denunciar Jericó pelo nome -na verdade, seria impossível-, mas da sugestão de que chegara de Bagdade uma informação incrível que obrigara a rede de contra-espionagem de Rahmani a fazer horas extraordinárias para detectar e isolar a respectiva fonte. Na melhor das hipóteses, isso poderia garantir o futuro silêncio de Jericó, calado para sua própria protecção; na pior, a captura. Enquanto a contagem decrescente para o início da guerra aérea prosseguia, as duas agências voltavam a contactar com os seus antigos peritos em questões de física nuclear e solicitavam-lhes a reapreciação da informação já fornecida. Haveria na realidade alguma hipótese concebível de o Iraque dispor de meios para uma maior e mais rápida separação de isótopos do que até então se supusera? Na Grã-Bretanha, peritos de Harwell e Aldermaston foram consultados de novo; na América, em Sandia, Lawrence Liver-more e Los Alamos. O Departamento Z, em Livermore, cujos especialistas acompanhavam constantemente a proliferação nuclear no Terceiro Mundo, foi pressionado com insistência. As respostas confirmaram as opiniões anteriores. Mesmo admitindo um cenário altamente pessimista e que duas "cas- 285 catas" de difusão de gás funcionassem não durante um, mas dois anos consecutivos, não havia a mínima possibilidade de o Iraque possuir mais de metade do Urânio 235 de que necessitaria para um único engenho de potência média. O que deixava as agências perante um m&nu de opções. Saddam estava equivocado, porque lhe tinham mentido. Conclusão: improvável. Os responsáveis de semelhante situação pagariam com a vida a ousadia. Saddam dissera-o, mas mentia. Conclusão: muito provável. Para elevar o moral entre os apoiantes apreensivos. Mas porquê confinar a notícia aos fanáticos mais íntimos, que não estavam apreensivos? A propaganda estimuladora do moral destina-se às massas e à opinião pública estrangeira. Inexplicável. Saddam não o dissera. Conclusão: a informação constituía um estendal de mentiras. Conclusão secundária: Jericó mentira porque ambicionava mais dinheiro e previa que, com a eclosão da guerra, os seus préstimos deixariam de ser solicitados. Exigia um milhão de dólares pela informação. O mesmo Jericó mentira porque fora desmascarado, e revelara tudo. Conclusão: também possível; opção que o colocava numa situação extremamente delicada para manter o contacto. Neste ponto, a CIA transferiu-se firmemente para o banco do condutor. Como era quem pagava, Langley tinha todo o direito de o fazer. -Vou dizer-lhe o que penso-referiu Bill Stewart a Steve Laing, numa linha segura da CIA para a Century House, na noite de 14 de Janeiro. -O Saddam está enganado ou mente, Jericó está enganado ou mente. Em qualquer dos casos, o Tio Sam não vai depositar um milhão de notas verdes numa conta em Viena por essa espécie de lixo. -Não há qualquer possibilidade de a opção não considerada estar certa? - Que possibilidade é essa? -A de que o Saddam o disse e corresponde à verdade. -Nem por sombras. Trata-se de um número de ilusionismo. Não o vamos tragar. Jericó foi-nos muito útil durante nove semanas, embora, em face da nova situação, tenhamos de verificar tudo. Metade já foi confirmada e é material de alta qualidade. Mas comprometeu a situação com a última mensagem. Pensamos que a fonte secou. Desconhecemos porquê, mas trata-se da opinião dos nossos luminares. O que cria problemas a todos nós. Eu sei, amigo, e é por isso que telefono a poucos minutos do final da reunião com o director. Ou Jericó foi desmas- 286 carado e vomitou tudo aos algozes ou pôs-se em fuga. No entanto, se chega a saber que não lhe enviaremos o milhão de dólares que pediu, pode tornar-se perigoso. Em qualquer dos casos, são estas as más notícias a transmitir ao seu homem no local. Suponho que é bom? Dos melhores. Tem uma coragem inesgotável. Então, tire-o de lá, Steve. Depressa. -Sim, creio que não nos resta qualquer alternativa, Bill. Obrigado pela informação. Lamento-o, porque era um operador excelente. -Dos melhores, enquanto durou. Stewart pousou o auscultador no descanso. Por seu turno, Laing procurou Sir Colin. A decisão foi tomada em menos de uma hora. À hora do pequeno-almoço de 15 de Janeiro na Arábia Saudita, todos os membros das forças aéreas -americanas, inglesas, francesas, italianas, sauditas e koweitianas-sabiam que iriam para a guerra. Estavam convencidos de que os políticos e diplomatas não tinham conseguido evitá-la. Ao longo do dia, todas as unidades entraram^ em alerta de pré-combate. Os centros nervosos da campanha estavam localizados em vários estabelecimentos, em Riade. Em torno da Base Aérea Militar de Riade, havia uma colecção de vastas tendas com ar condicionado conhecida por "Celeiro". Tratava^se do primeiro filtro para o maremoto de fotografias dos serviços secretos que tinham chegado nas últimas semanas e duplicariam e triplicariam nas subsequentes. O produto do "Celeiro", uma síntese da informação fotográfica mais importante proveniente de muitas fontes de reconhecimento, viajava cerca de dois quilómetros na estrada em direcção ao quartel-general da Real Força Aérea Saudita, uma importante fatia da qual fora convertida na CENTAF. Constituído por um edifício gigantesco de betão e vidro, o quartel-general dispunha de uma cave, onde se localizava a base da CENTAF. Apesar das amplas dimensões dessa cave, continuava a não haver espaço suficiente, pelo que o parque de estacionamento estava repleto de mais tendas, onde também se procedia à análise de fotografias. A cave era o ponto focal de tudo, Centro de Produção de Imagens, um ninho de salas interligadas, onde trabalharam, ao longo da guerra, duzentos e cinquenta analistas, ingleses e americanos, dos três ramos das forças armadas, e de todas as patentes. Era o Buraco Negro. 287 O chefe, tecnicamente, era o comandante do ar general Chuck Horner, mas como o chamavam com frequência ao Ministério da Defesa, a dois quilómetros dali, o cargo dependia, na maioria das vezes, do seu adjunto, general Buster Glosson. Os planeadores da guerra aérea do Buraco Negro consultavam diariamente, e até hora a hora, um documento denominado Gráfico Básico do Alvo, uma lista e um mapa de tudo o que existia no Iraque merecedor de ser atingido. Era daí que eles derivavam a bíblia quotidiana de cada comandante aéreo e todo o pessoal do teatro do Golfo -a Ordem de Missões Especiais. A OME de cada dia constituía um documento imensamente pormenorizado, através de mais de cem páginas dactilografadas que levava dias a preparar. A dois quilómetros dali, na Old Airport Road, havia outro edifício importante. O Ministério da Defesa Saudita era imenso -cinco blocos principais interligados de sete pisos. No quarto, o general Norman Schwarzkopf dispunha de uma confortável suite em que se encontrava muito raramente, pois dormia quase todas as noites num pequeno quarto da subcave, mais perto do seu posto de comando. No seu total, o ministério tinha quatrocentos metros de comprimento e trinta de altura, sumptuosidade que compensava na Guerra do Golfo, quando Riade tinha de albergar muitos estrangeiros inesperados. No subsolo, havia mais dois níveis de aposentos, em toda a extensão do edifício, e, dos quatrocentos metros, o comando da Coligação ocupava sessenta. Era aí que os generais se reuniam em conclave ao longo do conflito, os olhos colados a um largo mapa, enquanto outros oficiais indicavam o que tinha sido feito e a reacção e disposições do Iraque. No último dia antes da transmissão de ordens finais, a maioria do pessoal que participaria na ofensiva escreveu para casa. Uns mordiscavam a esferográfica e ponderavam o que deviam dizer. Outros pensavam nas esposas e filhos e choravam enquanto escreviam, com alguns mais sensíveis ao dra-matismo da situação empenhados em recomendar aos filhos para cuidarem da mãe, se o pior se concretizasse. O capitão Don Walker escutou as notícias com os Outros pilotos e tripulação aérea dos ftocketeers dos 336th TFS através das palavras algo tensas do seu comandante em Al Kharz. Eram cerca de nove horas da manhã e o sol já incidia no deserto com uma intensidade escaldante. Por fim, abandonaram a tenda, imersos em reflexões. Na maior parte dos casos, estas não diferiam. Fora efectuada a 288 última tentativa para evitar a guerra e falhara. Os políticos e diplomatas haviam-se multiplicado em reuniões, com ofertas e ameaças, para impedir que o pior se concretizasse... sem resultado. Pelo menos, era do que aqueles homens estavam convencidos. A parte teórica, por assim dizer, do conflito terminara. Seguir-se-ia agora a terrível prática. Walker viu o seu comandante de esquadrilha, Steve Turner, encaminhar-se para a tenda, a fim de escrever a carta que poderia vir a ser a última a Betty-Jane, em Goldisboro, Carolina do Norte. Por seu turno, Randy Roberts trocou algumas palavras com Boomer Henry e afastaram-se juntos. O jovem de Oklahoma ergueu os olhos à abóbada azul-clara do céu onde ansiara por se encontrar desde criança, em Tulsa, e em que poderia morrer dentro de pouco tempo, no seu trigésimo ano de vida, e orientou os passos para o perímetro. À semelhança dos outros, queria estar só. Não havia qualquer vedação em torno da base de Al Kharz -apenas o mar ocre de areia que se estendia até ao horizonte. Passou diante dos hangares agrupados em redor da área de betão onde os mecânicos inspeccionavam os aparelhos, para se certificarem de que se encontrariam nas condições ideais para cumprir a sua missão na guerra iminente. Walker avistou o seu Eagle entre eles e ficou impressionado como sempre que contemplava a imponente estrutura do F-15 de longe. Até certo ponto, invejava-o. Apesar da sua complexidade moderna, não podia sentir nada, nem ter medo. Deixou a cidade de lona para trás e vagueou pelo areal, os olhos protegidos do sol pela pala do boné de basebol e óculos de aviador, quase alheio ao calor nos ombros. Ao longo de oito anos, voara em aparelhos do seu país e fizera porque lhe agradava. Mas nunca, nem remotamente, encarara a perspectiva de poder morrer em combate. Uma parte de todo o piloto da aviação militar tem presente a noção de testar a sua perícia e coragem e a excelência do seu avião contra outro homem em competência real, de preferência amigável. No entanto, outra parte tem a certeza de que tal nunca acontecerá. Jamais se lhe deparará o horrível ensejo de matar filhos de outras mães ou ser morto por eles. Naquela manhã, à semelhança de todos os outros, compreendera finalmente que chegara na verdade àquele ponto. Todos os anos de estudos e treino tinham acabado por conduzir a esse dia e lugar e, dentro de quarenta horas, levaria o seu Eagle para o céu mais uma vez, porém agora correria o risco de não regressar.
289 E, também à semelhança dos outros, pensou na família. Na sua qualidade de filho único e solteiro, lembrou-se dos pais. Evocou todas as ocasiões e lugares da infância em Tulsa, quando brincavam juntos no quintal das traseiras, o dia em que lhe haviam oferecido a primeira luva de catchQr de basebol e obrigara o pai a jogar com ele até ao pôr-do-Sol. Ray Walker era então muito mais jovem e atlético, até que, gradualmente, o inexorável factor tempo tinha feito o prato da balança pender para o outro lado. Emergiu das reminiscências para regressar ao mar de areia escaldante numa terra longe de casa, com as lágrimas a deslizar pelas faces e a secar ao sol. Se agora morresse, não teria casado, nem conheceria a alegria de ver filhos a saltitar à sua volta. Naquele momento, mais do que nunca, desejava ardentemente casar e ter descendentes, ainda mais do que regressar a Tulsa para tornar a abraçar a mãe. De novo na base, sentou-se à decrépita mesa da tenda partilhada e tentou escrever à família. Nunca fora um escritor de cartas digno desse nome. As palavras não lhe acudiam com facilidade. Em regra, tendia para relatar as coisas que haviam acontecido recentemente na esquadrilha os eventos da vida social ou o estado do tempo. Agora, porém, a situação alterara-se. Acabou por encher duas páginas, como fizeram muitos outros filhos, nesse dia. Tentou exprimir o que lhe ia na cabeça, tarefa que não resultava fácil. Explicou que, dentro de quarenta horas, descolaria no seu Eagle mais uma vez, mas com uma missão diferente, nova para ele. Tentaria matar seres humanos, que se esforçariam por lhe fazer o mesmo. Não lhes veria o rosto, nem sentiria o medo que os percorria, tal como eles não se inteirariam do seu, porque os métodos de guerra modernos não o permitiam. Todavia, se conseguissem o seu intento e ele não, queria que os pais soubessem que os estimava profundamente e esperava ter sido um bom filho. Quando terminou, introduziu o papel dobrado no sobrescrito. Muitas cartas foram expedidas da Arábia Saudita, naquele dia, destinadas a Trenton, Tulsa, Londres, Ruão e Roma. Naquela noite, Mike Martin recebeu uma "erupção" dos seus controladores em Riade. Quando passou a gravação à velocidade normal, verificou que era Simon Paxman quem falava. Apesar de breve, a mensagem distinguia-se pela clareza. Na sua informação anterior, Jericó enganara-se redonda- 290 mente. Todas as verificações científicas provavam que não podia ter razão. Ou se equivocara inadvertidamente ou fizera-o com plena consciência dos seus actos. No primeiro caso, ficaria desconsolado, porque a CIA recusava terminantemente pagar-lhe um único dólar por semelhante material. No segundo, devia ter sido "virado". Por conseguinte, só se podia concluir que a operação fora desmantelada, com a colaboração de Jericó, pela contra-espionagem iraquiana, agora nas mãos do "seu amigo Hassan Rahmadi" ou isso não tardaria a acontecer, se Jericó tentasse vingar-se elucidando os serviços secretos de Bagdade através de uma mensagem anónima. As seis caixas de cartas mortas deviam considerar-se comprometidas. Em circunstância alguma deviam ser visitadas. Martin tinha de efectuar os preparativos necessários para abandonar o Iraque na primeira oportunidade, porventura a coberto do caos que se estabeleceria dentro de vinte e quatro horas. Fim da mensagem. Martin ponderou o assunto ao longo do resto da noite. Não O surpreendia que o Ocidente não acreditasse na informação de Jericó. A revelação de que os pagamentos ao mercenário seriam suspensos constituía um golpe rude. O homem limitara-se a comunicar o conteúdo de uma conferência em que Saddam efectuara uma comunicação importante, crucial. Muito bem, o ditador iraquiano mentira -o facto não tinha nada de novo. Como devia proceder Jericó: limitar-se a ignorar as suas palavras? Fora a ousadia deste último ao exigir um milhão de dólares que provocara a reacção radical. À parte isso, a lógica de Paxman era impecável. Dentro de quatro dias, talvez cinco, Jericó teria descoberto que a fonte dos dólares secara e ficaria furioso, rancoroso. Se não se encontrasse nas mãos de Ornar Khatib, o Atormentador, poderia perfeitamente reagir através de uma denúncia anónima. Não obstante, semelhante atitude resultaria insensata. Se Martin fosse capturado e torturado, tudo o que revelasse serviria para apontar o dedo acusador a Jericó. No entanto, as pessoas por vezes cometiam actos irreflectidos. Paxman tinha razão: os "cestos" podiam ser alvo de vigilância. Quanto a abandonar Bagdade, era mais fácil dizê-lo do que fazê-lo. Através do que escutara no mercado, Martin sabia que as vias de saída da cidade eram fortemente patrulhadas por forças da AMAM e da polícia militar, à procura de desertores. Á carta do diplomata soviético, Kulikov, que possuía 291 só autorizava o portador a exercer as funções de jardineiro e moço de recados em Bagdade. Seria difícil explicar a quem o interceptasse por que seguia para oeste, rumo ao deserto, onde enterrara a bicicleta motorizada. Por fim, decidiu continuar na embaixada soviética por mais algum tempo. Talvez fosse o lugar mais seguro em Bagdade.
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CAPÍTULO 15 - ^
O prazo para Saddam Hussein retirar do Koweit expirava à meia-noite de 16 de Janeiro. Em mil quartos, cabanas, tendas e pavilhões ao longo da Arábia Saudita, Mar Vermelho e Golfo Arábico, homens consultavam os seus relógios e em seguida entreolhavam-se. Tinham pouco ou nada para dizer. Dois pisos abaixo do Ministério da Força Aérea Saudita, por detrás de portas de aço que poderiam proteger as reservas monetárias de qualquer banco do mundo, pairava uma atmosfera de quase anticlímax. Depois de tanto trabalho, tanto planeamento, não havia nada para fazer... nas duas horas mais próximas. Agora, o resto competia aos jovens. Conheciam as suas tarefas e executá-las-iam em plena escuridão, muito acima das cabeças dos generais. O general Schwarzkopf entrou na sala de guerra às 2.15, e leu uma mensagem às tropas. Depois, o capelão pronunciou uma prece e o comandante-chefe concluiu: -Muito bem. Vamos ao trabalho. Longe dali, no deserto, havia já homens em actividade. Os primeiros a cruzar a fronteira não foram os aviões de guerra, mas uma esquadrilha de oito helicópteros Apache pertencentes à 101." Divisão do Exército. A sua missão era limitada, porém-crucial. A norte da fronteira, mas a curta distância de Bagdade, havia duas potentes bases de radar iraquianas, cujos "pratos" dominavam todo o espaço aéreo do Golfo, a leste, até ao deserto ocidental. Os helicópteros tinham sido preferidos, apesar da sua reduzida velocidade em comparação com os "jactos" de caça supersónicos, por duas razões. Rentes ao deserto, podiam deslocar-se abaixo do raio de acção do radar e aproximar-se das bases sem serem pressentidos. Além disso, os comandan- 293 tes pretendiam a confirmação visual de perto de que elas tinham sido realmente arrasadas. Ora, somente os "cópteros" conseguiriam fornecer a informação. Se os radares continuassem operacionais, o preço traduzir-se-ia por um número elevado de vidas humanas. Os Apaches cumpriram a missão a contento. Ainda não tinham sido avistados, quando abriram fogo. Todos os tripulantes dispunham de capacetes de visão nocturna, que lhes permitiam uma visibilidade perfeita, como se o cenário fosse iluminado por luar intenso. Primeiro, destruíram os geradores eléctricos que alimentavam os radares e a seguir os centros de comunicações susceptíveis de informar da sua presença os locais de lançamento de mísseis. Por último, pulverizaram os "pratos" de detecção. A missão abriu um vasto buraco no sistema de defesa aérea do Iraque, através do qual penetrou o resto do ataque nocturno. Aqueles que viram o plano de guerra aérea do general Chuck Horner opinaram que foi provavelmente um dos mais brilhantes jamais concebidos. Continha uma precisão cirúrgica passo a passo e flexibilidade suficiente para enfrentar qualquer contingência que exigisse uma variação. A primeira fase era muito clara nos seus objectivos e conduzia a outras duas: destruir todos os sistemas de defesa iraquianos e converter a superioridade aérea dos Aliados em supremacia absoluta. Para que as duas fases restantes obtivessem êxito dentro do auto-imposto limite de tempo de 35 dias, a aviação tinha de dominar todo o espaço aéreo do Iraque. Para supressão da defesa aérea, a chave era o radar, que na guerra moderna, constitui a ferramenta mais importante e utilizada, apesar da valiosa contribuição de todas as outras. A sua destruição torna o inimigo cego, como um pugilista de soco demolidor privado da vista. Com o largo buraco aberto no radar avançado do Iraque, os aparelhos avançaram em direcção a outros postos de radar no interior do território e bases de mísseis guiados por ele, com o intuito de alcançar os centros de comando, onde se encontravam os generais. Dos couraçados Wisconsin e Missouri e do cruzador Jacinto, ao largo do Golfo, foram lançados cinquenta mísseis Tomahawk Cruise, naquela noite. Orientando-se por meio de uma combinação de banco de memória computadorizado e uma câmara de televisão instalada no "nariz", abarcavam os contornos da paisagem e apontavam no rumo conveniente. Uma vez na área, "viam" o alvo, comparavam-no com o existente na sua memória, identificavam o edifício exacto e avançavam para ele. 294 O Wild Weasel é uma versão do Phanton especializado na destruição de radares, que transporta HARM, Mísseis Anti--Radiação de Alta Velocidade (39). Quando um prato de radar se acende, ou "ilumina", emite ondas electromagnéticas. Não o pode evitar. A função dos HARM consiste em localizar essas ondas com os sensores e avançar directamente para o coração do radar antes de explodir. O mais estranho de todos os aviões que se deslocavam para norte no céu nocturno talvez fosse o F-117A, conhecido como "caça furtivo". Todo preto e criado com uma configuração de tal ordem que os seus múltiplos ângulos reflectem a maior parte das ondas de radar que se lhe dirigem e absorvendo as restantes no seu próprio corpo, recusa reflecti-las para a fonte e denunciar assim a sua existência ao inimigo. Tornados, pois, invisíveis, os F-117A americanos deslizaram despercebidos através das barreiras de radar iraquianas, para largar as suas bombas de uma tonelada guiadas por laser precisamente nos trinta e quatro alvos associados ao sistema de defesa aérea nacional. Treze deles situavam-se em Bagdade e cercanias. Quando as bombas caíam e explodiam, os iraquianos faziam fogo cegamente, mas não conseguiam descortinar nada e os projécteis perdiam-se. Em arábico, os "caças furtivos" denominavam-se shab&h, que significa fantasma. Procediam da base secreta de Khamis Mushai, no sul da Arábia Saudita, para onde tinham sido transferidos do local igualmente secreto em Tonopath, Nevada. Terminada a sua missão, afastavam-se com a mesma subtileza, para irem pousar em Khamis Mushai. As tarefas mais perigosas da noite cabiam aos Tornado britânicos, e consistiam em lançar as enormes e pesadas bombas JP-233. Enfrentavam um duplo problema. Os iraquianos tinham construído os seus aeródromos militares particularmente vastos. O de Tallil tinha uma superfície quatro vezes superior à de Heathrow, com dezasseis pistas que podiam ser utilizadas a qualquer momento, pelo que era impossível destruir todas. O segundo problema dizia respeito à altitude e velocidade. As JP-233 tinham de ser largadas de um Tornado em voo nivelado e estabilizado. Mesmo depois de lançarem as bombas, os aparelhos viam-se forçados a sobrevoar os alvos, pelo que os pilotos corriam o grave risco de ser atingidos.